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Reflexões sobre o social e o individual na experiência do câncer

Reflections on the social and the individual on the experience of cancer

Resumos

Neste trabalho discutimos os processos subjetivos que se configuram a partir de aspectos da subjetividade individual e social na experiência de uma paciente com câncer, baseando-nos em uma visão de subjetividade numa perspectiva histórico-cultural. A pesquisa foi realizada através de um estudo de caso com uma pessoa com câncer. A análise foi feita em uma perspectiva qualitativa de base construtivo-interpretativa, a epistemologia qualitativa proposta por González Rey. No processo de construção de informação, diferentes hipóteses surgem e organizam-se em indicadores construídos pelos pesquisadores que são a base para as construções teóricas sobre o tema. Na análise realizada, é possível compreender os diferentes aspectos subjetivos que se configuram nos processos de saúde e doença.

câncer; subjetividade; sentido subjetivo


In this paper we discuss the subjective processes that constitute the basis of aspects of individual and social subjectivity in the experience of a patient with cancer, based on the understanding of subjectivity from a historical-cultural stand point. This research was carried out through the case study of a person who had cancer. The analyses was oriented on a qualitative methodology of a constructive-interpretative nature, the qualitative epistemology proposed by González Rey. In the process of building up information different hypoteses arise and are organized on indicators constructed by the researchers that are the basis for the theoretical constructions. In this analysis, it's possible to understand the different subjective aspects that constitute the processes of health and illness.

cancer; subjectivity; subjective sense


Reflexões sobre o social e o individual na experiência do câncer

Reflections on the social and the individual on the experience of cancer

Valéria D. Mori; Fernando L. González Rey

Centro Universitário de Brasília, Brasília-DF,Brasil

RESUMO

Neste trabalho discutimos os processos subjetivos que se configuram a partir de aspectos da subjetividade individual e social na experiência de uma paciente com câncer, baseando-nos em uma visão de subjetividade numa perspectiva histórico-cultural. A pesquisa foi realizada através de um estudo de caso com uma pessoa com câncer. A análise foi feita em uma perspectiva qualitativa de base construtivo-interpretativa, a epistemologia qualitativa proposta por González Rey. No processo de construção de informação, diferentes hipóteses surgem e organizam-se em indicadores construídos pelos pesquisadores que são a base para as construções teóricas sobre o tema. Na análise realizada, é possível compreender os diferentes aspectos subjetivos que se configuram nos processos de saúde e doença.

Palavras-chave: câncer; subjetividade; sentido subjetivo.

ABSTRACT

In this paper we discuss the subjective processes that constitute the basis of aspects of individual and social subjectivity in the experience of a patient with cancer, based on the understanding of subjectivity from a historical-cultural stand point. This research was carried out through the case study of a person who had cancer. The analyses was oriented on a qualitative methodology of a constructive-interpretative nature, the qualitative epistemology proposed by González Rey. In the process of building up information different hypoteses arise and are organized on indicators constructed by the researchers that are the basis for the theoretical constructions. In this analysis, it's possible to understand the different subjective aspects that constitute the processes of health and illness.

Keywords: cancer; subjectivity; subjective sense.

Introdução

Neste artigo, pretendemos discutir os desdobramentos da subjetividade individual e social na organização dos sentidos subjetivos de uma paciente com câncer. Discutimos a dimensão subjetiva do adoecimento integrando processos da pessoa e da sociedade, pois ambos se constituem recursivamente. Nesse sentido, o social é um elemento importante quando refletimos sobre o adoecimento crônico, pois os diferentes significados que se organizam ao redor de uma doença têm impactos diferenciados nas pessoas que estão doentes. E esses diferentes impactos estão relacionados com os processos subjetivos constituídos no adoecimento e que vão se desdobrando em diferentes sentidos subjetivos para a pessoa que enfrenta essa situação. Tal afirmação não significa que o social seja determinante no adoecimento, mas sim que o social e o individual se constituem mutuamente nesse processo, e dessa maneira o adoecimento organiza-se na relação desses dois sistemas. Apresentamos uma análise dos aspectos configurados na experiência de uma paciente com câncer numa perspectiva qualitativa de base construtivo interpretativa.

A subjetividade e sua configuração nos processos da pessoa

A categoria subjetividade desenvolvida por González Rey (1997, 1999, 2003a) nos auxilia na discussão que pretendemos nesse trabalho, pois articula o social e o individual como processos que não estão em uma relação de determinação. Outro autor que faz importantes contribuições a esse tema é Guattari (1990), pois rompe com a ideia de uma subjetividade interiorizada e a define articulada tanto com espaços sociais quanto individuais:

Minhas atividades profissionais no campo da psicopatologia e da psicoterapia, como meus engajamentos políticos e culturais, têm me levado a insistir, cada vez mais, na subjetividade na medida em que ela é produzida por instâncias individuais, coletivas e sociais... E ela (a subjetividade) não conhece instância dominante de determinação comandando outras instâncias segundo uma causalidade unívoca (p. 3).

A intersecção entre saúde e subjetividade é presente também nas discussões de outros autores como, por exemplo, Carvalho (2009), Merhy (2009) e Campos (2009). Os autores sugerem pensar a saúde além de uma visão determinista, seja ela social ou individual, para que seja concebida como processo, pois "a interação entre fatores universais e particulares é que constitui as sínteses específicas: situações de saúde de cada pessoa ou de cada coletividade" (Campos, 2009, p. 53). E, ao operar com o conceito de subjetividade propõem recuperar a experiência humana na sua articulação com o social e valorizar a experiência das pessoas no sentido de valorizá-las como sujeitos que têm diferentes necessidades e aspirações nos processos de saúde.

