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TEORIA DA DOMINÂNCIA SOCIAL: APRESENTANDO PROFESSOR JIM SIDANIUS À COMUNIDADE BRASILEIRA DE PSICOLOGIA

Meu contato por e-mail com o professor Jim Sidanius (também conhecido como James Sidanius) iniciou-se cerca de um ano antes de nos encontrarmos pessoalmente, nos Estados Unidos. Em fevereiro de 2018, eu finalmente tive a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente. Estava muito entusiasmada para conhecer o professor que tinha me aceito para meus estudos de pós-doutorado. Eu iria para a Harvard University e seria orientada por esse famoso professor que desenvolveu uma das teorias modernas mais conhecidas em psicologia social - a Teoria da Dominância Social (TDS)!

Parei em frente ao prédio James Hall1 1 Named in honor of William James, the American professor and psychologist, who offered the first psychology course in the United States. [Nomeado em homenagem a William James, professor e psicólogo americano que ofereceu o primeiro curso de psicologia nos Estados Unidos.] - a construção mais alta nos arredores do Harvard Yard (parte central do campus). Parecia que um sonho tornava-se realidade. Com uma aparência "fria", o edifício parecia um bloco gigante cheio de cromossomos. Percebi que estava contente, mas também muito nervosa. A sala do professor Sidanius fica no 14º andar, com uma bela vista da cidade de Cambridge e do horizonte do distrito financeiro de Boston. Bati à sua porta e lá estava ele, um homem afro-americano muito alto que me recebeu com muita gentileza. Seu tom de voz, tão terno, rapidamente fez com que eu me sentisse confortável.

Levei 10 meses para conseguir uma entrevista com o professor Jim (a partir do momento em que iniciei meu pós-doc), não apenas porque ele é uma pessoa muito ocupada, mas porque eu precisava de tempo para me familiarizar com sua teoria, com seus pensamentos, a fim de poder realizar a entrevista da melhor maneira possível. Minha crença era de que a comunidade brasileira de psicologia deveria começar a conhecer esse grande pesquisador e sua teoria. A entrevista ocorreu em duas partes. Iniciamos a entrevista durante o Curso "Psicologia do Preconceito e Racismo" em 8 de novembro de 2018 e finalizamos em sua sala situada no William James Hall em 21 de dezembro de 20182 2 The authors want to thank Cristina Zubizarreta for the English text revision and comments, and also to Alexa Lipkin for her remarks. [Os autores querem agradecer a Cristina Zubizarreta pela revisão e comentários no texto em inglês, e também a Alexa Lipkin por suas observações.] .

O professor Jim Sidanius recebeu seu Ph.D. da Universidade de Estocolmo, Suécia, e atualmente é professor de psicologia John Lindsley, em memória a William James, e dos estudos africanos e afro-americanos junto ao departamento de Psicologia e no departamento de estudos africanos e afro-americanos da Harvard. Seus principais interesses de pesquisa incluem a interface entre ideologia política e funcionamento cognitivo, a psicologia política de gênero, conflito de grupo, discriminação institucional e a psicologia evolutiva do conflito entre grupos.

Tem autoria e publicação em mais de 330 artigos científicos, embora sua escrita científica mais conhecida seja o livro Teoria da Dominância Social. Uma teoria da integração da hierarquia social e da opressão” (Sidanius & Pratto, 1999Sidanius, J. & Pratto, F. (1999). Social dominance theory. An integration theory of social hierarchy and oppression. Cambridge, UK: Cambridge University Press.), ainda não publicada no Brasil ou em português3 3 The SDT was introduced in Brazil in the mid-2000s, particularly through the works of Fernandes, Costa, Camino, and Mendoza (2007) and Fernandes and De Almeida (2008). More recently we found the publication of Barroca e Garcia (2019). It is worth mentioning that, although the authors state that they analyzed, from the perspective of SDT, conceptual issues related to “race”, as well as its effects on the hierarchy and maintenance of structures of Brazilian society, we did not identify the use of SDT theoretical constructs (e.g., legitimizing myths, arbitrary-set systems, social dominance orientation) in the analysis of the object of study per se. [A TDS foi introduzida no Brasil em meados dos anos 2000, principalmente através dos trabalhos de Fernandes, Costa, Camino e Mendoza (2007) e Fernandes e De Almeida (2008). Mais recentemente, encontramos a publicação de Barroca e Garcia (2019). Vale ressaltar que, embora os autores afirmem que analisaram, na perspectiva da TDS, questões conceituais relacionadas à “raça”, bem como seus efeitos na hierarquia e manutenção de estruturas da sociedade brasileira, não identificamos o uso dos construtos teóricos da TDS (por exemplo, mitos legitimadores, sistemas de conjuntos arbitrários, orientação de dominância social) na análise do objeto de estudo em si.] .

A TDS é um modelo geral de desenvolvimento e manutenção da hierarquia social e da opressão social baseadas em grupos. Usualmente, é uma teoria associada à Escala de Orientação à Dominância Social (ODS) (Social Dominance Orientation Scale) 4 4 For more information about the SDO Scale see Ho, Sidanius, Kteily, Sheehy-Skeffington et al. (2015). It was adapted in a Portuguese sample (see Giger, Orgambídez-Ramos, Gonçalves, Santos, & Gomes (2015). [Para mais informações sobre a Escala de Orientação de Dominância Social (ODS), consulte Ho, Sidanius, Kteily, e Sheehy-Skeffington (2015). Ela foi adaptada em uma amostra portuguesa (ver Giger, Orgambídez-Ramos, Gonçalves, Santos, & Gomes,2015).] .

A teoria está inserida na Psicologia Social Crítica, concentrando sua atenção nas relações de poder, particularmente no racismo e no sexismo. A TDS trabalha com os insights extraídos das teorias socioestruturais e da elite, incluindo o marxismo, a perspectiva evolutiva e a psicologia política do patriarcado.

O professor Sidanius foi um ativista americano que protestou contra a guerra no Vietnã e decidiu deixar os EUA porque não estava satisfeito com as decisões políticas em seu país. Viajou para o Canadá, depois para a Argélia, França e, finalmente, Suécia. Tornou-se um refugiado na Suécia por 14 anos. Lá, desistiu de sua cidadania americana e decidiu que queria ter uma nova identidade. Sidanius é um nome "artificial". Brown, seu nome original, era o nome do proprietário dos escravos que "possuía" sua família, então decidiu que não iria manter esse nome. Ele queria ter o nome de Uhuru, que significa "liberdade" em suaíli, porém a Suécia não permitia nomes assim, porque o entendimento e a pronúncia eram muito difíceis para os suecos. A maneira como ele poderia legalmente mudar seu nome era passar pelo Royal Patent Office em Estocolmo e escolher um nome que fosse gerado por computador. Havia um livro gigantesco de nomes que estava disponível, e Sidanius era o nome que ele considerava menos feio. Portanto, agora existem apenas quatro Sidanius no mundo: ele próprio, seu filho, sua atual esposa e sua ex-esposa.

