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IMAGENS QUE PRODUZEM CONHECIMENTOS: OBJETIVIDADE, INTERPRETAÇÃO OU DISPOSITIVOS DE CONSTRUÇÃO DE REALIDADES?

IMÁGENES QUE PRODUCEN CONOCIMIENTO: ¿OBJETIVIDAD, INTERPRETACIÓN O DISPOSITIVOS DE CONSTRUCCIÓN DE LA REALIDAD?

IMAGES THAT PRODUCE KNOWLEDGE: OBJECTIVITY, INTERPRETATION OR DEVICES FOR CONSTRUCTING REALITIES?

Resumo

O presente artigo discute a relação entre imagem e realidade, tendo por base uma perspectiva psicossocial alinhada ao Construcionismo, voltada ao estudo da linguagem em ação. Seguindo a proposta de Peter Galison, abordamos três fases da relação entre imagem e realidade. A primeira tem por referência a aproximação da arte com a natureza; a segunda, a fase da “objetividade mecânica”, concerne aos avanços tecnológicos que permitem falar da inscrição visual da realidade; e a terceira fase problematiza os avanços nas tecnologias de inscrição, que tornam as imagens mais complexas, dificultando a transposição imediata da realidade para o conhecimento. Acompanhando escritos deste autor, propomos que é possível falar de uma quarta fase na qual a imagem é utilizada como inspiração, permitindo novas aproximações entre ciência e arte. Concluímos, retomando a problematização construcionista sobre objetividade e sugerindo que, nas quatro fases, as imagens criam realidades.

Palavras-chave:
Imagem; Ciência; Realismo; Construcionismo

Abstract

This article presents a discussion on the relationship between images and reality based on a psychosocial perspective aligned with constructionism, focusing on the study of language in action. Following Peter Galison’s proposal, we address three phases of the relationship between image and reality. The first has as its reference an approximation between art and nature; the second, referred to as “mechanical objectivity”, concerns technological developments that led to the visual inscription of reality. The third phase examines the advances in inscription technologies, which make images more complex, making it difficult to immediately transpose reality into knowledge. Following other writings by this same author, it is possible to propose a fourth phase in which images are also used as inspiration, allowing new approximations between art and science. We conclude with constructionist considerations about what counts as objectivity, suggesting that images create multiple realities.

Keywords:
Image; Science; Realism; Constructionism

Resumen

En este artículo se discute la relación entre imagen y realidad, teniendo como base una perspectiva psicosocial alineada con el Construccionismo, orientada al estudio del lenguaje en acción. Siguiendo la propuesta de Peter Galison, abordamos esa relación por medio de tres fases. La primera se refiere a la aproximación del arte con la naturaleza; la segunda es la fase de la “objetividad mecánica”, que se relaciona con los avances tecnológicos que permiten hablar de la inscripción visual de la realidad; y la tercera fase problematiza los avances en las tecnologías de inscripción, que vuelven las imágenes más complejas, dificultando la transposición inmediata de la realidad para el conocimiento. Siguiendo los escritos del autor, proponemos que es posible hablar de una cuarta fase, en la cual la imagen es utilizada como inspiración, permitiendo nuevas aproximaciones entre ciencia y arte. Finalizamos retomando la problematización construccionista sobre objetividad y sugiriendo que, en las cuatro fases, las imágenes crean realidades.

Palabras clave:
Imagen; Ciencia; Realismo; Construccionismo

Introdução

Este artigo tem por foco a análise de imagens em uma perspectiva psicossocial alinhada ao Construcionismo, voltada ao estudo da linguagem em ação1 1 Texto produzido a partir de conferência em evento organizado pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFPE, Recife, 28 de fevereiro de 2008. Vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=y4WJ9alQ3Ss . Nesta perspectiva, damos à imagem o estatuto de linguagem, e o tipo de análise se volta para a ação, e não para o conteúdo. Ou seja, o que interessa é o uso que se faz dessas imagens e os efeitos que elas têm. O que está em pauta, então, são os efeitos das imagens na validação do conhecimento; os efeitos de legitimação de posição de pessoas e os efeitos de construção de realidades. São esses três aspectos que denominamos aqui de usos e efeitos. Vale apontar que não se trata de uma teoria fechada sobre análise de imagens, apenas provocações e possibilidades de trabalhar com imagens de modo a entender como são usadas e os efeitos que têm.

Como são muitas as teorizações sobre imagens, vale lembrar aqueles que tomamos como guias, como mentores e, no caso desta reflexão, a inspiração veio de um texto de autoria de Peter Galison (Galison, 1998Galison, P. (1998). Judgement against objectivity. In C. A. Jones & P. Galiston (Orgs.), Picturing Science, producing art (pp. 327-359). New York: Routledge.). O autor é professor titular de História da Ciência e da Física da Universidade de Harvard e visa, em vários de seus escritos, entender o papel dos experimentos na física moderna e, principalmente, as questões relacionadas à visualização científica.

No texto em questão, Galison propõe que a relação entre ciência e imagem, entre imagem e objetividade segue três fases. A primeira concerne à aproximação da arte com a natureza. Para exemplificar, mencionaremos primeiramente os anatomistas renascentistas e, para fazer a transição para a segunda fase, traremos para discussão os desenhos de viajantes entre as grandes viagens de descobrimento e o século XIX. Isso possibilita falar da segunda fase por ele denominada de “objetividade mecânica” que trata dos avanços tecnológicos que permitem o sonho dourado da inscrição visual da realidade. A terceira fase diz respeito à interpretação das imagens, uma vez que, com os avanços nas tecnologias de inscrição, as imagens se tornam mais complexas e se perde o sonho de uma transposição imediata da realidade para o conhecimento; retorna, assim, à questão da interpretação.