No presente artigo, a categoria subjetividade, por nós discutida, não é um processo individual e intrapsíquico, mas que permanentemente está em organização ao longo da vida das pessoas e dos espaços sociais. A subjetividade configura-se histórica e culturalmente e não é cópia nem internalização do social, senão uma nova produção que ocorre como resultado das múltiplas e simultâneas consequências do 'viver' do homem (González Rey, 1997, 1999). Nesse sentido, as próprias ações são fontes de processos de subjetivação que se configuram na experiência da pessoa. Essa visão de subjetividade enfatiza seu caráter contraditório, pois uma pessoa pode, ao mesmo tempo, ser agressiva e sensível, em virtude dos sentidos subjetivos, unidade dos processos emocionais e simbólicos (González Rey, 2005), produzidos a partir de sua história e das circunstâncias atuais da sua vida (Mitjáns, 2005).

Ao definir subjetividade, González Rey (1997) utiliza-se de duas categorias para melhor explicitar os desdobramentos dos aspectos individuais e sociais, reiterando que não está definindo subjetividade individual, por exemplo, como categoria intrapsíquica. Nas suas palavras:

A subjetividade social e a individual são momentos diferentes de um sistema comum. As duas instâncias da subjetividade são sistemas processuais em desenvolvimento permanente que se expressam por meio de sujeitos concretos que se posicionam ativamente no curso desse desenvolvimento (González Rey, 2003a, p.145).

A subjetividade social e a subjetividade individual, dessa forma, articulam-se no adoecimento, mas a maneira como esses sistemas tomam forma ao longo do tempo é uma produção da pessoa em relação aos diferentes desdobramentos desse processo. Em razão disso, o posicionamento da pessoa nessa experiência é muito importante, pois os seus processos de subjetivação é que determinam se o adoecimento possibilitará a geração de alternativas ou não. Sendo que a impossibilidade de gerar alternativas, longe de fortalecer a pessoa para a luta com a doença e o desenvolvimento de sua vida de forma geral, termina sendo mais um elemento de enfraquecimento da pessoa e de infelicidade nesse processo.

Ao discutirmos os processos subjetivos da pessoa no adoecimento, ressaltamos o caráter único e singular da produção de sentidos subjetivos do sujeito. A pessoa não entra neutra na experiência do câncer, pois a sua vida organizada subjetivamente participa ativamente na forma em que a pessoa vive a doença. As diferentes representações e crenças a respeito do câncer estão presentes na subjetividade social, e estas têm impacto nos diferentes sentidos subjetivos que, por sua vez, se organizam de maneira distinta em cada paciente. A categoria sentido subjetivo "representa a constituição histórica no nível subjetivo, das diferentes atividades e relações significativas na constituição do sujeito" (González Rey, 2003b, p. 174). Na sua produção estão implicados tanto o individual quanto o social como sistemas que se articulam mutuamente. O sentido subjetivo não é uma reprodução linear de um tipo de comportamento ou emoção, mas uma produção singular da pessoa que está constituída pelo histórico (diferentes momentos da vida da pessoa no contexto da cultura) e o momento atual da história da pessoa. As diferentes produções de sentido subjetivo no adoecimento podem auxiliar a pessoa a ser sujeito da doença para que ela possa gerar alternativas diferenciadas nesse processo.

O tema da subjetividade, a preocupação com uma definição de sujeito e sua posição em relação ao social tem sido questões presentes na obra de vários sociólogos relevantes (Elias, 1994; Ferraroti, 1990; Touraine, 2006; Weber, 1964). Touraine (2006) discute a relação do sujeito em seu contexto social e cultural e afirma que o mesmo não se reduz a esses contextos, mas o sujeito não pode ser reconhecido como tal fora dos contextos sociais e culturais. Segundo esse autor:

O que cada um de nós procura, no meio dos acontecimentos em que está imerso, é construir sua vida individual, com sua diferença em relação a todos os outros e sua capacidade de dar sentido geral a cada acontecimento em particular. Essa busca não deveria ser a busca de uma identidade, já que somos cada vez mais compostos de fragmentos de identidade diferentes. Ela não pode ser senão a busca de ser autor, o sujeito de sua própria existência e de sua própria capacidade de resistir a tudo aquilo que dela nos priva – e torna nossa vida incoerente (p.124).

O sujeito não está determinado por um comportamento em um cenário social que o defina de modo universal senão que emerge dos diferentes sentidos subjetivos que se desenvolvem na vida da pessoa e sobre os quais ela assume sua autoria e responsabilidade em campos concretos de sua ação, enquanto que em outras áreas da sua vida não acontece o mesmo. A pessoa se transforma em sujeito na tensão entre sua subjetividade e a subjetividade social dominante em seus espaços de ação. Os diferentes processos da subjetividade social têm múltiplas repercussões para a saúde humana que não podem ser percebidas por uma relação de causa e efeito, senão pelos efeitos colaterais1 1 Termo cunhado pelo sociólogo Ulrich Beck (1997). O efeito é sempre um processo da organização psicológica da pessoa que vive a experiência. , que só vão aparecer nas configurações subjetivas2 2 Sistema de sentidos subjetivos organizados de forma relativamente estável em relação a aspectos da história pessoal e da vida social (González Rey, 2003b) diferenciadas das pessoas no processo de 'viver a doença'. As ações dos sujeitos são inseparáveis da rede de sentidos subjetivos que se organiza, pouco a pouco, nesse processo (González Rey, 2007).

Dessa forma, a produção subjetiva da pessoa na saúde e na doença é organizada a partir de diferentes elementos que estão presentes tanto na sua história individual quanto nos aspectos sociais e culturais. A história e o momento atual da vida da pessoa não estão numa relação de determinação, mas como constituintes da complexa configuração dos processos subjetivos. A saúde ou doença, nesses termos, são subjetivados pela pessoa na sua vida e lhe possibilitam diferentes produções de sentido em relação a eles. O que implica dizer que nenhum desses processos existe em abstrato, ou com uma representação já dada, mas como fenômenos que estão presentes e são subjetivados tanto socialmente como individualmente.