Na Suécia, o professor Sidanius tinha amigos americanos que estavam lá em circunstâncias semelhantes. Eles resistiram à guerra no Vietnã, ou eram ativistas dos direitos civis, ou ativistas do Black Power5 5 “Black Power was a revolutionary movement that occurred in the 1960s and 1970s. It emphasized racial pride, economic empowerment, and the creation of political and cultural institutions” (The U.S. National Archives and Records Administration, 2018). [O Black Power foi um movimento revolucionário que ocorreu nas décadas de 1960 e 1970. Enfatizou o orgulho racial, o empoderamento econômico e a criação de instituições políticas e culturais (The National Archives and Records Administration,2018).] . Havia uma pequena comunidade americana de expatriados em Estocolmo, com os quais ele costumava sair juntos algumas vezes. Ele também me contou que se socializou com os Panteras Negras6 6 Members of The Black Panther Party for Self-Defense, “founded in 1966 in Oakland, California by college students Huey P. Newton and Bobby Seale. It was a revolutionary organization with an ideology of black nationalism, socialism, and armed self-defense. (...). They provided free breakfast for school children, sickle-cell anaemia testing, legal aid, and adult education”. (The U.S. National Archives and Records Administration, 2016). [Membros do Partido Pantera Negra de Autodefesa, “fundado em 1966 em Oakland, Califórnia, pelos estudantes Huey P. Newton e Bobby Seale. Era uma organização revolucionária com uma ideologia de nacionalismo negro, socialismo e autodefesa armada. (...). Eles forneciam café da manhã gratuito para crianças em idade escolar, testes de anemia falciforme, assistência jurídica e educação de adultos” (The National Archives and Records Administration,2016).] quando morava na Argélia. Houve um período em que Eldridge Cleaver e sua esposa Kathleen Cleaver, que eram Panteras Negras, estavam na Argélia, e o professor Sidanius costumava sair com eles algumas vezes, mas ele não tinha muito a ver com eles. Ele acredita que não estavam se comportando corretamente, então o governo argelino acabou expulsando-os do país.

Depois de quatorze anos vivendo como refugiado na Suécia, o professor Sidanius retornou aos EUA para uma bolsa de pós-doutorado de dois anos na Universidade Carnegie-Mellon. Ao terminar sua bolsa, ele recebeu uma oferta de emprego da Universidade do Texas em Austin, onde trabalhou por três anos e meio. Depois, ele trabalhou na Universidade de Nova York. Anos depois, lecionou na UCLA, onde permaneceu por muitos anos. Voltar ao seu país de origem foi, até certo ponto, um alívio, porque ele estava de volta à sua cultura mãe. Percebeu o quão americano era, e conseguiu ver sua família e amigos novamente pela primeira vez em muito tempo. Mas ele percebeu que as coisas haviam mudado nos EUA. Não era um país tão racista quanto antes quando ele morava lá. Os EUA haviam diminuído seu nível de racismo, mas ainda era discernível, ainda estava lá, embora muito mais suave, observou ele. Sua experiência de ver a mesma coisa, mas diferente, o levou a escrever e desenvolver a Teoria da Dominância Social, porque, embora as coisas tivessem melhorado, as estruturas de relacionamento entre grupos étnicos nos Estados Unidos ainda eram praticamente as mesmas, com os brancos no topo e afro-americanos abaixo. A distância entre eles não era tão grande, mas os fatos, a estrutura piramidal do relacionamento ainda era a mesma, enfatizou. A discriminação legal se foi, as leis de segregação, as leis do apartheid não estavam mais em vigor, mas as pessoas ainda viviam no apartheid, mesmo que não fosse o du jour apartheid, não era a du jour opressão, mas era a opressão socialmente aceita. Nesse sentido, nada havia realmente mudado, na opinião dele. O que ele experimentou foi a mesmice da mudança. Os Estados Unidos haviam mudado, mas não havia mudado, ele disse: "Plus les choses changent, plus les choses restent les mêmes", quanto mais as coisas mudam, mais as coisas permanecem as mesmas, argumentou.

Sobre dominância social: algumas questões teóricas

AR: Um aspecto positivo da sua teoria é que você se afasta das perspectivas que patologizam o "desvio". A TDS está interessada em explicar as interconexões entre diferentes níveis de relações de grupo. A TDS fornece ferramentas teóricas para explorar atitudes dentro e entre grupos sociais, sem esquecer de explicar as diferenças individuais. Corrija-me se eu estiver errada, a escala ODS mede a orientação de um indivíduo em relação à dominância. Quais são os riscos potenciais associados a essa escala que estão sendo aplicados para patologizar as pessoas?

JS: Diferentemente da Teoria da Personalidade Autoritária, não há nenhum componente na TDS de algo ser bom ou ruim. Altos níveis de desigualdade não são mais moralmente suspeitos do que baixos níveis de desigualdade. Não é uma teoria normativa, mas uma teoria descritiva. Assim como eu não ficaria bravo com uma cascavel que me mordeu e me fez morrer, eu não diria que ela é uma cobra ruim, a cobra está simplesmente fazendo o que as cobras fazem. Não existe uma pátina moral colocada sobre esses comportamentos, não é uma teoria normativa.

AR: Mas alguém pode usar a escala para julgar alguém...

JS: Somente se eles aplicarem mal a teoria. A escala de ODS não está tentando separar pessoas “boas” de pessoas “más”, ou pessoas “iluminadas” de pessoas “não iluminadas”, é realmente importante distinguir pessoas que gostam de alta hierarquia e propõem hierarquia de pessoas que não gostam da alta hierarquia. É usada para diferenciar pessoas que desejam ver relações hierárquicas de grupo versus relações de grupo igualitárias. Entretanto, nas relações de grupo hierárquicas versus igualitárias não há implicações morais. (...) Você não pode dar às pessoas a escala de ODS e depois dizer a elas "você é uma pessoa má" ou "você está doente" ou "você é inadequado".

AR: Mas você pode dizer que a pessoa tem uma tendência alta ou baixa para dominar alguém?

JS: Não, não se trata de dominância pessoal. Temos que fazer uma distinção entre dois tipos de dominância: dominância pessoal e dominância intergrupal, se o indivíduo deseja dominar a si mesmo ou se o indivíduo deseja dominar outros indivíduos. O domínio social no nível intergrupo pode indicar que um indivíduo, como membro de um grupo social, deseja ver relacionamentos hierárquicos entre os grupos, mesmo que eles tenham sofrido pessoalmente como resultado destas hierarquias. Então, gente muito pobre, vamos pegar os apoiadores da classe trabalhadora de Donald Trump... Muitos deles apoiam Trump não porque eles pessoalmente querem progredir, mas porque acham que é melhor que pessoas boas, pessoas inteligentes tenham mais poder e recursos do que pessoas menos inteligentes. Mas não é no nível pessoal, é sobre que tipo de relações de grupo eles querem ver na sociedade. Portanto, é uma distinção importante que fazemos na TDS entre domínio interpessoal e intergrupo.

AR: Como a TDS pode explicar a cooperação, em vez de apenas explicar a concorrência?

JS: Nós somos uma espécie social. A sociabilidade é uma característica herdada geneticamente pelos seres humanos, que possui vantagens não apenas em termos de proteção de certos grupos contra outros, mas também para a caça. Um homem não pode caçar grandes animais sozinho, ele tem que caçar em grupo. A cooperação em grupo é uma prática que os humanos adotaram através da adaptação ao meio ambiente e, portanto, os humanos desenvolveram uma tendência para formar grupos cooperativos. Homens, individualmente e em grupos, se envolvem em guerra e outras formas de conflito intergrupos, para acesso a recursos econômicos (por exemplo, áreas de caça e pesca) e sociais (status social, incluindo mulheres) em um grau significativamente maior do que as mulheres. Quando as pessoas pensam em grupos externos (out-groups), os pensamentos sobre grupos externos geralmente são generificados, as pessoas pensam nos homens dos grupos externos como se eles fossem os mais perigosos e os mais ativos. As mulheres não se envolvem em empreendimentos imperialistas contra outros grupos por si mesmas.