Acompanhando alguns escritos do referido autor (Galison, 2002Galison, P. (2002). Images scatter into data, data gathers into images. In B. Latour & P. Weibwl (Eds.), Iconoclash (pp. 300-323). Germany: ZKM; Cambridge, Mass: MIT.), propomos que é possível falar de uma quarta fase, na qual a imagem é utilizada como inspiração, possibilitando novas aproximações entre ciência e arte. As três primeiras fases são trabalhadas por Galison, alguns em colaboração com Lorraine Daston, em textos que datam da década de 1990 (Daston & Galison, 1992Daston, L. & Galiston, P. (1992). The image of objectivity. Representations, 40, 81-128. ; Galison, 1998Galison, P. (1998). Judgement against objectivity. In C. A. Jones & P. Galiston (Orgs.), Picturing Science, producing art (pp. 327-359). New York: Routledge.). Já a quarta fase faz parte de um trabalho de curadoria de uma exposição, intitulada Iconoclash, organizada por Bruno Latour e Peter Weibel, na Alemanha, em 2002Latour, B. & Weibel, P. (Ed.) (2002). Iconoclash: beyond the image wars in science, religion and art. Karlsruhe, GERM: Center for Art and Media. (Galison, 2002).

Uma primeira fase: aproximações da arte com a natureza

Tomaremos como exemplo do primeiro modo de utilização de imagens como dispositivo de inscrição da natureza o livro de Andreas Vesalius (1543/2002Vesalius, A. (2002). De Humani Corporis Fabrica. São Paulo: Ateliê, Imprensa Oficial do Estado; Campinas, SP: Unicamp. (Original publicado em 1543)), chamado De Humani Corporis Fabrica, editado na Basileia, Suíça, em 1543. Para entender a importância das imagens temos que voltar à questão de emergência da ciência moderna nesta época que, por convenção, denominamos “Renascença”. Trata-se do abandono da autoridade dos textos bíblicos; da exegese e da interpretação dos textos como autoridade máxima para a compreensão da natureza. Entra em cena a autoridade do “livro da natureza”, como propõe Galileu no século XVI (Chatelêt, 1993Chatelêt, F. (1993). Uma história da razão. Lisboa: Presença. , p. 63). Há duas consequências primordiais para entender o percurso histórico do que hoje denominamos “ciência”: primeiro, a ciência passa a ser uma atividade laica; segundo, afirma-se que ela tem por objetivo a leitura da natureza.

Portanto, o questionamento de como as observações da natureza são transferidas para o domínio do conhecimento científico se torna fundamental, e a anatomia foi um dos campos que problematizou tal questão. Até aquele momento, proibia-se o uso de corpos para estudo, porém, a partir da Renascença, a anatomia se transformou em teatro. Chamava-se “teatro de anatomia”. A arquitetura desses teatros se baseava na luta de galos; eram arenas, e as pessoas se sentavam em volta da mesa do anatomista. Este, aliás, não punha a mão na faca, pois isso era considerado uma tarefa suja, mas ficava em cima, no pódio, dando ordens para quem fazia a dissecação.

Não se tratava de teatro para diversão do público, tendo em vista que, o que se procurava era uma compreensão do corpo humano. Contudo, uma coisa é fazer a dissecação e aprender sobre os órgãos: o rim, o intestino, etc. Outra é ensinar isso para os alunos. Segue daí a importância dos tratados de anatomia, dentre os quais o de Andreas Vesalius passou a ser um dos exemplos mais primorosos. Tratando-se de uma transformação no modo de ver o corpo e de aprender sobre o funcionamento dos órgãos, a circulação dessas informações era indispensável, e eram veiculadas não só na forma de livros, alguns menos elaborados que o tratado clássico de Vesalius, mas também como folhas soltas, de baixo custo e fácil manuseio.

A página de rosto do De Humani Corporis Fabrica chama atenção, pois nela a imagem do dissecador é do próprio Vesalius, ainda jovem. Ou seja, ao contrário do que acontecia usualmente, ele não está no pódio dando ordens. Desperta interesse, também, por se tratar de uma cena externa, ao ar livre, lembrando que os teatros de anatomia costumavam ser realizados em ambientes fechados. Vesalius coloca a anatomia em público e, como o foco desta reflexão está nos usos e efeitos das imagens, é possível entender a proposta do livro. Primeiramente, Vesalius punha a mão na massa. Havia livros de anatomia anteriores ao dele, mas eram de pessoas que desenhavam o que tinham visto em outro momento. Em contraste, Vesalius desenhava com base no que estava vendo no momento da dissecação. Certamente, não era ele quem fazia os desenhos; corre uma lenda que foram feitos pelo pintor Ticiano. Se não foi ele, foi algum outro desenhista renomado e pintor da época. E como se não bastasse essa parceria, Vesalius escolheu o melhor editor que existia na Europa na ocasião. Há, nessa história, uma interessante proposta: escolhe-se quem pode melhor ilustrar como é um músculo, ou uma parte qualquer do corpo, e elege-se quem melhor pode imprimir esses desenhos. Uma dupla intenção de dar voz à imagem.

Vale destacar que esse livro foi a base do ensino de anatomia durante muito tempo e até hoje se considera que as estruturas que Vesalius desenhou correspondem ao que atualmente se chama estrutura de x, y ou z. Dentre as muitas ilustrações que constam desse tratado, a gravura 24, a primeira que ilustra os músculos, mostra a disposição superficial dos músculos não apenas para uso de médicos, mas também para escultores, artistas e pintores daquele tempo. Tinha dupla função, e essa imbricação entre ciência, imagem e arte já se faz aí muito presente, pois a anatomia era igualmente fundamental para os pintores e escultores da época.

O tratado de Vesalius ainda é admirável por pontuar uma considerável ressignificação que nos leva da tradição do sexo único ao binarismo contemporâneo sobre sexos masculino e feminino. Vesalius foi um dos primeiros a romper com as teorizações de Galeno sobre órgãos sexuais, o qual trabalhava com o modelo de sexo único (Lacqueur, 1990). Em seus escritos, esse médico famoso da antiguidade nos leva a uma viagem exploratória sobre o sexo que permite visualizar claramente a verdade intrínseca do sexo único. Diz ele: “primeiro, pense na genitália externa masculina voltada para dentro, estendendo-se internamente entre o reto e a bexiga. Se isso acontecesse, o saco escrotal necessariamente tomaria o lugar do útero, com os testículos localizados fora e, de cada lado do útero, os ovários” (Lacqueur, 1990, p. 25). Ou seja, nesta visão, o pênis passa a ser o cérvix e a vagina; o prepúcio se torna a pudenda feminina, e assim consequentemente.

