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LACLAU, SEXUALIDADES E OS CORPOS: ANÁLISE DAS SUBJETIVAÇÕES URSINAS

LACLAU, SEXUALIDADES Y LOS CUERPOS: ANÁLISIS DE SUBJETIVACIONES OSINAS

LACLAU, SEXUALITIES AND THE BODIES: ANALYSIS OF BEAR SUBJECTIFICATIONS

Resumos

Este artigo traz o debate dos corpos para analisar subjetivações ursinas. Inicialmente, é delineada uma breve revisão conceitual de analíticas de poder que contribuem para os estudos em embodiments, com destaque para Laclau e Mouffe (1987)Laclau E. & Mouffe, C (1987). Hegemonía y estratégia socialista: hacia una radicalización de la democracia. Madrid: Siglo XXI., Butler (2010)Butler, J. (2010). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. e Michel Foucault (1996)Foucault, M. (1996). A ordem do discurso. São Paulo: Loyola.. Foi realizada uma pesquisa qualitativa e corpus de pesquisa foi produzido por meio de entrevistas individuais semiestruturadas com 19 participantes. Os dados foram analisados sob a ótica pós-estruturalista do discurso tendo em vista as abordagens laclauniana e foucaultiana. A pesquisa conclui que o discurso ursino sobredetermina práticas dispersas no campo de afetividades analisado ao articular um esquema corpóreo "masculino". Este esquema se assume como um ponto nodal e, consequentemente, é o primeiro a ser acionado nas subjetivações dos participantes. Porém, tal processo não se concretiza de forma plena, nem elimina particularidades que muitas vezes parodiam demandas comportamentais.

corpo; subjetivação; homossexualidade; laclau; ponto nodal


Este artículo aporta al debate de los cuerpos para analizar subjetivaciones osinas. Inicialmente, es delineada una breve revisión conceptual de analícticas del poder que contribuyen a los estudios en embodiments, especialmente por Laclau y Mouffe (1987), Butler (2010)Butler, J. (2010). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. y Michel Foucault (1996)Foucault, M. (1996). A ordem do discurso. São Paulo: Loyola.. Se llevó a cabo una investigación cualitativa y el corpus de investigación fue producido a través de entrevistas individuales semiestructuradas con 19 participantes. Los datos fueron analizados a partir de la perspectiva postestructuralista del discurso dada las analícticas laclauniana y foucaultiana. La investigación concluye que el discurso osino sobredetermina prácticas dispersas en el campo de afectividades analizado mediante la articulación de un esquema corporal "masculino". Este esquema se configura en un punto nodal y por lo tanto es primero en ser despedido en los procesos de subjetivaciones. Sin embargo, esto proceso no se realiza plenamente, ni elimina particularidades que a menudo parodian demandas comportamentales.

cuerpo; subjetivación; homosexualidad; laclau; punto nodal


This article brings the debate of bodies to analyze processes of subjectification of gay men called bears. Initially it's outlined a brief conceptual review of analytics of power that contribute to studies of embodiments, especially by Laclau and Mouffe (1987), Judith Butler (2010)Butler, J. (2010). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. and Michel Foucault (1996)Foucault, M. (1996). A ordem do discurso. São Paulo: Loyola.. The article is based on a qualitative research and the data were collected through semi-structured individual interviews with 19 participants. The data were analyzed considering the poststructuralist perspective of discourse studies given the Laclaudian and Foucauldian approaches. The research concludes that the bear discourse overdetermines dispersed practices in a field of affectualities by constructing a "masculine" body scheme. This scheme is a nodal point and therefore is the first to be enacted on subjectification processes. However, these processes are not fully realized, neither eliminates particularities that often parody the behavioral demands.

body; subjectivation; homosexualities; laclau; nodal points


Introdução

O presente artigo vem analisar práticas1 1 Este artigo concebe práticas tendo como referência Laclau e Mouffe (1987) como aquelas que levam em conta tanto a materialização de sentidos em ações, quanto ações significativas que são empreendidas por diferentes sujeitos e grupos sociais. relacionadas ao corpo em subjetivações ursinas. Trazemos os corpos para explicitarmos seus agenciamentos, tanto nas socializações, quanto na produção dos sujeitos no campo de afetividades estudado. Neste campo, composto por diferentes construções identitárias de gays, destacamos os ursos. O uso metafórico do termo "urso" vem sendo associado a um esquema corpóreo de gays que usualmente exibem corpos parrudos, barba cheia e/ou grande, assim como pelos em outras regiões do corpo (como na região torácica, nas costas, nos braços e nas pernas). De acordo com Wright (1997)Wright, L. (1997). Introduction: Theoretical Bears. In The Bear Book: Readings in the History and Evolution of a Gay Male Subculture (pp. 1-17). New York: Harrington Park Press., este esquema de corpo vem sendo praticado em processos de diferenciações identitárias como um corpo "mais másculo", "bruto", em relação a outras construções corpóreas de gays. Entre elas, destacamos o estereótipo de corpo magro e efeminado dos tweeks (conhecidos no Brasil como bichas pão-com-ovo ou poc-pocs) e de corpos "sarados" dos clones (conhecidos no Brasil como barbies).

Este artigo se encontra articulado da seguinte maneira: (a) primeiramente, retomaremos análises contemporâneas acerca dos corpos nas ciências sociais, com destaque para os estudos em embodiments, tal como reconhecemos na analítica do poder de Michel Foucault e nos estudos de performatividades presentes na teoria de Judith Butler; (b) em seguida, apresentamos a análise do social de Laclau e Mouffe (1987)Laclau E. & Mouffe, C (1987). Hegemonía y estratégia socialista: hacia una radicalización de la democracia. Madrid: Siglo XXI. tendo em vista práticas hegemônicas denominadas por pontos nodais; (c) a metodologia; (d) uma análise dos corpos em subjetivações ursinas.

Corpos em ação

Casey (2000)Casey, C. (2000). Sociology Sensing the Body: Revitalizing a Dissociative Discourse. In J. Hassard, R. Holliday, & H. Willmott (Orgs.), Body and Organization (pp. 52-70). London: Sage. aponta como mainstream, como prevalentes na trajetória ocidental moderna das ciências sociais, vertentes filosóficas que desprezam o corpóreo. Tal desprezo remete a atualizações pós-iluministas da dicotomia cartesiana corpo/mente, que contribuíram para a naturalização de um corpo "universal". Não se trata de um corpo ignorado, mas de seu tratamento instrumental, como um objeto cognoscível pelo espírito e pela mente racional. Um objeto (como qualquer outro) a ser investigado, desmembrado, classificado e descrito por um suposto sujeito autocognoscente que está inserido em um mundo cientificamente racionalizável (Casey, 2000Casey, C. (2000). Sociology Sensing the Body: Revitalizing a Dissociative Discourse. In J. Hassard, R. Holliday, & H. Willmott (Orgs.), Body and Organization (pp. 52-70). London: Sage.).

Segundo Chia (2003)Chia, R. (2003). Ontology: organization as "world-making". In , R. Westwood & S. Clegg (Eds.), Debating Organization: Point-Counterpoint in Organization Studies (pp. 98-114). Oxford: Blackwell., o mainstream funcional-estruturalista, no campo das ciências sociais, adota o método lógico cartesiano da dúvida, o positivismo e o empirismo sistemático. A mente cartesiana busca espelhar com precisão máxima, mapear a natureza da matéria exposta em fenômenos e acontecimentos do mundo externo para, então, estabelecer relações causais em sistemas racionalistas de explicação. Nesta lógica, o corpo também é abstraído e distanciado, é dissocidado do vivido, da experiência corporificada. É naturalizado, "universalizado" e objetivado para que possa imperar um sujeito "íntegro", "autossuficiente", assim como um investigador "objetivo" e "desapaixonado" (Casey, 2000Casey, C. (2000). Sociology Sensing the Body: Revitalizing a Dissociative Discourse. In J. Hassard, R. Holliday, & H. Willmott (Orgs.), Body and Organization (pp. 52-70). London: Sage.).