Além disso, em comparação com as mulheres (females), os homens (males) podem otimizar sua aptidão reprodutiva ao se envolverem em conflitos intergrupos sobre recursos econômicos e simbólicos. Quanto maior o acesso dos homens aos recursos econômicos e sociais, maior será o acesso sexual a mulheres com capacidade reprodutiva e maior será a aptidão reprodutiva, ceteris paribus ["all other things being equal"]. Entre as mulheres, a aptidão reprodutiva não está tão diretamente ligada ao acesso sexual de uma pessoa a recursos econômicos e sociais, e ao subsequente aumento do acesso a parceiros com capacidade reprodutiva. A aptidão reprodutiva não depende do número de parceiros sexuais a que tenha acesso. Um ou dois parceiros geralmente são suficientes para alcançar o sucesso reprodutivo ideal. Assim, entre as mulheres, quanto mais competem fisicamente em situações perigosas por valores sociais, como poder, status e dinheiro, menos adequadas serão geralmente porque essas atividades são bastante perigosas. Para os homens, esse risco aumentado que acompanha o conflito intergrupos é simplesmente parte do custo dos negócios, altos níveis de risco, é parte do que os homens fazem para acumular poder, riqueza e status. As mulheres são mais avessas ao risco do que os homens. Os homens se envolvem em muitos comportamentos arriscados, especialmente se estiverem localizados nos degraus mais baixos da hierarquia, geralmente não é o meio de otimizar a reprodução. Assim, os homens se envolverão em roubos, assassinatos e violência entre grupos em maior grau do que as mulheres. Para os homens, o objetivo de se engajar nesses comportamentos de risco é acumular recursos sociais para que eles possam atrair parceiras.

AR: Se a discriminação étnica e o favoritismo em grupo são "meios pelos quais organismos geneticamente relacionados auxiliam na duplicação de seus genes comuns" (Sidanius & Pratto, 1999, p. 28Sidanius, J. & Pratto, F. (1999). Social dominance theory. An integration theory of social hierarchy and oppression. Cambridge, UK: Cambridge University Press.), por que os homens estupram mulheres de uma tribo ou população distante? Os “recursos complementares” (p. 28Sidanius, J. & Pratto, F. (1999). Social dominance theory. An integration theory of social hierarchy and oppression. Cambridge, UK: Cambridge University Press.) são suficientes para explicá-lo? Como você explicaria por que tantos soldados entram em guerra e não estupram nenhuma mulher?

JS: A teoria não diz que os homens tentam estuprar mulheres porque elas são geneticamente relacionadas entre si. Existem dois problemas com isso. Uma é que existe na psicologia evolucionista uma coisa chamada "aptidão inclusiva" ("inclusive fitness”), o que significa que um indivíduo se comporta de tal maneira a beneficiar as pessoas que são geneticamente relacionadas a ele. Não tentamos explicar o favoritismo em grupo com base na "aptidão inclusiva". Não achamos que a teoria seja adequada para explicar a lealdade que as pessoas demonstram para um grande número de pessoas que não são relacionadas geneticamente a elas. Existe um tipo de circuito ou mecanismo na mente humana que diz: "Vou beneficiar meus irmãos e irmãs", embora na realidade as pessoas não sejam particularmente relacionadas geneticamente, mas o indivíduo é enganado ao pensar que existe algum tipo de conexão genética entre eles e os outros por meio do uso da linguagem: território do pai, território da mãe, irmãos e irmãs. Esse tipo de comportamento contribui para o aumento da base de poder do seu grupo ao incorporar outras pessoas e trazê-las para o grupo. Os grupos se beneficiam por serem grandes e ferozes, mas não necessariamente por seguir estritamente os princípios da aptidão inclusiva. Em outras palavras, a aptidão inclusiva como mecanismo por si só não é suficiente para explicar o comportamento benéfico ou o altruísmo do grupo. Talvez as abelhas se comportem de acordo com a aptidão inclusiva, mas os humanos não parecem ser movidos por isso, pois nós sacrificaremos nossas vidas por pessoas que não estão relacionadas a nós, e a guerra é um bom exemplo disso. Concordo com você em não usar esse mecanismo de aptidão inclusiva para explicar comportamentos cooperativos além de certa margem de limite.

AR: Você argumentou que “há razões para acreditar que as pessoas nascem com diferentes 'predisposições temperamentais' e 'personalidades'”, e uma predisposição é a empatia (Sidanius & Pratto, 1999, p. 49Sidanius, J. & Pratto, F. (1999). Social dominance theory. An integration theory of social hierarchy and oppression. Cambridge, UK: Cambridge University Press.). Você poderia esclarecer o que você quer dizer com "predisposição”? Essa é uma pergunta. A outra questão relacionada a isso é: se considerarmos que uma pessoa mais empática tenderá a ser menos racista, podemos inferir que existe uma predisposição (uma semente genética?) para o racismo?

JS: Sim, acho que você poderia dizer isso. Há uma predisposição que as pessoas têm pela dominância. Algumas pessoas estão muito sintonizadas com as condições emocionais de outras pessoas e são altamente empáticas. Esse nível de empatia é provavelmente genético, algumas pessoas têm mais que outras. Isso também está relacionado às ideologias sociais e políticas das pessoas. Até certo ponto, liberais e conservadores são predispostos desde a infância a terem certos valores e atitudes políticas e sociais. Teorizamos que, em uma extensão significativa, orientação à dominância social, o desejo de formar sistemas sociais organizados hierarquicamente é, em parte, hereditário.

AR: Mas se é genético, nós não podemos mudar...

JS: Não significa isso. Sei que as pessoas são tentadas a tirar essa conclusão, mas isso não necessariamente procede. Se sabemos que somos geneticamente predispostos a não gostar de certas pessoas, podemos compensar isso estando cientes de nossos sentimentos em relação aos outros, tendo leis que proíbem a discriminação, certo? Existem normas institucionais estruturais que podem atenuar essa tendência de dominar e oprimir outros. É como o pensamento por trás da Constituição Americana e da divisão de poder. Está estruturado para que nenhum poder do governo possa dominar todo o país. Existe essa divisão de três vias entre a legislatura, o judiciário e o poder executivo. Todos são ramos de governo coiguais, e todos servem como controle contra a usurpação do poder por um ramo sobre os outros. Você pode ver o mesmo tipo de possibilidade de opressão social. Haverá pessoas que estão cientes dessa tendência de dominar outras pessoas e formarão instituições que irão suavizar ou atenuar essas tendências naturais.

AR: Eu tenho dificuldade em aceitar essa abordagem genética, não me leve a mal, mas por que as pessoas com essa tendência têm o desejo de alterá-la se for genética?