Epistemologia qualitativa

A metodologia utilizada no estudo de caso que fazemos apoia-se nos pressupostos da epistemologia qualitativa proposta por González Rey (1997, 1999) que enfatiza a produção de conhecimento na pesquisa como um processo construtivo interpretativo. Nesta proposta de pesquisa qualitativa privilegia-se a plurideterminação dos fenômenos além de uma relação de causa e efeito entre si (González Rey, 1997; Santos, 2007); e a relação do pesquisador com o momento empírico configura-se a partir das suas interpretações e construções teoricamente fundamentadas que não visam uma descrição da realidade, mas sua compreensão como processo singular (González Rey, 1997, 2002).

A proposta de González Rey (1999) para uma epistemologia qualitativa não significa que ele não reconheça que toda epistemologia como processo de conhecimento seja qualitativa, mas o autor salienta a necessidade de se especificar o qualitativo no campo epistemológico - preocupação de diferentes autores (Groulx, 2008; Laparrière, 2008; Pires, 2008) - que ainda não encontrou posição explícita nas ciências sociais, que é um dos seus objetivos na sua proposta metodológica. A epistemologia qualitativa é uma tentativa de produzir conhecimento que permita a criação teórica "acerca da realidade plurideterminada, diferenciada, irregular, interativa e histórica, que representa a subjetividade humana" (González Rey, 1999, p. 35).

Os processos subjetivos se organizam de maneira complexa, e o seu estudo com base na epistemologia qualitativa não permite a predição, descrição e o controle (González Rey, 2002), pois a realidade não é linear e determinada. Temos imprevisibilidade, interpenetração, desordem, que se desdobram em diferentes momentos impossíveis de serem mensurados em parâmetros estáticos e sob controle (Morin, 2007; Santos, 2007). Da mesma maneira, o conhecimento não é apenas condicionado, determinado e produzido, recursivamente ele é condicionante, determinante e produtor e está ligado à cultura, ao social e à prática histórica (Morin, 2007).

A epistemologia qualitativa apoia-se em três princípios (González Rey, 1999), conforme se segue:

1. O conhecimento é produção construtivo-interpretativa, ou seja, "o conhecimento é uma construção, uma produção humana" (González Rey, 2005, p.6). O papel do investigador nesse processo é o de alguém que pensa e produz conhecimento no confronto das suas ideias com o momento empírico em que a teoria não está pronta, mas se constrói em permanente tensão com o momento empírico. Assim, a interpretação não se organiza com base em categorias universais para dar conta dos processos que aparecem no curso da investigação. A interpretação é uma construção do pesquisador, em que a teoria é um instrumento do investigador no processo interpretativo, que atua como "marco de referência que mediatiza o curso das construções teóricas do investigador sobre o objeto" (González Rey, 1999, p.38). A pesquisa nesse modelo não esgota o problema, mas gera novas zonas de sentido3 3 Zona de sentido representa uma forma de inteligibilidade sobre a realidade que se produz na pesquisa e não esgota a questão, mas abre possibilidades para diferentes aprofundamentos na construção teórica (González Rey, 2007). , abre novas possibilidades para construção teórica com relação ao problema abordado, passa-se de lógica da resposta para lógica da construção.

2. A produção de conhecimento tem caráter interativo, "a pesquisa é um processo de comunicação, um processo dialógico" (González Rey, 2005, p.13). A conversação com o sujeito de pesquisa não é enquadrada em limites fechados com perguntas formuladas a priori, pois é importante seu envolvimento em um sistema conversacional que lhe permita sua expressão. A pessoa envolve-se em um processo de diálogo por sentir-se implicada no processo da pesquisa através da produção de diferentes sentidos subjetivos que se constituíram na relação com o pesquisador e seu tema. A comunicação é via de construção de conhecimento, pois por meio dela, a pessoa se expressa, se compromete no processo da pesquisa, possibilitando o aparecimento de diferentes processos de sentido subjetivo que caracterizam a expressão desse sujeito. Com isso não queremos afirmar que conheceremos diretamente os sentidos subjetivos implicados na produção da pessoa, mas que eles irão emergir por vias indiretas durante o processo dialógico.

A subjetividade é sistema vivo, que é momento do processo discursivo em curso, que intervém na qualidade da expressão narrativa, precisamente pela emocionalidade produzida pelo sujeito na sua relação com o mundo, gerando outras formas de subjetivação que não estão presentes apenas no discurso. Desse modo, a visualização da complexidade da sua constituição subjetiva não se baseia apenas no conhecimento de suas formas de organização dentro do discurso.

3. O conhecimento não se legitima pela quantidade de sujeitos pesquisados, mas pela qualidade de sua expressão, sobre a qual é desenvolvido o modelo teórico sobre o qual descansam os significados produzidos no curso da pesquisa. A adoção de epistemologia qualitativa privilegia a significação do singular para a produção de conhecimento (González Rey, 1997). A pessoa na sua constituição subjetiva é única, e as diferentes configurações subjetivas singulares nos permitem desenvolver uma representação abrangente dos sentidos subjetivos que se organizam em relação a um determinado problema, através da qual podemos estudar a dimensão subjetiva desse problema. Desse modo, saímos de investigação que vê a pessoa como entidade objetivada para outra, que a percebe numa relação de recursividade entre social e individual produzindo emocionalidade diferenciada, de acordo com o momento de sua experiência.

