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O que é medo: Um adentrar no imaginário dos habitantes da cidade de João Pessoa, Paraíba

What is fear: An introduction to the imaginary of inhabitants of the city of João Pessoa, Paraíba, Brazil

Resumos

Na busca de conceituação da noção de medo, os entrevistados da cidade de João Pessoa, capital do Estado da Paraíba, situaram o conceito a partir das vivências com o ambiente social onde estão situados e dividiram a noção medo em três categorias principais: a falta de fé, a falta de confiança e receio de errar e a falta de segurança pessoal ou familiar. Este artigo analisa as três categorias apresentadas para a definição de medo entre os moradores da cidade.

medo; insegurança; estranhamento; confiança; violência; solidariedade


In searching to conceptualize the notion of fear, the interviewed people from the city of João Pessoa, capital of the state of Paraíba, Brazil, have pointed out the concept from the experiences with the social environment where they are situated, and have divided the notion of fear in three main categories: Lack of Faith, Lack of Reliability and Distrust to Failure and the Lack of Personal or Familiar Security. This article analyzes the three categories presented for the definition of fear by the inhabitants of the city.

fear; unreliability; estrangement; confidence; violence; solidarity


O que é medo? Um adentrar no imaginário dos habitantes da cidade de João Pessoa, Paraíba

What is fear? An introduction to the imaginary of inhabitants of the city of João Pessoa, Paraíba, Brazil

Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Brasil

RESUMO

Na busca de conceituação da noção de medo, os entrevistados da cidade de João Pessoa, capital do Estado da Paraíba, situaram o conceito a partir das vivências com o ambiente social onde estão situados e dividiram a noção medo em três categorias principais: a falta de fé, a falta de confiança e receio de errar e a falta de segurança pessoal ou familiar. Este artigo analisa as três categorias apresentadas para a definição de medo entre os moradores da cidade.

Palavras-chave: medo; insegurança; estranhamento; confiança; violência; solidariedade.

ABSTRACT

In searching to conceptualize the notion of fear, the interviewed people from the city of João Pessoa, capital of the state of Paraíba, Brazil, have pointed out the concept from the experiences with the social environment where they are situated, and have divided the notion of fear in three main categories: Lack of Faith, Lack of Reliability and Distrust to Failure and the Lack of Personal or Familiar Security. This article analyzes the three categories presented for the definition of fear by the inhabitants of the city.

Keywords: fear; unreliability; estrangement; confidence; violence; solidarity.

Apresentação

Este artigo de base etnográfica é fruto de uma pesquisa em andamento sobre medos e cidade no Brasil, desenvolvida nas vinte e sete capitais de estados brasileiros, e que teve a cidade de João Pessoa-PB, como cidade-piloto. É sobre João Pessoa que versa esse artigo. A pergunta o que é medo foi feita a quinhentos entrevistados moradores da cidade, entre os anos de 2004 a 2007, de todos os bairros e classes sociais, no interior de uma pesquisa em andamento sobre medo e cidade no Brasil (Koury, 2008). O objetivo era conhecer os mecanismos utilizados pela população local na conceituação de medo: um termo bastante utilizado cotidianamente pelas pessoas e na mídia, nesta época conturbada pela violência real ou imaginária que parece assolar o Brasil e o mundo contemporâneo. Para uma discussão sobre o conceito de medo ver, entre outros, Delumeau (1989), Chauí (1995) e Koury (2002). Das 500 entrevistas, 50 (10%) foram com pessoas com renda superior a 30 salários mínimos; 200 (40%) com renda entre cinco e trinta salários mínimos e 250 (50%) até cinco salários mínimos.

O conjunto de respostas foi dividido em dois blocos, ambos com 50%. No primeiro, situam-se 50% dos entrevistados divididos em duas categorias: medo como falta de fé (13,4%) e como falta de confiança ou receio de errar (36.6%). O segundo ficou com os outros 50% dos entrevistados e apresenta o medo como uma categoria que fala diretamente com a violência e a falta de segurança pessoal ou familiar.

Dos entrevistados moradores nos bairros nobres da cidade, como Tambaú, Estados, Cabo Branco e Manaira, apenas 10% situam-se no primeiro grupo com 3% das respostas para Falta de Fé, e 7% para Falta de confiança ou receio de errar. Nos demais bairros encontram-se 90% das respostas do primeiro bloco.

Discussão das categorias

I. A categoria Falta de fé conceitua o medo como falta de crença ou pouca crença em Deus, levando as pessoas a se sentirem fracas e temerosas. Quem possui fé tem uma solidez e uma confiança que desfaz qualquer temor. A categoria Falta de fé indica, assim, uma atitude relacional entre os homens e Deus como sugestiva de uma paz interior, fazendo-os encarar o mundo e as relações com os outros sem receio algum (DaMatta, 1985, 1993).

Como diz uma entrevistada do bairro de Mandacaru (evangélica):

Eu e meu marido somos pessoas da Igreja; gente de fé e protegidos por Deus. Nada nos abala... o que temos devemos a Deus, o que não temos a Deus pertence... Todos são filhos de Deus, embora alguns não saibam e vivam próximos ao demônio. Cabe salvá-los, indicar os caminhos da fé, e não temê-los... Se algum semelhante nos ameace, deve-se abaixar os olhos e perdoar; e nossa fé remove qualquer receio e qualquer prova imposta a nós por Deus.