JS: Os valores são diferentes da predisposição. As pessoas podem valorizar a democracia e a igualdade como princípios, como objetivos, como alvos da vida, mesmo que não cumpram esses comportamentos na vida natural, em sua existência comum. É como ser cristão, dando a outra face quando você é atingido de um lado. Pouquíssimas pessoas conseguem atingir esse valor, mas, ao endossar o princípio, buscamos isso como um objetivo. Algumas pessoas têm esses objetivos em mente, gostariam de ser democráticas, aceitadoras e tolerantes, mas outras não. Para aquelas que têm esses objetivos, elas têm essa luta constante para manter a justiça e tratar outras pessoas com bondade e tolerância.

AR: Como podemos, como psicólogas/os, ajudar as pessoas a construir seus objetivos dessa maneira?

JS: Metas são valores básicos. Ou você tem valores de igualdade e justiça, ou não. A questão é que se você tem esses valores, como consegue atingir esses objetivos. Existem maneiras institucionais de alcançá-las, como aprovar e aplicar leis antidiscriminação, não tolerar o assédio moral nas escolas, ter cotas para grupos minoritários em posições de poder, ou para as mulheres constituírem 50% da legislatura ou instituir leis que determinem isto. Essas são formas institucionais de tentar garantir justiça e igualdade, mas sempre há uma batalha constante entre predisposições de alta hierarquia e seu exato oposto. A batalha nunca é vencida. É um constante malabarismo entre essas duas forças sociais.

Violência e Criminalidade

AR: Eu tenho que lhe dizer que o que me fascinou e me fez decidir entrar em contato com você para ser meu mentor foi a maneira como você escreveu esse belo artigo (abaixo). Espero que, no futuro, não muito tempo a partir de hoje, você dê um descanso ao trabalho empírico e escreva sobre dominância e agenciamento (um aspecto considerado pela TDS, mas pouco tocado por você), a partir de sua experiência pessoal. Sua narrativa pessoal me atesta que não há como separar uma teoria de seu criador!

Fui preso, espancado, encarcerado e processado por vários atos de insubordinação: insubordinação pelo crime de ter uma namorada branca, insubordinação pelo ato de questionar a legitimidade da minha prisão e, mais criticamente, insubordinação por me defender de ataques físicos da polícia. Ao ser instruído a "mostrar mais respeito à lei", fui claramente instruído a manter meu lugar, ou pagaria por isso. Esse evento crítico levou a uma compreensão visceral do papel que a polícia e outras autoridades armadas desempenham na manutenção da submissão e aquiescência generalizada do povo negro nos EUA. Embora tenha sido a última vez que estive pessoalmente sujeito à violência policial, testemunhei esse tipo de violência em muitas sociedades. A experiência direta e indireta da violência policial influenciou o desenvolvimento da TDS muitos anos depois. ( Sidanius & Pratto, 2012, p. 421 Sidanius, J. & Pratto, F. (2012). Social dominance theory. In P. A. Van Lange, A. W. Kruglanski, & E. T. Higgins(Orgs.), Handbook of Theories of Social Psychology (vol. 2, pp. 418-439). New York, NY: Sage. )

JS: Isso é verdade e esse foi provavelmente um evento singular na minha vida quando fui espancado e preso pela polícia sem um bom motivo.

AR: E, então, nós temos esta bonita teoria!A Teoria da Dominância Social.

JS: Então, a polícia é responsável pelo desenvolvimento da teoria.

[Risos]

AR: Você não cooperou com a polícia... Uma suposição que a TDS faz é que os subordinados cooperem com os dominantes em sua própria opressão...

JS: O grupo dominante agirá mais em seu próprio interesse do que membros de grupos subordinados. Grupos subordinados cooperarão com os dominantes. Um exemplo disso, retirado da história americana, é o tio Tom7 7 Uncle Tom is a Christian character portrayed in the book "Uncle Tom’s Cabin” (Stowe, 1889). Tom was a slave beaten to death by his master, because he refused to betray the location of the slaves who have escaped from slavery. But the expression has been used in a pejorative way to refer to a Black person who is benevolent in excess, very obedient, and respectful towards White people. An Uncle Tom kind of person has no pride at all, and s\he doesn’t stand for Black people’s right. [Tio Tom é um personagem cristão retratado no livro Tio Tom's Cabin (Stowe, 1889/1851). Tom foi um escravo espancado até a morte por seu "dono", porque se recusou a entregar a localização dos escravos que fugiram. Mas a expressão tem sido usada de maneira pejorativa para se referir a uma pessoa negra que é excessivamente benevolente, muito obediente e respeitosa para com os brancos. Um tipo de pessoa do tipo tio Tom não tem nenhum orgulho e não representa o direito dos negros.] em que os oprimidos frequentemente cooperam e colaboram com o escravo-mestre, a fim de manter outros afro-americanos nos seus lugares. Um segundo exemplo do tipo tio Tom em um contexto diferente é o comportamento dos Kapos8 8 A Kapo was a Jewish prisoner living in a concentration camp who supervised other prisoners. “They were responsible for controlling the masses of prisoners and took part in fashioning the perverse rules according to which the camp operated” (Friling, 2014, p. 32). [Um kapo era um prisioneiro judeu que vivia em um campo de concentração que supervisionava outros prisioneiros. “Eles foram responsáveis pelo controle das massas de prisioneiros e participaram da elaboração das regras perversas segundo as quais o campo operava” (Friling, 2014, p.32).] nos campos de concentração da Alemanha. Basicamente, o que a teoria diz é que você realmente não pode ter uma hierarquia estável, que não é possível, a menos que os subordinados cooperem até certo ponto. Isso não significa, como na teoria da justificação de sistemas, que os subordinados endossam o sistema em maior grau que os dominantes, mas eles o endossam o suficiente para que se deem bem com seus opressores. Sem isto você não consegue ter sistemas estáveis de hierarquia. Outro exemplo de assimetria de comportamento está nos cuidados de saúde. As pessoas pobres usam mais álcool, comem mais junk food, têm estilos de vida pouco saudáveis com mais frequência...

AR: Minha teoria é que isso é cultural e um problema econômico. As pessoas pobres, por exemplo, comem mais junk food porque é mais barato. Minha experiência nos EUA como imigrante em termos de hábitos alimentares me diz algo interessante. No Brasil, eu tendo a comer alimentos orgânicos e aqui não posso me dar ao luxo de comer de forma saudável o tempo todo. Existem outros fatores que interferem nos comportamentos, como fatores culturais e econômicos, por exemplo.

JS: Mas mesmo além da dieta, que é parcialmente explicada pelo fato de que alimentos mais saudáveis geralmente são mais caros, são comportamentos arriscados, como fumar e usar drogas, praticados a taxas mais altas entre subordinados do que entre dominantes. Se você ler a lista de comportamentos de autoagressão, [verá que] os membros de grupos subordinados são mais propensos a adotarem estes tipos de comportamentos do que membros de grupos dominantes. Vamos usar a televisão nos estudos escolares [como exemplo]. Pessoas pobres, famílias pobres, crianças pobres passam mais tempo assistindo televisão do que crianças mais ricas e menos tempo fazendo lição de casa do que crianças mais ricas. Em quase todos os domínios, você vê que membros de grupos subordinados se envolvem em comportamentos de autoagressão em maior grau que os grupos dominantes. Outro exemplo é o comportamento criminoso e o homicídio. A razão mais prevalente pela qual homens jovens que são membros de grupos subordinados são mortos é por causa da violência nas mãos de outros homens pobres. As taxas de homicídios são mais altas entre homens pobres do que entre homens ricos. Existem esses comportamentos cooperativos entre grupos subordinados... Esses são exemplos do que chamamos de assimetria comportamental.