Nessa perspectiva, não se buscam processos padronizados, mas a participação dos sujeitos em processo dialógico em que estes se motivam por meio da comunicação pesquisador-sujeito. A qualidade a qual nos referimos permite a construção do modelo teórico hipotético que vai ser a base das hipóteses em andamento na pesquisa, pois as informações não têm versão final da realidade em si, mas constituem a fonte para o processo de produção de conhecimento. A produção de informação não está associada à significação estatística, mas à qualidade da interação pesquisador-sujeito, que permite que o espaço relacional se constitua como cenário de pesquisa com base nas necessidades das pessoas envolvidas nele.

O processo de construção de informação

O pesquisador se posiciona constantemente em relação ao momento empírico, sem que, com isso, pretenda chegar a verdades universais ou encontrar categorias estabelecidas a priori no processo. Isso se dá com o desenvolvimento permanente de suas ideias, movido pela tensão entre o momento empírico e sua produção intelectual, que se organizam em sistema de significações que não são evidentes, explicitamente, nos processos pesquisados (González Rey, 2005).

O pesquisador atua no processo de interpretação definindo certos elementos e formas de expressão da pessoa como significativos para abrir hipóteses, que no curso da informação estudada vão se transformando em afirmações teóricas fundamentadas por novas evidencias ou vão dando passo para outras hipóteses. Esses elementos são definidos por González Rey (1997) como indicadores que se mantêm em fluxo e processo durante a pesquisa. Assim, por exemplo, ao dizer que uma pessoa tem ou não autoestima, não significa nada em termos pessoais, pois essa categoria está associada com diferentes sentidos subjetivos que se organizam na experiência da pessoa em diferentes contextos e que não se manifesta na forma de uma característica estática da pessoa. Nesta forma de pesquisa as categorias não aparecem naturalizadas como entidades que tem um valor em si mesmas. A autoestima está relacionada com certos sentidos subjetivos que aparecem em determinada configuração do sujeito em um campo de ação ou num contexto específico, e relaciona-se com emoções e processos simbólicos associados à pessoa na ação empreendida. Esta forma de pensar rompe a representação da psique centrada em elementos passíveis de serem descritos de forma geral.

Instrumentos

Os instrumentos da pesquisa qualitativa são um meio para que o sujeito possa expressar-se, "estimulando a produção de tecidos de informação, e não de respostas pontuais" (González Rey, 2005, p. 43). Não representam uma fonte de dados, mas de informação sobre o estudado, que toma forma nos indicadores a partir das informações produzidas pelo sujeito estudado (González Rey, 1999). São indutores de informações relevantes para os sujeitos participantes da pesquisa, mas isso não significa que encontramos na sua utilização, linearmente, as diferentes produções de sentido das pessoas, mas indicadores de sentido subjetivo que podem se constituir em hipóteses. Como bem coloca González Rey, (2005): "Cada instrumento representa uma situação de sentido distinta, a partir da qual o sujeito estudado se posicionará, o que contribui para estimular o compromisso com a expressão de sentidos subjetivos" (p. 48).

Durante a pesquisa podem ser de expressão oral ou escrita, em grupo ou individual, depende das necessidades do pesquisador, para que se eleja qual deles se adapta melhor às necessidades no momento. Nessa pesquisa, optamos pela dinâmica conversacional.

Dinâmica conversacional

A conversação se constitui pelo envolvimento dos participantes no processo de comunicação, facilitando a expressão individual sobre temas que são relevantes para essas pessoas. O sistema conversacional permite diálogo e "o pesquisador desloca-se do lugar das perguntas para integrar-se na dinâmica de conversação" (González Rey, 2005, p. 45). Os processos de comunicação são importantes vias de produção de informação em espaços relacionais.

A entrevista e a conversação diferem pela natureza dos seus processos. A primeira tem caráter instrumental em si, pois o pesquisador parte de questões feitas a priori, e o espaço de diálogo se centra nas respostas dadas pelos participantes, não pela qualidade da conversação, pois a implicação do pesquisador se limita à instrumentalização, que não envolve sua interação como participante do processo subjetivo que se inicia. A conversação caracteriza-se pela processualidade da relação pesquisador sujeito, "apresenta uma aproximação do outro em sua condição de sujeito e persegue sua expressão livre e aberta" (González Rey, 2005, p.49), e, de forma gradual, possibilita o envolvimento dos participantes, facilitando o aparecimento de sentidos subjetivos diferenciados no processo.

Análise e construção de informação - Roberta

O estudo de caso realizado nesta pesquisa foi feito através de dinâmicas conversacionais em diferentes momentos, as sessões de conversação foram gravadas e posteriormente analisadas concomitantemente às anotações feitas pelos pesquisadores depois dos encontros com o sujeito de pesquisa. Neste trabalho discutiremos o caso de Roberta. Ela tem 43 anos, é psicóloga, mãe de dois filhos e atualmente mora sozinha. Tem câncer há 11 anos e trabalha com pacientes com câncer no seu consultório e em uma clínica de reprodução assistida dando apoio a pais que querem ter filhos e querem conversar sobre sua dificuldade em ter filhos.

No trecho a seguir Roberta nos fala do seu trabalho em consultório e a sua experiência como paciente com câncer:

Eu tomei muito esse cuidado, à minha capacidade de exercer um trabalho proporcionalmente à minha vontade e a minha necessidade do trabalho. Porque eu dependo dele financeiramente, e dependo dele existencialmente. Eu gosto do que eu faço, e então não poderia ser uma mera teimosia. Passo muito tempo cansada, porque fazer quimioterapia, fazer radioterapia debilita muito e principalmente não me violentar. Me violentar pegando casos pesados, como alguém que está com uma evolução muito rápida ... você começa a se perguntar – ih, essa sou eu amanhã.