Essa atitude relacional com o divino provoca uma sensação de destino ao ato do viver que ganha sentido nas tentações e provas à fé individual. As relações sociais e com os outros (semelhantes) são vistas através da potência de amor a Deus e a uma visão da vida terrena como um momento de definição para a vida futura. Assim, não há o que temer, tem que se estar preparado para as provas e tentações que Deus coloca na vida como teste de fé.

Existe nessa destinação uma espécie de fatalidade (Giddens, 2002, pp. 106-107) presente nos acontecimentos da vida ordinária e nos projetos e projeções feitas no decorrer da existência individual, familiar e coletiva. Essa fatalidade pode ser entendida como uma resignação, em que os indivíduos devem deixar que as coisas sigam o seu curso. Curso já traçado "por linhas curvas ou tortas", onde o indivíduo vivencia pela experiência diária de fé o seu trajeto. Quanto mais fé o indivíduo possui, mais "as pedras no caminho" serão removidas, construindo um campo moral que o protege e o guia.

Essa atitude relacional assegura um ordenamento moral sólido e uma visão do homem como semelhante e, portanto, filho de Deus. Logo, o mal e a presença do demônio são vistos como provas e tentações e, concomitante, como exercício de salvação individual, ao superar as tentações, e dos outros, pela evangelização.

Mostrar o caminho de Deus, ou 'da Luz', aos incautos ou 'tocados pelo diabo' é uma atitude esperada da fé. "A fé reduz o medo a pó e conduz um apelo para dar-se às mãos aos semelhantes e, principalmente, aos desesperados", disse um pastor (morador do Cordão Encarnado), falando sobre a fé como princípio de vida em harmonia.

O coletivo enquanto categoria que agrega e aproxima é uma noção central nesta forma de definir o medo via fé. O dar as mãos vira sinônimo de fortaleza pessoal em uma ação triangular com o divino que se satisfaz através da semelhança, paridade e afinidade com os demais. Uma proximidade com os outros que professa a mesma fé permite um fortalecimento pessoal, e a mão aberta à ação evangelizadora aos ainda não tocados pela fé dá um sentido de missão que ameniza o desígnio do mal aos sujeitos de fé, enfraquecendo-o e aproximando-o da fé e do bem.

Apesar da fé, como fundamento de vida e ausência de medo, e da ação evangelizadora aos desviados da fé ou tocados pelo mal, existe regras de conduta subentendidas, indicadas em várias entrevistas, que possibilitam afastar os perigos cotidianos; o que pode ser visto nos três depoimentos a seguir:

A gente é de casa para a Igreja e para os encontros de fé nas casas dos congregados, nossos irmãos. Vamos para a Igreja em grupo; a gente se reúne na casa de alguém e vamos e voltamos juntos sob a luz de Deus: não há o que temer. (Moradora do Rangel e evangélica)

Uma coisa que o crente faz é mostrar nossa fortaleza de fé: a Bíblia, a palavra do Senhor. Outra coisa é sair ajeitado: os homens de paletó, ou [com] camisa social, e as mulheres decentes, sem expor o corpo e com atitude séria. Isso faz com que o mal se afaste ou tenha medo da aproximação, pois sabe que ali está um servo do Senhor. (Morador do Cristo Redentor e evangélico)

Eu e um grupo... temos uma ação pastoral no Suvaco do Urubu [um núcleo de invasão no interior do bairro]. Toda semana... prestamos assistência aos moradores de lá. Às vezes não levamos nada, mas só nosso apoio espiritual, já dá... conforto praquelas almas sofridas. Fazemos amizade, circulamos à vontade e todo mundo nos respeita e a nossa família, nunca nada nos aconteceu, só o bem. (Católica carismática, moradora da Ilha do Bispo)

Esses três depoimentos resumem ações de relacionamento moral, espiritual e assistencial para com os outros, que servem também como proteção do sujeito de fé em relação aos outros. A saída em grupo, o encontro com os que comungam a mesma fé, serve como inibidor às intenções duvidosas ou desconhecidas, dando proteção. A forma de exibição fornece uma imagem simbólica de solidez moral que, imaginariamente, coíbe à aproximação do mal. A ação pastoral ou assistencial também indica proteção e ritos de convivência que levam à aproximação aos mais necessitados e diminuem a potencialidade do perigo presente nas relações, firmando um código em que a fé age como união e coletivo.

A questão da fé, então, se indica uma atitude relacional com o divino e de irmandade para com os próximos ou passíveis de conquista pela ação evangelizadora, e nos exemplos de vida apresentados; também traça um referencial e etiquetas que subsidiam a ação individual ou grupal e permitem evitar uma exposição aberta ao mal no movimento cotidiano da ação.

Afirmou um entrevistado (católico praticante e ex-morador da Torre – mora atualmente no Miramar):

Quem tem fé não provoca o demônio e está pronto a enfrentá-lo pelo exemplo de vida. Sei que o imponderável faz parte da vida, como provas que se situam além das nossas forças, mas Deus ao colocá-las sabe que somos pessoas de fé e que a fé aumentará a cada ação além de nossas forças; se fraquejamos, [isso] nos faz mais fortes, pois recorremos ao Senhor e ao grupo de apoio evangélico e as pessoas de bem em quem confiamos: familiares, amigos caros, vizinhos antigos e nos recolhemos contritos e reaparecemos mais fortes na fé.

A fé não só argumenta a favor de um destino já traçado, mas esse destino é composto por provações leves e outras duras, testando a capacidade individual da relação com o divino. Outra constatação indica a relação do sujeito de fé com os outros como facilitadores ou apoio em momentos difíceis, pois no erro também se realiza o fortalecimento da fé através dos grupos de apoio, mas também na ajuda a amigos, vizinhos e familiares.