AR: Mas você não acha que as forças econômicas e históricas desempenham um papel mais forte nisso? Mesmo no caso da televisão, porque é difícil para as pessoas pobres pagar outras atividades para seus filhos. Eles estão em casa porque na maioria das vezes os pais trabalham muito longe de seus domicílios e demoram mais para voltar para casa e ficar com seus filhos. Como eles podem pagar, por exemplo, aulas de balé, cursos de idiomas - atividades extracurriculares que as famílias ricas costumam oferecer aos filhos?

JS: Não há dúvida de que as pessoas são cerceadas do modo que você mencionou, por causa dos motivos que você fornece [aqui]. Isso não significa que as pessoas pobres estejam completamente sem agência, que não tenham controle sobre suas próprias vidas. Na medida em que elas têm agência, elas frequentemente a usam para se envolver em comportamentos autodestrutivos.

AR: Mas veja o caso da Holanda, por exemplo. Eles fecharam a última prisão lá devido à falta de prisioneiros. Eles têm um ambiente econômico muito bom. Não há comportamento criminoso ou, pelo menos, as taxas de criminalidade são muito baixas.

JS: Vamos tomar as taxas de encarceramento [como exemplo]. Parte disso se deve à discriminação, mas parte se deve aos níveis mais altos de criminalidade entre os pobres, certo? Não é apenas o fato de serem discriminados, de estarem hiper-representados no sistema criminal. Eles também se envolvem em níveis mais altos de comportamentos criminosos, mas esses níveis mais altos não são completamente exógenos, eles são devido ao fato de que suas vidas são muito mais difíceis. Existe esse mecanismo de feedback constante operando entre comportamento pessoal, situações de discriminação e escassez, e essas forças se alimentam umas das outras e elas se tornam um ciclo de autorreforço. É importante ter em mente que os níveis mais altos de criminalidade entre os pobres não são exógenos, são comportamentos endógenos. Dedico-me a tentar entender os mecanismos e as relações entre eles que atuam para manter o sistema. No nível meta, eu argumento que há uma interação ou feedback entre pelo menos três níveis: níveis do sistema, comportamentos organizacionais e comportamentos dos indivíduos, e como eles se alimentam um do outro.

AR: Às vezes, você me parece tão negativo, sabe, como se não tivesse esperança na humanidade, que não seremos capazes de mudar esse cenário.

JS: É só porque eu tenho prestado atenção à leitura da história e prestando atenção à história me dá essa orientação. Então, quero dizer, de muitas maneiras, o fascismo emergente na Europa Ocidental e Oriental é um exemplo de história retornando e apenas mudando de forma, mas ainda não está indo embora.

AR: Às vezes, a vida pode ser melhor para algumas pessoas, mas para outras parece que nunca será melhor... [pausa na reflexão]

Destaques epistemológicos: algumas reflexões sobre relações de gênero e feminismo9 9 To learn more on how the SDT understand gender, see Sidanius, Hudson, Davis, and Bergh (2018). [Para conhecer mais sobre como a TDS entende gênero, consulte Sidanius, Hudson, Davis e Bergh (2018).]

AR: Em uma entrevista no Chile (Carvacho, 2015Carvacho, H. (2015, September 28). Entrevista com Jim Sidanius (YouTube). Chile: Centro de Estudios Interculturales e Indígenas. Retrieved from https://www.youtube.com/watch?v=p55TKR6tIyo
https://www.youtube.com/watch?v=p55TKR6t...
), você disse: “Se você está interessado em progredir nas ciências sociais, é realmente extremamente importante que você tente não permitir que seus próprios desejos de mudança social ou igualdade social” interfiram na pesquisa. Mas quando o/a pesquisador/a coloca as perguntas e as afirmativas, e não o/a participante em si, quero dizer, quando o/a participante preenche a escala ODS, a qual foi construída pelo/a próprio/a pesquisador/a, as possibilidades de controlar o viés não são maiores do que se fosse o/a participante que fizesse as perguntas que ele/a acha importantes? Quero dizer, uma vez que criamos as perguntas, já não estamos colocando nosso viés nisso?

JS: Isso é verdade. Nunca conseguimos ser absolutamente imparciais ou neutros. O tipo de perguntas que você faz acerca do mundo designa quem você é, [designa] uma orientação específica. Entretanto, novamente, o ideal é tentar fazer perguntas o mais neutro possível, interpretar os dados da maneira mais neutra possível, para que suas predisposições e preconceitos políticos não afetem o tipo de trabalho que você faz. Esse é o objetivo. Não é absolutamente viável, mas algo pelo qual você deve se esforçar. É por isso que, como analista, tento não me envolver em ativismo político, nem de direita nem de esquerda. Porque se eu me comprometer com uma posição política específica, terei uma predisposição para interpretar minha compreensão do mundo em termos compatíveis com minhas posições políticas a priori. Quero que meu pensamento científico se divorcie o máximo possível do que gostaria de ver. Mas isso é uma meta, não é completamente viável. Esta é a minha opinião pessoal, e nem todos concordam com isso. Contudo, não acho que seja possível ser ativista e um bom cientista social ao mesmo tempo. Eu acho que esses objetivos funcionam com propósitos diferentes. Por exemplo, vamos considerar a questão da igualdade de gênero ou do igualitarismo de gênero. Se você está envolvida ativamente em movimentos políticos para se livrar de todas as diferenças possíveis na maneira como homens e mulheres são tratados e no tipo de emprego que têm, então seu objetivo político de eliminar qualquer diferença de ocupação é construído com base na suposição de que homens e mulheres são iguais. Caso contrário, não faria muito sentido esperar que homens e mulheres tivessem os mesmos comportamentos se fossem inerentemente diferentes. Mas, ao propor essa posição política, você está assumindo que não há diferenças entre homens e mulheres. Esse é um exemplo do que quero dizer com compromissos políticos anteriores que restringem os tipos de perguntas que você faria ou as soluções que encontraria. É por isso que é importante não se comprometer demais com uma política específica.

AR: Bem, do meu ponto de vista, elas são muito necessárias... E o feminismo, todas as mudanças que as feministas propuseram na sociedade?

JS: Depende do que você quer dizer com feminismo e como você interpreta isso. Se você quer dizer que o feminismo não coloca nenhuma barreira artificial na maneira como homens e mulheres fazem o que gostariam de fazer, aceitando o emprego que gostariam de ter, então não tenho problema com isso. Mas se por feminismo... você quer dizer que os homens, por exemplo, não teriam permissão para mostrar interesse sexual por mulheres no local de trabalho porque isso seria considerado um trabalho hostil, então eu poderia ter um problema com uma perspectiva feminista. Por exemplo, se um homem fizesse um comentário a uma mulher sobre como ela estava bonita ou que usava um belo vestido, isso seria considerado opressivo por muitas feministas e exigiria que os homens fossem contra algo que são predispostos a fazer, que é o interesse sexual por mulheres. Temos que tentar entender primeiro o que são homens e mulheres, antes de fazer leis e legislar comportamentos entre os dois sexos. Rejeito o tipo de feminismo que assume que não há diferença entre homens e mulheres, porque acho que há diferenças. Isso não significa que os homens devam ser tratados melhor do que as mulheres, apenas que os sexos são diferentes, têm objetivos diferentes, qualidades de predisposições comportamentais ligeiramente diferentes.