Na fala anterior, observa-se como ao falar do trabalho não aparece apenas a questão financeira, mas a importância existencial que isso tem para ela, o que não é apenas declarativo, pois ela acompanha com a expressão "eu gosto do que faço", o prazer associado à atividade aparece na sua fala espontânea. Unido a isso precisa ser destacado como ela consegue sair do estado emocional da doença para produzir outras emoções e formas de expressão que destacam o estar viva! Temos um indicador de sentidos subjetivos associados ao exercício da profissão que evocam nela interesse, prazer, realização pessoal, se sentir capaz de ser útil, enfim que poderiam estar presentes uma multiplicidade de emoções e estados que devemos seguir procurando em outros indicadores, mas o que destacamos aqui é que a profissão é um espaço de produção subjetiva. Para Roberta, assim como ela precisa do trabalho para sobreviver, ela precisa dele para continuar participando da vida com prazer. O trabalho associa-se a interesse e também a necessidade financeira, mas, antes de tudo, expressa um posicionamento ativo frente à vida, o que de fato representa um caminho alternativo de produção subjetiva. Ainda que esteja doente e perceba que tenha algumas limitações em função do seu tratamento, ela não deixa de trabalhar, pois tem satisfação em relação ao seu trabalho no consultório. Além disso, reconhece explicitamente suas limitações na possibilidade de atender alguém com uma evolução rápida da doença.

Um outro indicador dos sentidos subjetivos já colocados antes em relação à profissão é o fato de que, apesar de fazer quimioterapia e radioterapia, ela quer manter o trabalho, especificando que sem se violentar. Esse não se violentar pode ser um indicador de como os pacientes nessa situação começam a tomar consciência de suas possibilidades, que longe de ser uma limitação, lhes permite manter suas atividades sem que se sintam prejudicados no percurso do processo de adoecimento.

Roberta posiciona-se em relação ao seu adoecimento, e mantém seu interesse no trabalho, não vemos aqui uma ruptura em termos de identidade, pois ela ativamente continuou trabalhando e vendo-se como psicoterapeuta ao longo do seu processo. Temos indicadores com relação ao valor do trabalho para ela, expresso em vários momentos do seu relato, o que para nós significa que Roberta posiciona-se como sujeito desse aspecto relevante da sua vida. Citando Touraine (1998): "o sujeito é o desejo do indivíduo de ser ator" (p. 73). Não significa ser ator nos termos individuais que marca a nossa sociedade atualmente, mas organizar experiências a partir dos diferentes desdobramentos que tomam e dos diferentes sentidos subjetivos que se organizam para posicionar-se e reconhecer-se como pessoa com possibilidades e dentro de espaços sociais diferenciados.

Eu diria que é assim, receber um diagnóstico de câncer não é fácil, mas o de metástase é mais ainda, é como se fosse assim: ta, eu fiz tudo, e aí, sinto muito, mas não tem jeito. Aí, eu diria que foi uma outra ... né, avançar, porque foi muito difícil. Mas estou aí superando, nem meu próprio médico acreditava, como que cada fase eu ia lá, vencia, ele me disse isso em palavras, uma pessoa muito difícil de fazer elogios. Eu consegui que ele acreditasse que a postura do paciente faz toda a diferença. Isso pra mim foi muito bom.

Nesse trecho, aparece outro indicador sobre a configuração subjetiva da doença que se apresenta na sua capacidade de seguir em frente ainda que tenha a notícia da metástase. Esse indicador é congruente com os que já apareceram em outros trechos de conversação, e de forma explícita evidenciam quanto é importante para ela vencer, assim como enfrentar os desafios. Vencer tem se tornado um importante valor pessoal que expressa essa configuração subjetiva em relação à doença que integra seu caráter ativo, seus interesses, a integração da doença na sua identidade lhe permitindo planos considerando essa condição pessoal. Todos esses são indicadores de sentidos subjetivos (do valor do trabalho, de vencer) e elementos associados à configuração subjetiva da doença. O vencer não é apenas assumir o desafio de sair na frente, é receber o elogio do médico, e se sentir orgulhosa de si mesma, é sentir que é capaz de novas conquistas, é sentir o sucesso profissional e que é capaz de ter uma vida. São expressões de sentidos subjetivos diversos que integram a configuração subjetiva do "viver sua doença". Aqui se expressa mais que um sentido, não é o sentido de vencer em abstrato, no sentido de vencer está o sucesso profissional e a independência, da mesma forma que o vencer é um sentido subjetivo na superação das dificuldades no exercício da profissão, uma verdadeira configuração subjetiva!

A metástase aparece como um elemento que vai além do esforço de Roberta para a cura. Mas, ainda que tenha que lidar com a frustração e as contradições do adoecimento, mais uma vez ativamente lida com as dificuldades que se apresentam. Nesse ponto, vemos como Roberta posiciona-se frente aos processos de significado presentes na subjetividade social em relação aos pacientes com câncer. O que é um indicador da sua condição de sujeito, pois muitas vezes o paciente não é visto como alguém capaz de tomar suas próprias decisões, ou definir os rumos de sua vida. Ela continua sendo uma pessoa com capacidade para influenciar os outros, de lutar pelos seus critérios, de ser parte dos caminhos de sua vida em condições da doença, atributos todos estes que fazem a diferença entre ser paciente ou sujeito da doença e que são expressão da configuração subjetiva da doença. O que nos permite compreender a diferença entre o rumo objetivo da doença, já em metástase, e a produção subjetiva sobre a doença que lhe mantém ativa e realizada como sujeito de seu processo de adoecimento. A realização neste momento de sua doença está associada a viver um dia mais, a superar uma nova dificuldade no tratamento, em sentir o elogio do médico, em se manter na sua vida profissional, em ser sujeito de suas decisões. Enfim, o viver a doença tem levado Roberta a um verdadeiro redesenho de seu mundo subjetivo, o qual não é nem melhor nem pior que outros, simplesmente diferente.