Esse espírito de apoio e ação mútuos aparece como regra moral de comportamento e como experiência e confiança plausíveis de vencer os 'imponderáveis' que a vida traz. Serve como uma proteção não só física, mas, sobretudo, espiritual; um suporte moral que assegura a força necessária para vencer as intempéries, vistas e sentidas como provações.

Como no depoimento:

Uns seis anos atrás eu era recém casada e tinha me mudado recentemente para a casa... construída atrás da dos meus pais... Eu voltava do trabalho à noite. ... [e] da parada do ônibus [até minha casa], eu tinha que fazer uma volta grande ou cortar o caminho por um terreno baldio. Esse terreno é utilizado por muitos moradores durante o dia e recomendado à noite, embora já o tivesse feito, pois ele diminui o meu trajeto. Naquele dia, especialmente, eu não deveria fazer a travessia, uma pontada no meu peito avisou que eu devia seguir pelo caminho mais longo, mas não dei bola e prossegui. Normalmente eu ouço os avisos que chegam até mim, mas o cansaço me fez negligente e eu fui punida por não o perceber. Ao atravessar fui pega por quatro caras que me agarraram e me levaram para uma ponta mais escura do terreno e me seviciaram a não mais poder... Cheguei em casa toda rasgada, machucada, em sangue mesmo e fui acudida pela minha mãe. Meu marido ainda não tinha terminado o turno dele na fábrica... e meu pai me levou ao hospital e de lá para prestar queixa e fazer exame de delito. Eu estava arrasada, minha fé estava abalada, como pode acontecer comigo. Mas meus pais e irmãos não me deixaram esmorecer... Meu marido... foi avisado por uma vizinha e me deu apoio moral e ficou ainda mais amoroso comigo depois do acontecido. Fiz denúncia e logo depois de uma semana uma vizinha distante levou o filho dela na casa dos meus pais e fez ele confessar a participação no meu estupro e o arrependimento. Levou ele para a polícia e lá ele falou sobre os outros, todos do bairro, o que levou a prisão de todos. Esse menino é hoje um crente, ainda ta preso, mas ta um rapaz arrependido e temente a Deus. Meus pais, eu própria, meu marido, ficamos amigos da família dele e eu já o visitei uma vez na prisão e o perdoei. (Evangélica, moradora do Grotão)

Esse depoimento revela uma faceta moral presente no discurso e na práxis de quem elege a categoria Falta de fé para definir o que é medo. O depoimento fala de uma mulher criada em um determinado bairro, o Grotão, e que viveu sempre lá. Transferiu-se da casa dos pais para uma casa construída nos fundos da casa da família. Fala de uma mulher e de uma família que detêm vínculos comunitários com a vizinhança e possuem laços religiosos e de igreja no bairro.

Narra, ainda, sobre um tipo de violência física e moral terrível, o estupro. Relata também espaços perigosos (Ferreira, 2002) e que devem ser evitados, sobretudo à noite, por ermos e não frequentados pela comunidade. Apesar desses espaços, às vezes, encurtarem em muito a distância a ser percorrida de um canto a outro do bairro. Espaços ermos, perigosos, como um caminho aberto em um terreno baldio e mal iluminado, por exemplo, que diminui a distância a ser percorrida, por não se precisar dar uma volta inteira no quarteirão, e que deve ser evitado por não ser seguro, como tão bem analisado por Magnani (2002); mas que a confiança (Simmel, 1983) nos comunitários permite vez ou outra alguém ousar atravessá-los, pelo cansaço, pela pressa, apesar da sensação interna de que não deveria o fazer.

Mas fala, sobretudo, de laços comunitários que reforçam a fé, de uma visão do outro como próximo e que mesmo errando é possível ser perdoado, desde que permita trazê-lo de volta à vida enquanto sujeito de fé. O depoimento mostra, ainda, uma ação moral e ética de uma vizinhança, onde o grau de confiança entre si é sinônimo de proteção coletiva e pessoal, e de expiação de culpa, da necessidade do outro pagar pelos erros cometidos em uma ação imprópria (e no caso terrível do estupro).

Fica claro que não só a fé está em jogo, mas a da própria família e da própria comunidade. A solidariedade dos parentes - pais, irmãos, marido - e a necessidade de prestar queixa do crime dão um arcabouço afetivo e moral e fornecem uma estrutura cidadã ao ato. Por outro lado, um dos atores da violência contra a entrevistada, arrependido, conta o episódio à mãe e permite ser levado até a casa dos pais da depoente para apresentá-lo como um dos algozes e pedir perdão. E, junto com a família da vítima, levá-lo à delegacia; e depois de preso e julgado junto com os demais envolvidos por ele denunciados, é perdoado e visitado inclusive pela entrevistada, como forma de apoio moral e de trazê-lo de volta à comunidade e à igreja. Essa forma de agir demonstra um sentido de confiabilidade e de laços estreitos comunitários que transcendem a violência em si, e a coloca à luz dos 'caminhos tortos' da provação e do reconhecimento do outro como semelhante, como membro de uma comunidade e por ela protegido, desde que arrependido.

A entrevista sinaliza outro problema, que não pode ser explicado pela ação individual da culpa. A vítima também se coloca como alguém que errou; não leu os avisos íntimos de que não deveria passar pelo local ermo, não recomendado pela comunidade. Ao não ouvir a voz interna que a avisa o perigo, descuidou-se.