AR: Como você sabe, eu estudo relações de gênero há muito tempo a partir de uma perspectiva crítica da psicologia social, baseando muitas das minhas perguntas de pesquisa na Teoria das Representações Sociais. Com algumas exceções, essa teoria não coloca as relações de violência e poder em seu centro de análise. Duas das razões pelas quais decidi vir à Harvard e ser orientada por você foram: (a) sua teoria social está muito preocupada com questões relacionadas à violência e à dominância e (b) você escreveu que a teoria dos mitos da legitimação (ML) 10 10 LMs are defined “as values, attitudes, beliefs, casual attributions, and ideologies that provide moral and intellectual justification for social practices that either increase, maintain, or decrease levels of social inequality among social groups” (Sidanius & Pratto, 1999, p.104). [ML são definidos "como valores, atitudes, crenças, atribuições casuais e ideologias que fornecem justificativa moral e intelectual para práticas sociais que aumentam, mantêm ou diminuem os níveis de desigualdade social entre grupos sociais" (Sidanius & Pratto, 1999, p. 104).] - um aspecto teórico da TDS - deve muito à noção de Moscovici de “representações sociais” (Sidanius & Pratto, 1999, p. 45Sidanius, J. & Pratto, F. (1999). Social dominance theory. An integration theory of social hierarchy and oppression. Cambridge, UK: Cambridge University Press.), entre outras. Como a noção de representação social se assemelha à “teoria dos mitos legitimadores” e em que aspectos elas diferem?

JS: Bem, as duas perspectivas são semelhantes. Elas falam sobre o Weltanschauung, o conjunto geral de suposições que as pessoas fazem ao negociar com a vida social e com o mundo em geral. Elas são os prismas por meio dos quais você enxerga para tentar interpretar a natureza da realidade social oculta e para entender o mundo social. Estou interessado na ideologia como uma ferramenta usada pelos sistemas sociais para criar e manter a ordem hierárquica social, e os mitos e ideologias que as pessoas desenvolvem precisam ser consistentes com esse tipo de batalha de puxa-empurra (push-pull), RH [Realçamento da Hierarquia] vs. AH [Atenuação da Hierarquia] 11 11 HE LMs are discourses or practices that can enhance social hierarchy by justifying it or reinforcing it. HA LMs can reduce social hierarchy by delegitimizing the HE LMs. [Os ML RH são discursos ou práticas que podem acentuar a hierarquia social, justificando-a ou reforçando-a. Os MLAH podem reduzir a hierarquia social, deslegitimando os ML RH.] , batalha que está acontecendo o tempo todo. Nesse sentido, é diferente. Há sempre essa dinâmica acontecendo na sociedade, tanto nas sociedades avançadas como nas sociedades abertas, entre esses dois conjuntos de forças. Nas sociedades tradicionais, nas pequenas tribos, não há o mesmo grau de tensão entre as duas forças da alma humana, porque há pouquíssima mudança nos conjuntos de relacionamentos entre jovens e idosos, pessoas de seu grupo ou fora de seu grupo, entre homens e mulheres, existe um tipo de relação estática entre todas essas forças. Em nossa sociedade, agora que as pessoas são bombardeadas com diferentes perspectivas, ideias diferentes, ideologias diferentes, esse tipo de dualidade yin-yang, empurra-puxa (push-pull), RH vs. AH é mais evidente.

AR: Você disse que o feminismo é um mito legitimador que atenua a hierarquia, mas não o tempo todo, em todas as situações.

JS: Vamos colocar desta forma. O conteúdo de uma ideologia não tem uma função social absoluta. Como exemplo, temos o icônico discurso de Martin Luther King "Eu tenho um sonho...," o discurso sobre pessoas sendo julgadas pelo conteúdo de seu caráter e não pela cor de sua pele. Essa ideologia às vezes pode ser usada de maneira a atenuar a hierarquia, mesmo que tenha sido projetada para servir de atenuação da hierarquia. Isto depende do contexto social e das circunstâncias nas quais a ideologia está sendo convocada. A TDS é realmente sensível ao contexto. Agora, por exemplo, a crença no color-blind12 12 Verbatim, in the context of the Humanities and Social Sciences, this expression means “color blind” [of someone]. Usually, the expression comes along with the word racism, designating, in this case, the denial of racism, that is, a color-blind person does not understand social inequities by means of racism, but by ideological arguments, such as “The reasons he did not get the job have nothing to do with his color or race. It is because he didn’t work hard enough at school”. [Literalmente, no contexto das Ciências Sociais e Humanas, esta expressão significa “cego à cor” [de alguém]. Usualmente, a expressão vem acompanhada da palavra racismo, designando, nesse caso, a negação do racismo, isto é, uma pessoa color-blind não entende as inequidades sociais pela via do racismo, mas por meio de argumentos ideológicos, como “As razões pelas quais ele não conseguiu o trabalho não têm nada a ver com sua cor de pele ou raça. É porque ele não se esforçou suficientemente na escola”.] é usada por muitos conservadores para impedir o progresso da igualdade racial nos Estados Unidos - quando as pessoas se declaram color-blind e não sensíveis às diferenças raciais entre os grupos com o objetivo de manter a ordem hierárquica entre esses grupos.

AR: Eu custo para aceitar o argumento em sua teoria que diz que as mulheres buscam os melhores homens para reprodução...

JS: Os homens buscam os comportamentos mais reprodutivos e as mulheres buscam os comportamentos reprodutivos mais bem-sucedidos, no entanto, as coisas que homens e mulheres fazem para maximizar a aptidão reprodutiva são ligeiramente diferentes. Os homens têm uma orientação quantitativa. Acho que todas vocês percebem a essa altura de suas vidas que os homens estão muito dispostos a ter contato sexual aleatório. As mulheres não gostam tanto desse tipo de sexualidade. E por que os homens teriam essa orientação sexual promíscua? Bem, é um benefício reprodutivo fazer isso. Por que as mulheres não podiam fazer isso? Por que as mulheres gostariam de ter um comportamento sexual mais restrito do que os homens comuns? É muito arriscado. As mulheres podem ter relativamente poucos filhos em suas vidas, talvez 20 seja o máximo. Os homens podem ter um número ilimitado de filhos. Eu posso trazer o exemplo de Genghis Khan. Supõe-se que ele tenha seis mil mulheres em seu harém. É postulado, e temos algumas evidências sugerindo que ele foi pai de cerca de 10% da população mundial. Se ele fosse um pobre ninguém, um mendigo na rua, não teria tido tantos filhos que sobreviveram. Esse é um exemplo muito bom de como o poder influencia o número de sobrevivência da prole. Qual é o sentido de ter poder ou status? A teoria da evolução sugere que é para otimizar o condicionamento físico e que o poder e o status são otimizadores de condicionamentos diferenciados que dependem do sexo da pessoa.

AR: Penso que é uma construção cultural, e não uma predisposição natural para os homens terem tantas mulheres. Sabemos muito pouco sobre sexualidade. Não sabemos, por exemplo, quantos homens no mundo não fazem sexo ou não querem fazer sexo, ou quantas mulheres realmente são loucas por sexo. Porque sexo é tabu! As pessoas não falam sobre isso. Parece-me que quando usamos esse tipo de argumento, generalizamos que todos os homens ou a maioria dos homens estão ansiosos por sexo e as mulheres não, que as mulheres só querem ter filhos.

