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OS IMPACTOS SUBJETIVOS DOS FLUXOS MIGRATÓRIOS: OS HAITIANOS EM FLORIANÓPOLIS (SC)

LOS IMPACTOS SUBJETIVOS DE LOS FLUJOS MIGRATORIOS: LOS HAITIANOS EN FLORIANÓPOLIS (SC)

THE SUBJECTIVE IMPACTS OF MIGRATORY FLOWS: THE HAITIANS OF FLORIANÓPOLIS (SC)

Resumo

Desde o acordo internacional estabelecido entre Haiti e Brasil, um número significativo de haitianos tem migrado para este país por diversos motivos nos últimos seis anos. A partir de um estudo qualitativo, buscamos investigar as narrativas e modos de vida desses sujeitos que, por desejo e necessidades, buscaram a migração como uma estratégia de ampliação de possibilidades sociais, políticas e subjetivas. A dificuldade com o idioma, a saudade, as rupturas familiares, o preconceito, as práticas discriminatórias, a exaustão pelo excessivo trabalho, a dificuldade de fazer laço social significativo com brasileiros(as), a hospitalidade de alguns brasileiros(as) e as melhores condições de vida foram alguns dos aspectos encontrados no campo desta pesquisa. A psicologia social possui um importante papel na luta pelo direito de migrar, produzindo pesquisas e intervenções capazes de subsidiar olhares mais complexos e menos estereotipados sobre a migração, promovendo e garantindo o lugar de direito e desejo do migrante.

Palavras-chave:
migração; haitianos; direitos humanos

Resumen

Dado el acuerdo internacional entre Haití y Brasil, un número significativo de haitianos han emigrado a este país por diversas razones, en los últimos seis años. A partir de un estudio cualitativo, tratamos de investigar las historias y formas de vida de estos sujetos que, por deseo y necesidades, buscaron la migración como una estrategia de expansión de las oportunidades sociales, políticas y subjetivas. La dificultad con el idioma, la nostalgia, la desintegración familiar, los prejuicios, las prácticas discriminatorias, agotamiento por exceso de trabajo, la dificultad de hacer lazo social significativo con los brasileños(as), la hospitalidad de algunos brasileños(as) y las mejores condiciones de vida fueron algunos de los elementos encontrados en el campo de esta investigación. La psicología social tiene un papel importante en la lucha por el derecho a migrar, produciendo investigaciones y intervenciones capaces de subsidiar miradas más complejas y menos estereotipadas sobre la migración, promoviendo y garantizando el lugar de derecho y deseo del migrante.

Palabras clave:
migración; haitianos; derechos humanos

Abstract

Since the international agreement between Haiti and Brazil, a significant number of Haitians have migrated to Brazil for several reasons in the last six years. Through a qualitative study we investigated the narratives and ways of life of these individuals that, by desire and needs, sought migration as a strategy to expand social, political and subjective possibilities. Difficulties with language, homesickness, family ruptures, prejudice, discriminatory practices, exhaustion due to excessive work, difficulty in making a meaningful social bond with Brazilians, the hospitality of some Brazilians and better living conditions were some of the aspects found in the research results. Social psychology plays an important role in the struggle for the right to migrate, producing research and interventions that will subsidize more complex and less stereotyped views on migration, promoting and guaranteeing the rights and wishes of the migrant.

Keywords:
migration; haitians; human rights

Introdução

Desde a Segunda Guerra Mundial, momento em que 40 milhões de pessoas tiveram que se deslocar em busca de proteção, os fluxos migratórios tornaram-se alvo das políticas internacionais protetoras dos direitos humanos. Segundo os dados mais recentes do Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), o deslocamento forçado alcançou níveis recordes em 2015, ano em que 65,3 milhões de pessoas ao redor do mundo se deslocaram em função de perseguições, conflitos, violência generalizada ou violações de direitos humanos - um aumento de 5,8 milhões em relação ao ano anterior (Global Trends Report, 2015Global Trends Report. (2015). United Nations High Commission for Refugees. Acesso em 09 de fevereiro. 2017, em 2017, em http://www.unhcr.org/enau/statistics/unhcrstats/576408cd7/unhcr-global-trends-2015.html
http://www.unhcr.org/enau/statistics/unh...
). No Brasil, o ápice do fluxo emigratório ocorreu na década de 1980, com consequente crescimento da importância dessa temática para nossas agendas política e acadêmica. Mais recentemente, com o acordo selado entre o Brasil e o Haiti e, ainda, com a atual guerra na Síria, o visto humanitário e a concessão de refúgio têm sido amplamente debatidos nas atuais políticas migratórias brasileiras (Angelo, 2012Angelo, M. J. (2012). De cleaner a waiter: trajetórias de trabalhadores brasileiros em Londres. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Sociologia, Universidade Federal de São Carlos, São Paulo.; Andrade & Marcolini, 2002Andrade, J. H. F. & Marcolini, A. (2002). A política brasileira de proteção e de reassentamento de refugiados - breves comentários sobre suas principais características. Revista Brasileira de Política Internacional, 45(1), 168-176. ; Moreira, 2005Moreira, J. B. (2005). A problemática dos refugiados na América Latina e no Brasil. Cadernos PROLAM/USP, 4(2), 57-76. )1 1 Neste trabalho utilizaremos as noções do estudo de Andrade e Marcolini (2002) sobre o que seriam “migrantes”, “emigrantes” e “imigrantes”. Nessa esteira, todos os participantes deste estudo serão entendidos como imigrantes, independente de possuírem ou não a concessão do visto humanitário. .

Diante da chegada de um número significativo2 2 O ACNUR estima que, atualmente, cerca de 85 mil haitianos(as) vivem no Brasil. Esse dado, contudo, é impreciso, tendo em vista que nem todos os imigrantes se cadastram na Polícia Federal. Trata-se de um número absoluto expressivo, mas ainda bastante reduzido em termos relativos: incluindo refúgio e o programa de migração humanitária, o Brasil recebe hoje apenas 4% dos refugiados existentes nas Américas ou 0,5% do total mundial, número equivalente a ínfimos 0,05% da população brasileira. Em relação a isso, consultar a matéria “Brasil, direitos humanos e a crise internacional de refugiados e migrantes” (Granja, 2016), disponível no site: http://www.brasilpost.com.br/joao-guilherme-granja/o-brasil-na-onu-e-a-crise_b_12168472.html, acessado em 28 de novembro de 2016. de haitianos3 3 Neste artigo utilizaremos o termo “haitiano” no gênero masculino, não de forma desproposital. Ao contrário, trata-se precisamente de destacar o fato de que a quase totalidade dos imigrantes que compuseram o campo desta pesquisa eram homens. no Brasil, elaboramos um estudo de campo de cunho qualitativo com o objetivo de investigar as narrativas e modos de vida de haitianos que, por múltiplos motivos, chegaram à Grande Florianópolis4 4 Este estudo esteve vinculado ao Núcleo de Pesquisa “Psicologia e Direitos Humanos” - núcleo atrelado ao projeto “Retirantes e Retirados: impactos subjetivos dos fluxos migratórios”, mantido pela Faculdade CESUSC (Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina/Florianópolis) -, teve a duração de um ano meio e contou com o auxílio de duas estagiárias do curso de Psicologia. .

Utilizamos como método de pesquisa aquilo que Spink (2003Spink, P. K. (2003). Pesquisa de campo em Psicologia Social: uma perspectiva pós-construcionoista. Psicologia & Sociedade , 15(2), 18-42. , 2008Spink, P. K. (2008). O pesquisador conversador no cotidiano. Psicologia & Sociedade , 20(n.spe.), 70-77.) denominou de “campo-tema”, buscando nos aproximar do universo simbólico desses imigrantes e refugiados moradores da Grande Florianópolis. Assim, em um trabalho que pode ser considerado uma espécie de etnografia urbana5 5 Sobre etnografia urbana, consultar o artigo: Magnani (2002). De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 17, 49, 11-29. , percorremos a cidade com o objetivo de mapear os locais onde eles habitavam, viviam e conviviam. Por meio de conversas, trocas e diálogos, procuramos diminuir a lacuna cultural existente entre pesquisadoras e pesquisados. Este artigo traz algumas constatações empíricas inferidas a partir desse campo de pesquisa, despidas de quaisquer pretensões de se produzir generalizações estatísticas. Acreditamos, contudo, que ao se lançar luz às narrativas, expectativas, sentimentos, frustrações, desafios, sonhos e prospectivas de vida dos sujeitos pesquisados, podemos contribuir produtivamente com algumas reflexões sobre os processos psicossociais da migração por eles vivenciados.