Esse descuido levou ao acontecido, mas levou também à salvação de uma pessoa que se encontrava desviada do caminho e que era objeto de preocupação da comunidade de fé e vizinhança. No depoimento, fala que o rapaz vinha se rebelando das normas familiares e sendo introduzido no uso de drogas (maconha) por outros rapazes, o que já tinha sido objeto de comentário da mãe dele com os pais dela e na Igreja.

O ato de violência foi lido pelo coletivo de fé como um objeto de aproximação e cura da doença social que se aproximava da vizinhança, visto através dos caminhos desviantes que tomavam alguns dos seus jovens. A entrevistada fala, inclusive, da extensão do apoio comunitário aos outros jovens envolvidos no estupro, e do fortalecimento da ação comunitária para aconselhar e minorar o desvio no interior da comunidade, com o seu caso servindo para uma maior ação comunitária, pastoral e social.

A categoria Falta de fé se situa em um campo de pensamento, ou em um imaginário social, ainda preso no interior de laços tradicionais. Os critérios de confiança e de semelhança emitidos definem o outro relacional dentro de laços comunitários estreitos, e a curva de vida de um sujeito encontra-se relacionada a um todo já traçado, a um destino posto à prova cotidianamente. A fé age como uma forma de proteção e, também, como consternação. Essa dualidade indica as 'linhas tortas' do desígnio do divino na vida pessoal, onde cada um tem que estar atento para ultrapassá-las. Reafirma os laços de confiança comunitários, amplia o poder da fé e possibilita uma ação em prol de outros afastados da fé e da comunidade moral, aproximando-os através do perdão e da remissão (reconhecimento da culpa e sua expiação). O medo, portanto, é compreendido como fraqueza pessoal, como uma falta de confiança na moral comunitária, e como falta de fé.

II. Diferente da primeira, a categoria Falta de confiança ou receio de errar define o medo fora do campo de representação do divino, apresentando-o dentro de uma lógica associada ao receio pessoal de errar e à falta de confiança em si mesmo. Esses elementos, apesar de serem colocados na perspectiva do indivíduo, falam também à família, à empresa e negócios que dependem do indivíduo e seus projetos, ampliando a falta de confiança em si e levando o indivíduo ao estresse. É uma categoria que associa o medo à incerteza do que se quer, à baixa estima pessoal, ou para um tipo de racionalização que aprisiona o sujeito no sentimento de imperfeição, de não se encontrar preparado, de não ter certeza ou da incerteza do próximo passo.

Grande parte das respostas se baseia na interpretação do medo como receio de agir, motivado pela falta de confiança em si e na possibilidade de cometer erros que impossibilitarão a consecução do projeto pessoal. O medo se desloca para o cotidiano individual e para os projetos pessoais em relação ao futuro. Está próximo a uma racionalidade em que o risco envolvido na ação leva à incerteza permanente do futuro imediato, fazendo o sujeito nunca ter certeza de que seus projetos atuais sejam alcançados ou realizados.

O receio de errar e levar os projetos ao fracasso coloca os entrevistados em situação de estresse permanente, abalando sua confiança pessoal pelo risco constante da realização futura do que almejam ou projetam para si e aos seus. A violência enquanto conceito aparece associada mais ao campo simbólico do risco da vida moderna do que necessariamente ao receio de virem a sofrê-la (Velho, 1996). Os outros são concorrentes, comprometendo a autoestima e ampliando a esfera do medo.

Como revela a narrativa a seguir:

Eu fico apavorada de não poder garantir o padrão de vida dos meus filhos. Sou sozinha, batalhadora, independente, ganho e moro razoavelmente bem, meus filhos estudam em boas escolas, mas me sinto despreparada para o mundo. Todos estão se preparando, correndo atrás, e eu não sei se consigo acompanhar. Sinto-me colocada à prova, eu vivo estressada, nervosa, sem ânimo e tendo que fazer das tripas coração para não decepcionar os meus filhos... mas tenho muito medo do amanhã. Não me sinto preparada para ele, apesar de me esforçar muito, sinto que posso errar e outros virem a tomar o meu lugar e eu não conseguir impedir isso... (Moradora de Manaira).

O depoimento indica alguém que, em sua avaliação, tem tudo para se sentir realizada, mas que vive com medo de não conseguir manter essa posição social por não se sentir preparada para a rapidez com que o mundo caminha e achar que os outros podem estar mais bem preparados, o que gera uma angústia pessoal, um aumento considerável de estresse e o receio de impossibilitar aos filhos um futuro digno. Fala do medo de errar e da falta de confiança em si provocada pela rapidez com que os processos sociais caminham e a dificuldade permanente de se manter atualizada, bem como de encontrar no seu caminho pessoas mais preparadas que barrem seus projetos pessoais, penalizando a si e aos filhos.

Guiddens (2002) discute a dificuldade de se enfrentar os ambientes de risco, pelas consequências acarretadas no processo de vida pessoal, familiar e profissional. O medo de errar e as consequências de uma decisão ou atitude errada levam à insegurança pessoal e social e modulam aspectos de racionalizações e angústias sobre o amanhã, causando estresse, depressão, estranhamento pessoal e com os outros, vistos como concorrentes.