Porém, isso não quer dizer que estas vertentes não tenham sofrido críticas, tal como situa Hoogland (2007)Hoogland, R. (2007). Theories of the body. In F. Malti-Douglas (Ed.), Encyclopedia of Sex and Gender (pp. 171-176). Detroit: Macmillan Reference. na retomada de concepções não dualistas (como a de Aristóteles) em Espinoza, Nietzsche e Vico. Além disso, Casey (2000)Casey, C. (2000). Sociology Sensing the Body: Revitalizing a Dissociative Discourse. In J. Hassard, R. Holliday, & H. Willmott (Orgs.), Body and Organization (pp. 52-70). London: Sage. aponta críticas à racionalização moderna, às racionalidades tecnocráticas, presentes em autores clássicos das ciências sociais, o que poderia evidenciar certa negligência por parte deste mainstream, sobretudo em relação à obra de Marx, Durkheim, Weber, Nietzsche e Freud. Críticas à noção universal, objetiva e naturalizada de corpo se encontram também presentes na obra de Adorno, Horkheimer, Reich e Marcuse; em autores franceses como Canguilhem, Bergson, Merleau-Ponty, Foucault e Bourdieu; e em debates do feminismo (Casey, 2000Casey, C. (2000). Sociology Sensing the Body: Revitalizing a Dissociative Discourse. In J. Hassard, R. Holliday, & H. Willmott (Orgs.), Body and Organization (pp. 52-70). London: Sage.).

Dale e Burrell (2000)Dale, K. & Burrell, G. (2000). What shape are we in? Organization theory and the organized body. In, J. Hassard, R. Holliday & H. Willmott (Orgs.), Body and Organization (pp. 15-30). London: Sage. identificam no corpo organizado o discurso de toda uma época moderna. Nele, conjuntos de órgãos estão relacionados em sistemas de respostas que contam com três ingredientes principais: a divisão do corpo em partes, uma relação metafórica e maquínica entre essas partes, e a correlação de tais relações com arranjos institucionais (Dale & Burrell, 2000Dale, K. & Burrell, G. (2000). What shape are we in? Organization theory and the organized body. In, J. Hassard, R. Holliday & H. Willmott (Orgs.), Body and Organization (pp. 15-30). London: Sage.). O corpo organizado também traz consigo os pressupostos do racionalismo cético cartesiano, sendo que a mente torna-se fonte da razão que anima o corpo, traz esquemas funcionais para a máquina e examina de forma objetiva as estruturas e funções do receptáculo. Assim como a mente se distancia do corpo, ela se distancia das emoções e das paixões, das diferenças e contradições da carne (Dale & Burrell, 2000Dale, K. & Burrell, G. (2000). What shape are we in? Organization theory and the organized body. In, J. Hassard, R. Holliday & H. Willmott (Orgs.), Body and Organization (pp. 15-30). London: Sage.).

Estas contradições ganham destaque, a partir da década de 1980, em abordagens críticas emergentes na antropologia e na psicologia social, que gradualmente expandiram a investigação do incorporado, do não linguístico, do sensorial e do afetivo para outras áreas das ciências sociais (Casey, 2000Casey, C. (2000). Sociology Sensing the Body: Revitalizing a Dissociative Discourse. In J. Hassard, R. Holliday, & H. Willmott (Orgs.), Body and Organization (pp. 52-70). London: Sage.). Conforme Csordas (2011)Csordas, T. (2011). Embodiment: Agency, Sexual Difference, and Illness. In E. Mascialees (Org.), A Companion to the Anthropology of the Body and Embodiment (pp. 137-156). Oxford: Wiley-Blackwell., o corpo passou a ser complexificado, fragmentado e analisado tendo em vista nuances como, por exemplo, em nível da experiência subjetiva, da interação e da organização social, dos arranjos institucionais, dos processos culturais, da sociedade e da história.

Waskul e Vannini (2006)Waskul, D. & Vannini, P. (2006). Introduction: The Body in Symbolic Interaction. In D. Waskul & P. Vannini (Eds.), Body/Embodiment: Symbolic Interaction and the Sociology of the Body (pp. 1-18). Aldershot, UK: Ashgate. salientam que a retomada de análises acerca dos corpos, nas ciências sociais, remete a um conjunto de estudos que emergem sem um consenso ontológico e analítico, a seguir: (a) corpos socialmente construídos (Featherstone, Hepworth, & Turner, 1991Featherstone, M., Hepworth, M. & Turner, B. (1991). The Body: Social Process and Cultural Theory. Thousand Oaks, CA: Sage.); (b) corpos genderizados (Backett-Milburn & Mckie, 2001Backett-Milburn, K. & Mckie, L (2001). Constructing Gendered Bodies. New York: Palgrave.); (c) sexuados e sexualizados (Fausto-Sterling, 2000Fausto-Sterling, A. (2000). Sexing the Body: Gender Politics and the Construction of Sexuality. New York: Basic.; Lacquer, 1990Lacquer, T. (1990). Making Sex: Body and Gender from the Greeks to Freud. Cambridge, MA: Harvard University Press.); (d) customizados (Demello, 2000Demello, M. (2000). Bodies of Inscription: A Cultural History of the Modern Tattoo. Durham, NC: Duke University Press.); (e) digitalizados (Springer, 1996Springer, C. (1996). Electronic Eros: Bodies and Desire in the Postindustrial Age. Austin: University of Texas Press.); (f) pós-humanos (Halberstam & Livingston, 1995Halberstam, J. & Livingston, I. (1995). Posthuman Bodies. Bloomington: Indiana University Press.); (g) objetivados (Foster, 1995Foster, P. (1995). Minding the Body. New York: Anchor.); (h) tomados pelo pânico (Kroker & Kroker, 1987Kroker, A. & Kroker, M. (1987). Body Invaders: Panic Sex in America. New York: St. Martin's Press.); (i) mercantilizados (Scheper-Hughes & Wacquant, 2003Scheper-Hughes, N. & Wacquant, L. (2003). Commodifying Bodies. London: Sage.); (j) disciplinados (Moore, 1997Moore, P. (1997). Building Bodies. New Brunswick, NJ: Rutgers University Press.); (k) fetichizados (Stratton, 2001Stratton, J. (2001). The Desirable Body: Cultural Fetishism and the Erotics of Consumption. Chicago: University of Illinois Press.); (l) objetivados por meio de gênero e sexualidade (Bordo, 2000Bordo, S. (2000). The Male Body: A New Look at Men in Public and in Private. New York: Farrar, Straus and Giroux.); (m) bem como de raça e etnia (Mohanram, 1999Mohanram, R. (1999). Black Body: Women, Colonialism, and Space. Minneapolis: University of Minnesota Press.).

Entre as diversas abordagens, defendemos a perspectiva de embodiment, pois apresentam uma articulação coerente com a temática do corpo concebido somente em relação à construção de um sujeito (Waskul & Vaninni, 2006Waskul, D. & Vannini, P. (2006). Introduction: The Body in Symbolic Interaction. In D. Waskul & P. Vannini (Eds.), Body/Embodiment: Symbolic Interaction and the Sociology of the Body (pp. 1-18). Aldershot, UK: Ashgate.). Os corpos nos processos de embodiment são compostos por diversas camadas e nuances, são complexos e multifacetados, levam em consideração a experiência humana subjetiva, como também processos culturais, sociais e históricos.

Foucault (1998a)Foucault, M. (1998a). Poder-corpo. In Microfísica do poder (2ª ed., pp. 145-152). Rio de Janeiro: Graal. identificou na modernidade ocidental um novo estatuto concedido aos corpos, que foram colocados em ação, investidos de forças que extraíam não somente bens e riquezas, tempo e trabalho, mas utilidades políticas que serviram de base para a construção da "espécie humana" e do cidadão. Ao situar uma economia política dos corpos, os estudos genealógicos de Foucault destacam que as relações microfísicas de poder se expõem nos corpos, uma vez que eles lhes conferem produtividade, mobilidade, diferentes formatações e alcances.

Foucault (2008)Foucault, M. (2008). Segurança, território, população (E. Brandão, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. trata do tema da governamentalidade, de diferentes tipos de governo e de tecnologias de poder que atuam na gestão da vida. Foucault (1999)Foucault, M. (1999). Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes. mostra como técnicas disciplinares (no que intitula por anátomo-política do corpo) se articulam com dispositivos de regulação da população (Biopolítica). Enquanto as disciplinas adestram e docilizam os corpos individuais, principalmente em contexto de práticas institucionais, a Biopolítica amplia a rede de poder ao regulamentar uma população. Esta biorregulamentação das populações emerge na gestão das forças estatais e se configura como uma nova tecnologia que buscou racionalizar a prática governamental ao produzir um corpo coletivo.