Em um primeiro momento, contextualizaremos a migração haitiana; em seguida, apresentaremos nossos caminhos metodológicos; por fim, apresentaremos três categorias de análise: as trajetórias que desencadearam o deslocamento; os aspectos psicossociais da migração; o preconceito e as práticas discriminatórias. Encerramos este trabalho apontando para a importância de pesquisas e intervenções que venham a subsidiar e humanizar o direito de migrar.

A migração haitiana no Brasil: do terremoto ao deslocamento migratório

O Haiti - país de colonização francesa localizado na região caribenha - possui uma das realidades sociais, econômicas e políticas mais precárias da contemporaneidade. Embora tenha sido marcado por importantes lutas de resistência e defesa dos direitos humanos, tendo sido o primeiro país a conquistar a independência na América e a abolir a escravatura em nível mundial, é atualmente a nação mais pobre da América Latina: quase 80% dos habitantes vivem com até 2 dólares por dia, aproximadamente 60% estão em situação de subnutrição e o índice de desemprego atinge vultosos 70% (Instituto Migrações e Direitos Humanos; Conselho Nacional de Refugiados, 2011)6 6 Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH), Estatísticas sobre Refugiados, dados emitidos pelo CONARE, em www.migrante.org.br, acesso em 20 de março de 2011. .

Como nos aponta Seintenfus (2014Seitenfus, R. (2014). Haiti: dilemas e fracassos internacionais. Ijuí, RS: Unijuí.), o Haiti apresenta uma história sui generis: se, por um lado, conseguiu produzir uma mobilização revolucionária em um contexto histórico marcado por uma profunda estrutura colonial, racista e escravocrata, por outro, desde a revolução haitiana de 1905, o país sofre com reiteradas intervenções, dominações e explorações estadunidenses e francesas.

Como nos mostra a pesquisa de campo realizada por Sutter (2010Sutter, C. (2010). Haití, país mal dito. Revista Mal-estar e subjetividade, X(3), 931-950. ), as indescritíveis condições de subsistência da população haitiana, muito abaixo do limite de uma vida digna, fazem do Haiti um país “inominável” (p. 933). Na raiz dessa situação de extrema vulnerabilidade temos um processo histórico marcado por sucessivas intervenções econômicas e políticas, nacionais e internacionais7 7 A dívida, fruto do acordo assinado em 1825 com a França, para indenizá-la por “crime de independência”; o apoio diplomático e financeiro dos Estados Unidos à ditadura militar que durou mais de 30 anos; a ocupação dos franceses durante 19 anos para proteger o canal do Panamá; o embargo econômico norte-americano na década de 1990; as atuais formas de exploração por grandes potências, agravando a realidade dos moradores da zona rural; a exploração de trabalhadores haitianos em uma espécie de escravatura moderna - realizada, principalmente, pelos EUA; entre tantos outros fenômenos políticos e econômicos, têm feito do Haiti um país com insalubres - se não insuportáveis - condições de vida, provocando uma verdadeira diáspora haitiana, a ponto da maior parte da população viver hoje em outros países (Seintenfus, 2014; Sutter, 2010). , que sedimentaram as condições que o transformaram no país mais pobre da América Latina.

No início da década de 1990, inspirado na Declaração de Cartagena de 1984, o governo brasileiro já havia adotado um conceito amplo de refúgio para os imigrantes angolanos e liberianos, que fugiam da violência generalizada de seus países. A partir de 2012, o Brasil passou a conceder aos haitianos o visto humanitário, considerando como razões humanitárias “aquelas resultantes do agravamento das condições de vida da população haitiana em decorrência do terremoto” 8 8 Conforme Resolução Normativa n.97 do Conselho Nacional de Imigração (In: “ACNUR (2012) “Coletânea de Instrumentos de Proteção Nacional e Internacional de Refugiados e Apátridas”). Historicamente, a concessão de refúgio vem sendo vinculada apenas às questões de ordem econômica e política. Contudo, alguns autores têm destacado a importância de inserir os “desastres naturais” no conceito jurídico de refúgio já que, como nos apontam Avila e Niencheski (2012), o número de refugiados ambientais tem crescido substancialmente no século XXI. .

Paradoxalmente, se, por um lado, o Brasil possui em vigor um estatuto herdado do período da ditadura civil-militar (Estatuto do Estrangeiro: Lei nº 6815/1980Lei n. 6815, de 19 de agosto de 1980. (1980). Define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, cria o Conselho Nacional de Imigração. Brasília-DF: Presidência da República.), que encara o imigrante como uma ameaça à segurança nacional, por outro, foi o pioneiro na América Latina a criar uma Lei própria ao Refúgio (Lei Nacional para Refugiados: Lei nº 9.474/1997Lei n. 9.474, de 22 de julho de 1997. (1997). Define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras providências. Brasília-DF: Presidência da República.) e dispõe de um Conselho Nacional especialmente destinado a esse grupo social (Conselho Nacional de Refugiados-CONARE). A prevalência dos direitos humanos como um norteador das relações internacionais, bem como a necessidade de manter uma imagem positiva em sua agenda política externa, fazem com que o Brasil “cuide” do refúgio de uma forma atenta, avançando em algumas políticas imigratórias (Andrade & Marcolini, 2012).

Embora disponhamos de algumas políticas, órgãos e leis de proteção ao imigrante e refugiado, não deixam de ocorrer no Brasil inúmeras denúncias de violação de direitos humanos dessa população. Em 2014, o Ministério Público do Trabalho inicia a investigação de denúncias de racismo e xenofobia em Curitiba (PR), quando haitianos que trabalhavam em uma empreiteira acusaram seus patrões de submetê-los a violência verbal e física (O Globo, 2014)9 9 O Globo. Notícias. MPT investiga denúncias de racismo e xenofobia contra haitianos no PR, 2014. ; nesse mesmo ano, em Belo Horizonte, 121 haitianos foram encontrados vivendo em moradias insalubres e trabalhando em condições análogas à escravidão (O Tempo, 2014)10 10 O Tempo. Cidades. Trabalho escravo: os haitianos são as principais vítimas, 2014. http://www.otempo.com.br/cidades/haitianos-s%C3%A3o-as-principais-v%C3%ADtimas-1.1046205 ; seis haitianos foram baleados “gratuitamente” aos gritos “haitianos, vocês roubam nossos empregos” na cidade de São Paulo (Carta Capital, 2015)11 11 Carta Capital. Parlatório. Seis imigrantes são baleados em São Paulo, 2015. http://www.cartacapital.com.br/blogs/parlatorio/seis-imigrantes-haitianos-sao-baleados-em-sao-paulo-9027.html ; na cidade de Lageado (RS), um haitiano teve sua bicicleta roubada por 3 suspeitos e foi espancado até desmaiar (Pragmatismo político, 2014)12 12 Pragmatismo político. Haitiano é espancado até desmaiar no RS, 2014. http://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/02/haitiano-e-espancado-ate-desmaiar-rs.html ; em 2015, após uma briga entre 10 brasileiros e um haitiano, este foi morto a facadas na cidade de Navegantes (SC)13 13 G1;Santa Catarina. Notícias. Haitiano morto em SC é enterrado nesta sexta, 2015. http://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2015/10/haitiano-morto-em-sc-e-enterrado-em-navegantes-nesta-sexta.html .

Ainda que portadores do visto humanitário, as condições de estadia e trabalho dos haitianos no Brasil são, na maioria dos casos, extremamente precárias. Nesse sentido, a política migratória brasileira regula e segrega, inclui e exclui. Diante desta realidade tão contraditória quanto heteróclita, àquele que deseja compreender os processos psicossociais que interpelam a migração não resta melhor alternativa senão partir das singularidades de cada caso: a origem do imigrante, o território onde se inseriu e o dinamismo da cultura hospedeira, na medida em que se diferenciam substancialmente, possibilitam acolhidas ora mais humanitárias, ora essencialmente segregadoras. Esta pesquisa buscou investigar as narrativas e modos de vida desses sujeitos, na tentativa de permitir o surgimento de compreensões menos simplistas e estereotipadas sobre este fluxo migratório.