Os aspectos que falam desse estresse são muitos e se configuram a partir de valores do ambiente social que frequentam e de um imaginário social comum. No depoimento a seguir, o enfoque centra-se na idade em relação à quebra de posição social ocupada pelo depoente. Para ele:

a idade trouxe um perigo que não me deixa dormir. Depois dos 35 anos... vivo com medo do desemprego e não mais encontrar um lugar no mercado. Tenho visto acontecer entre colegas meus. As empresas preferem jovens, mais competitivos e com superior completo e me sinto ameaçado pela juventude que parece dizer... que o meu tempo já passou... Não é que me preocupe com a minha idade biológica, não, até me sinto bem nela; mas com a ameaça de perder trabalho por causa dela. Tenho muita experiência profissional, mas parece não ser o critério usado pelas empresas: preferem rapazes e moças jovens pelo dinamismo da idade e disponibilidade de viagens, de ainda não possuir filhos, e com projetos pessoais ainda difusos e idealistas. [Isso] ameaça minha estabilidade e provoca surtos depressivos sobre o meu destino e o da minha família. Rezo todo o dia para conseguir formar meus filhos para não correrem os riscos que eu... (Morador de Mangabeira)

Outro depoimento trata a idade cronológica como segregação social, estigma e sentimento de estresse na tentativa de se manter jovem. Para a depoente:

a idade trouxe uma sensação de impotência e medo... Estou separada... ele me trocou por uma mocinha... esse foi o primeiro baque na minha vida, me senti velha e jogada no lixo, depois me refiz... comecei de novo a estudar, a participar da vida além da minha casa, a namorar, mas as pessoas que fazem isso estão situadas em uma faixa etária bem menor do que a minha, na faixa das minhas filhas, e eu passei a frequentá-las e me sinto aceita, mas às vezes acho que é pelos adereços: conheço mais coisas e gente que facilitam ao grupo, tenho uma posição econômica mais estável e posso bancar despesas, etc., mas, por outro lado sei que nas costas falam de mim... Uma vez estavam todos conversando numa festinha, me aproximei e senti que falavam de mim, pois mudaram de assunto... Tentei já sair com as minhas amigas da mesma idade, também me sinto fora d'água: são todas conformadas, com um padrão de comportamento que avaliam o meu pelo delas... Assim me sinto meio fora dos eixos, de uma lado me aceitam pelo que proporciono mas falam de mim,do outro, falam mal de mim e querem que eu vire uma velha gagá. E eu, embora me sinta jovem e ainda uma mulher atraente e que não pareço ter a idade que possuo, vivo na angústia da solidão, de qualquer hora chegar o tempo em que não mais terei com quem conversar, o que fazer, a não ser a morte... (Moradora de Cabo Branco)

A declaração fala da angústia de não poder conter o tempo: apesar de haver um cuidado pessoal grande, a idade tornou-se um peso moral que segrega e estigmatiza (Goffman, 1988). O medo da solidão se associa ao receio da velhice, da solidão. O deslocamento vivido revela o medo do futuro próximo, ao qual só a morte colocará um fim.

A vida é encarada como risco associado a acontecimentos futuros não controlados (Kowarick, 2002), e o processo como angústia pelo receio de não superarem as adversidades envolvidas. Vive-se em permanente estresse e em continuada depressão: falta de confiança em si e no social, medo constante de errar, com receio de isolamento, medo de serem passados para trás ou da perda de prestígio e posição social. A mídia, a propaganda, o imaginário social parecem reforçar essa posição ao propagar uma ideologia da juventude, da competência desenfreada, da necessidade de capacitação permanente, como sinônimos da realização pessoal e profissional. Para uma análise comparativa, ver o trabalho de Eckert (2003) sobre medo e envelhecimento em Porto Alegre.

III. A categoria Falta de segurança pessoal ou familiar possui 50% dos entrevistados e reflete a mudança na cidade nos últimos quarenta anos, mudança nos costumes e modos de vida local e um crescimento acelerado que afetou as redes de reconhecimento anteriores. De um lugar onde todos se conheciam e se reconheciam, a cidade passou a ser um espaço ocupado pela desconfiança, onde os laços que uniam a rede de sociabilidade afrouxaram e o receio e a dúvida sobre o outro tomou lugar (Paugam, 1999).

O depoimento de uma moradora do bairro dos Estados mostra essa ideia, em um quadro simbólico e imaginário relacional desfeito e ainda não de todo remontado, a não ser pelo temor do distanciamento provocado pelas novas relações societárias na cidade. Segundo ela,

Quando mocinha e até depois de casada, podia sair com segurança. Todo mundo se conhecia, não havia esse perigo de agora, onde você topa o tempo todo com desconhecidos e não confia em ninguém. Até os anos setenta, se ia a um bar, o garçom te conhecia, o dono te conhecia, as pessoas lá te conheciam se não diretamente, mas sabiam que se era filha de fulano, que morava em tal bairro, e coisa e tal... Hoje não. Você vai num bar e não reconhece ninguém, os garçons não são mais conhecidos, e você fica deslocada no lugar. Na minha rua, tenho vizinhos que não sei quem são, quando há muito pouco tempo eu conhecia todos. Fora a miséria que ronda a cidade: mendigos, trombadinhas, cheira-colas, as favelas que circundam e crescem por toda João Pessoa, faz com que eu evite o máximo sair de casa. Hoje eu trago os amigos para casa, muito raramente me atrevo a ir às ruas.