Na modernidade, então, emergem dispositivos que visam regulamentar uma população e produzir os sujeitos, por meio do investimento de normas, de coerências temáticas, de utilizades e inteligibilidades para suas ações, nas quais os corpos assumem papel estratégico (Foucault, 2003Foucault, M. (2003). Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária.). Para Foucault (2005), a norma é "o elemento que vai circular entre o corpo e a população, que permite a um só tempo controlar a ordem disciplinar do corpo e os acontecimentos aleatórios de uma multiplicidade biológica (Foucault, 2005, p. 302).

Como exemplo de articulação de técnicas biopolíticas com técnicas disciplinares, Foucault (1985)Foucault, M. (1985). História da sexualidade I: a vontade de saber (7ª ed.). Rio de Janeiro: Graal. apresenta o dispositivo da sexualidade. Nele, as emergentes ciências biológicas reforçaram a construção das fronteiras sociais a partir da construção de dois sexos (espécies) humanos embodied de relações de gênero (Lacquer, 1990Lacquer, T. (1990). Making Sex: Body and Gender from the Greeks to Freud. Cambridge, MA: Harvard University Press.). Os corpos objetificados foram reorganizados em abstrações tecnocientíficas de estruturas internas e de diagnósticos em sintomas de superfície. Aliado ao novo estatuto interno do corpo, as "aberrações biológicas", delinquências, improdutividades e perversões sociais se inserem no controle "quase médico" da população (Foucault, 1997Foucault, M. (1997). The Abnormals. In Ethics: Subjectivity and Truth (pp. 51-57). New York: The New Press.). Controle exercido através de técnicas disciplinares como a prisão, os métodos de assepsia e as novas terapias da alma, e por sanções administrativas na promoção do bem-estar e segurança de uma população (Foucault, 1999Foucault, M. (1999). Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes.). Neste processo emergência do dispositivo da sexualidade é construída a homossexualidade,

Foi por volta de 1870 que os psiquiatras começaram a constituí−la como objeto de análise médica: ponto de partida, certamente, de toda uma série de intervenções e de controles novos. É o início tanto do internamento dos homossexuais nos asilos, quanto da determinação de curá−los. Antes eles eram percebidos como libertinos e às vezes como delinquentes. A partir de então, todos serão percebidos no interior de um parentesco global com os loucos, como doentes do instinto sexual. (Foucault, 1998b, pp. 233-234)

O dispositivo da sexualidade atua na instauração de um tema único para múltiplas possibilidades de afetividade, de prazer, de uso dos corpos. A articulação destas técnicas de poder ganha maior densidade quando articuladas com "verdades" científicas e tais articulações dão coerência a "elementos anatômicos, funções biológicas, comportamentos, sensações, saberes e prazeres" (Dreyfus & Rabinow, 1995, p. 195Dreyfus, H. & Rabinow, P. (1995). Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária.). Nesse sentido, esta ampliação do poder categoriza e produz o sujeito de sexualidade ao atuar na inteligibilidade das práticas dos indivíduos e na regulação de um corpo coletivo, limitando as possibilidades de materialização de outras existências.

Butler (2010)Butler, J. (2010). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. critica a construção de uma metafísica da substância por meio da naturalização da distinção sexo/gênero, que realiza uma descontinuidade radical entre corpos sexuados e gêneros culturalmente construídos. Trata-se de uma naturalização do corpo biológico como existente antes de sua significação como sexuado, frequentemente como um meio passivo significado pela inscrição de uma fonte cultural externa. Butler (1992)Butler. J. (1992). Bodies That Matter: On the Discursive Limits of ''Sex.'' New York: Routledge. afirma que as subjetividades de gênero são produzidas nos discursos e normas reguladoras que instauram ficções, causalidades na organização da sexualidade dos indivíduos. Souza e Carrieri (2010)Souza, E. & Carrieri, A. (2010). A analítica Queer e seu rompimento com a concepção binária de gênero. Revista de Administração Mackenzie, 11(3), 46-70. nos recordam que tal atualização do dispositivo da sexualidade traz uma tríade de conceitos relacionados em causa-efeito: sexo-gênero-sexualidade. Nesta relação, "o sexo biológico define o gênero e o gênero define a sexualidade das pessoas." (Souza & Carrieri, 2010, p. 53Souza, E. & Carrieri, A. (2010). A analítica Queer e seu rompimento com a concepção binária de gênero. Revista de Administração Mackenzie, 11(3), 46-70.). Os "desvios" nestes encadeamentos conferem homossexualidade a homens efeminados e a mulheres masculinizadas.

Todavia, o processo de embodiment destas normas denuncia sua performatividade. Não se trata de um evento único, originário, que produz o sujeito de gênero. As normas são constantemente repetidas, reiteradas, auxiliadas por forças e saberes que lhes conferem maior circulação e temporalidade semelhante ao presente, "dissimulando as convenções das quais são uma repetição." (Butler, 2010, p. 12Butler, J. (2010). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.). A reiteração das normas de gênero se apoia também no investimento político nos corpos, na construção de "espaços fixados de "permeabilidade e impermeabilidade", na organização do que admirar, do que tocar, onde se obter prazer, conforme uma matriz de inteligibilidade heterossexual, viril e reprodutiva (Butler, 2010, p. 190Butler, J. (2010). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.).

Os sujeitos contemporâneos, portanto, são produzidos em um discurso heteronormativo que ganha eficiência, amplitude e circulação também ao objetivar os corpos de acordo com um esquema "saudável" (biologicamente "equilibrado" e popularmente "regular"). Entretanto, as performatividades denunciam uma produção que é sempre incompleta. Caso contrário, não haveria nada a ser reiterado e repetido. Assim, as resistências se expõem em práticas inovadoras, em aberturas de "superfícies e orifícios", em novas significações eróticas e afetivas, em "reinscrições dos limites do corpo" (Butler, 2010, p. 190Butler, J. (2010). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.). E quando tais delimitações corpóreas são postas em dúvida, a coerência de um "interno" impermeável deixa de designar um topos: "Esse ideal regulamentador se revela, então, como uma norma e uma ficção disfarçada de lei de desenvolvimento que regulamenta o campo sexual que pretende descrever." (Butler, 2010, p. 194Butler, J. (2010). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.).

No próximo tópico destacaremos operações hegemônicas na "sociedade" tendo em vista a análise do social proposta por Laclau e Mouffe (1987)Laclau E. & Mouffe, C (1987). Hegemonía y estratégia socialista: hacia una radicalización de la democracia. Madrid: Siglo XXI.. Como os usos dos corpos remetem a construções identitárias, interessa-nos discutir como se dá a articulação de identidades em campos de práticas discursivas.

Os pontos nodais e os limites da sociedade

Laclau e Mouffle (1987,) ao debaterem a impossibilidade da sociedade, o fazem destacando sua carência de essências e a suturação de seu espaço. A sociedade apresenta aberturas que ontologicamente impedem que se constitua em uma totalidade plena e em um domínio que determine as práticas dos sujeitos. Nesse sentido, não podemos afirmar que nos deparamos diante "da sociedade" como uma entidade já existente que estabelece normas gerais. Porém, esta carência constitutiva não remete à ausência de organizações que operam por todo corpo social. Pelo contrário, o social é composto por processos de ordenação que visam fixar identidades e sentidos por meio de práticas articulatórias (Laclau & Mouffe, 1987).

As práticas articulatórias são práticas político-discursivas contingentes e ordenam elementos que não conseguem se converter em ¨momentos¨ (Laclau & Mouffe, 1987). Ou seja, o caráter recíproco das relações entre sentidos, assim como entre práticas sociais significativas articuladas neste espaço, não levam a algo ¨além¨ do que se encontra neste processo, nem à retomada de algo essencial e originário.

Como as práticas articulatórias não se consagram em um espaço coeso, tal espaço é ¨suturado¨ e marcado por um vazio constitutivo. Laclau e Mouffe (1987)Laclau E. & Mouffe, C (1987). Hegemonía y estratégia socialista: hacia una radicalización de la democracia. Madrid: Siglo XXI. retomam o conceito lacaniano de sutura para destacarem que este espaço não apresenta uma origem. Ele é ¨preenchido¨ por práticas hegemônicas que instauram ficções de plenitude e de fronteiras identitárias, que não conseguem ser totalmente objetivadas.