Caminhos metodológicos: em busca das narrativas e modos de vida dos haitianos residentes na Grande Florianópolis

Inspiradas pelos estudos de Spink, (2003Spink, P. K. (2003). Pesquisa de campo em Psicologia Social: uma perspectiva pós-construcionoista. Psicologia & Sociedade , 15(2), 18-42. , 2008), Becker (1994Becker, H. (1994). Método de Pesquisa em Ciências Sociais (2ª ed.). São Paulo: Hucitec.) e Castro (2014Castro, C. (2014). A pesquisa de campo em sociologia: a observação participante de Willian FootWhyte. In Textos Básicos de Sociologia (pp.152-169). Rio de Janeiro: Zahar. ), buscamos nos aproximar do universo simbólico dos haitianos residentes em Florianópolis. Para Spink (2003, 2008), o cotidiano é uma dimensão fundamental para o pesquisador que busca compreender as negociações de sentidos, já que estes microlugares são produtos e produtores de processos sociais e identitários. Assim, esse autor defende que o pesquisador deve se conectar aos fluxos constantes de pessoas, falas, espaços, conversas e objetos, de modo a mapear e analisar as práticas sociais cotidianas.

A partir das contribuições do conceito de “observação participante” desenvolvido por White (2005Whyte, W. F. (2005). Sociedade de esquina. Rio de Janeiro: Zahar . ) e Becker (1994Becker, H. (1994). Método de Pesquisa em Ciências Sociais (2ª ed.). São Paulo: Hucitec.), percorremos inúmeros espaços que os haitianos viviam e conviviam14 14 São eles: fila de espera na Polícia Federal para obter o refúgio; praça localizada no centro da cidade onde descansavam após o almoço; curso de português oferecido pela universidade (onde encontrávamos os estudantes) e pela Secretaria Municipal de Educação (onde encontrávamos os trabalhadores); diferentes postos de trabalho (posto de gasolina, obras, restaurantes, mercados etc.) e inúmeros microlugares que íamos descobrindo no próprio ato de pesquisar. . Conforme Velho (2005Velho, G. (2005). O observador participante. In W. F. Whyte (Org.), Sociedade de esquina (pp. 9-14). Rio de Janeiro: Zahar . ), a observação participante é uma posição ético-científica que busca acompanhar as interações entre os indivíduos, não como mônodas isoladas, mas como um processo contínuo de reinvenção social. Tentando se afastar de uma perspectiva pautada no senso-comum, em preconceitos e estereótipos, a observação participante é uma forma de olhar para os contextos sociais por meio de seus densos e ricos significados que articulam indivíduos, redes e grupos sociais.

Longe de aplicar um método delineado a priori, explica Spink (2003Spink, P. K. (2003). Pesquisa de campo em Psicologia Social: uma perspectiva pós-construcionoista. Psicologia & Sociedade , 15(2), 18-42. , 2008), o pesquisador no cotidiano se pauta em conversas espontâneas ocorridas em encontros e espaços situados. O método campo-tema se institui quando o pesquisador inscreve uma matriz de questionamentos e argumentos, ações e narrativas de fragmentos da vida cotidiana vinculados a um determinado objeto de estudo. Estar vinculado ao método campo-tema, conforme o autor, é se colocar de uma maneira horizontal perante aos outros, conversando, arguindo e discutindo os temas e processos sociais.

Assim, sustentadas pelos questionamentos sobre diversos aspectos que constituíam e atravessavam o processo psicossocial subjacente ao deslocamento desses haitianos - tais como: desejos, necessidades, expectativas, prospectivas, impasses, conquistas -, percorremos durante um ano e meio múltiplos microlugares componentes do cotidiano desse grupo. Esses dados eram anotados em um diário de campo, e algumas entrevistas puderam ser gravadas - sempre com autorização dos participantes. As anotações e gravações serviram de dados para pensarmos e analisarmos essas práticas discursivas, de modo a ampliarmos e complexificarmos o nosso olhar sobre esse processo migratório.

Trajetórias e percursos até o Brasil: entre as necessidades e o desejo

Podemos traçar duas matrizes discursivas oriundas de dois grupos com os quais nos deparamos na cidade de Florianópolis: os estudantes e os trabalhadores. Neste estudo, trabalharemos com as narrativas de ambos os grupos, pois acreditamos que são modos de vida distintos e que nos ajudam a compreender de forma mais ampla esses fluxos migratórios. Tentaremos traçar algumas comparações, destacando semelhanças e diferenças que interpelam o processo migratório desses dois grupos.

Contudo, nos debruçaremos mais sobre as constatações empíricas do grupo dos trabalhadores, uma vez que, pelo fato de se encontrarem em situações de maiores vulnerabilidades psicossociais, estavam com maior frequência presentes nos ambientes que faziam parte do campo de pesquisa. O primeiro grupo decidiu vir ao Brasil voluntariamente, seja por meio de intercâmbios, apoio familiar, editais universitários, etc. O segundo grupo, de forma geral, saiu do Haiti por não encontrar meios de subsistência nesse país e, quando perguntado se voltaria caso o país lhes oferecesse melhores condições de vida15 15 Sobre a expressão “melhorar de vida”, embora seus significados sejam múltiplos, dinâmicos e singulares, seguimos a compreensão de Maciel (2010) explicitada em sua pesquisa com migrantes da cidade de São Carlos (SP): mudança positiva na vida do migrante e de sua família; oportunidade de explorar as possibilidades abertas; acesso aos direitos sociais e benefícios governamentais; melhorias nos padrões de relacionamentos familiares; ascensão social geracional; alterações positivas nos padrões de consumo; possibilidade de acumular recursos. Essas transformações ultrapassam a materialidade e produzem novas possibilidades de existência para o migrante e sua família. , respondia algo como: “voltaria agora”.

Embora seja notório que o grupo dos trabalhadores apontava a causa econômica como primordial para a vinda ao Brasil, enquanto os estudantes elencavam múltiplos fatores distintos (estudos, viagem, interesse pela cultura, etc.), tomemos o cuidado de não produzir uma dicotomia rígida entre estas duas esferas que, em geral, estão ambas presentes de modo mais ou menos intenso em um processo de migração. O estudo de Angelo (2012Angelo, M. J. (2012). De cleaner a waiter: trajetórias de trabalhadores brasileiros em Londres. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Sociologia, Universidade Federal de São Carlos, São Paulo.) e Dias (2013Dias, A. M. J. G. (2013). Discursos e práticas de imigrantes brasileiros em Londres. Análise Social, XLVIIII (4), 2182-2999,) sobre brasileiros(as) residentes em Londres aponta que, embora a causa econômica possa ser a propulsora do fluxo migratório, ela não é exclusiva, como poderia parecer em uma análise macroeconômica. Ao contrário, no decorrer da vivência migratória, o projeto de migração vai se transformando e novos sentidos vão sendo construídos e acrescentados ao processo de deslocamento.

Encontrávamos o primeiro grupo em espaços acadêmicos como a universidade, seminários e eventos científicos. De forma distinta, o segundo grupo circulava por espaços bem distantes da universidade, não apenas em termos geográficos, mas também em termos simbólicos. Esses haitianos, em geral, ocupam os lugares subalternos de trabalho (pedreiros, frentistas, empacotadores, seguranças de estacionamento de mercado, entregadores de tickets de estacionamento de shopping e cozinheiros16 16 Assim como aponta a pesquisa já citada de Angelo (2012) sobre os(as) brasileiros(as) residentes em Londres, os haitianos realizam aqui atividades que não realizavam em seu país de origem. Ocupam cargos e funções que são desqualificadas dentro do setor de serviços. ) e todos eles apontaram a universidade como “o sonho”, “o céu”, “a meta final”.

O acesso à universidade pode ser compreendido não apenas como uma possibilidade de ascensão econômica, mas também como a inserção em uma nova posição simbólica, marcada por mais legitimidade e reconhecimento social. Conforme Brah (2006Brah, A. (2006). Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, 26, 329-376.), as vidas reais são forjadas a partir da complexa intersecção dos fatores econômicos, sociais e políticos que desencadearão determinadas experiências subjetivas no sujeito. Dessa forma, é possível pensar que o acesso à universidade é um elemento no projeto migratório que traz implicações sociais e subjetivas, permitindo a esses imigrantes novos posicionamentos subjetivos e seus respectivos resultados políticos.