A rua, de elemento primário de relações e de segurança, parece ter se tornado um lugar onde as relações sociais se esgarçaram e o conhecimento do outro deixou de existir. Os outros são sentidos como aqueles que trafegam pelas ruas, que habitam diferentes locais e, mesmo que sejam vizinhos, são desconhecidos. E como desconhecidos habitam o imaginário via ameaça potencial à segurança e ao conforto. O confinamento doméstico tornou-se um dos poucos caminhos encontrados de continuar vivendo na cidade. Em casa recebe os amigos e se sente protegida dos usurpadores do lugar e que a ameaçam pela simples presença.

Outro entrevistado, morador de Tambaú, amplia este sentimento de confinamento e o dramatiza, já que coloca a casa, símbolo de proteção e reconhecimento, como virtualmente defasada e ameaçada por estranhos que circulam e inflam a cidade em termos populacionais:

Até bem pouco morava numa casa, aqui em Tambaú e a troquei por apartamentos: hoje moro em um deles, no lugar onde ficava minha casa. Fiz isso não só pelo financeiro, mas por medo depois que a casa de um vizinho foi invadida por ladrões... Quando aconteceu não consegui dormir mais, vivia me sentindo com receio pela segurança da minha família... Por ela eu não mais tinha sossego. Minha mulher vivia me cobrando solução para o desconforto que era viver com a insegurança. Assim, resolvi ceder o assédio das construtoras e aceitei a melhor oferta. Sinto falta da minha casa, do conforto e do espaço que uma oferecia... Mas está bem melhor, embora ainda fique temeroso pela violência que nos cerca. Em Recife... uma quadrilha especializou-se em roubo de prédios... Mas não quero pensar muito, senão enlouqueço. Esse parece ser o preço que se paga para viver numa sociedade injusta e numa cidade e região pobre.

O medo é explicado pelo imaginário da violência urbana sobre o orbe pessoal e familiar. Tambaú é um bairro onde a especulação imobiliária e o crescimento urbano e de infraestrutura cresceram aceleradamente desde 1970. Passou de um bairro pacato, praieiro, onde todos se conheciam, para um lugar agitado e ponto turístico da cidade: nele se concentram bares, restaurantes, boates, comércio diversificado e uma circulação grande de pessoas vindas dos demais bairros para usufruto do lugar. É um polo onde deságuam levas de turistas e que possui uma grande concentração de hotéis. Por ser o bairro mais pulsante da cidade, o investimento de infraestrutura é um dos atrativos para a grande procura de moradias. Muitos moradores atuais são originários de outros bairros, ou de fora da cidade, transformando o lugar em um conglomerado urbano complexo e individualista, que assusta os antigos moradores.

A circulação de toda a cidade em Tambaú reflete, no imaginário dos habitantes, como ponto de estrangulamento e fragmentação da rede de reconhecimento e sociabilidade; referida como ameaça a segurança dos moradores. A quebra dos laços de conhecimento, a circulação de pessoas de todas as partes e de todos os tipos e costumes provocam desconfiança que se precipita entre os moradores na forma de insegurança pessoal e receio. O outro é encarado como ameaça. O vizinho que teve a casa arrombada por ladrões é uma antecipação do que acontecerá com os outros moradores próximos, que buscam se proteger no último refúgio dos edifícios, cedendo à especulação imobiliária.

Antes, fortificam as residências, se isolando do outro morador e das pessoas que circulam nas ruas. As residências se transformam em fortalezas, com muros altos, cercas elétricas, guaritas, cartazes nas portas avisando sobre a presença de cachorros bravos ou associação a empresas de vigilância. Uma entrevistada, moradora de Tambaú, fala da infância no bairro, brincando livre nas calçadas, ruas e praia, e a diferença dos seus filhos adolescentes e pré-adolescentes, obrigados a ficarem trancados em casa, saindo apenas acompanhados dos pais. Fala do medo de sair a pé à noite na própria rua, hoje com apenas duas casas residenciais e o restante de edifícios: "a rua é só muros altos, com pouca iluminação, o que dá uma insegurança muito grande ao transeunte".

A sua casa, no início, tinha um muro baixo, a rua era todas de casas como a dela, os moradores se encontravam e confraternizavam, e as crianças compartilhavam a rua como espaço para brincadeiras. Depois os muros subiram, apareceram cachorros ferozes, depois a 'turma do apito' (homens de bicicleta que vagueiam nas ruas de vários bairros da cidade intimidando a população a pagar determinada quantia em troca da 'segurança' de suas casas), cercas elétricas; as crianças sumiram das ruas, os moradores também sumiram, trancafiados nas residências. As casas foram se transformando em edifícios, gente desconhecida começou a morar neles, e muitos nem proprietários são, aumentando a rotatividade de moradores. Como sua rua fica próxima aos pontos de acesso aos bares, permanece o dia inteiro com carros estacionados, o que atrai 'flanelinhas' "e todo tipo de gente". Gera insegurança, intranquilidade de circulação e amplia o medo de que a violência lida nos jornais, revistas e televisão, ou conhecida em rodas de conversa com parentes e amigos sobre uma casa assaltada ou um filho roubado ou alguém atropelado no trânsito, atinja a si próprio ou a sua família, o que torna os moradores vítimas do próprio medo, pela insegurança pessoal e familiar no cotidiano da violência, no espaço urbano onde residem.

No bairro de Manaira acontece o mesmo no imaginário dos moradores. Este começa a ser ocupado em 1970 por uma classe média composta por filhos de famílias da cidade, por pessoas vindas do interior e de outros estados, principalmente após a expansão da Universidade Federal da Paraíba. Antes área ocupada por sítios e granjas, hoje um bairro com comércio importante e lugar do principal shopping center da cidade e, no imaginário dos seus moradores, um lugar privilegiado, com infraestrutura moderna e eficaz, simultânea à visão do bairro com inúmeros casos de assaltos à mão armada, sequestros relâmpagos, roubo de carros e onde a violência urbana só cresce.