E como não há nada ¨anterior¨ a ser recuperado, nem delimitações sociais plenas, os ¨preenchimentos¨ vão sendo sobredeterminados por novas fixações precárias de sentido. Laclau e Mouffe rearticulam o conceito althusseriano de sobredeterminação a partir de Freud: " um tipo preciso de fusão que supõe formas de reenvio simbólico e uma pluralidade de sentidos. O conceito de sobredeterminação se constitui no campo do simbólico e carece de toda significação à margem do mesmo" (Laclau & Mouffe, 1987, p. 110Laclau E. & Mouffe, C (1987). Hegemonía y estratégia socialista: hacia una radicalización de la democracia. Madrid: Siglo XXI.). Para que haja uma fixação parcial de sentido na ordem simbólica, os significantes devem também ¨se esvaziar¨ para englobarem dispersões, assim como reestabelecer as ¨suturas¨ em processos de diferenciação.

Laclau e Mouffe (1987)Laclau E. & Mouffe, C (1987). Hegemonía y estratégia socialista: hacia una radicalización de la democracia. Madrid: Siglo XXI. denominam este significante vazio, que dá coerência particular e parcial a uma cadeia polissêmica, como ponto nodal. Os pontos nodais são práticas articulatórias hegemônicas que remetem a concentrações momentâneas de poder em um campo de discursividade (Laclau & Mouffe, 1987). Estas operações hegemônicas não trazem uma nova essência, pois, ao mesmo tempo que os significantes são esvaziados, eles ¨flutuam¨ ao sobredeterminarem outras práticas no campo (Laclau & Mouffe, 1987).

Esta operação se dá mediante processos de equivalência e de diferenciação. Os pontos nodais, ao mesmo tempo que convertem demandas particulares em equivalentes, o fazem diferenciando de outros pontos antagônicos, "isto significa que a identidade do objeto na relação de equivalência está dividida: por um lado, conserva seu próprio sentido 'literal'; por outro, simboliza a posição contextual a respeito da qual é um elemento substituível" (Laclau & Mouffe, 1987, p. 73). Por se tratarem de práticas hegemônicas, ao mesmo tempo que emergem coerências que englobam particularidades (sem que elas se percam), o antagonismo impede que as diferenciações ganhem objetividade plena, já que denuncia uma construção recíproca. Trata-se de um espaço no qual as relações de significação e os significados emergentes são contextuais e só se estabelecem em relação com os outros (Laclau & Mouffe, 1987).

Não estamos, portanto, lidando com contradições, nem com hierarquias, mas com relações antagônicas que, ao se constituírem, impedem que se estabeleça uma sutura total e uma diferenciação identitária completa. Neste contexto, os sujeitos são também penetrados pela polissemia que compõem estes jogos de ressignificações precárias, nos quais as subjetivações e práticas corpóreas não conseguem assumir estatutos de integridade, nem de formatação plena.

A própria atualização das referidas ¨suturas¨ já denuncia que tais ¨universalizações de particularidades¨ são também compostas por contingências que impedem que se cristalizem as fronteiras identitárias. Diante disso, não podemos pensar a sociedade como uma totalidade coerente, única, pois suas aberturas constantemente denunciam as operações ficcionais de limites por meio de pontos nodais hegemônicos. Ademais, não podemos pensar os sujeitos como íntegros, visto que se constituem em contextos polissêmicos.

Tendo em vista a exposição de saberes que nos auxiliaram na construção do corpo teórico do presente artigo, o próximo tópico dispõe da metodologia de pesquisa. Nela estão expostos sua natureza, o processo de produção dos dados e os conceitos principais que nos orientaram na análise.

Metodologia

Este artigo é sustentado por uma pesquisa de natureza qualitativa. Acreditamos que o mundo social não é um dado natural (Gaskell, 2002Gaskell, G. (2002). Entrevistas individuais e grupais. In M. Bauer & G. Galskell (Orgs.), Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som (pp. 64-89). Petropóles: RJ: Vozes.). Ele é cotidianamente construído pelos sujeitos cuja liberdade é limitada nas relações de saber-poder (Foucault, 2003Foucault, M. (2003). Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária.). Para a produção de dados, foram realizadas entrevistas individuais auxiliadas por roteiro semi-estruturado. Solicitamos aos participantes que relatassem seu cotidiano e suas histórias de vida, para que eles mesmos se situassem frente aos acontecimentos sócio-históricos de sua época, considerando-se contextos de amizade, de socialização em grupos gays, assim como nos "cuidados de si" (Foucault, 1998aFoucault, M. (1998a). Poder-corpo. In Microfísica do poder (2ª ed., pp. 145-152). Rio de Janeiro: Graal.).

Os participantes foram selecionados pela técnica de snowball sampling (técnica da "bola de neve") (Biernacky & Waldorf, 1981Biernacky, P. & Waldorf, D. (1981). Snowball Sampling: Problems and techniques of Chain Referral Sampling. Sociological Methods & Research, 10(2), 141-163.). O pesquisador lançou mão de redes de contato, das quais os próprios participantes foram sucessivamente indicando outros, contribuindo para que contabilizássemos um total de 19 (dezenove) entrevistas. Consideramos que este número de entrevistados foi o necessário haja vista o ponto de saturação de sentido (Gaskell, 2002Gaskell, G. (2002). Entrevistas individuais e grupais. In M. Bauer & G. Galskell (Orgs.), Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som (pp. 64-89). Petropóles: RJ: Vozes.). Foram selecionados gays moradores da região da Grande Vitória. Os entrevistados possuem idades que variam entre 22 e 38 anos. A maioria se identificou como pertencente à classe média e menor parte (5 participantes), à classe média-alta. Quando questionados a respeito de raça, a grande maioria a identificou como branca, e pequena parte, como parda (4 participantes). O nível de escolaridade é praticamente dividido entre superior completo e superior incompleto. No intuito de mantermos o anonimato dos entrevistados, suas narrativas serão referenciadas conforme enumeração precedida do termo Urso: Urso 1, Urso 2, Urso 3, e assim por diante.

Para a análise das entrevistas, foi utilizada a perspectiva pós-estruturalista da análise do discurso. Nesta vertente, defendemos as analíticas propostas por Michel Foucault e por Ernesto Laclau, pois ambos colocam em jogo o debate político da construção dos discursos que leva em conta também a articulação de elementos não discursivos (Foucault, 1996Foucault, M. (1996). A ordem do discurso. São Paulo: Loyola.). Sob a ótica laclauniana, a construção de um campo composto por práticas identitárias nos auxilia a identificarmos fixações hegemônicas de alguns discursos - os pontos nodais. Foucault (1996)Foucault, M. (1996). A ordem do discurso. São Paulo: Loyola. nos auxilia a descrevermos os jogos de verdade e relações de força a partir dos dispositivos de poder. Sales (2008)Sales, R. (2008). Laclau e Foucault: desconstrução e hegemonia. In D. Mendonça & L. Rodrigues (Orgs.), Pós- estruturalismo e teoria do discurso: em torno de Ernesto Laclau (pp. 145-163). Porto Alegre: EDIPUCRS. discute que tal exercício não é incomensurável, uma vez que a noção de campo discursivo em Laclau se aproxima da noção de dispositivo em Foucault.

Diante disso, traçamos um percurso de análise que compreende a construção de um "campo de corpos"2 2 "Se a delimitação, formação e deformação dos corpos sexuados são animadas por um conjunto de proibições fundadoras, um conjunto de critérios forçados de inteligibilidade, então não estamos apenas considerando como os corpos emergem a partir do ponto de vista de uma posição teórica ou epistêmica distantes dos próprios corpos. Pelo contrário, estamos perguntando como os critérios do sexo inteligível operam na constituição de um campo de corpos, e como exatamente entender os critérios específicos para produzir os corpos que eles regulam." (Butler, 1992, p. 55) (Butler, 1992Butler. J. (1992). Bodies That Matter: On the Discursive Limits of ''Sex.'' New York: Routledge.) que explicita a operação de práticas identitárias hegemônicas, de pontos nodais, por meio de esquemas corpóreos. Tal análise envolve tanto um estabelecimento precário de fronteiras, quanto possíveis ressignificações que façam emergir novos pontos nodais. Em seguida, levamos em conta a operação de esquemas corpóreos nos processos de subjetivação dos participantes como "ursos". Por fim, consideramos resistências e táticas que se disseminam no campo discursivo que contribuem para a desestabilização do que encontra em hegemonia.