Diferente dos discursos enunciados pelos estudantes - que circulavam em torno de: “sempre quis conhecer o Brasil”, “estudei três anos português para fazer minha faculdade aqui” e “na minha cidade é comum os adolescentes virem estudar aqui, as faculdades são bem melhores e é mais legal viver aqui” -, os trabalhadores traziam um tom nostálgico e triste em suas falas: “todos os dias tenho vontade de abandonar tudo e voltar, mas aí lembro o quanto minha família precisa do meu dinheiro”; “se pudesse escolher, nunca teria saído do meu país”; “às vezes me pergunto se este dinheiro vale mais a pena do que ver meu filho crescer... acontece que, se eu voltar, talvez meu filho nem tenha o que comer e onde morar”.

Não se trata, aqui, de dicotomizar necessidade e desejo, mas tão somente de destacar que as narrativas dos estudantes são compostas de modo muito mais frequente pelas descrições de suas vontades e buscas, enquanto os discursos dos trabalhadores são construídos fundamentalmente a partir da exposição de suas necessidades e “obrigatoriedades”. Evidente que também há desejo no grupo de trabalhadores, assim como há necessidades no grupo de estudantes. Contudo, é forçoso constatar que o primeiro grupo encontra-se em situação de vulnerabilidade psicossocial mais acentuada e descreve a migração antes como estratégia de enfretamento de condições adversas e alheias às suas vontades do que como a busca de uma realização pessoal.

A maior parte do grupo dos trabalhadores tinha entre 20 e 30 anos, era casada, com filhos, evangélica ou praticante do vodu (religião afrodescendente). Eles vieram sozinhos e buscavam, o mais rápido possível, trazer sua família para o Brasil, pois viver no Haiti estava “um inferno”.

Interessante destacar que a maior parte deles conta que o financiamento da vinda para o Brasil (dois mil dólares, em média) foi viabilizado a partir de uma estratégia de planejamento familiar, ou seja, diversos integrantes da família juntaram suas economias para custear a travessia até aqui. Muitos revelavam uma espécie de dívida psicológica que trazia “stress” e um sentimento de “tenho que dar conta”, “não posso fracassar”. Ou seja, eram haitianos solitários que carregavam consigo uma pesada demanda de ter que “vencer a qualquer custo”. Perguntemos, contudo: afinal, quem vence a qualquer custo? E, se o faz, qual é o custo que se lhe impõe?

Um deles nos conta que, quando chegou ao Brasil, sua primeira parada foi à cidade de Caxias (RS). Disse: “trazia no meu coração a imagem de como a minha família ficou lá, toda a miséria, o desespero... e tudo que fizeram para eu chegar até aqui. Agora é comigo, preciso conseguir!” (haitiano, cozinheiro, 26 anos).

Conta-nos que começou a trabalhar em um frigorífico durante 8 horas por dia - trabalho registrado e obtido já ao chegar no Acre. Depois aceitou trabalhar como pedreiro nas horas vagas (sem carteira assinada) e, por fim, estava também catando materiais recicláveis para um “atravessador”. Essa sobrecarga de trabalho, aliada a condições insalubres, provocaram infecção renal e uma grave pneumonia que o deixou internado no hospital por 25 dias.

Esse haitiano relata que tanto essa dívida psicológica quanto a sobrecarga de trabalho são frequentes entre seus colegas, pois, diz ele, “temos que fazer de tudo para dar certo, dar o nosso máximo”. A pesquisa de Silva e Queiroz (2006Silva, M. A. M. S. & Queiroz, M. S. (2006). Somatização em imigrantes de baixa renda no Brasil. Psicologia & Sociedade, 18(1), 31-39.) realizada com imigrantes atendidos em centro de saúde aponta que, comumente, há um alto processo de adoecimento psicossomático frente às dificuldades financeiras, desemprego e fragmentação dos laços familiares e comunitários que imigrantes vivenciam no novo território. O estudo de Dias (2013Dias, A. M. J. G. (2013). Discursos e práticas de imigrantes brasileiros em Londres. Análise Social, XLVIIII (4), 2182-2999,) sugere que as exaustivas jornadas de trabalho são comuns e mais frequentes no período inicial da migração, sendo que, com o passar do tempo, elas tendem a diminuir por esbarrarem nos limites físicos do imigrante.

A trajetória desse haitiano nos faz pensar o quanto essa migração tem sido custosa para muitos destes sujeitos, tanto em termos econômicos quanto em termos psicológicos. Se, por um lado, o visto humanitário é concedido a esse grupo, por outro, as vulnerabilidades sociais - que historicamente produzem relações de opressão e sofrimento psíquico para larga parcela da população brasileira - mostram-se ainda mais acirradas e cronificadas para esses imigrantes.

Aspectos psicossociais da migração: trabalho, solidão e saudade

Elegemos estes três significantes - “trabalho”, “solidão” e “saudade” - pela sua recorrência nas narrativas dos haitianos trabalhadores. Ao longo de nossas análises, eles acabaram por se revelar importantes matrizes discursivas que refletiam os modos de vida desses imigrantes.

Diferente do grupo de estudantes, que nos contavam sobre as descobertas culturais e acadêmicas feitas em Florianópolis, este outro grupo nos conta que suas vidas se resumiam à dobradinha “casa-trabalho, trabalho-casa” e, nas horas de folga, “Facebook e Skype pra matar a saudade”, “para acalmar o coração” e “dar força para continuar a luta diária aqui no Brasil”.

Embora a maior parte tenha relatado que gostava dos brasileiros, classificando-os como “hospitaleiros” e “animados”, foi possível constatar que nenhum dos haitianos que conhecemos - tanto os estudantes como os trabalhadores - possuía uma relação mais próxima e afetiva com algum brasileiro(a). Quando questionados com quem compartilhavam os momentos de lazer e de folga, a resposta era novamente unânime: com os familiares e amigos do Haiti (via internet).

Ao perguntarmos sobre a relação com os brasileiros(as), ouvíamos relatos como: “não tenho ainda muita proximidade com alguém do Brasil” (faxineiro, 23 anos, vive há 8 meses no Brasil); “nunca tive uma relação de verdade, de amigo mesmo, com algum brasileiro” (empacotador de mercadorias em um supermercado, 26 anos, vive há um ano e dois meses aqui no Brasil); “desde que entrei na UFSC, eu praticamente só me relaciono com os haitianos que estudam aqui... acho que isso é natural... é mais fácil de se relacionar e se comunicar...eu gostaria de fazer mais amizades com brasileiros, mas não sei por que isso não acontece muito” (estudante de arquitetura, 20 anos, vive há quase 2 anos no Brasil).

É temerária, por óbvio, a tentativa de elaboração de análises generalizantes e explicativas que não tenham como substrato empírico mais do que algumas falas pontuais. Mas não é desprovido de interesse a quem se interessa por esta temática destacar que, indubitavelmente, emergiram das narrativas de ambos os grupos pesquisados elementos recorrentes que sugerem a existência de uma lacuna social e afetiva entre esses imigrantes e os (as) brasileiros.