JS: Lembre-se do que eu disse. Essas declarações sobre mulheres, “mulheres são assim”, “homens são assim”... elas não são cem por cento precisas. São tendências, propensões, correlações. Olhe em direção às poucas diferenças entre homens e mulheres relacionadas à gravidez e ao parto, quase todas as diferenças psicológicas entre homens e mulheres são probabilísticas e não absolutas.

AR: Talvez a cultura esteja construindo os homens para serem fisicamente mais fortes... eu não sei. Eu realmente gosto da sua teoria sobre dominância social, faz sentido para mim, é por isso que vim aqui [para a Universidade de Harvard], mas ainda não consigo me conectar com essa parte da teoria... Vamos considerar o caso da orientação sexual. A orientação sexual não é citada entre os grupos de sistemas arbitrários listados por você (Pratto, Sidanius, & Levin, 2006, p. 273; Sidanius& Pratto, 2012, p.33Sidanius, J. & Pratto, F. (2012). Social dominance theory. In P. A. Van Lange, A. W. Kruglanski, & E. T. Higgins(Orgs.), Handbook of Theories of Social Psychology (vol. 2, pp. 418-439). New York, NY: Sage.). Onde a orientação sexual se insere na TDS?

JS: Essa é realmente uma pergunta muito boa, e a resposta é realmente desconhecida. Sabemos que uma certa proporção de cada geração é homossexual, cerca de 10% de qualquer população é gay. E o número de homens gays tende a ser maior que o número de mulheres gays.

AR: Você quer dizer “identificadas como”...

JS: Sim, sobre isso nós podemos ter provas, ok? A primeira pergunta é por que existem mais homens gays do que mulheres gays? Segundo, qual é a função de ser gay em primeiro lugar? Como é que o indivíduo se beneficia por não ter filhos? Não temos boas respostas para isso. Adriane, não é o caso de que essa teoria tenha respostas para tudo. Há várias áreas em que ainda estamos lutando para tentar entender, e uma das coisas que estamos nos esforçando para entender é a homossexualidade.

AR: Eu entendo... é uma questão epistemológica... talvez haja mais lésbicas do que as estatísticas indicam. Na nossa cultura as lésbicas costumam ser mais discriminadas do que homens gays. [Pausa] Na mesma entrevista [eu mencionei antes], você disse que perdeu amigos por muitos anos com essa teoria que “desenvolveu para adotar uma perspectiva evolucionária que é tão impopular à esquerda” (sic). O diálogo entre a direita e a esquerda nem sempre é fácil, eu concordo com você. Podemos dizer o mesmo sobre diferentes epistemologias da psicologia. Embora eu veja sua teoria como uma perspectiva crítica, como a Teoria das Representações Sociais (TRS), diferentemente da Teoria das Representações Sociais, considero que você baseia seus projetos de pesquisa em uma epistemologia positivista. Você acha que psicólogos/as sociais com perspectivas diferentes podem construir projetos de pesquisa juntos/as? Se sim, que sugestões você poderia fazer nessa direção?

JS: Não acho que seja fácil ter cientistas sociais trabalhando juntos, com diferentes epistemologias. É muito difícil de fazer. Primeiro de tudo, porque eles não concordam com o que constitui evidência. A menos que você chegue a um acordo sobre o que constitui uma evidência aceitável, vocês não poderão formular as mesmas perguntas juntos e obter resultados significativos. Penso que a pesquisa qualitativa é útil para colocar certas questões ao mundo, mas não é muito útil em termos de pesquisas que confirmam hipóteses, embora seja muito útil em termos de geração de hipóteses. Um bom exemplo disso é o trabalho de Sigmund Freud. Ele apresentou teorias elaboradas com base em suas interações com seus pacientes. Ele nunca quis realizar experimentos, e não estava trabalhando dentro de uma estrutura positivista, mas produziu algumas ideias muito ricas e férteis, apenas intuindo-as. O mesmo aconteceu com Darwin, que desenvolveu a perspectiva evolucionária no desenvolvimento animal, mas nunca tentou experimentos, não realizou nenhuma análise estatística, no entanto, desenvolveu uma ideia que é uma das descobertas científicas mais profundas de nossa época, que é a teoria da evolução por seleção natural. Um erro que é muito comum quando as pessoas pensam na Psicologia Evolutiva... é que esses comportamentos [sexuais] foram adaptados ao ambiente de forma evolutiva para a sociedade caçadora-coletora, pois vivíamos em pequenas tropas, não em sistemas ou estados de clãs, sistemas. Esta é uma psicologia de pequeno bando (troop), não é necessariamente adaptada à era moderna, a computadores, a pílulas anticoncepcionais e a muitos recursos. Isto é realmente baseado em pequenos grupos de indivíduos que vivem em pequenos bandos. Esse é o tipo de ambiente ao qual essa psicologia foi adaptada, não adaptada ao mundo moderno. Se vivermos em um mundo moderno por tempo suficiente, algumas centenas de milhares de anos, poderemos desenvolver psicologias diferentes, se sobrevivermos por tempo suficiente. Mas nossa psicologia é projetada para operar em grupos muito menores do que temos agora.

AR: Sim... nós temos diferentes epistemologias...

JS: Você e eu? Sim, nós temos...

AR: Mas ainda assim nós estamos trabalhando juntos...

JS: Uma das coisas que pensei que seria bom [para você] é tornar-se multilíngue ou multiparadigmática, para que você possa trabalhar com a análise qualitativa quando for útil e ser treinada para trabalhar com metodologias positivistas, e alternar entre as opções dependendo das questões científicas que você está interessada em explorar. Então assim, até onde eu posso ver, é o seu desafio, aprender o máximo possível sobre como os positivistas fazem o trabalho deles e tirar o que é útil do positivismo para seus próprios propósitos.

AR: Eu concordo com você. Até para entender melhor as perguntas que faço e criticá-las... porque às vezes criticamos o positivismo sem conhecê-lo muito bem. Tem sido um verdadeiro desafio para mim estar aqui.

Mudanças na Sociedade e o “Futuro” das Hierarquias

AR: Estamos testemunhando uma mudança dramática nas relações entre pais e filhos em relação à autoridade. Alguns psicólogos e educadores têm alertado sobre uma "inversão de papéis", onde a criança domina os pais. Existe um ótimo artigo do psicanalista brasileiro Mario Rossi Monti (2008Monti, M. R. (2008). Contrato narcisista e clínica do vazio. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 11(2), 239-253. Retrieved from https://dx.doi.org/10.1590/S1415-47142008000200006
https://dx.doi.org/10.1590/S1415-4714200...
), intitulado “Contrato narcísico e a clínica do vazio”, no qual ele argumenta que nas sociedades ocidentais as crianças realmente se tornaram "[Sua] Majestade, o bebê”. No seu modelo social, a TDS, você tenta identificar os vários mecanismos que produzem e mantêm algumas hierarquias sociais baseadas em grupos. Essas hierarquias consistem em sistemas de estratificação inter-relacionados: um sistema geracional, um sistema de gênero e um sistema de conjunto arbitrário13 13 On the arbitrary-set system, see Sidanius and Venigas (2000). [Sobre o sistema de conjunto-arbitrário, consulte Sidanius e Venigas (2000).] . Como esses sistemas estão interconectados na produção de "[Sua] Majestade, o Bebê"?