Os corpos em subjetivações ursinas

Quando muitos entrevistados (10 participantes) se inseriram em grupos gays, não existiam grupos de ursos no Brasil. Porém, eles já identificavam a presença de grupos locais de barbies e de poc-pocs. As barbies reiteram práticas identitárias do movimento estadunidense dos clones, que remete ao que Hennen (2008)Hennen, P. (2008). Faeries, Bears and Leathermen: Men in Community Queering the Masculine. Chicago: The University of Chicago Press. aponta como a "corrida urbana à masculinidade" iniciada na década de 1980. Este esquema identitário apresenta um corpo padronizado mais identificado como "sarado" - de sujeitos musculosos com pouca gordura corporal. As poc-pocs vão de encontro com a ampla operação heteronormativa de gênero que identifica gays como homens efeminados. Este grupo também apresenta um esquema corpóreo característico de homens magros, juvenis, sem a presença de pelos no corpo, que muitas vezes adotam um estilo andrógeno. Na própria fala dos participantes,

as barbies são as bombadas, que chegam em uma boate e a primeira coisa que fazem é tirar a camisa pra mostrar o corpo. Depiladas. As poc-pocs são aquelas bem bichas que adoram falar alto, fazem questão de vestir uma roupa pra chamar mais atenção ainda (risos). E tem os ursos, que são os gordinhos peludos, que ... que ... até então, quando eu comecei a explicar pras pessoas, eles não me chamam mais por outro nome. (Urso 7)

Observa-se que as classificações citadas são identificadas a partir de indícios corpóreos de efeminação e de formatações "ideais". Nesta dinâmica, o discurso ursino, além de trazer uma adjetivação masculina para gays, traz um esquema de corpo que se encontrava "fora" destas práticas hegemônicas ao atualizar um discurso de masculinidade "tradicional". Ou seja, este discurso busca instaurar uma imagem de algo "ainda mais masculino" em relação às barbies por meio da exibição dos pelos e de corpos grandes. Segundo Hennen (2008)Hennen, P. (2008). Faeries, Bears and Leathermen: Men in Community Queering the Masculine. Chicago: The University of Chicago Press.:

Além do grande apelo contra a efeminação e a erotização do corpo mais pesado, o fenômeno dos ursos apresenta pelo menos dois fatores adicionais que contribuem para sua popularização na década de 1980. Um deles foi, sem dúvida, a pandemia da AIDS na imaginação erótica de homens gays. Numa época em que a magreza podia estar relacionada com a doença e com a morte, o corpo carnudo foi reinterpretado como um indicador de saúde, vigor, força e virilidade. O segundo fator foi a capacidade do movimento ursino de cooptar subculturas existentes que estavam operando de forma informal por décadas. Uma das razões para tal emigração pode ser a imagem mais atraente empregada pelos ursos ao articularem um corpo maior com a natureza e as noções mais convencionais de masculinidade. (Hennen, 2008, p. 100)

O discurso ursino ganha circulação global em meados da década de 1990 através da internet, com destaque para websites que passaram a conter vídeos pornográficos de ursos e também em canais de bate-papo e sites de relacionamento específicos. No final da década de 1990, foram criados sites ursinos brasileiros, bem como grupos em redes sociais. As interações virtuais, consequentemente, impulsionaram a realização de encontros locais que atualmente compõem os circuitos badalados de festas gays principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo.

A globalização do discurso ursino também trouxe um modelo "centrípeto", midiático, de corpo materializado na figura do musclebear: o homem parrudo e musculoso, aos seus 40 anos de idade, com barba cerrada e delineada, pelos corporais expostos sem excesso, fenotipicamente branco (com algumas possibilidades para pardos). Ao redor deste "tipo ideal" giram outras classificações transversais captadas sobretudo a partir do que não se encontra exposto nos esquemas de corpos dos outros pontos nodais. Contudo, as práticas contemporâneas identificadas como ursinas emergiram de forma difusa em grupos gays estadunidenses no final da década de 1960, período marcado pela grande efervescência cultural naquele país e por diversas experimentações sociais, como, por exemplo, as do movimento hippie, de lutas raciais, a segunda onda do feminismo, o gay liberation, todos em combate aos esquemas opressores do american way of life (Hennen, 2008Hennen, P. (2008). Faeries, Bears and Leathermen: Men in Community Queering the Masculine. Chicago: The University of Chicago Press.).

Wright (1997)Wright, L. (1997). Introduction: Theoretical Bears. In The Bear Book: Readings in the History and Evolution of a Gay Male Subculture (pp. 1-17). New York: Harrington Park Press. aponta a gradual expansão de espaços socialmente identificados como ursinos naquele país a partir da década de 1970. Estes espaços eram frequentados tanto por motoqueiros gays, leathers3 3 Os leathers são uma comunidade gay ¨hipermasculina¨ (embora não exclusivamente formada por gays) que adota práticas e estilos construídos ao redor de atividades sexuais e do erotismo hedonista. Distinguem-se pelo uso do couro e muitas vezes por práticas BDSM (Bondage , Dominação, Sadismo e Masoquismo) (Rubin, 2004). , quanto por homens que exibiam cabelos longos, homens "regulares", negros, hispânicos, fetichistas, chubbies (homens gordos), homens rurais e urbanos, isto é, por sujeitos que buscavam alternativas "masculinas" e "normais" em relação às práticas "masculinas" mais radicais e ao gay efeminado (Wright, 1997Wright, L. (1997). Introduction: Theoretical Bears. In The Bear Book: Readings in the History and Evolution of a Gay Male Subculture (pp. 1-17). New York: Harrington Park Press.).

Após essas breves considerações, identificamos as seguintes estabilidades acerca do fenômeno dos ursos no estado do Espírito Santo: (a) a primeira delas está no fato de que tal fenômeno é exclusivamente urbano e ocorre especialmente na Grande Vitória; (b) é composto por homens de notoriedade corporal em grupos locais de gays, ou seja, por sujeitos que "chamam atenção" por apresentarem corpos fora das normas em hegemonia: ou mais pesados, mais parrudos, ou mais peludos; (c) por fim, estes homens enfrentavam algum tipo de dificuldade de socialização com o que se encontrava em hegemonia, seja por não se encaixarem nos padrões estéticos e/ou por dificuldades de se inserirem em grupos locais.

Os entrevistados informaram que na região de Vitória há uma tendência comum às regiões litorâneas brasileiras de se estereotipar o belo como "aquele corpo saradinho, lisinho, do verão" (Urso 10) e inclusive chegam a descrever que este padrão é exercido de forma ainda mais radical em espaços gays:

Tem!!! (risos) Nossa, se tem!!! Ainda mais aqui em Vitória!!! Quem não tem corpo não é visto, ponto. Eles nem olham pra você. O padrão de Vitória é que você tem que ser magro e preferencialmente malhado, ponto. As pessoas ignoram sua presença, geralmente é assim. Por isso eu evito de sair a muitos lugares. (Urso 15)

Observa-se a operação de esquemas totalizantes (Laclau & Mouffe, 1987) nos quais o corpo "saudável" comunica os "melhores" sujeitos daqueles espaços, como também auxilia na fixação precária dos sistemas de diferenças. As fronteiras são construídas com base na exibição de um corpo magro ou malhado, isto é, do "Corpo" (Ursos 5, 7, 8). "Ter corpo" seria o mesmo que "existir" nesta ficção: "Não preciso ter corpo. Eu quero ser gordo e eu me sinto bem assim" (Urso 7). Este "corpo" é acionado em espaços preferenciais como as boates badaladas e caras (por exemplo, a Move), mas obedece também estilos e comportamentos que auxiliam na comunicação de que os sujeitos sejam ricos e "conhecidos" (populares):

Quando você vai a uma boate tipo a Move, se você não tem um padrão que eles aceitam lá, você não é nada. São três padrões que eles aceitam lá: ser bonito, ter corpo e ser rico. Se você não é nenhum deles, ou esteja perto de ter, todo mundo te olha torto. Ao menos que você conheça alguém famosinho ... Isso que é engraçado, eu nunca sofri discriminação de heteros, mais de gays mesmo. (Urso 8)

As hegemonias são relações políticas e um dos efeitos desses jogos é que alguns pontos nodais parecem estabelecer as únicas formas de existência naqueles espaços. Não basta somente o sujeito "ter corpo". Este discurso só ganha maior estabilidade e alcance quando articulado com outros enunciados nas redes de poder, ou seja, quando compõe um "estilo da carne" (Butler, 2010Butler, J. (2010). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.) que leva em conta temáticas de raça, de classe econômica e de gênero. Como estamos lidando com um campo de posições antagônicas, e não contraditórias, tratam-se de identidades que estão sempre em crise, pois os sujeitos não são produzidos em um esquema pleno a ser embodied (Laclau & Mouffe, 1987), o que não impede que as relações de força sejam sentidas na "pele" e, consequentemente, que os "não sujeitos" destas ficções adotem suas táticas (Butler, 2010Butler, J. (2010). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.).