Neste mesmo diapasão, diversas pesquisas vêm apontando que o imigrante, especialmente o “imigrante forçado”, em muitas ocasiões, encontra dificuldades de estabelecer vínculos com outras pessoas, lugares e instituições, o que gera uma situação de vulnerabilidade psíquica. Na medida em que, em diversos momentos, o imigrante vivencia um rebaixamento de seus referentes culturais, um profundo desamparo o assola, gerando sentimentos de invalidez, culpabilização, apatia, tristeza, angústia, medo e solidão (Borges & Pocreau, 2009Borges, L. M. & Pocreau, J. B. (2009). A identidade como fator de imunidade psicológica: contribuições da clínica intercultural perante as situações de violência extrema. Psicologia: Teoria e Prática, 11(3), 224-236. ; Carignato, 2013Carignato, T. T. (2013). A construção de uma clínica psicanalítica para migrantes. Revista Internacional Mobilidade Urbana, 107-149. ; Carignato, Rosa, & Berta, 2006Carignato, T. T., Rosa, M. D, & Berta, S. L. (2006). Imigrantes, migrantes e refugiados: encontros na radicalidade estrangeira. Revista Internacional Mobilidade Urbana , 26, 93-118. ; Rosa, Carignato, & Alencar, 2009Rosa, M. D., Carignato, T. T, & Alencar, S. (2009). A condição errante do desejo: os imigrantes, migrantes, refugiados e a prática psicanalítica clínico-política. Revista Latino-americana de Psicopatologia Fundamental, 12(3), 497-513. ). Embora não seja possível afirmar que esses mesmos sentimentos foram constatados neste campo de pesquisa, nossos dados também apontam para a compreensão de que o estabelecimento de um laço social aprofundado com a cultura receptora constitui um desafio enfrentado pelo imigrante, seja ele um “imigrante-forçado” ou não17 17 Uma das grandes dificuldades encontradas neste campo de pesquisa foi conseguir estabelecer um vínculo e uma relação de confiança com os participantes, que, provavelmente, nos permitiriam ter conseguido realizar as entrevistas, assim como suas respectivas análises, de forma mais fluida e aprofundada. A lacuna cultural e idiomática - o domínio do português era, na maior parte dos casos, bastante precário - existente entre as pesquisadoras e os pesquisados é um elemento fundamental para ser levado em conta nestas análises. Talvez, se não houvesse essa lacuna, poderíamos ter acessado o universo subjetivo desses imigrantes de forma mais aprofundada. .

Entende-se por cultura, aqui, um grande arcabouço simbólico, lugar onde o sujeito busca seus referentes, ancoragens, direcionamentos, sentidos e apoio para suas escolhas, decisões e ações. Desse modo, a cultura também possui um papel protetivo aos sujeitos que nela estão inseridos, na medida em que cria pontos de identificação e lhes possibilita que se reconheçam como pertencentes a um grupo social, tornando-se um referente simbólico que os auxiliará a elaborar e guiar suas experiências (Freud, 1919/1996Freud, S. (1996). O mal-estar na civilização. InEdição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud , Vol. XXI, pp. 65-147. Rio de Janeiro: Imago . (Original publicado em 1919); Borges & Pocreau, 2009Borges, L. M. & Pocreau, J. B. (2009). A identidade como fator de imunidade psicológica: contribuições da clínica intercultural perante as situações de violência extrema. Psicologia: Teoria e Prática, 11(3), 224-236. ; Carignato, 2013Carignato, T. T. (2013). A construção de uma clínica psicanalítica para migrantes. Revista Internacional Mobilidade Urbana, 107-149. ; Carignato, Rosa, & Berta, 2006; Rosa, Carignato, & Alencar, 2009). Assim, as práticas culturais atuam de forma a organizar, equilibrar e proteger o psiquismo, participando na estruturação, manutenção e transformação da identidade (Borges & Pocreau, 2009).

No caso dos migrantes, há uma ruptura com seu universo simbólico de origem, provocando perdas, mudanças e transformações sociais e subjetivas. Na leitura de Freud (1919/1996Freud, S. (1996). O mal-estar na civilização. InEdição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud , Vol. XXI, pp. 65-147. Rio de Janeiro: Imago . (Original publicado em 1919)), o aparelho psíquico sofre processos de demolições e reconstruções em consequência das diversas experiências vivenciadas por todo e qualquer sujeito. Podemos pensar que, no contexto da migração, esse processo é intensificado, já que há uma ruptura com os laços familiares, com os amigos, com os referentes culturais, com as instituições, com o idioma materno, entre tantas outras (des)construções psíquicas e sociais que poderão, por um lado, promover sofrimento, e, por outro, possibilitar novos rumos e renovadas criações de si. Ou seja, compreendemos que essas rupturas possibilitam que os sujeitos procedam à criação de novos sentidos e posicionamentos subjetivos.

A identidade, compreendida como um sentimento, uma ficção e suposição de si, é construída nas relações familiares e culturais em um constante processo de negociação de sentidos junto ao laço social com um outro contrastivo que provoca um processo de (des)identificação de si, do outro e da cultura. No caso do migrante, este processo contrastivo e de negociação de sentidos é acirrado, fazendo o constituir-se enquanto sujeito um processo pautado, ainda mais, em ambivalências e contradições (Dantas, Ueno, Leifert, & Suguiura, 2010Dantas, S. D., Ueno, L., Leifert, G., & Suguiura, M. (2010). Identidade, migração e suas dimensões psicossociais. Revista Internacional de Mobilidade Urbana, 34, 45-60. ; Fink, 1998Fink, B. (1998). O sujeito lacaniano: entre a linguagem e o gozo. Rio de Janeiro: Zahar . ).

Diante desses impasses, é comum que migrantes construam práticas e espaços coletivos para manter o laço afetivo com sua cultura de origem, protegendo, assim, o sentimento e a ficção construída sobre si. Isso foi constatado na pesquisa de Suda e Souza (2006Suda, J. R. & Souza, L. (2006). Identidade social em movimento: a comunidade japonesa na Grande Vitória (ES). Psicologia & Sociedade , 18(2), 72-80. ) sobre a (re)construção identitária, na região da Grande Vitória (ES), ocorrida no processo migratório de japoneses que se reuniam nas associações como forma de proteger a identidade grupal e resistir coletivamente ao preconceito; e também na pesquisa de Martins (2009Martins, P. (2009). Cabo-verdianos em Lisboa: manifestações expressivas e reconstrução identitária. Horizontes Antropológicos, 15(31), 241-262.), que enxerga as manifestações estético-expressivas dos imigrantes cabo-verdianos residentes na região da Grande Lisboa como recursos identitários que servem de estratégias para adaptação ao novo contexto.

Em nosso estudo, notamos que a Pastoral da Migração e as Cáritas têm se revelado como lugares de referência e de inclusão para os haitianos na Grande Florianópolis. Alguns encontros, festas, comemorações e atividades culturais (incluindo dança, gastronomia e música) têm sido elaborados por essas instituições, em parceria com os haitianos, e contribuindo para o fortalecimento da identidade coletiva e do sentimento de pertença, favorecendo a saúde psíquica desses imigrantes. Importante destacar a capacidade de mobilização política desses imigrantes que, em tão pouco tempo, já montaram em cerca de 15 associações de haitianos no Estado de Santa Catarina. Um dos fundadores da Kay Pa Nou (Associação dos haitianos de Florianópolis) relata na Feira Gastronômica do Migrante que “eventos como estes nos fazem sentir que também somos cidadãos nesta cidade. Estar nesta tenda com tantos haitianos me dá uma sensação boa e de que tudo vai dar certo em minha vida aqui”.

A presença desses espaços e coletivos unificam os imigrantes e os auxiliam no processo de adaptação e inserção na nova cultura. A migração aguça o “estranho” que habita em todos nós: conforme Freud (1919/1974Freud, S. (1974). O estranho. In Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. XVII, pp. 233-270. Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1919)), “o estranho”, quando por alguma razão irrompe no real, gera um sentimento de desamparo e confusão. Na perspectiva do estudo de Carignato, Rosa e Berta (2006Carignato, T. T., Rosa, M. D, & Berta, S. L. (2006). Imigrantes, migrantes e refugiados: encontros na radicalidade estrangeira. Revista Internacional Mobilidade Urbana , 26, 93-118. ), a estranheza em relação ao ambiente e a si mesmo é um sintoma que, comumente, acompanha as pessoas em deslocamento, gerando sentimentos de isolamento e solidão.

O sujeito, ao sofrer uma ruptura na identificação com a cultura, não se reconhece no outro, sentindo-se perdido, deslocado e desamparado. Talvez esse tenha sido o caso de um haitiano que, quando chegou a Florianópolis, vindo do Acre, se encontrava em estado de profunda apatia: estava deitado em seu colchonete, no alojamento18 18 Nesse alojamento, montado em um estádio de futebol no ano de 2014, diversas entidades civis trabalhavam para organizar a recepção dos haitianos. Chegaram cerca de 15 ônibus, oriundos do Acre, que foram recebidos pela Secretaria Municipal de Assistência Social, pela Pastoral da Migração e outras instituições. Nesse espaço, deixávamos disponibilizados materiais básicos de sobrevivência (roupas, alimentos, passes de ônibus, colchonetes, remédios, etc) e, ali mesmo, realizávamos uma apresentação da cidade, dos direitos e dos trâmites burocráticos. Também tentávamos estabelecer contato com amigos e familiares que os esperavam aqui no Brasil e, ainda, buscávamos encaminhá-los para postos de trabalho. Nosso grupo de pesquisa, composto por estudantes de Direito e Psicologia, provia apoio jurídico e psicológico de forma coletiva e individual, conforme as demandas emergiam em cada contexto. , desde sua chegada havia 3 dias e, por não estar se alimentando, foi internado em um hospital. É difícil afirmar o que estava se passando com esse jovem, já que ele não se mostrou disponível para conversar, mas pudemos notar que enquanto alguns haitianos interagiam, socializavam e se divertiam no alojamento, ele estava claramente apático, inerte e isolado em seu colchonete.