Segundo Galeno, não encontraríamos uma única parte dos órgãos masculinos que simplesmente não pudesse mudar sua posição no processo de internalização. E, evidenciando o conteúdo ideológico dessa construção, numa citação amplamente divulgada (Lacqueur, 1990, p. 27), ele compara os órgãos genitais femininos aos olhos de uma toupeira, os quais têm a mesma estrutura que os olhos de outros animais, só que não permitem a visão. Eles não abrem, não se projetam, são imperfeitos. O mesmo ocorre com a genitália feminina: também não se abre e permanece uma versão imperfeita do que poderia ser projetado para fora. Os olhos da toupeira são como os olhos de outros animais enquanto estes ainda estão dentro do útero. De forma semelhante, o ventre, a vagina, ovários e demais órgãos femininos permanecem para todo sempre como se estivessem ainda no útero, ou seja, a vagina é um pênis que está eterna e precariamente por nascer. O ventre é um saco escrotal atrofiado, e daí por diante.

Tal conteúdo ideológico ainda se evidencia, quando Galeno afirma que a toupeira é mais perfeita do que os animais sem olhos, e a mulher é mais perfeita que outras criaturas, mas os órgãos internos são sinais claros da falta de calor e, portanto, de menor perfeição. Afirmava Galeno: “Tal como o humano é o animal mais perfeito, assim, na humanidade, o homem é mais perfeito que a mulher, sendo a razão disso o excesso de calor, porque o calor é o principal instrumento da Natureza” (Lacqueur, 1990, 28).

Importa ressaltar que o modelo de sexo único perdurou por um milênio, embora durante esse período tenham ocorrido mudanças culturais, políticas e sociais. Sua permanência é duplamente explicada. Em primeiro lugar, porque o corpo não constituía a base biológica de definição da diferença sexual; a ordem e a hierarquia eram impostas ao corpo de fora. Em segundo lugar, porque em um mundo público predominantemente masculino, o modelo de sexo único demonstrava o que era culturalmente aceitável: que o homem era a medida de todas as coisas, e a mulher não existia enquanto categoria ontologicamente distinta.

A anatomia na Renascença era o símbolo mais óbvio do empirismo nascente. O que antes havia sido escondido, praticado só ocasionalmente, de forma silenciosa, se tornava agora um produto para consumo público. As dissecações não eram apenas abertas ao público, mas eram literalmente teatrais. Essa anatomia tão visual apenas demonstrou com maior vigor que a vagina era mesmo o pênis, e o útero era o saco escrotal internalizado. Ou seja, ver é acreditar, ou melhor, inversamente, acreditar é ver. Toda uma visão de mundo que subordinava a mulher ao homem, e a via apenas como reflexo imperfeito dele, levava o anatomista renascentista a ver efetivamente a vagina como pênis internalizado. Dito de outra forma, o que está em pauta é a operação de representações hegemônicas de diferença de gênero. Não se tratava de erro ou de incompetência, porque as gravuras mostravam o que eles viam. A interpretação do que eles viam é que estava incorreta.

Como argumenta Tomas Laqueur (1990Laqueur, T. (1990). Making sex: body and gender from the Greeks to Freud. Cambridge, MASS: Harvard University Press.), as ilustrações renascentistas se aproximam muito das modernas. Se o modelo do sexo único estava aberto à verificação empírica e, portanto, à falsificação, ele permaneceu não testado, porque estava profundamente interligado na malha de interpretações, práticas clínicas e experiências cotidianas que o protegiam da exposição ao que pudesse ser construído como evidência contrária. A importância de Versalius, portanto, além de seu papel no ensino da anatomia, na teorização sobre o corpo, na beleza do texto que produziu, é que ele foi um dos primeiros a se contrapor e dizer: “Não, o que eu estou vendo não confirma a teoria de Galeno”.

Nessa primeira fase de imagem como representação da natureza, na cronologia proposta por Galison, o anatomista estava olhando para alguma coisa estática diante dos olhos de uma pequena multidão de curiosos e de alunos. Mas, nesta mesma época, houve outro acontecimento: as viagens de exploração, de descobrimento e, como comprovação do exótico que encontravam nesses lugares distantes, os viajantes tinham duas opções: trazer o espécime raro (um indígena, uma fruta, uma planta, um animal) ou desenhá-lo. É possível, portanto, entender o poder das tecnologias de visualização por meio do que aconteceu com os viajantes. Um dos exemplos encantadores é um dos primeiros mapas da terra brasilis, datado de 1514 (Costa, 2005Costa, A. G. (Org.). (2005). Os caminhos do ouro e a estrada real. Belo Horizonte: UFMG; Lisboa: Kapa.). Não se trata, nesse caso, da “simples” tarefa do anatomista de abrir um corpo e retratar o que estava dentro. Era necessário percorrer todo um território para começar a traçar o contorno dessa terra desconhecida. Ao descrever, era preciso afirmar que esta é uma terra que tem riquezas, que tem bichos interessantes, que tem gente, que tem pau-brasil. Era isso que se dizia ao rei.

Nessa época, século XVI, não existia fotografia e, assim, toda viagem marítima tinha que contar com o apoio de alguém que pudesse desenhar o que se via. À medida que as pessoas começaram a adentrar o território, mais detalhes foram sendo identificados. Os mapas foram se tornando a principal tecnologia de representação do território. No livro Caminhos da conquista (Keating & Maranhão, 2008Keating, V. & Maranhão, R. (2008). Caminhos da Conquista: a formação do espaço brasileiro. São Paulo: Terceiro Nome. ), sobre a abertura do território brasileiro, há a informação de que uma bandeira tinha de 2.500 a 3.000 pessoas na expedição. Assim, é possível compreender que, para desenhar todos esses detalhes, era necessário levar um expressivo número de pessoas. Porém, tratava-se ainda de uma tecnologia que tinha por base a visão e, aos poucos, alguns instrumentos de medição. Para compreender a relação entre tecnologia e representação, basta pensar no que ocorre hoje, quando dispomos de imagens de satélite. Ou até mesmo do Google Maps em nossos celulares.