Eu tava namorando esse rapaz e... e ele era muito bonito. Magrinho, bonitinho. E eu sempre me perguntava... eu sou muito idiota. Se eu pegar uma pessoa mais bonita que eu, eu fico questionando porque essa pessoa fica comigo. Eu fico questionando porque ela ficou comigo. Como estava te falando, eu me acho a pessoa mais feia do mundo. Eu brigava ... eu tinha essa coisa de ninguém olhar pra mim. Eu me sentia uma aberração da natureza por ser gordinho. Com a coisa do urso mudou bem. (Urso 7)

A partir do contato com esquemas corpóreos ursinos em sites pornográficos, em chats, nas redes sociais e do que traziam de encontros de ursos realizados em outras cidades, os participantes capixabas foram se deparando com materializações do discurso ursino, que abriram horizontes para novas possibilidades de existência como gays. E tais contingências passaram também a constituir um conjunto de necessidades que se inserem no campo de práticas afetivas organizadas neste discurso:

Foi como se eu tivesse ganhado na mega-sena! Gente, eu não acredito! Tem gente que gosta de pessoas do jeito que eu gosto. Gente que gosta do jeito que eu vou ser. Por que eu não tinha barba ainda, bigode de verdade e tal. Mas eu sabia que eu ia ter. Eu queria ser daquela forma um dia, por que era o tipo que eu gostava. Acho que foi quando eu realmente tive vontade de sair do armário. Então, sendo urso, dá pra ser feliz. (Urso 1)

"Eu fui numa festa de ursos e eu fiquei deslumbrado ... realmente assim, um exemplo tosco ... uma criança. Foi no Rio. Uma criança que entra na festa de aniversário de seu super-herói favorito onde todo mundo passa a olhar pra você e você queria todo mundo também." (Urso 4)

Nota-se a potencialização dos corpos abjetos e a paulatina rearticulação do campo de corpos (Butler, 1992Butler. J. (1992). Bodies That Matter: On the Discursive Limits of ''Sex.'' New York: Routledge.). A partir do momento em que outras existências se mostram visíveis e atuantes por meio de práticas ursinas, as prescrições corpóreas que sustentam os dois principais pontos nodais paulatinamente se deparam com a emergência de outra força antagônica.

Emerge uma nova "marca" (Urso 15) no campo local de práticas afetivas que adota também estratégias que "estereotipam" (Urso 16), mesmo que este processo não se dê de forma muito clara. Observamos as duas configurações de grupos ursinos locais que, apesar de adotarem estilos diferentes, mostram aproximação similar quanto aos requisitos corporais. O primeiro grupo é mais "velho" e cult. Nele, as roupas de grife (confome os participantes, características do meio gay) são substituídas por camisetas estampadas que apresentam mensagens da cultura geek 4 4 O termo geek refere-se a uma requalificação do termo muitas vezes depreciativo dos nerds - de sujeitos aficionados por literaturas de tecnologia, por jogos eletrônicos, animes , quadrinhos, entre outros. Antes vistos como antissociais, são o estereótipo desta nova indústria bilionária de entretenimento. , mpb, indie 5 5 Cultura comercial atualizada na primeira década do século XX que remete ao estilo underground da década de 1980 em países anglo-saxões. , das redes sociais, entre outras. O estilo musical também é cult (Urso 16), apesar de ser ainda muito forte o gosto pela música pop (desde que esta não penda para o eletrônico "bate-estaca"). Além disso, os encontros são realizados em espaços "alternativos" como as festas da Anti-Mofo, em cinemas, restaurantes, mas, principalmente, na casa dos participantes.

O grupo "jovem" é um grupo pop (Urso 16) e se aproxima da dinâmica "comum" do circuito gay, já que muitos ainda estão no meio universitário ou circulam por ambientes de festas e baladas característicos deste público. Outro ponto que reforça a inserção do discurso ursino em um campo antagônico está no fato de outros gays também passarem a adotar o termo urso. E o critério mais utilizado para a proliferação deste termo remete a um corpo com peso elevado ou de proporções maiores em relação às "normais": "Eu tenho muito amigos gays que são magros, sarados, e eles falam: pra ser urso, tem que ser gordo. Basta isso. Eu não sei se é muito bem por aí." (Urso 16); "No Brasil, as pessoas sempre associam urso aos mais gordinhos, ou pelo menos mais parrudos pra gordinhos. Peludinho, barbudinho. Então, é nesse universo físico" (Urso 2).

Por estarem "fora" das normas corporais, grupos de ursos muitas vezes são taxados por outros gays (segundo os participantes por gays "normais" e barbies) como de "autoajuda" (Ursos 2 e 4), o que reitera a operação dos outros pontos nodais com um discurso de saúde, por meio dos esquemas de corpo "saudável" e "perfeito" (Urso 2). Assim, os "outros gays", ao se referirem aos ursos, trouxeram em maior ocorrência um corpo fora das formatações "ideais" do que enunciados de masculinidade, "como o gay que a sociedade aceita" (Urso 12). Diante disso, gays "gordinhos" passam a existir como ursos: "Antes era contado como gordo e agora sou contado como urso" (Urso 4).

Você sai de um padrão estabelecido pela sociedade e vai pra um padrão que é totalmente você. Então você é alguém. Você é bonito ali, você é desejado, as pessoas te olham, as pessoas querem ficar com você, querem ser amigas. Você cria uma popularidade. Então, começa a existir. Do nada, você se transforma em alguém. (Urso 1)

Estamos falando, portanto, de sujeitos que "se converteram" socialmente em um tipo especial de gay denominado urso. E os indícios corpóreos são importantes nestas produções. Enquanto a apresentação de um corpo com formas "maiores" do que as "normais" parece melhor situar ursos entre "outros" gays, a maioria dos participantes, ao identificar o que é necessário para que alguém seja identificado como urso, leva em conta também a graduação e/ou soma de outros dois aspectos principais: o uso de barba e a exibição de pelos por todo o corpo. Nesta lógica, a ausência de qualquer um destes atributos quase sempre é suficiente para desqualificar alguém como urso.

E quanto mais os esquemas ursinos passam a fazer sentido nas subjetivações dos participantes, mais passam a objetivar corpos ursinos. Assim, as partes mais "ursinas" acabaram se tornando mais expressivas quando questionados sobre o que mais admiram em seus corpos. O que antes era trazido como algo a ser corrigido, tratado ou mesmo eliminado, passa a compor uma geometria da parrudez (Urso 1), sempre que possível associada com a presença de pelos corporais. Entre as partes do corpo mais autoadmiradas, as pernas foram as que mais se destacaram (Ursos 7, 9, 10, 12, 13, 16, 17) e foram adjetivadas principalmente como musculosas, torneadas, duras, grossas e peludas. As barbas também ganharam expressão (Ursos 4, 8, 11, 12, 15 e 19).

A terceira parte do corpo mais destacada pelos participantes foram os olhos, exclusivamente para os que apresentam olhos com coloração verde ou azul (Ursos 4, 5, 13, 19). Entre os participantes que apontaram o corpo "como um todo" (Ursos 2 e 3), o fizeram destacando a parrudez. Ganharam expressão também as costas e os ombros largos (Ursos 6 e 14), o peitoral (Urso 11), os pelos (Urso 4), a boca (Urso 7), o antebraço (Urso 12) e a bunda (Urso 1). A maior função atrelada a estes apontamentos remete a algo másculo e viril em seus corpos, mesmo em partes como os glúteos e o rosto. No entanto, a "ursinidade" não é absoluta no discurso dos participantes, pois foram destacadas também partes como os olhos e a boca. Observamos ainda que as pernas e as costas muitas vezes são apontadas como "equilibradas", configurando-se como algo diferente do "maior" que é característico do discurso ursino.