Aspectos da subjetividade social podem limitar os processos subjetivos da pessoa, mas também podem gerar contradições que levam a pessoa a produzir sentidos subjetivos diferenciados facilitando o seu posicionamento em relação a representações dominantes. No caso de Roberta, os sentidos subjetivos que produz em relação ao câncer não se subordinam aos aspectos da subjetividade social hegemônicos e são alternativas que alimentam sua postura em relação à metástase e frente ao "viver a doença" de forma geral.

A discussão sobre subjetividade social no parágrafo anterior nos leva a outros momentos em relação ao trabalho de Roberta, pois ela também teve que lidar com as diferentes representações que seus pacientes tinham a respeito do câncer e os diferentes processos simbólicos e emocionais presentes quando o psicoterapeuta está com câncer e continua atendendo:

Como que ia fazer com o consultório, se eu iria encaminhar, se eu iria conduzir com essas pessoas até o momento. E fui assim, aos poucos, né, dizendo, olha, em tal época eu vou fazer uma cirurgia, você quer interromper?Quer passar para alguém?Mas nunca entrei em detalhes. Bom, algumas pessoas nunca perguntaram, né, e eu nunca falei. Outras quiseram saber no momento, outras só foram perguntando na medida em que elas deram conta, então, esse foi um tema que muito me interessou, essa relação da transferência/contratransferência no processo psicoterápico, né. E uma me chamou a atenção, ela segurou na minha mão e disse: eu sinto que você não está bem, você está com algum problema, você está com alguma doença? Então foram experiências muito ricas, e eu não iria jamais desconfirmar, eu não tinha contado pra ninguém, essa foi a primeira. E aí eu disse: é, eu estou, vou fazer uma cirurgia, e tal e foi quando eu comecei a falar. No caso dela, eu contei que era um CA de mama. E, nesse ínterim eu perdi alguma clientela, porque?Uns por carinho queriam me poupar, achavam que aquilo que eu estava passando merecia um cuidado pra comigo. Outros, assustados, porque assim, eu fiquei careca, uma hora estava com turbante, tentei usar peruca, não me adaptei. Por outro lado, também, eu fui procurada por alguns por ter passado por isso, então, assim, ficou meio contrabalançado.

É interessante notar que ainda que algumas pessoas parassem a psicoterapia em função do adoecimento de Roberta, ela não se desmobiliza e continua trabalhando, o que nos evidencia indicadores do valor do trabalho para ela como assinalamos anteriormente. Além disso, ela não faz uma avaliação ruim daquelas pessoas, ela os aceita como uma das alternativas possíveis frente à situação, o que poderia ser um indicador da segurança com que vive a sua doença, da força dos novos processos de identidade que tem desenvolvido frente a esta situação de vida. Os sentidos subjetivos que Roberta produz em relação ao trabalho são centrais frente à maneira como alguns de seus pacientes podem vê-la, ou seja, ela percebe como questões que dizem respeito a essas pessoas e que não são suficientes para descaracterizá-la como psicoterapeuta. Pensamos que entre os pacientes que não comparecem mais pode estar pesando também o estigma do câncer, mas Roberta tem tão pouca preocupação com o que os outros pensam sobre sua doença que é capaz de seguir sua vida e não se coloca no lugar de vítima, mas valoriza a separação como a intenção deles de poupá-la, para que ela não se sobrecarregue.

Os processos simbólicos organizados na subjetividade social em relação a pessoas com câncer podem fazer com que a pessoa se sinta incapaz de gerar alternativas diferenciadas no processo de adoecimento. O impacto que os pacientes de Roberta sentem ao saberem da sua doença poderia levá-la ao abandono não só do seu trabalho como também à produção de sentidos subjetivos que a levassem a sentir-se sem possibilidades frente ao câncer.

A partir dos momentos de conversação com Roberta percebemos como aspectos da subjetividade social são importantes nos desdobramentos dos processos individuais. Discutimos alguns elementos importantes desses processos, mas outros indicadores dos sentidos subjetivos e significados, que expressam a maneira como uma sociedade tem impacto nas pessoas que dela fazem parte, estão presentes em diferentes trechos dos relatos de Roberta:

Eu fazia tratamento no Hospital Y, onde a população carente é atendida. Hoje tenho convênio particular e me trato numa clínica bastante limpa e confortável. Houve uma época em que eu e duas amigas atendíamos, como voluntárias, um grupo de mulheres mastectomizadas no Hospital X. Não bastava trabalhar apenas sob a ótica da doença, perguntar o que a paciente estava sentindo por não ter uma mama. A escassez de recursos faz com que ela também se preocupe se terá ou não vale-transporte para voltar pra casa. Tem-se que usar de solidariedade e considerar as precariedades das condições de vida. Fazer um voluntariado em hospital público é burocrático e complicado, além da infra-estrutura não ser adequada. Já como paciente, fui atendida por uma equipe médica bastante empenhada, mas o sistema é completamente precário. De 1997 para cá, experimentei várias fases no Serviço Público de Saúde. E creio que a pior delas foi entre 2002 e 2004, quando faltavam remédios e máquinas de radioterapia, e vários pacientes esperavam a hora de serem atendidos.