Contudo, não só a terra e sua geografia tinham que ser imageticamente transportadas para a Europa, também era necessário transportar a natureza, caracterizar a fauna e a flora. Existem croquis e aquarelas belíssimas desenhadas por esses viajantes, e é preciso assinalar que a primeira representação era feita com base no contato direto com a natureza. Ou seja, em um primeiro momento, o que se tem é a mediação do olhar por meio do desenho.

A segunda fase: a objetividade mecânica

Com o avanço das tecnologias, sobretudo no século XIX, adentramos a segunda fase da tipologia proposta por Galison: a objetividade mecânica. Certamente, a objetividade mecânica tem muito a ver com todos os aparatos tecnológicos dos quais a fotografia é fundamental. E é fácil esquecer que se trata de uma tecnologia relativamente recente. Por muitos séculos, essa transposição do olhar para o registro era feita por meio de desenhos e pinturas. Com a fotografia, isto muda (Becker, 1974Becker, H. S. (1974). Photography and sociology. Studies in the anthropology of visual communication, 1, 3-26.).

A história do desenvolvimento da fotografia abarca cerca de 70 anos (Benjamin, 1931/1980Benjamin, W. (1931/1980). A Short History of Photography. In A. Trachtenberg (Org.), Classic Essay on Photography (pp. 199-216). New Haven, CT: Leete’s Island Books. (Original publicado em 1931)) e tem como marco inicial o ano de 1817, quando Joseph-Nicéphore Niépce obteve imagens com cloreto de prata sobre papel. Em 1826, consegue a primeira fotografia e em 1839, Niépce e Louis-Jacques Mandé Daguerre lançam o processo chamado daguerreótipo (que conduziria à fotogravura). Em 1841, William Henry Fox Talbot lança o calótipo, um processo de fixação e reprodução que leva à fotografia moderna. Em 1871, Richard Leach Maddox fabrica as primeiras placas secas com gelatina, substituindo o colódio. Em 1884, George Eastman patenteou o filme de rolo e, em 1888, desenvolveu a primeira câmera portátil - a Brownie, da Kodak, e a fotografia passa ser um hobby para todas as pessoas que podiam ter acesso a câmeras e filmes.

Há fontes ricas sobre usos e efeitos de imagens produzidas por fotografias. Por exemplo, o arquivo digital das propagandas da Kodak do final do século XIX e começo do século XX (The Ellis Collection, Duke University2 2 Duke Digital Collections. Ellis Collection of Kodakiana (1886 1923). http://library.duke.edu/digitalcollections/ (Acesso em 14/04/2008). ) encanta não só pelas imagens como também pelas mensagens que nos permitem entender como pessoas (homens, mulheres, crianças) eram posicionadas, e, paralelamente, se propagava a mensagem de que a fotografia produzia uma versão objetiva da realidade. Neste arquivo, a mensagem de fundo era: tenha sempre em mãos uma Kodak para registrar momentos de seu cotidiano. Para registrar, entre outras coisas, o desenvolvimento de seu bebê (Spink, 2010Spink, M. J. P. (2010). Álbuns de bebê: reflexões sobre tecnologias que performam pessoalidades. In S. J. Souza & M. Moraes (Orgs.), Tecnologias e modos de ser no contemporâneo (pp. 25-52). Rio de Janeiro: PUCRJ/7 Letras. , 2011Spink, M. J. P. (2011). Arquivando nossos selves: a construção de narrativas biográficas de famílias por meio de fotografias. In A. V. Zanella & J. Tittoni (Orgs.), Imagens no pesquisar: Experimentações (pp 147-166). Porto Alegre: Dom Quixote. ).

Também há propagandas que têm por foco expedições históricas, nas quais, por contraste, a ideia de objetividade mecânica fica explicitada. Por exemplo, uma tem como tema a descoberta das Américas por Cristóvão Colombo, e outra, uma expedição mais contemporânea à Antártida. O anúncio nos instiga a imaginar como teria sido se Colombo tivesse tido acesso a uma máquina fotográfica. O que ele poderia ter nos contado seria muito diferente do que foi demonstrado por meio de desenhos e cartas. Já a expedição à Antártida foi bem documentada; ninguém poderia duvidar do que se passou.

Ver para crer. Ou melhor, registrar em fotografia para validar o relato. Por exemplo, registrar em fotografia é um aspecto fundamental das escaladas ao Monte Everest que, atualmente, são impulsionadas por desafios turbinados por empresas de turismo de aventura. Contudo, para tirar a fotografia que vai comprovar que você chegou ao pico, é preciso tirar a luva e, então, se corre o risco de congelar os dedos. Muitos morrem nessas expedições, como relata Jon Krakauer, no livro No ar rarefeito (1997Krakauer, J. (1997). No ar rarefeito: um relato da tragédia no Everest em 1996. São Paulo: Companhia das Letras . ). Entre as narrativas que constam deste livro, uma relata que alguém que foi encontrado morto próximo ao pico, a oito mil metros, estava de posse de uma máquina fotográfica. Retiraram-na para poder entregar as fotos para a família e, entre elas, havia uma no topo da montanha. Ou seja, não basta dizer que você conseguiu chegar ao topo da montanha; tem que trazer a prova.

Não apenas as tecnologias de visualização são recentes, a palavra objetividade também é, pois, data do século XIX (Galison, 1998Galison, P. (1998). Judgement against objectivity. In C. A. Jones & P. Galiston (Orgs.), Picturing Science, producing art (pp. 327-359). New York: Routledge.). Até então, a questão da objetividade era outra, uma vez que, quando precisamos de uma palavra nova para falar de algo, é porque nossa sensibilidade em relação ao fenômeno em questão mudou. O que acontece nessa transição é que não é mais o artista que faz falar a natureza; o que se busca é deixar que a natureza fale por si mesma. Este é o ideal da objetividade mecânica. Quanto menos interferência de interpretação por parte dos seres humanos, melhor. Quanto mais direta a relação entre tecnologia e objetividade, melhor.