Apesar de boa parte das respostas se aproximar do esquema ursino de corpo, tal esquema "ruge" ao descreverem o que não gostam, o que os falta e o que gostariam que fosse diferente em seus corpos. Aqui, vemos potenciais musclebears e a parrudez surge como requisito principal para que conquistem o máximo de satisfação corporal. O parrudo seria um homem que não apresenta aspectos de magreza, nem de grande definição muscular: tem pernas e panturrilhas grossas, braços grossos e musculosos, peitoral e costas largos. Trata-se de um corpo "grande", mas também "rígido", ou seja, que não se apresenta "flácido" (Urso 3).

Estamos falando de vetoriedades que buscam se distanciar do "corpo perfeito", "sarado", que demarca as práticas de gays identificados como barbies. Conforme explicitado anteriormente, os participantes denominam como barbies gays "de academia" (Urso 9), que apresentam corpo "malhado", com pouca presença do que chamam de "massa gorda" (Urso 8). "Um cara urso tem que ser no mínimo ossudo, forte, não pode ser definidão, nem quebradiço" (Urso 3).

Porém, como se trata de um campo marcado pelo antagonismo, as operações de equivalência e diferenciação do discurso ursino não trazem um esquema de corpo que venha "suturar" de forma plena este campo de práticas, visto que os musclebears apresentam também aproximações com esquemas corpóreos de barbies.

Eu acho os braços. É uma questão de estética mesmo. Quando você vê uma bolinha, você quer que ela fique toda redonda, entendeu? Então, acho que quando eu ficar com os braços maiores, resolver entrar na academia, virar um musclebear ou coisa do tipo, eu acho que vou ficar mais bonito, pois vou ficar mais troncudinho. Falta alguma coisa ali pra ficar um parrudo legal. (Urso 1)

O mesmo ocorre quando os participantes "extrapolam" tais expansões de limites, o que leva a demandas de emagrecimento: "Eu não me sinto muito confortável. Acho que uns 15 kg, pra dar uma secadinha na barriga, pra ficar mais reta. Por que já sou troncudo pra mais. Ao invés de ficar aquela bola pra frente, ficaria bacana (risos)." (Urso 17); "Eu acho que eu queria ser um urso mais musculoso e não um gordinho. Mais pra musculoso. Não musculoso de academia, aquele negócio todo sarado. Mais proporcional, eu acho" (Urso 9).

É interessante notarmos que a grande maioria dos participantes deixa claro que não quer apresentar um corpo "sarado". Isto está intimamente ligado com um risco de perderem a masculinidade "tradicional" atualizada em seus corpos, que apresenta também a função ficcional de diferenciação dos outros padrões gays. Contudo, não podemos desprezar o fato de que alguns participantes vão sendo denominados como ursos por outras pessoas, mesmo que não desejem tal classificação:

Olha, a questão é assim, não é que eu não concorde, eu tento não me encaixar nisso, porque foi uma denominação que eles me encaixaram. E eu meio que vou me encaixando por não me enquadrar no estereótipo padrão de gay, que é uma pessoa magra, malhada, de academia. Mas eu nunca, tipo assim, nunca tive isso pra mim. (Urso 16)

Este é mais um dos indicativos da nodalidade do discurso ursino. Os sujeitos acabam sendo "levados" para estas classificações. Porém, a maior parte dos participantes passou a ressignificar os "cuidados de si" (Foucault, 1998aFoucault, M. (1998a). Poder-corpo. In Microfísica do poder (2ª ed., pp. 145-152). Rio de Janeiro: Graal.): "Olha, pode ser até certo preconceito meu. Eu tento ser o máximo urso, até no jeito de vestir. Eu tento manter a barba, tento manter o máximo de masculinidade possível, não ser afetado" (Urso 11).

Tem um ano que parei de me montar. Por que eu comecei a perder a personalidade ursina. Depois que eu conheci, eu viciei. Eu me raspava todo, entendeu? Eu não me considerava urso. É igual ao que falei. Eu coloco essa máscara da barba, eu me sinto mais imponente, né? Eu fico mais sério, eu fico mais bruto. Eu acho que isso aí me dá um... um tchan na pessoa. (Urso 7)

A operação de "se tornar" urso, para a grande maioria dos entrevistados, envolve um exercício, primeiro, de deixar os pelos corporais crescerem. Depois, há um processo de "se deixarem ficar gordos" (Urso 6), que também é afetado por um discurso de saúde, com destaque para os entrevistados mais velhos. Este discurso opera no estabelecimento do limite máximo (o teto) que o sujeito pode engordar sem que comprometa a lógica da parrudez.

Talvez 10kg a menos pra ... (risos) pra talvez não precisar tomar o remédio de hipertensão. Mas nunca me vi, nem vejo menos que gordo. Claro que o corpo está sempre em estado de alerta, porque ser gordo não é fácil. Mas eu nunca tive problema de ser gordo, aliás, eu só curto gente assim. As limitações são sempre de saúde. (Urso 2)

Apesar de se tratarem de potenciais musclebears, não houve relatos por parte dos entrevistados de buscarem contornar suas insatisfações em treinamentos de academias de ginástica ou por outro tipo de exercício físico. Ou seja, os desejos de diminuírem o que intitulam por excesso de flacidez ou de harmonização de partes do corpo que se exibem "menores do que o resto" (Urso 1) não se convertem necessariamente no exercício de conquista dessas proporções "ideais" dos enunciados midiáticos. É nesses momentos que podemos captar a "flutuação" do discurso ursino e a ressignificação das particularidades dispersas.

Ao mesmo tempo que traz um esquema "ideal" de um corpo "tradicionalmente" masculino, bruto, parrudo, não impede que os outros corpos que se encontram "fora" das outras práticas hegemônicas façam também parte da ficção. E este fazer parte necessariamente implica em que as particularidades não se percam. Isto é melhor expressado quando os participantes passam a defender algo "interno" em relação aos ursos e menos um corpo ursino. Vejamos:

No Brasil, eu percebo que ser urso é algo muito mais interno. É muito mais da opinião da pessoa. Se sentir urso e/ou gostar de pessoas que têm características físicas de urso. Na internet, eles se baseavam mais no modelo americano. Na minha opinião, o modelo americano é mais externo, é mais físico. Mais fechado. (Urso 1)

Outro fator que reitera as operações de equivalência a partir dos corpos está no fato de que a maioria dos participantes não vê problemas de um urso se portar de forma efeminada, ou seja, exibir um corpo "masculino" não necessariamente requer comportamentos e gestos "masculinos":

Eu acho isso inclusive uma das coisas mais interessantes do meio dos ursos: de boca fechada é super bofe, de boca aberta é gay. Isso é uma contradição muito interessante. Somos gays ainda. Discordo quando as pessoas falam que o urso tem que ser viril. Os americanos não são assim! (Urso 2)

Este tipo de paródia explicita as posições antagônicas que atuam no campo local de afetividades. A partir do momento em que esquemas de masculinidade "tradicional" são atualizados em corpos de gays, cujos estatutos são socialmente mais inteligíveis por meio de indícios de efeminações no corpo, são expostas as "fabricações" desta operação normativa. Não há naturalmente um heterossexual por trás de um sujeito com um corpo masculino, pois tal relação é performaticamente construída (Butler, 2010Butler, J. (2010). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.).

Daí a dificuldade por parte de alguns participantes de identificarem a homossexualidade" de ursos não efeminados, ao ponto de ser gay passar a não ser mais um requisito para que alguém seja denominado urso (Ursos 4, 5, 8, 9 e 11). Além de se expor a fabricação de gênero, é exposta também a maleabilidade de estratégias que instauram ilusões de fronteiras, as práticas divisórias. O discurso ursino somente consegue se inserir no campo local de afetividades ao "jogar" com as mesmas regras. Nesse sentido, mesmo que de forma precária, atuam no estabelecimento de efeitos totalizantes (Laclau & Mouffe, 1987). E isto é se configurar como um ponto nodal:

Eu acho que no final das contas os ursos são tão presos ao corpo quanto .... os outros grupos da população gay no geral. São tão presos quanto. Tem um modelo ideal de corpo que você tem que atingir, tem as regras, o seu corpo tem que ser assim, tem que ser assado, sabe? Não pode ser desse jeito. São muito presos ao corpo. Já vi gente falando que ... um determinado cara era magro demais pra ficar com ele. Então, tem umas coisas muito estranhas. Acabam fazendo o grupo ser tão preso ao corpo quando outro pobre mortal. (Urso 17)

Porém, emergem também novas práticas, que promovem identificações, confortos, felicidades e, principalmente, atuam na desestabilização dos pontos nodais em hegemonia, como do que socialmente tem sido concebido como "ideal":

Hoje eu acho que as coisas estão mais pré-definidas. As pessoas apontam mais as classificações: você é lontra, chaser, você é muscle, você é chub, você é cub, sabe? Por um lado, eu acho divertido, porque acaba tendo uma forma de interagir. Por outro lado, eu acho que é uma coisa desnecessária, que é uma necessidade do ser humano de estereotipar as coisas e as situações, você está me entendendo? A priori, eu acho divertido, eu acho bacana, desde que dentro disso não haja uma segregação. (Urso 4)

Hoje está muito mais amplo. Como tinha menos gente, tinha mais gente que importava aquela visão americana, do urso viril, blá, blá, blá, blá. E hoje essas pessoas são quase ninguém no meio da cena. E eu acho isso ótimo. Porque acabou tendo uma característica brasileira de misturar mesmo. (Urso 2)

E a luta que aqui se estabelece é pela expansão das possibilidades de existência, para que os sujeitos se sintam cada vez mais confortáveis e felizes com as escolhas que fazem em suas vidas.