Das ambiguidades do preconceito às práticas discriminatórias: a intersecção entre migração, classe, raça e etnia

Ao iniciar o campo-tema desta pesquisa, tínhamos como premissa, a partir das notícias veiculadas pela mídia, que as narrativas sobre o preconceito sofrido pelos imigrantes emergiriam de modo claro. Ao contrário, com exceção de alguns relatos, a maior parte das narrativas não expressava, ao menos de forma explícita, o preconceito e as práticas discriminatórias19 19 Estamos pautadas na noção de Schucman (2010, 2014) que define o preconceito racial como um processo psicológico socialmente construído que se materializa em práticas discriminatórias contra os sujeitos não-brancos. .

A maior parte dos haitianos, tanto os trabalhadores quanto os estudantes, afirmava que não se sentia discriminado e que os brasileiros não eram preconceituosos. Notamos que essa percepção se fez presente em ambos os grupos, revelando que, nesse caso, a invisibilização do preconceito independia da classe social, algo que Schucman (2010Schucman, L. V. (2010). Racismo e anti-racismo: a categoria raça em questão. Revista de Psicologia Política, 10(19), 41-55. , 2014Schucman, L. V. (2014). Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. São Paulo: Annablume. ) aponta em seu estudo sobre a formação da branquitude paulistana e que Brah (2006Brah, A. (2006). Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, 26, 329-376.) corrobora, quando afirma que a raça é um marcador inerradicável de diferença social.

Embora não tenhamos tido muitos relatos sobre a vivência de práticas discriminatórias, pudemos observar durante nossas inserções no campo algumas cenas de evidente segregação e exclusão: em uma praça central da cidade, comumente utilizada pelos trabalhadores durante a pausa do almoço, os lugares com sombra eram visivelmente tomados, em sua maioria, por brancos e brasileiros; analogamente, no refeitório da universidade, a divisão por raça e nacionalidade ocorria de modo evidente. Observável em espaços específicos, esse tipo de segregação também se reproduzia na geografia urbana da capital: convidados a trabalhar em uma determinada fábrica, cerca de 60 haitianos foram alojados em região afastada do centro da cidade, à beira de uma estrada e a ao menos 40 minutos de qualquer tipo de serviço socioassistencial.

Deparados à fraca presença de narrativas que denunciassem o preconceito, questionávamo-nos sobre quais atravessamentos poderiam explicar essa ausência: será que os brasileiros, então, não seriam preconceituosos com esses imigrantes? Os casos veiculados na mídia eram exceção? De fato, o Brasil estava conseguindo ter uma acolhida humanizada? Ou haveria um processo de negação, por parte dos haitianos, como uma forma de proteger seu grupo de origem? Será que essas narrativas revelavam um mecanismo de defesa para proteger a autoestima individual e coletiva? Submissão, igualdade ou negação?

Na busca da superação de visões simplistas e maniqueístas, tentemos acompanhar as sutilezas e ambiguidades do preconceito e da hospitalidade solidária, que, longe de constituírem fenômenos autoexcludentes, foram ambos percebidos como presentes em nosso campo.

As narrativas, já citadas no item anterior, que sugerem a existência de uma lacuna cultural, social e afetiva entre haitianos e brasileiros podem indicar que esta relação intergrupal tem sido atravessada pelo preconceito, fazendo a diferença emergir, como define Brah (2006Brah, A. (2006). Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, 26, 329-376.), atrelada ao nível da relação social20 20 Para uma visão aprofundada sobre o assunto, ler Brah (2006) que entende a diferença como um marcador social que atravessa os níveis da relação social, da experiência, da subjetividade e da identidade. como um marcador construído e organizado em relações sistemáticas por meio de discursos econômicos, culturais e políticos.

Um dos poucos discursos que expressam claramente, e em tom de denúncia, a “falsa ideia de que todo brasileiro é hospitaleiro” foi feito por um haitiano (25 anos, estudante da UFSC) que afirma ter se sentido excluído e discriminado “desde o primeiro dia” que chegou ao Brasil. “O preconceito”, diz, “aparece desde a hora de ceder ou não um lugar no ônibus, até a hora de concorrer a uma bolsa de estudos”. E pergunta: “você acha que um professor prefere um bolsista brasileiro ou haitiano?”.

Esta narrativa aponta para as capilaridades e as sutilezas da forma como o preconceito se encarna no cotidiano da sociedade e, além disso, denuncia locais que, em tese, deveriam primar por práticas sociais universalizantes, tais como a universidade.

De forma bastante direta, um haitiano nos conta que, quando começou a trabalhar em seu primeiro emprego, em uma construção civil, não compreendia o idioma, mas ainda assim conseguia perceber que os colegas faziam zombarias “o tempo inteiro”. Narra que, certa vez, ao chegar em sua cama para dormir, ela estava urinada e suas poucas roupas estavam jogadas e encharcadas no box do banheiro coletivo destinado aos trabalhadores. Disse que ficou “assustado” e com “vergonha” e, por não saber o que fazer, “não fez nada”. Assim, relatou: “eu não entendia se isso era uma brincadeira, se isso era comum de fazer aqui no Brasil, algo da cultura... com o tempo fui entendendo que era algo porque sou haitiano, e que isso não se fazia no Brasil... que não era algo legal de fazer com as pessoas”.

A desqualificação de seu próprio código cultural e a falta de compreensão do idioma e das práticas culturais provocam, muitas vezes, um sentimento de culpabilização, invalidez e vergonha (Carignato, Rosa, & Berta, 2006Carignato, T. T., Rosa, M. D, & Berta, S. L. (2006). Imigrantes, migrantes e refugiados: encontros na radicalidade estrangeira. Revista Internacional Mobilidade Urbana , 26, 93-118. ), inclinando o imigrante a reagir com este “fazer nada”. Se compreendermos que a cultura é o “baú de todos os significantes” (LacanLacan, J. (1964). O seminário, Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar . , 1953Lacan, J. (1953). Função e campo da fala e da linguagem. In Escritos (pp. 238-324). Rio de Janeiro: Zahar . ), ou seja, o suporte simbólico que fornece referentes para as experiências do sujeito, quando uma ruptura com o aparato cultural emerge, um sentimento de estranhamento de si e do outro eclode, provocando, comumente, caos e sofrimento psíquico para o migrante. Analisando esse processo singular a partir de uma dimensão coletiva, Tajfel (1983Tajfel, H. (1983). Grupos humanos e categorias sociais: estudos em psicologia social II. Lisboa: Livros Horizonte. ) nos auxilia a compreender as relações conflituosas estabelecidas entre diferentes grupos: quando em contato com a ameaça do diferente, o ingroup tende a se fortalecer por meio do rechaço do outgroup.

Quando analisamos a migração de pessoas de origem racial, étnica e econômica rechaçada pela cultura hegemônica21 21 Partimos da ideia de Brah (2006) de que os grupos dominantes são personificados nos corpos de homens brancos e heterossexuais, estruturando o racismo, o sexismo e o heterossexismo, produzindo determinadas diferenciações nas relações de poder, gerando posições de privilégios dentro de práticas políticas e materiais, tanto em nível das instituições como nas relações interpessoais. - eurocêntrica, colonialista e racista -, a situação de desamparo do imigrante é ainda mais preocupante. Como nos sugere o estudo de Piscitelli (2008Piscitelli, A. (2008). Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e Cultura, 11(2), 263-274.), o conceito de interseccionalidade torna-se uma importante ferramenta analítica para apreender as múltiplas diferenças geradoras de desigualdades que demarcam as experiências migratórias, como é o caso de seu estudo sobre as migrantes brasileiras. Oriundo do pensamento feminista, o conceito de “interseccionalidade” diz respeito ao modo como diferentes marcadores sociais e identitários (racismo, sexismo, xenofobia, etc) se articulam, produzindo uma sobreposição que potencializa a opressão e a discriminação.