Um exemplo dessa nova sensibilidade se refere a um dispositivo de inscrição que se chama microscópio, e que pode ser apreciado em um trecho de cinco minutos de um filme sobre Louis Pasteur. Contudo, é preciso atentar para o fato de que o microscópio tem longa trajetória. Inventado em 15953 3 Zacharias Jansen inventou o microscópio em 1595 - um brinquedo da realeza para ver pequenos objetos. No final do século XVII, Van Leeuwenhoek fez descobertas significativas, usando simples microscópios com apenas uma lente. Por volta do ano de 1742, os microscópios que projetavam imagens fizeram grande sucesso. No século XIX, foram desenvolvidas novas técnicas para fabricação de lentes, como o uso de espelhos curvos, para melhorar a capacidade de foco desses instrumentos. Por volta de 1880, os chamados microscópios ópticos atingiram a resolução de 0,2 micrômetros, limite que permanece até os dias de hoje. , foram necessários outros desdobramentos, a exemplo do desenvolvimento de lentes curvas, para que o microscópio se tornasse uma ferramenta imprescindível nas pesquisas em laboratório. O que buscamos enfatizar é o uso que Pasteur fez do microscópio, e não a existência do dispositivo microscópio per se. Esse uso é lindamente ilustrado em uma passagem do filme Louis Pasteur, de 1936, que foi indicado para o Oscar de 1937, tendo recebido o prêmio para melhor ator (Paul Muni) e melhor roteiro adaptado (The Story of Louis Pasteur, 1936The Story of Louis Pasteur.(1936). Dieterle, W. (Dir.) [Motion Picture, 87 min.]. United States: Warner.).

Em uma cena inicial, Pasteur é chamado para uma cerimônia no Palácio: “O imperador quer a honra da apresentação de Louis Pasteur, convidado à noite do palácio. Uma carruagem será enviada às 20 horas”. Pasteur, que é químico, vinha buscando convencer seus compatriotas médicos a adotarem medidas de assepsia nos partos e via nesse convite uma boa oportunidade: “O imperador! Se eu conseguisse convencê-lo!”

A caminho do palácio, o condutor para na frente de sua residência e lhe explica que sua esposa estava doente, com febre puerperal. A cena é potente, pois deixa explicita a relação entre o que já se sabia sobre febre puerperal e a possibilidade de contágio para a próxima paciente, no caso, uma parente do próprio imperador. Embora a inserção desta cena no script do filme seja interessante, o que vale destacar para a reflexão sobre objetividade mecânica é a presença do microscópio. Em conversa com o médico da corte, Charbonnet, o imperador explica que chamou Pasteur, pois estava muito cético: nunca vira um germe.

- Vamos, Pasteur, diga exatamente o que quer dizer.

- Senhor, os hospitais de Paris estão contaminados. Mal existe um médico em Paris que não leve a morte em suas mãos e instrumentos.

- Por causa dos micróbios? Sua coleção particular de animais invisíveis?

- Exatamente. O Dr. Charbonnet os veria, se usasse seu microscópio. Eles se multiplicam em milhões de assassinos. Eles respiram na sujeira. Começam nas sarjetas de Paris, hoje à noite e amanhã podem tirar a vida de uma mãe desta corte.

- Absurdo! Pensar que um ser humano possa ser destruído por um animal dez mil vezes menor que uma pulga. É como se um exército de formigas destruísse o império de Sua Majestade. (The Story of Louis Pasteur, 1936)

O filme é fascinante porque reflete a imagem que Hollywood fazia da ciência em 1936. Pasteur foi apresentado como grande herói. Mas há duas narrativas aqui que são particularmente importantes para o tema da objetividade. Obviamente, uma narrativa é sobre o uso do microscópio como uma tecnologia de visualização de alguma coisa que não se vê a olho nu, portanto, pode ser desacreditada. Aliás, relendo alguns textos sobre Galileu, percebemos que o telescópio também era desacreditado, uma vez que as pessoas consideravam que ele podia criar ilusões; logo, era visto como uma arma do diabo. E com o microscópio, a mesma coisa. Ou seja, não basta ter a tecnologia, é preciso que esta tecnologia permita ver certas coisas que cem anos antes não seria possível ver, porque não se imaginava a existência de micróbios, porque não existia uma teoria sobre eles.

Isso leva a uma segunda narrativa que se faz presente neste filme que concerne à introdução tardia da assepsia na medicina que, no caso do parto, resultou na morte de muitas mulheres devido à febre puerperal (Spink, 2003Spink, M. J. P. (2003). Psicologia Social e Saúde: Práticas, Saberes e Sentidos. Petrópolis, RJ: Vozes.). Além da difícil aceitação da existência de bactérias, os médicos eram provenientes das elites; eram “cavalheiros”, e cavalheiros não tinham mãos sujas. E, se alguém lhes dissesse que teriam de lavar as mãos antes de fazer o parto, ou mesmo, observassem que a roupa que estavam usando poderia estar contaminada, era considerado uma ofensa.

Há histórias contundentes a esse respeito, como a de Ignaz Semmelweis, um médico que implantou sistemáticas de assepsia nos hospitais na Áustria que reduziram a morte materna em grande escala. No entanto, ele nunca foi capaz de escrever sobre isso ou demonstrou ter provas do que ele estava falando. Foi necessário que outra leva de médicos e pesquisadores, entre eles, Joseph Lister e Louis Pasteur, entrassem na discussão. Eram necessárias provas. Nas palavras fílmicas de Pasteur, “Basta você olhar no seu microscópio que você vê, ou seja, uma tradução direta entre a existência do micróbio e a visualização dele.