Nesse trecho, percebemos como o social subjetiva-se em processos que se organizam em configurações subjetivas diversas nas pessoas que usam o serviço público de saúde. As mulheres do hospital X tinham um espaço para falar com as voluntárias de diferentes aspectos da sua vida não apenas da doença. Dessa maneira, o momento conversacional possibilita que a pessoa possa ter um momento para falar das suas preocupações do cotidiano e não só da mama que foi retirada. Desse modo, as configurações subjetivas que se organizam em relação ao adoecimento são alimentadas por elementos da subjetividade social que favorecem o aparecimento de diferentes sentidos subjetivos no enfrentamento da doença. A urgência e pressão de vida das pessoas fazem que elas gerem sentidos associados à doença que passam pelas suas condições objetivas de vida, só que entre essas condições e os sentidos subjetivos não existem relações lineares, mas sim efeitos colaterais que marcam diferenças entre os sentidos subjetivos de camadas diferentes da população. É importante destacar o caráter social e cultural dos sentidos subjetivos, eles expressam o social, mas numa produção única do sujeito que vive a experiência. Ainda que objetivamente uma situação se organize da mesma maneira para um grupo, a produção de sentidos subjetivos é absolutamente diversa e marcada por uma produção da pessoa que traz a marca da sua história individual, social e cultural.

Com relação à Roberta, temos indicadores de sentidos subjetivos com relação ao adoecimento que se expressam no seu desejo de estar com outras pacientes com câncer. Ela é uma paciente com câncer e trabalha como voluntária em grande hospital público da cidade (até o momento em que tivemos contato). O fato de ter câncer não a coloca na posição de vítima, mas de alguém que pode ser interlocutor de outros pacientes e do mundo de forma geral. A produção de sentido de Roberta em relação ao câncer converte-se em elemento que possibilita o trabalho com outras pacientes de câncer para que estas tenham um momento para expressar sua relação como o adoecimento e outros aspectos da sua vida.

É interessante assinalar que Roberta como paciente do serviço de saúde público deparou-se com diferentes processos da subjetividade social presentes na experiência das pessoas que usam esse mesmo serviço, como podemos ver a seguir:

Aí fui para a rede pública me tratar e era questionada do porquê de estar ocupando a vaga de uma pessoa carente, se eu supostamente não era uma. Eu me sentia culpada, embora estivesse desempregada e possuísse o direito de usar o aparato público.

O usuário do serviço público de saúde é representado como uma pessoa que faz parte da população carente do nosso país. Assim, quando alguém, que supostamente é um representante da classe média, torna-se usuário desse serviço é visto como uma pessoa que está tirando o lugar de um paciente que precisa mais. Ora, não podemos deixar de refletir sobre os processos que se configuram na subjetividade social quando nos deparamos com essas representações. Ainda que paguemos impostos e tenhamos direito a esse serviço, ele supostamente só serviria para uma camada da população. Quando Roberta precisa tratar-se em um hospital público, ela sofre o impacto dessas representações que geram sentimentos de culpa; e produz sentidos subjetivos contraditórios em relação a isso, pois ao mesmo tempo em que assume seu direito de usar o serviço público, justifica-se com o desemprego e não com sua condição de cidadã. O que nos evidencia uma subjetividade social em que o serviço público de saúde é pensado para a população mais carente.

Outros indicadores de processos da subjetividade social estão presentes no seguinte trecho quando Roberta nos relata sobre a sua imunidade:

É muito desanimador a minha imunidade cair na quimioterapia, eu ter que tomar vacina para aumentá-la, e cada ampola custar de 300 a 400 reais – se uma pessoa toma de quatro a cinco vacinas por semana, dá 1.500 a 6.000 reais por mês só com ampolas, fora a quimioterapia. Você então chega no hospital público para fazer a requisição, e ouve que a vacina só é dada para quem tem "chance de cura", que ela não pode ser fornecida como cuidado paliativo – e isto é um protocolo do Ministério da Saúde. Você se pergunta o que irá fazer, pois não pode assumir um emprego, passa meses sem trabalhar e acaba ficando sem dinheiro. Se para mim esta busca pela sobrevivência é uma angústia incessante, desesperadora e cruel, imagine para a população mais carente e desinformada, que não tem subsídios para correr atrás.

Nesse trecho, temos indicadores de como as instituições governamentais representam o paciente com câncer, como uma pessoa sem possibilidades e de como a saúde psíquica e os aspetos subjetivos do adoecimento, que são parte essencial da qualidade de vida desses pacientes são ignorados em prol de uma vida representada como capacidade objetiva de sobrevivência física. Matta e Camargo Jr. (2007) ao discutirem sobre os aspectos da saúde na psicologia social reconhecem que não podemos resumir nosso trabalho à fala dos pacientes ou profissionais de saúde, mas essa diversidade de vozes envolve também "as relações institucionais e políticas que atravessam os processos de subjetivação presentes no campo da saúde" (p. 138). Os autores citados não compartilham do conceito de subjetividade social, mas reconhecem a importância da compreensão das diferentes configurações sociais nos processos de subjetivação na saúde (Neubern, 2009). O impacto de elementos da subjetividade social nos processos de sentido subjetivo dos pacientes dessas instituições é grande, pois aspectos muitas vezes ocultos da organização social aparecem nos procedimentos com os pacientes que necessitam dos serviços dessas instituições.

Notamos também que ainda que expresse sua insegurança, não deixa de se preocupar com a população que não sabe dos seus direitos. Desse modo, temos indicadores do valor do outro para Roberta, o que está presente em diferentes momentos do seu relato. Apesar de viver com uma doença crônica que a debilita e muitas vezes impossibilita que saia de casa, Roberta continua com seu trabalho voluntário:

Nesta época, eu estava podendo ser tratada no Hospital Z (particular), onde 500 a 800 pessoas são atendidas por vez. Lá eu dei muito apoio aos pacientes, ia na casa, conversava, conscientizava a família e os acompanhantes sobre questões simples, como o paciente de quimioterapia não poder ficar com a perna pendurada, etc. Essa colaboração era muito gratificante, despretensiosa e informal.