Os entrevistados moradores de áreas fronteiriças nos bairros nobres (dos Estados e Ipês com o bairro de Padre Zé, ou Manaira e Tambaú com o bairro de São José), por sua vez, apontam a proximidade do que consideram favelas - Padre Zé e São José - como um perigo a mais no cotidiano dos habitantes. Muitos moradores falam de um pacto de boa convivência com os bairros pobres fronteiriços, como forma de não ter suas casas invadidas ou seus carros roubados ou depredados. Como afirma uma moradora de Manaira:

Moro num edifício fronteiriço à favela de São José. Os edifícios próximos já sofreram assaltos, e o nosso não por que contratamos gente da favela para trabalhar no condomínio... Por darmos trabalho também não somos incomodados. Mas mesmo assim morro de medo: já pensou se demitirmos alguém que sabe tudo do prédio... aí pode ser uma desgraça... num tem jeito, essa proximidade faz a gente ficar sempre tensa....

Essa situação de medo e insegurança vivida é geral, alguém sempre lembra um amigo de um amigo que foi assaltado ou vítima de outros tipos de violência. Em Tambaú, Cabo Branco, Estados e Manaira 90% dos entrevistados referenciam o medo à falta de segurança pessoal ou familiar. Outros bairros também associaram medo à falta de segurança, embora as respostas a essa categoria estejam distribuídas de forma balanceada às outras duas, ou como um conjunto residual de respostas em relação a elas. Nesses, os entrevistados os refletem como tranquilos, e associam a imagem de violência a pequenos núcleos que mancham a representação dos seus bairros na cidade e provocam medo. Como, por exemplo, os moradores próximos às 'bocas do fumo' ou reduto de drogas, nos bairros de Cruz das Armas, Rangel, Mandacaru e Roger, que sentem insegurança e se apresentam vítimas do não vi, não sei, do silêncio em troca de uma vaga segurança e proteção; ou dos moradores próximos à Torre de Babel, área de invasão no bairro de Valentina de Figueiredo; ou os moradores próximos ao Suvaco do Urubu, nos limites da Ilha do Bispo com o Alto do Mateus; ou mesmo a visão da comunidade de Porto do Capim no Varadouro como lugar perigoso, o que gera insegurança aos moradores e lança vergonha ao bairro; ou a divisão imaginária no bairro do Roger em de baixo e de cima, que suscita insegurança aos moradores do de cima, que chamam os de baixo de ladrões e maconheiros, e nos de baixo, que se ofendem e acusam núcleos de invasão no seu interior de manchar a reputação de todos; e em alguns locais do Centro, como o Parque Sólon de Lucena, conhecido como Lagoa, à noite, visto como reduto de marginais e travestis, que provocam receio.

Bairros ou locais considerados perigosos no imaginário da cidade, nos índices das estatísticas policiais e no noticiário da imprensa local são vistos como locais tranquilos, de gente trabalhadora pelos seus moradores e que, afora os redutos apontados como manchas que envergonham o bairro, são locais excelentes para morar. Admitem o perigo na quebra dos códigos de silêncio, como rompimento de um pacto entre as áreas apontadas como perigosas e o restante do bairro: um dos entrevistados residente em Cruz das Armas relata que a rua onde mora foi objeto de uma série de incidentes no ano de 2004 provocada pela quebra no pacto entre moradores e um ponto de droga próximo, quase contíguo à rua:

Houve uma batida policial que provocou um desbaratamento no ponto de droga situado próximo a rua onde moro. O pessoal achou que foi uma deduragem de alguém da minha rua e como revide, paredes amanheceram pichadas, carros depredados, moças e senhoras vítimas de assédio e ameaças veladas provocando pânico entre os moradores, alguns chegando a se mudar. Hoje [2006] as coisas voltaram ao normal. Foi restabelecida a paz entre os moradores da rua e a comunidade... mas o medo continua....

Outros bairros de classe média como Bessa, Bancários, Mangabeira e Cidade Verde (em alguns depoimentos, Cidade Verde é apontado por moradores de Mangabeira como um lugar perigoso), apesar de apontados como tranquilos e bons de morar, são vistos pelo referencial de perigo: como locais mal iluminados e desertos em alguns trechos. Alguns moradores relatam casos de violência que induzem ao medo e colocam os moradores em alerta.

Conclusão

A noção de medo foi definida pelos entrevistados, habitantes da cidade de João Pessoa, a partir de suas vivências pessoais e coletivas; apresentaram a noção em três categorias: falta de fé, falta de confiança e receio de errar e falta de segurança pessoal ou familiar. A primeira categoria compreende uma atitude fatalista sobre o destino pessoal e coletivo e é solidária com o próximo através de um terceiro relacional, a figura do divino. Nela, a fé em Deus remove obstáculos, não se tem por que ter medo, tudo está escrito. A ideia de destino, por sua vez, está associada à ideia de provação. O destino é a outra vida, na vida terrena os homens são submetidos a provas e sua fé os ajudará a encontrar os caminhos para a resolução do problema e um aprofundamento da própria fé, aproximando-se de Deus.