O segundo exemplo de inscrição relacionado à segunda fase da relação entre imagem e realidade vem do livro Vida Maravilhosa (Gould, 1990Gould, S. J. (1990). Vida maravilhosa. São Paulo: Companhia das Letras. ). Este relato possibilita falar de outro aspecto que nos leva ao terceiro momento da tipologia proposta por Galison, na qual a interpretação das imagens começa a ser vista como necessária. A história que Stephen Jay Gould nos conta é sobre o Burgess Shale, uma jazida de fósseis nas montanhas rochosas canadenses, perto da British Colúmbia que é de particular importância, porque preservou em detalhes fósseis da era da explosão cambriana, ocorridas 570 milhões de anos atrás. Esse período é um mistério geológico marcado pela diversificação de espécies e, ao mesmo tempo, por uma extinção em massa dessas.

Em geral, os fósseis, principalmente os pequenos, não preservam as partes moles. A importância de Burgess Shale é que provavelmente ocorreu um deslize de lama que soterrou esses fósseis e preservou-lhes também as partes moles. Gould entrelaça narrativas variadas que mesclam questões teóricas e bricolagens biográficas. Uma das narrativas é a própria descoberta dessa jazida por Charles Doolittle Walcott, um paleontologista bastante famoso nos Estados Unidos que gostava de passar as férias na British Colúmbia. Um dia, retornando dos acampamentos, a mula em que viajava a senhora Walcott escorregou e desalojou algumas pedras e, com isso, deixou evidentes os fósseis que ele então passou a recolher todos os anos. Realizou expedições para esse local, de 1910 a 1917, e mais tarde, foram feitas mais três expedições, uma pelo serviço geológico canadense, e outra, a que nos interessa, datada da década de 1960, envolvendo um pesquisador inglês chamado Whittington.

Walcott fez estudos minuciosos. Ele trazia o espécime, como faziam os viajantes na época das chamadas “descobertas”, arquivava no museu do qual ele era diretor, tirava fotos, e aí começava a dissecar para caracterizar as estruturas. Ele publicou seus trabalhos entre 1911 e 1920, estabelecendo uma versão sobre os fósseis do Burgess Shale, que acabou se tornando uma caixa preta, porque Walcott era um paleontologista de renome; ocupava uma posição muito importante como diretor do prestigioso Smithsonian Institute e tinha acesso a verbas. Então o que ele dizia e publicava acabava se tornando uma caixa preta: esta é a teoria, fecha a caixa e ponto final.

Para ele se tratava de uma aplicação estrita da teoria darwiniana sobre sobrevivência dos mais aptos, e assim, a diversidade de fósseis foi considerada como precursora de outras tantas espécies, encaixando-se dentro desta teorização. Gould vai se referir a esse encaixe como a calçadeira de Walcott (Gould, 1990Gould, S. J. (1990). Vida maravilhosa. São Paulo: Companhia das Letras. , p. 244). Alguns de seus contemporâneos haviam levantado dúvidas a respeito dessa interpretação. Mas Walcott estava sempre ocupado demais para dialogar sobre isso. Há, no livro de Gould, um trecho belíssimo sobre como as funções administrativas acabam desviando pesquisadores brilhantes de suas tarefas de pesquisa. Em várias páginas, conta quais eram as funções administrativas de Walcott que, por conta disso, pode ter deixado para rever as dúvidas levantadas pelos colegas em uma ocasião em que não tivesse uma sobrecarga administrativa tão grande.

Além disso, operou-se um viés. Por exemplo, o fóssil da opabinia foi por ele classificado de artrópode. Ele sabia que essa espécie era um artrópode. Ele sabia, tal como os anatomistas renascentistas sabiam que os órgãos femininos eram órgãos masculinos internalizados. Sabia que este era um artrópode e, portanto, buscou explicações para o fato de que não havia sinais de existência de antenas: “Bom, elas foram quebradas durante o deslizamento da lama ou então elas eram tão pequenas que estavam escondidas dentro da cabeça”. Mas desprezou a terceira hipótese, de que as antenas não existiam. E, se não existiam, não era um artrópode.

Segundo Gould, a história da abertura dessa caixa preta e a revisão da explicação sobre o que ocorreu nessa época são dramas intelectuais intensos que envolveram Harry Whittington e dois de seus doutorandos, Simon e Derek. O que mais desperta interesse nessa história é que, frequentemente, as revisões de teorias que já estão legitimadas envolvem a descoberta de novos espécimes ou o desenvolvimento de novas tecnologias que permitem ver outras coisas que as tecnologias anteriores não permitiram, mas não foi isso que aconteceu; muito pelo contrário. Walcott usou a fotografia, e Whittington usou uma técnica chamada câmara lúcida, que havia sido desenvolvida antes da fotografia e data de 1807. Essa técnica consiste em um conjunto de espelhos que projetam a imagem em uma superfície plana e possibilitam simultaneamente ver o espécime e desenhá-lo numa folha plana de papel. A vantagem disso é que, enquanto a fotografia original era vista em duas dimensões, por meio da câmera lúcida é possível ver esses fósseis em três dimensões.

Da objetividade mecânica à imagem interpretada

Whittington contratou uma desenhista talentosa, que passou a fazer modelos pictóricos do que seriam os vários espécimes. Ou seja, a tecnologia não faz o milagre da transposição exata para a tela daquilo que se vê. Estamos adentrando a terceira fase da tipologia de Galison: a fase das imagens interpretadas. Ainda guiados pelas mãos de Galison, que deslocamento seria esse? O próprio desenvolvimento tecnológico passa a exigir que façamos leituras especializadas de informações complexas; temos que aprender a ler; temos que nos tornar especialistas na leitura das imagens.

Nada melhor para ilustrar o exposto do que o ultrassom na gravidez. Se conversarmos com mulheres que foram fazer o primeiro ultrassom na sua primeira gravidez e perguntarmos se conseguiram ver o nenê muitas vão responder: “Eu não tive coragem de dizer ao meu médico, fiquei inibida. Então levei o vídeo, coloquei o vídeo, levei o vídeo para o meu marido e, eventualmente, eu comecei a ver”. É evidente que, no decorrer da gravidez, aprende-se a ler as imagens.