Os processos de sentido subjetivo em relação às outras pessoas organizam-se em sentidos subjetivos que também se integram na configuração subjetiva da doença e de outras configurações de sua vida atual que aparecem em diferentes momentos da vida de Roberta. Estão presentes nos momentos em que trabalha como voluntária, como psicoterapeuta e no trabalho com reprodução assistida. É importante assinalar que o adoecimento tem um impacto grande na sua vida, mas não impede que ela gere alternativas que abrem espaços de relação com o outro, de diálogo. Ser sujeito dos processos de saúde e doença implica viver as contradições desse processo e se posicionar em relação a eles, o que pensamos ser um aspecto a marcante dos processos de Roberta em muitos momentos.

Considerações finais

Esse estudo de caso nos traz reflexões importantes sobre os aspectos subjetivos na experiência de uma pessoa com câncer. Nesta pesquisa, percebemos que a condição objetiva do câncer não corresponde com a produção subjetiva na experiência de viver o câncer. Os processos subjetivos de Roberta representam um instrumento para vencer os efeitos e limitações objetivas gerados pela doença. Assim como uma via para viver esse processo com saúde psíquica, o que deveria ser objetivo essencial das políticas públicas de saúde.

Os aspectos da subjetividade social muitas vezes geram contradições para o paciente com câncer. No caso de Roberta, ainda que reconheça o impacto do adoecimento no seu trabalho clínico, avança e posiciona-se frente às limitações do seu adoecimento. A configuração subjetiva da doença em Roberta integra a produção de nova identidade que mobiliza novos aspectos de avaliação e estima profissional. A profissão se converte em espaço de relacionamentos e reflexão que passam a ser elementos da configuração subjetiva de sua identidade e, também, da configuração subjetiva atual de Roberta.

O câncer é uma doença que por seu impacto muitas vezes faz com que a pessoa gere emoções que não são facilitadoras de produção subjetiva que lhe permita avançar. O posicionamento da pessoa como sujeito no processo de adoecimento está relacionado não só com a organização de seus processos na subjetividade individual como também com os aspectos da subjetividade social. Todo processo individual se configura através dos discursos, representações sociais e outras práticas da sociedade. Posicionar-se como sujeito na doença permite que a pessoa integre os processos de saúde e doença a um sistema de sentidos subjetivos a fim de que sua produção subjetiva facilite a experiência do adoecimento.

Enfatizamos nesse aspecto, o caráter imprevisível da subjetividade individual em relação à subjetividade social. A posição da pessoa como sujeito na experiência da doença está relacionada tanto com os processos da subjetividade individual quanto com os processos da subjetividade social. Não existe um elemento a priori que defina o modo de produção subjetiva das pessoas em relação aos processos de sentido e significado da subjetividade social. Diferentes aspectos da subjetividade social devem ser considerados nos processos de saúde e doença. A forma como uma sociedade se organiza em relação aos seus cidadãos, por exemplo, tem reflexos na qualidade de vida dessas pessoas e nos processos de sentido e significado que recursivamente se integram na organização da subjetividade social.

As configurações subjetivas organizadas na experiência das pessoas nos mostram seu caráter subversivo e a impossibilidade de definir essa categoria a partir da soma de elementos, que a constituem, de forma fragmentada. Ou seja, as diferentes configurações subjetivas organizadas nos processos de saúde e doença não são iguais ainda que as doenças sejam as mesmas, pois carregam em si a marca da história individual e sua organização singular. Os diferentes desdobramentos da subjetividade social são organizados em distintos processos de sentido nas diferentes configurações subjetivas. O que nos remete novamente ao caráter imprevisível e singular das configurações subjetivas.

O estudo dos sentidos subjetivos que se expressam na experiência do adoecimento implica recuperar as pessoas na sua condição de sujeitos (González Rey, 2005). O que é impossível em uma epistemologia que não integre o caráter processual e sistêmico de expressão da pessoa. A epistemologia qualitativa proposta por González Rey nos permite, desse modo, várias articulações no sentido de privilegiar a realidade como plurideterminada e processual, sem recorrer à busca de relações pontuais entre o processo de adoecimento e uma produção específica de sentido subjetivo. A epistemologia qualitativa contempla o estudo da subjetividade a partir de uma lógica configuracional que se relaciona com processos sociais e culturais através de múltiplas expressões do singular.

Refletir sobre os processos de saúde e doença nos conduz a uma construção teórica que possibilita a articulação de diferentes registros da organização do fenômeno humano. Essa articulação nos permite visão mais complexa e plurideterminada dos aspectos sociais e individuais. Ou seja, a compreensão dos processos de saúde e doença como processos de sentido e significado configurados de maneira plurideterminda tanto na subjetividade individual quanto na subjetividade social.

Notas

Recebido em: 05/05/2010

Revisão em: 08/09/2010

Aceite final em: 17/11/2010

Valéria D. Mori é Professora do Centro Universitário de Brasília (Uniceub) - Doutora em Psicologia. Endereço: SHIS QI 11 bloco O sala 307, Lago Sul. Brasília-DF, Brasil. CEP 71625-640. Email: morivaleria@gmail.com

Fernando L. González Rey é Professor do Centro Universitário de Brasília (Uniceub). Doutor em Psicologia. Email: gonzalez_rey49@hotmail.com

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  • 2
    Sistema de sentidos subjetivos organizados de forma relativamente estável em relação a aspectos da história pessoal e da vida social (González Rey, 2003b)
  • 3
    Zona de sentido representa uma forma de inteligibilidade sobre a realidade que se produz na pesquisa e não esgota a questão, mas abre possibilidades para diferentes aprofundamentos na construção teórica (González Rey, 2007).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Mar 2012
    • Data do Fascículo
      2011

    Histórico

    • Recebido
      05 Maio 2010
    • Revisado
      08 Set 2010
    • Aceito
      17 Nov 2010
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