Acho que é no jeito que eu mencionei. Hoje em dia, parece que você não pode ser gay e negro, gay e peludo, ser nordestino e gordo, entendeu? Você só pode ser uma coisa (risos). O gordinho naquela fase da adolescência, que não se encontrava num grupo que já era discriminado... eu acredito que dentro dos ursos ele encontra uma paz de espírito, vamos dizer assim. Eu acho que vai tomando uma força pelo número de eventos, de grupos, pessoas que se denominam e vestem a bandeira e o suspensório. Mas eu vejo mais como a pessoa se sente mais à vontade quanto a si, entendeu? Aqui eu posso ser do jeito que eu sou. Se eu gosto de usar barba, eu vou usar barba, se eu não quiser usar barba, não tem problema, né? Essa coisa de grupo dentro do grupo, de ter que isso ou ser aquilo... eu não sou nada, eu sou eu. (Urso 13)

Diante do exposto, buscamos trazer o debate dos corpos nas subjetivações dos participantes como ursos, tendo em vista a dinâmica do campo de afetividades analisado e das atualizações discursivas que se configuraram neste campo. No próximo tópico se encontram as conclusões finais, seguidas do referencial que nos orientou para a elaboração do presente artigo.

Considerações finais

Este artigo teve o objetivo principal de descrever como práticas relacionadas ao corpo atuam nos processos de subjetivação de "ursos". O campo de afetividades analisado é composto por pontos nodais, por discursos em hegemonia, que ganham efetividade ao estabelecerem esquemas corpóreos que atuam na inteligibilidade do que passa a ser identificado e praticado pelos participantes como "próprio". Nestas práticas do corpo, captamos a operação plena tanto do discurso de gênero, quanto de um discurso de saúde. Estes são articulados para que se densifiquem as fabricações de fronteiras sociais de forma que as "melhores" existências remetam à apresentação de um "corpo perfeito", "saudável".

Da mesma forma em que nos deparamos com corpos "normalizados", observamos um reinvestimento tático também pelos corpos, o que fez com que indivíduos que se encontravam à margem neste campo de afetividades "se convertessem" em ursos. Conforme vimos, tais processos de "conversão" não estão dissociados da objetivação de corpos ursinos.

Nesse sentido, como um ponto nodal, o discurso dos ursos traz um esquema de corpo "mais masculino", sendo que nas socializações locais não são necessariamente requeridos comportamentos masculinos. Isso evidencia a pujança das particularidades e a constituição mútua das práticas antagônicas, o que faz com que estes embodiments sempre precários, muitas vezes, sirvam de paródia para diversas práticas divisórias que aparentemente são tomadas como certas.

Podemos, talvez, partir do pressuposto de que toda criação de fronteiras sociais, de identidades, são opressoras. Todavia, não desprezamos, tanto os confortos que algumas identificações trazem aos participantes, quanto sua provável contribuição na desestabilização e exposição do caráter ficcional das normas em hegemonia. Ou seja, as práticas ursinas evidenciam que um sujeito que apresenta um corpo masculino não necessariamente é heterossexual. Um sujeito gay não necessariamente tem que ser efeminado, magro e/ou sarado. Não necessariamente deve se especializar na cultura pop, adentrar o consumismo de luxo, das boates e das academias.

Os corpos ursinos, então, se encontram no campo cruzado de projetos articulatórios que são antagônicos. Nesta disputa, eles se constituem e são constituídos pelo que se encontra no campo analisado, o que faz com que o esquema de corpo mais desejado, de um musclebear, não vá de encontro somente ao do homem "tradicional, másculo, bruto, mas se correlacione também com outras estéticas de corpos entre gays, com destaque para as barbies. Assim, em toda construção homossexual há também construções heterossexuais, e em toda construção masculina há também construções de feminilidades, cujas tensões são sentidas na "pele", no intermédio entre os entendimentos e as sensibilidades.

Apesar de este artigo estar focado em práticas relacionadas ao corpo no estado do Espírito Santo, espera-se que não tenha passado despercebida a transversalidade destas práticas e de processos de organização que operam por todo o corpo social. Além disso, não queremos ditar direções ou criticar as práticas ursinas como corretas ou incorretas, mas questionar organizações estratégicas de poder que atuam no estabelecimento de efeitos de fronteiras e hierarquias sociais, formatações "ideais" para os corpos, e melhores formas dos indivíduos cuidarem de si mesmos.

O presente artigo, também, não vem esgotar o debate acerca dos ursos. Outra temática de grande importância envolve questões raciais. A classe-média branca urbana não caracteriza a totalidade dos sujeitos que gravitam em tais esquemas corpóreos, mesmo que os "brancos" sejam os mais valorizados nesta ficção. Onde está a negritude ursina? Onde estão os "suburbanos"? Será que o discurso ursino ganha mais força ao exaltar a masculinidade "tradicional" de brancos europeus? Que ficções de limites e fronteiras são estabelecidas no discurso dos ursos para os sujeitos que são identificados como negros, ou seja, como o dispositivo de raça atua nestas construções?

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CNPq - bolsa Demanda Social.

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  • 1
    Este artigo concebe práticas tendo como referência Laclau e Mouffe (1987)Laclau E. & Mouffe, C (1987). Hegemonía y estratégia socialista: hacia una radicalización de la democracia. Madrid: Siglo XXI. como aquelas que levam em conta tanto a materialização de sentidos em ações, quanto ações significativas que são empreendidas por diferentes sujeitos e grupos sociais.
  • 2
    "Se a delimitação, formação e deformação dos corpos sexuados são animadas por um conjunto de proibições fundadoras, um conjunto de critérios forçados de inteligibilidade, então não estamos apenas considerando como os corpos emergem a partir do ponto de vista de uma posição teórica ou epistêmica distantes dos próprios corpos. Pelo contrário, estamos perguntando como os critérios do sexo inteligível operam na constituição de um campo de corpos, e como exatamente entender os critérios específicos para produzir os corpos que eles regulam." (Butler, 1992, p. 55Butler. J. (1992). Bodies That Matter: On the Discursive Limits of ''Sex.'' New York: Routledge.)
  • 3
    Os leathers são uma comunidade gay ¨hipermasculina¨ (embora não exclusivamente formada por gays) que adota práticas e estilos construídos ao redor de atividades sexuais e do erotismo hedonista. Distinguem-se pelo uso do couro e muitas vezes por práticas BDSM (Bondage , Dominação, Sadismo e Masoquismo) (Rubin, 2004Rubin, G. (2003). Pensando sobre sexo: notas para uma teoria radical da política da sexualidade. Cadernos Pagu, 21, 01-88.).
  • 4
    O termo geek refere-se a uma requalificação do termo muitas vezes depreciativo dos nerds - de sujeitos aficionados por literaturas de tecnologia, por jogos eletrônicos, animes , quadrinhos, entre outros. Antes vistos como antissociais, são o estereótipo desta nova indústria bilionária de entretenimento.
  • 5
    Cultura comercial atualizada na primeira década do século XX que remete ao estilo underground da década de 1980 em países anglo-saxões.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2015

Histórico

  • Recebido
    07 Fev 2014
  • Revisado
    29 Jul 2014
  • Aceito
    11 Nov 2014
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