Esses avanços tecnológicos fazem com que as imagens utilizadas na ciência precisem da habilidade humana de observar padrões e de classificar. Porém não podemos esquecer que classificações são decisões ativas. Não se trata da passividade da objetividade mecânica em que a imagem era a realidade. Nesse novo enquadre, temos que ativamente buscar padrões e classificar.

No caso dos ultrassons, é necessário conhecer padrões de normalidade e anormalidade para, por exemplo, detectar anormalidades fetais. Não se trata mais do intérprete genial, mas do leitor experiente. O especialista se ancora no seu conhecimento e na experiência supervisionada, e não mais no acesso direto à realidade; precisa aprender a ler as imagens. Na perspectiva psicossocial da leitura de imagens, entretanto, o que interessa são os usos e efeitos. E, de novo, a gravidez é um exemplo fantástico, porque permitiu entender as transformações ocorridas na maneira de pensar o bebê, à medida que as pessoas começaram a ter acesso ao ultrassom. Encontramos na Internet um diário de gravidez no qual há muitas referências à experiência de visualização dos ultrassons, dentre os quais o de um ultrassom morfológico.

Quinta-feira, 22 de julho de 2010.

No dia 30/06 fiz a USG morfológica.

Nossa, foi interessante, demorado, detalhado, tudo foi visto, medido, checado. Osso por osso do corpinho do meu lindo, foi examinado, vi todos órgãos internos do bebê (desde intestinos, fígado, estômago com a presença de líquidos, câmaras do coração).

Com a graça de DEUS, justo e bom, 99,9% livre de qualquer síndrome.

Contei os dedinhos dos dois pés, das duas mãos, vi a regularidade dos ossinhos dos braços, pernas, caixa torácica em tamanho normal, cabeça normal sem risco de hidrocefalia, lábios normais. Meu filho amado tem já 27 cm, está pesando 502g. Tem batimentos rítmicos de 141 batimentos por minuto. Anatomia de aspecto normal e boa vitalidade no momento (como eu gosto desta parte).O cordão umbilical de bom calibre com 3 vasos - tudo corre perfeito para um parto normal - Placenta de bom grau com líquido amniótico em quantidade normal. Gestação de 22 semanas e 5 dias, e tudo está correndo na perfeita harmonia com a natureza.http://esperandofernandinho.blogspot.com.br/2010/07/ultrassom-morfologico-3006.html?m=1

Há vários aspectos interessantes nesta descrição. Primeiro, é uma imagem complexa que exige a leitura. Que exige aprender a ler (Chazan, 2007Chazan, L. K. (2007). “Meio quilo de gente”: um estudo antropológico sobre ultra-som obstétrico. Rio de Janeiro: Fiocruz.). Este processo de aprendizado já é fascinante. Segundo, o acesso a essas imagens transformou profundamente a experiência de gravidez. Há alguns anos, sabíamos do sexo do neném, quando ele nascia. Agora não: o vídeo é levado para casa, assistido por outros membros da família, por amigos e amigas, comemorado mês a mês. Ou seja, a tecnologia de visualização extrapola a questão da verdade do conhecimento, da objetividade. Ela muda profundamente as práticas sociais, porque traz novas informações que permitem outras tantas ideias a respeito do que são as coisas.

Novas aproximações entre ciência e arte: as imagens como inspiração para a produção de novos conhecimentos

Chegamos agora ao quarto movimento no qual a imagem pode ser vista como inspiração para a produção de novos conhecimentos. Falamos de inspiração para nos referirmos à abertura de novos horizontes que transcendam a usual distinção entre o que é considerado arte e o que é ciência. Trata-se de movimentos de aproximação que não se reduzem, no caso das artes, à mera incorporação de avanços da ciência nas técnicas utilizadas por artistas ou nas maneiras como artistas retratam temas da ciência. Falamos, portanto, de inspiração como compartilhamento; movimentos de colaboração no enquadre de produção de conhecimentos transdisciplinares. Compartilhamento entre campos de saber que se pautam por lógicas distintas. Este é o caso das produções artísticas de Tomás Sarraceno, artista argentino que usa teias de aranha como tema. Sua obra resulta de colaboração com cientistas em uma via de mão dupla, na produção de suas obras e na publicação conjunta.

É também o solo em que ocorreu a curadoria da exposição Iconoclash (Latour & Weibel, 2002Latour, B. & Weibel, P. (Ed.) (2002). Iconoclash: beyond the image wars in science, religion and art. Karlsruhe, GERM: Center for Art and Media. ) que teve por objetivo mostrar as várias dimensões da guerra das imagens na religião, na ciência e na arte contemporânea, incluindo, querelas na matemática e na física. No caso da ciência, Galison (2002Galison, P. (2002). Images scatter into data, data gathers into images. In B. Latour & P. Weibwl (Eds.), Iconoclash (pp. 300-323). Germany: ZKM; Cambridge, Mass: MIT.) vai se referir a essa guerra primeiramente a partir da disputa sobre o uso de imagens na matemática, desde o século XIX, que colocou, de um lado, aqueles que se especializaram em fazer modelos visuais para auxiliar a compreensão da matemática; do outro lado, aqueles que consideravam que imagens eram meras distrações, puros jogos de sedução do olhar. As imagens mais bonitas, da parte da exposição da qual ele foi o curador, se referiam à intuição pictórica na física quântica. E aqui também havia uma batalha muito intensa. Por exemplo: Schrödinger, um dos físicos do começo do século passado, pedia imagens; queria que seus alunos produzissem imagens. Já Heisenberg as bloqueava totalmente, pois as considerava distrações.