Esta pesquisa não nos forneceu dados suficientes para que pudéssemos compreender claramente a forma como esta interseccionalidade era experienciada pelos sujeitos participantes do estudo, temática que nos parece constituir interessante objeto para pesquisas futuras. Não obstante, a partir de uma análise macrossocial, é possível supor que existam marcadores de diferenças que geram uma superposição de opressões (raça, etnia e nacionalidade) e uma múltipla condição de desprivilégio e exclusão que assujeitam esses haitianos residentes22 22 Fato constatado pelas observações de experiências segregadoras, relatos e notícias de práticas discriminatórias, ocupação de locais de trabalho desvalorizados, baixos salários, condições insalubres e ilegais de trabalho etc. no Brasil.

Teríamos muito a discorrer sobre as sutilizas e nebulosidades do preconceito que vivenciamos no campo de pesquisa. Entretanto, como a complexidade da temática nos forçaria a ultrapassar o escopo deste artigo, encerramos com o relato de um caso. Quando debatíamos, em nosso grupo de pesquisa, sobre o triste fato ocorrido em Navegantes23 23 Este caso foi citado na introdução deste artigo. , todos os brasileiros presentes (estudantes de Psicologia e Direito) defendiam que o ato foi fruto de um posicionamento xenófobo e discriminatório, enquanto um haitiano, participante do grupo, se posicionava de modo diametralmente oposto: “isso não foi um ato de racismo ou preconceito, não tem nada a ver com o fato de ele ser haitiano, isso ocorreu como poderia correr com qualquer pessoa, foi briga de rua, coisa de moleques que ficam na rua usando drogas e arrumando brigas24 24 Não se trata, aqui, de classificarmos esses discursos como verdadeiros ou falsos, uma vez que esses se produzem a partir de diferentes posicionamentos subjetivos ocupados por sujeitos e grupos que se encontram alocados em diferentes lugares sociais e políticos. Tampouco se trata de concluirmos se os brasileiros são hospitaleiros ou preconceituosos. Trata-se, antes, de analisar o modo como, a partir dos múltiplos olhares de brasileiros e haitianos, estas significações são (trans)formadas, tensionadas e negociadas. A presença de um haitiano em nosso grupo de pesquisa enriqueceu o nosso debate, pois revelava e provocava, a todo o momento, as diferentes perspectivas políticas e subjetivas das negociações, tensionamentos e produções de sentidos sobre preconceito e migração. .

A heterogeneidade de discursos - que comportavam desde afirmações como “nunca sofri preconceito aqui no Brasil” a “me entristece viver aqui porque, pelo fato de você ser negro e imigrante, tem que se esforçar em dobro para mostrar seu potencial... no Haiti temos orgulho de ser negro, isso foi um susto para mim... não sabia que o racismo aqui era tão forte” - levou-nos à compreensão do preconceito como algo não apenas nebuloso de ser investigado, mas também como estranho e inacessível, muitas vezes, para o próprio sujeito que possivelmente o vivencia.

Os discursos ideológicos, estruturados com enredos culturais, políticos, familiares e religiosos, interpelam os sujeitos, segundo Gramsci (1987Gramsci, A. (1987). Concepção dialética da história (7ª ed.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. ), de forma quase imperceptível, fazendo-os reproduzir, muitas vezes de forma inconsciente, uma determinada partilha do sensível (Rancière, 2011Rancière, J. (2011). Momentos políticos. Madri: Clave intelectual. , 2012Rancière, J. (2012). El ódio a la democracia. Buenos Aires: Amorrortu. ). Assim, a ideologia atravessa o sujeito e a sociedade, ganha corpo, voz e vida, fazendo com que a negação, a exaltação, a evitação e a submissão ao preconceito tornem-se, muitas vezes, processos naturalizados, que guiam as práticas sociais diárias, gerando efeitos políticos e subjetivos aos sujeitos subalternizados pela ideologia hegemônica - racista, eurocêntrica, sexista e colonialista.

Considerações finais

Este trabalho visou a investigar as narrativas e modos de vida de haitianos que migraram, nos últimos dois anos, para a região da grande Florianópolis. A dificuldade com o idioma, a saudade, as rupturas familiares, o preconceito, as práticas discriminatórias, a exaustão pelo excessivo trabalho, a dificuldade de fazer laço social significativo com brasileiros (as), a hospitalidade de alguns brasileiros (as) e as melhores condições de vida foram alguns dos aspectos encontrados no campo desta pesq uisa.

Defendemos que a psicologia pode desempenhar um importante papel na produção de pesquisas que procuram compreender os elementos psicossociais e políticos do processo migratório. Apontamos a necessidade de futuros estudos sobre o projeto migratório desse grupo social, pois, como apontam algumas pesquisas, esse vai se modificando conforme o tempo de estadia na cultura hospedeira. Apostamos, também, na proposição de intervenções psicossociais que busquem acolher os múltiplos sofrimentos, inscrevendo espaços simbólicos que tornem possível aos sujeitos se colocar de forma mais ativa, criativa e desejante em suas vidas.

Acreditamos que estudos como este auxiliam no fomento da produção discursiva que defende o direito de migrar e condena toda e qualquer prática de racismo e xenofobia. Cabe à Psicologia desenvolver pesquisas e intervenções que façam resistência às práticas discriminatórias endereçadas ao imigrante, atuando na luta pela promoção e garantia dos direitos humanos desse grupo comumente subalternizado pela cultura hegemônica.