A segunda categoria remete à ideia de risco permanente, não estando os sujeitos prontos para encará-lo e, quando o fazem, sentem-se ameaçados pelos outros, indivíduos e instituições, e com receio de perder posições sociais conquistadas. O medo é sentido como uma ameaça permanente aos projetos individuais e coletivos e, por extensão, à família e à profissão e à imagem pessoal. A vergonha, o estigma, a concorrência e a solidão, acompanhadas pelo estresse, angústia e depressão, são os sentimentos e os sintomas apresentados nas narrativas dessa segunda categoria para definição do medo.

A terceira categoria, por fim, ao falar da insegurança do cotidiano, leva à reflexão sobre o medo no sentido da violência urbana. O medo do outro e o estranhamento do cotidiano parecem gerar outro tipo de solidão, que é a do viver em uma cidade cada vez mais estranha. Uma cidade onde ninguém mais se encontra ou não se reconhece; e não se conhece ou se sabe sobre o seu vizinho, que pode ser outro a qualquer momento. Na rua, as pessoas se sentem ameaçadas pelo trânsito, pelos assaltos constantes, sequestros, assédios e mortes. Em casa não se sentem mais protegidas, as crianças não brincam mais na rua, os muros sobem, a vigilância nunca está completa, apesar de cachorros, vigilantes privados, cercas elétricas, aparatos tecnológicos para segurança do lar, entre outros tantos. O mundo e o Brasil são vistos vivendo uma situação de conflito, quase em guerra, e os noticiários de jornais, rádio, televisão, revistas, o comentário no trabalho e em casa complementam a cena dramática dos que situam assim a noção do medo, o que amplia o imaginário da violência e a cultura do medo, projetando-os sobre a cidade e os bairros em que moram.

O ontem e o amanhã se apresentam em comparação permanente. O ontem idealizado, como um momento bom e perdido, e o medo do futuro, projetado como impossível de se viver.

Não se pode afirmar neste artigo, de um lado, que as categorias analisadas e definidoras do medo possam ser vistas através da posição socioeconômica dos entrevistados, pois um informante de qualquer posição socioeconômica pode definir medo através das três categorias. De outro lado, porém, não se pode deixar de notar, como já indicado na apresentação, que existe uma concentração diferenciada dos depoentes nas três categorias sobre o que é medo em João Pessoa: na primeira categoria, falta de fé, estão localizados, principalmente, os entrevistados moradores de bairros populares de João Pessoa. Na segunda e terceira categorias estão as classes média e média alta, e moradoras dos bairros mais nobres da cidade.

Em uma cidade que começa a ter um crescimento populacional acelerado nos últimos quarenta anos (Sposito, 2007), a noção de medo parte de um complexo de atitudes e definições provindas do ambiente onde os entrevistados estão situados e através dos quais enxergam a realidade social local. O ponto de vista da violência, real ou imaginária, norteando a noção de medo, toma proporções de 50% das respostas, junto a 36,6% de quem optou pela falta de confiança como definidora do medo, o que mostra as noções de risco e da insegurança como instâncias de uma individualidade crescente em formação e do olhar o outro pelo viés da desconfiança, do estranhamento e da concorrência (Paoli, 1983). Apenas 13,4% situam o medo no interior de uma lógica relacional, em que é encarado como falta de fé e como fatalidade e provação, superada pela crença no divino.

Este artigo, por fim, chega a conclusões semelhantes às de outros sobre medo e cidade no Brasil, como os de Ferraz (2006), de Eckert & Rocha (2005), de Baierl (2004) e Caldeira (2000), que apontam para a fragilização dos laços sociais nas cidades brasileiras nos últimos quarenta anos, para um aumento significativo da cultura do medo no imaginário social dos seus habitantes, para a mudança de hábitos da população, que repercutem, inclusive, na sua arquitetura. Muda talvez na intensidade, mas essa mudança singulariza o difícil caminhar para o individualismo experimentado no Brasil dos anos de 1970 até hoje.

No caso de João Pessoa, aqui analisada, e diferente de cidades como Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro, estudadas pelas autoras citadas, a cidade possui redes relacionais ainda presentes e fortes, porém, com o crescimento acelerado que vem sofrendo nas quatro últimas décadas, apresenta semelhanças aos estudos citados e vem se sentindo invadida, confusa e com receio do estranho. No imaginário joãopessoense, o medo já faz parte do cotidiano da cidade e vem causando receios, conflitos e estranhamentos, que repercutem na mudança de hábitos da população, nos bairros mais nobres da cidade, principalmente, mas já visível, também, nos bairros mais populares, como o aumento de muros, crianças trancafiadas em casa, receio de sair para a rua, entre outros, e no boca a boca da ocorrência da violência: desde o desrespeito às leis do trânsito, passando pelo aumento de habitantes de fora da cidade, vindos do interior ou de outra região do país, fragilizando os laços sociais de reconhecimento, até o aumento da criminalidade, com o aumento do número de favelas e favelados em toda a cidade.

Recebido em: 28/07/2008

Revisão em: 11/07/2009

Aceite final em: 12/07/2009

Mauro Guilherme Pinheiro Koury é Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Coordenador do GREM – Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções da UFPB. Doutorando em Sociologia pelo PPGS / UFSCar. Endereço Correspondência: Rua General Joaquim Inácio, 154, CEP 50070-270 Recife, Pernambuco. Email: maurokoury@gmail.com

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Maio 2010
  • Data do Fascículo
    Dez 2009

Histórico

  • Aceito
    12 Jul 2009
  • Revisado
    11 Jul 2009
  • Recebido
    28 Jul 2008
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