Galison propõe, então, que, no âmago da física experimental, há uma tensão fundamental. De um lado, a favor do desejo de imagens do micromundo; do outro lado, a esperança de encontrar refúgio na abstração matemática. Essa batalha entre a imagem e a pura abstração, a leitura dos símbolos matemáticos e a leitura visual, é uma tensão que se faz presente na ciência desde sempre, mas, nessa curadoria, Galison utiliza imagens de um físico, Eric Heller, que aproxima a arte e a física. Heller vai apontar a possibilidade de rever essa relação entre imagem e ciência, a partir de uma inserção na arte. Com base em técnicas de visualização da trajetória do movimento dos elétrons, sugere novas relações entre a física clássica e a teoria do caos. Ele mostra o movimento dos elétrons por meio de imagens. Só que as imagens são tão lindas que ele as expõe em galerias de arte, e não só o esforço imagético permite com que ele avance teoricamente, como também que ele veja coisas que não imaginava, como essa aproximação da física clássica e a física quântica. Diz ele:

Há uma conexão, um feedback da ciência à arte e desta de volta. Em mim, isso aconteceu inúmeras vezes e levou a descobertas científicas por meio da tentativa de produzir arte. No espectador, assim como em mim. Eu busco um feedback de outra ordem. Eu quero que a imagem seja produzida para evocar emoção e familiaridade: essa visão pode ser projetada na ciência por detrás da imagem de modo a sentir o poder e mistério no mundo da mecânica quântica e o caos microscópico que está logo abaixo da superfície. (Galison, 2002Galison, P. (2002). Images scatter into data, data gathers into images. In B. Latour & P. Weibwl (Eds.), Iconoclash (pp. 300-323). Germany: ZKM; Cambridge, Mass: MIT., p. 310)

Bruno Latour (2017Latour, B. (2017). What are the obligations of science and art to each other? Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=H_nidNZCxkc
https://www.youtube.com/watch?v=H_nidNZC...
), em entrevista para o Bifrost Online sobre a intersecção entre arte e ciência, parece concordar com a afirmação de Heller ao propor que quando a ciência adentra traz novos territórios, como é o caso da mudança climática, a arte tem o potencial de nos sensibilizar para esses novos acontecimentos. Porém, nessa mesma entrevista, Latour é enfático: a colaboração entre esses campos tão singulares só é possível quando artistas e cientistas trabalham conjuntamente para enfrentar desafios que estão fora de suas áreas de especialização. Quando precisam buscar respostas fora de seus repertórios, torna-se possível chegar a resultados inovadores. Justamente porque trabalham fora de abordagens convencionais e, assim, são capazes de chegar a novas formas de pensamento, nessa fusão.

Em síntese

Nesse percurso histórico da relação entre imagens e realidade - mais precisamente, realidade no contexto da produção do conhecimento científico - a crescente presença de tecnologia no cotidiano, dentro e fora dos estabelecimentos de produção de ciência, cria turbulências epistêmicas: das fake news às versões contraditórias sobre o que conta como qualidade de vida.

Daston e Galison (2007Daston, L. & Galison, P. (2007). Objectivity. New York: Zone Books.) consideram que a questão da “objetividade” é um problema recente na história da humanidade e certamente está ancorada em uma ontologia realista, na crença de que nossa tarefa é buscar desvelar esta realidade. Contudo, autores (por exemplo, Latour, 2000Latour, B. (2000). Ciência em ação. São Paulo: UNESP. e Mol, 1999Mol, A. (1999) Ontological politics: a word and some questions. In J. Law & J. Hassard (Orgs.), Actor Network Theory and After (pp. 74-89). Oxford, UK: Balckwell Publisher.) que têm por foco a análise de práticas que performam distintas realidades passam a propor que temos de falar de ontologias, no plural. As imagens, nesse enquadre, são poderosos dispositivos de construção de mundos múltiplos que são performados em contextos também múltiplos: arte, ciência, sistemas de comunicação, propaganda, sem falar na presença ubíqua de imagens transmitidas pelos WhatApp, Instagrams e outras plataformas de transmissão de imagens em tempo real.

Todavia, o uso de imagens para validação de conhecimentos não se reduz a um mero “ver para crer”. No contexto da produção de conhecimentos ditos científicos, as imagens são dispositivos de inscrição. Um dispositivo de inscrição, ou instrumento, na definição dada por Latour (2000Latour, B. (2000). Ciência em ação. São Paulo: UNESP., p. 112), é “qualquer estrutura (sejam quais forem seu tamanho, sua natureza e seu custo) que possibilite uma exposição visual de qualquer tipo num texto científico”. Ou seja, nem todos os aparelhos são considerados instrumentos pois “o que será usado como prova visual no artigo serão umas poucas linhas da câmara de bolhas, e não as pilhas de impressos que constituem as leituras intermediárias” (p. 113).

Reiteramos, assim, que são os usos feitos das imagens em qualquer uma das quatro fases discutidas neste texto que as colocam como poderosas estratégias de produção de conhecimentos que, por seu potencial de exposição visual, tem o efeito de prova e, portanto, de legitimação do conhecimento.

Agradecimentos

Nosso agradecimento especial a Arles Monaliza Rodrigues Nascimento pela transcrição da conferência.

Referências

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    Texto produzido a partir de conferência em evento organizado pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFPE, Recife, 28 de fevereiro de 2008. Vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=y4WJ9alQ3Ss
  • 2
    Duke Digital Collections. Ellis Collection of Kodakiana (1886 1923). http://library.duke.edu/digitalcollections/ (Acesso em 14/04/2008).
  • 3
    Zacharias Jansen inventou o microscópio em 1595 - um brinquedo da realeza para ver pequenos objetos. No final do século XVII, Van Leeuwenhoek fez descobertas significativas, usando simples microscópios com apenas uma lente. Por volta do ano de 1742, os microscópios que projetavam imagens fizeram grande sucesso. No século XIX, foram desenvolvidas novas técnicas para fabricação de lentes, como o uso de espelhos curvos, para melhorar a capacidade de foco desses instrumentos. Por volta de 1880, os chamados microscópios ópticos atingiram a resolução de 0,2 micrômetros, limite que permanece até os dias de hoje.
  • Financiamento: Não houve financiamento
  • Consentimento de uso de imagem: Não se aplica
  • Aprovação, ética e consentimento: Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2018
  • Revisado
    06 Fev 2019
  • Aceito
    15 Fev 2019
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