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  • Spink, P. K. (2008). O pesquisador conversador no cotidiano. Psicologia & Sociedade , 20(n.spe.), 70-77.
  • Suda, J. R. & Souza, L. (2006). Identidade social em movimento: a comunidade japonesa na Grande Vitória (ES). Psicologia & Sociedade , 18(2), 72-80.
  • Sutter, C. (2010). Haití, país mal dito. Revista Mal-estar e subjetividade, X(3), 931-950.
  • Tajfel, H. (1983). Grupos humanos e categorias sociais: estudos em psicologia social II. Lisboa: Livros Horizonte.
  • Velho, G. (2005). O observador participante. In W. F. Whyte (Org.), Sociedade de esquina (pp. 9-14). Rio de Janeiro: Zahar .
  • Whyte, W. F. (2005). Sociedade de esquina. Rio de Janeiro: Zahar .
  • 1
    Neste trabalho utilizaremos as noções do estudo de Andrade e Marcolini (2002) sobre o que seriam “migrantes”, “emigrantes” e “imigrantes”. Nessa esteira, todos os participantes deste estudo serão entendidos como imigrantes, independente de possuírem ou não a concessão do visto humanitário.
  • 2
    O ACNUR estima que, atualmente, cerca de 85 mil haitianos(as) vivem no Brasil. Esse dado, contudo, é impreciso, tendo em vista que nem todos os imigrantes se cadastram na Polícia Federal. Trata-se de um número absoluto expressivo, mas ainda bastante reduzido em termos relativos: incluindo refúgio e o programa de migração humanitária, o Brasil recebe hoje apenas 4% dos refugiados existentes nas Américas ou 0,5% do total mundial, número equivalente a ínfimos 0,05% da população brasileira. Em relação a isso, consultar a matéria “Brasil, direitos humanos e a crise internacional de refugiados e migrantes” (Granja, 2016), disponível no site: http://www.brasilpost.com.br/joao-guilherme-granja/o-brasil-na-onu-e-a-crise_b_12168472.html, acessado em 28 de novembro de 2016.
  • 3
    Neste artigo utilizaremos o termo “haitiano” no gênero masculino, não de forma desproposital. Ao contrário, trata-se precisamente de destacar o fato de que a quase totalidade dos imigrantes que compuseram o campo desta pesquisa eram homens.
  • 4
    Este estudo esteve vinculado ao Núcleo de Pesquisa “Psicologia e Direitos Humanos” - núcleo atrelado ao projeto “Retirantes e Retirados: impactos subjetivos dos fluxos migratórios”, mantido pela Faculdade CESUSC (Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina/Florianópolis) -, teve a duração de um ano meio e contou com o auxílio de duas estagiárias do curso de Psicologia.
  • 5
    Sobre etnografia urbana, consultar o artigo: Magnani (2002Agamben, G. (2002). Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG. ). De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 17, 49, 11-29.
  • 6
    Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH), Estatísticas sobre Refugiados, dados emitidos pelo CONARE, em www.migrante.org.br, acesso em 20 de março de 2011.
  • 7
    A dívida, fruto do acordo assinado em 1825 com a França, para indenizá-la por “crime de independência”; o apoio diplomático e financeiro dos Estados Unidos à ditadura militar que durou mais de 30 anos; a ocupação dos franceses durante 19 anos para proteger o canal do Panamá; o embargo econômico norte-americano na década de 1990; as atuais formas de exploração por grandes potências, agravando a realidade dos moradores da zona rural; a exploração de trabalhadores haitianos em uma espécie de escravatura moderna - realizada, principalmente, pelos EUA; entre tantos outros fenômenos políticos e econômicos, têm feito do Haiti um país com insalubres - se não insuportáveis - condições de vida, provocando uma verdadeira diáspora haitiana, a ponto da maior parte da população viver hoje em outros países (Seintenfus, 2014; Sutter, 2010).
  • 8
    Conforme Resolução Normativa n.97 do Conselho Nacional de Imigração (In: “ACNUR (2012) “Coletânea de Instrumentos de Proteção Nacional e Internacional de Refugiados e Apátridas”). Historicamente, a concessão de refúgio vem sendo vinculada apenas às questões de ordem econômica e política. Contudo, alguns autores têm destacado a importância de inserir os “desastres naturais” no conceito jurídico de refúgio já que, como nos apontam Avila e Niencheski (2012Avila, C. D. B. & Niencheski, L. Z. (2012). Refugiados de guerra e ambientais: uma abordagem jurídica e psicológica. In S. V. Brandão (Org.), Psicologia, Direito e Educação: intersecções possíveis (pp. 9-41). Rio de Janeiro: SB Editora. ), o número de refugiados ambientais tem crescido substancialmente no século XXI.
  • 9
    O Globo. Notícias. MPT investiga denúncias de racismo e xenofobia contra haitianos no PR, 2014.
  • 10
    O Tempo. Cidades. Trabalho escravo: os haitianos são as principais vítimas, 2014. http://www.otempo.com.br/cidades/haitianos-s%C3%A3o-as-principais-v%C3%ADtimas-1.1046205
  • 11
    Carta Capital. Parlatório. Seis imigrantes são baleados em São Paulo, 2015. http://www.cartacapital.com.br/blogs/parlatorio/seis-imigrantes-haitianos-sao-baleados-em-sao-paulo-9027.html
  • 12
    Pragmatismo político. Haitiano é espancado até desmaiar no RS, 2014. http://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/02/haitiano-e-espancado-ate-desmaiar-rs.html
  • 13
    G1;Santa Catarina. Notícias. Haitiano morto em SC é enterrado nesta sexta, 2015. http://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2015/10/haitiano-morto-em-sc-e-enterrado-em-navegantes-nesta-sexta.html
  • 14
    São eles: fila de espera na Polícia Federal para obter o refúgio; praça localizada no centro da cidade onde descansavam após o almoço; curso de português oferecido pela universidade (onde encontrávamos os estudantes) e pela Secretaria Municipal de Educação (onde encontrávamos os trabalhadores); diferentes postos de trabalho (posto de gasolina, obras, restaurantes, mercados etc.) e inúmeros microlugares que íamos descobrindo no próprio ato de pesquisar.
  • 15
    Sobre a expressão “melhorar de vida”, embora seus significados sejam múltiplos, dinâmicos e singulares, seguimos a compreensão de Maciel (2010Maciel, L. M. (2010). O sentido de “melhorar de vida” na cidade. In R. Baeninger (Org.), População e cidades: subsídios para o planejamento e políticas sociais (pp. 223-238). Brasília, DF: UNFPA. ) explicitada em sua pesquisa com migrantes da cidade de São Carlos (SP): mudança positiva na vida do migrante e de sua família; oportunidade de explorar as possibilidades abertas; acesso aos direitos sociais e benefícios governamentais; melhorias nos padrões de relacionamentos familiares; ascensão social geracional; alterações positivas nos padrões de consumo; possibilidade de acumular recursos. Essas transformações ultrapassam a materialidade e produzem novas possibilidades de existência para o migrante e sua família.
  • 16
    Assim como aponta a pesquisa já citada de Angelo (2012) sobre os(as) brasileiros(as) residentes em Londres, os haitianos realizam aqui atividades que não realizavam em seu país de origem. Ocupam cargos e funções que são desqualificadas dentro do setor de serviços.
  • 17
    Uma das grandes dificuldades encontradas neste campo de pesquisa foi conseguir estabelecer um vínculo e uma relação de confiança com os participantes, que, provavelmente, nos permitiriam ter conseguido realizar as entrevistas, assim como suas respectivas análises, de forma mais fluida e aprofundada. A lacuna cultural e idiomática - o domínio do português era, na maior parte dos casos, bastante precário - existente entre as pesquisadoras e os pesquisados é um elemento fundamental para ser levado em conta nestas análises. Talvez, se não houvesse essa lacuna, poderíamos ter acessado o universo subjetivo desses imigrantes de forma mais aprofundada.
  • 18
    Nesse alojamento, montado em um estádio de futebol no ano de 2014Perin, V. (2014). “Um campo de refugiados sem cercas”: etnografia de um aparato de governo de populações refugiadas. Horizontes Antropológicos, 20(4), 303-330. , diversas entidades civis trabalhavam para organizar a recepção dos haitianos. Chegaram cerca de 15 ônibus, oriundos do Acre, que foram recebidos pela Secretaria Municipal de Assistência Social, pela Pastoral da Migração e outras instituições. Nesse espaço, deixávamos disponibilizados materiais básicos de sobrevivência (roupas, alimentos, passes de ônibus, colchonetes, remédios, etc) e, ali mesmo, realizávamos uma apresentação da cidade, dos direitos e dos trâmites burocráticos. Também tentávamos estabelecer contato com amigos e familiares que os esperavam aqui no Brasil e, ainda, buscávamos encaminhá-los para postos de trabalho. Nosso grupo de pesquisa, composto por estudantes de Direito e Psicologia, provia apoio jurídico e psicológico de forma coletiva e individual, conforme as demandas emergiam em cada contexto.
  • 19
    Estamos pautadas na noção de Schucman (2010, 2014) que define o preconceito racial como um processo psicológico socialmente construído que se materializa em práticas discriminatórias contra os sujeitos não-brancos.
  • 20
    Para uma visão aprofundada sobre o assunto, ler Brah (2006) que entende a diferença como um marcador social que atravessa os níveis da relação social, da experiência, da subjetividade e da identidade.
  • 21
    Partimos da ideia de Brah (2006) de que os grupos dominantes são personificados nos corpos de homens brancos e heterossexuais, estruturando o racismo, o sexismo e o heterossexismo, produzindo determinadas diferenciações nas relações de poder, gerando posições de privilégios dentro de práticas políticas e materiais, tanto em nível das instituições como nas relações interpessoais.
  • 22
    Fato constatado pelas observações de experiências segregadoras, relatos e notícias de práticas discriminatórias, ocupação de locais de trabalho desvalorizados, baixos salários, condições insalubres e ilegais de trabalho etc.
  • 23
    Este caso foi citado na introdução deste artigo.
  • 24
    Não se trata, aqui, de classificarmos esses discursos como verdadeiros ou falsos, uma vez que esses se produzem a partir de diferentes posicionamentos subjetivos ocupados por sujeitos e grupos que se encontram alocados em diferentes lugares sociais e políticos. Tampouco se trata de concluirmos se os brasileiros são hospitaleiros ou preconceituosos. Trata-se, antes, de analisar o modo como, a partir dos múltiplos olhares de brasileiros e haitianos, estas significações são (trans)formadas, tensionadas e negociadas. A presença de um haitiano em nosso grupo de pesquisa enriqueceu o nosso debate, pois revelava e provocava, a todo o momento, as diferentes perspectivas políticas e subjetivas das negociações, tensionamentos e produções de sentidos sobre preconceito e migração.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    13 Abr 2016
  • Revisado
    14 Nov 2016
  • Aceito
    20 Dez 2016
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