JS: Essa é uma pergunta interessante. Eu realmente nunca pensei sobre isso. Eu não conseguiria responder a essa pergunta interessante porque não pensei nisso. Não é óbvio para mim o que a teoria da dominância social teria a dizer sobre isso, porque dentro do meu modelo as crianças são desprovidas de direitos antes de atingirem a adolescência ou a maioridade. Em muitos países, existem cerimônias que separam o status da criança da maturidade, do status adulto. No judaísmo, é o Bar-mitzvá. Em muitas culturas africanas, é um ritual de circuncisão. Mas, da perspectiva da dominância social, as crianças são realmente tratadas como menos valiosas em algum sentido e, certamente, para não tomarem decisões importantes por serem crianças. É uma maneira muito tradicional de encarar a infância e a idade adulta. A diferença entre o sistema arbitrário e o de gênero é que, no sistema geracional, se alguém vive o suficiente, desempenhará todos os papéis na hierarquia.

AR: No Brasil, os católicos ainda são a maioria, mas [...] muitas famílias não comemoram mais a Primeira [Santa] Comunhão... e hoje é difícil educar os adolescentes, porque não há fronteiras entre pais e filhos. Nunca é fácil, mas com as novas tecnologias está se tornando mais difícil.

JS: A identidade sexual também está se tornando muito complicada. Os jovens geralmente não querem ser referidos pelos pronomes ele ou ela, mas querem ser referidos pelo plural eles ou nós. Essa falha na comunicação dificulta um pouco a interação das pessoas da minha geração com a nova geração e com suas ideias de identidade.

AR: Voltando a Genghis Khan... Você mencionou em outro momento que, se Genghis Khan fosse um homem pobre, ele não teria tantos filhos sobreviventes [...] O que acontecerá se nos tornarmos uma sociedade em que as mulheres ganhem mais dinheiro e tenham melhores empregos do que os homens? Algo que estamos testemunhando…

JS: No mundo pós-industrial... Isso está acontecendo. A Psicologia Evolucionista assume que homens e mulheres estão igualmente interessados em produzir filhos que sobrevivam à próxima geração. A diferença entre eles é que eles fazem isso de maneiras ligeiramente diferentes. Para as mulheres, é importante selecionar o homem de alto status e alto aprovisionamento, para que ela possa cuidar de seus filhos: alimentá-los, vesti-los, abrigá-los, alojá-los, dar-lhes medicamentos e fornecer-lhes acesso aos recursos necessários para que os filhos sobrevivam até atingirem a idade adulta reprodutiva. Ela concentrará seus esforços em...

AR: Mas isso não acontece porque fomos educadas desde pequenas para acreditar nisso? Em vez de pensar que isso é genético, não pode ser algo cultural?

JS: O erro que você está cometendo é definir essa distinção entre cultura e herança, ou genética e cultura. Elas estão entrelaçadas uma na outra. Você não pode separá-las uma da outra. Você precisa falar sobre elas como um todo interativo. Por exemplo, se você pegar algo como afro-americanos no norte. Por que os afro-americanos dominam nos esportes, certos tipos de esportes, como futebol ou basquete? Eles constituem 85 a 95% dos jogadores profissionais de basquete. Argumentamos que este é um produto genético e cultural interligado. Não é puramente genético, nem puramente cultural.

AR: Parece-me que a genética é mais poderosa que a cultura, de acordo com a TDS...

JS: Isso seria um erro também. São distinções igualmente importantes. Para finalizar meu exemplo, uma das razões pelas quais existe essa diferença entre atletas brancos e negros tem a ver com a instituição cultural da escravidão e a Passagem do Meio14 14 Forced voyage, by the Atlantic Ocean to the New World, of Africans who were enslaved by the Europeans. [Translado forçado, pelo oceano atlântico ao Novo Mundo, de africanos que foram escravizados pelos europeus.] da África Ocidental ao Novo Mundo: América do Sul e América do Norte. A taxa de mortalidade de pessoas durante essa transição para o novo mundo foi horrível. Entre 33 e 55% das pessoas morreram na Passagem do Meio. E as pessoas que não tinham resistência a doenças europeias, como a sífilis, morreram, bem como as que apresentavam níveis muito altos de estresse. Portanto, o grupo de pessoas que ancorou e desembarcou no Brasil não era uma amostra representativa das pessoas que estavam a bordo do navio negreiro na África Ocidental. As pessoas que sobreviveram foram as maiores e as mais saudáveis. Então, isso é genética ou é cultura? São os dois, porque a escravidão é uma instituição cultural que produziu efeitos genéticos, e esses efeitos genéticos tiveram um efeito sobre a cultura novamente. Porque, dado o fato de os afro-americanos serem tão bons no basquete, as pessoas culturalmente esperam que sejam bons em certos tipos de esportes, o que reforça o estereótipo de que os negros são bons em esportes. Há um ciclo constante de feedback entre genética e cultura. O próprio esporte é um produto genético-cultural.

Os meios de comunicação… Política (brasileira)… e direções futuras de pesquisa

AR: Acredito que, ao produzir cultura e reproduzir o racismo, a mídia tem uma função importante. Você abriu o primeiro capítulo do livro TDS com uma citação do New York Times. Que eu saiba, você não tem nenhum trabalho focado na mídia. Por quê? Como você entende a função da mídia no reforço da dominância social, racismo e discriminação de gênero?

JS: Não tivemos tempo de analisar a mídia na época. Fizemos alusões leves a ela. Na segunda edição do livro, provavelmente dedicarei um pouco mais de tempo na mídia, mas minha posição sobre os efeitos da mídia na opressão é provavelmente muito semelhante à perspectiva marxista da produção cultural. A mídia é um instrumento para reforçar a ideologia da dominação, fazer lavagem cerebral, se você quiser, ou inculcar a noção de que as pessoas no topo merecem estar no topo, e as pessoas na base merecem estar na base. A mídia é um canal através do qual essas mensagens são transferidas, mas a mídia não é monolítica. Há também uma mídia de esquerda que critica e questiona as suposições da mídia de direita. Há o Fox News, por um lado, e o MSNBC [fornece a cobertura da NBC News], por outro, constantemente lutando entre si. Existem inúmeros discursos que afetam a dinâmica desses relacionamentos yin-yang, RH vs. AH. Eu gostaria de enfatizar que a Teoria da Dominância Social está, ou deveria estar, prestando muito mais atenção à interação dinâmica entre as forças RH vs. AH. Não é estática, pelo menos nas sociedades modernas.

AR: Há muito tempo que me interesso pela mídia. Meus estudos têm mostrado que a mídia é uma fonte poderosa que muda a maneira como as pessoas pensam. Para a imprensa brasileira, posso dizer que elas criam seu conteúdo de notícias basicamente de duas fontes: BBC e Reuters, e pequenas fontes de mídia copiam o conteúdo das megafontes de mídia brasileiras. Isso significa que o que as pessoas pensam sobre o novo contraceptivo masculino (o objeto do meu estudo na Harvard University veio dessas duas fontes). É assustador, porque o que pensamos sobre isso é baseado no que elas pensam sobre isso.

JS: Sim, é por isso que muitos governos tentam ter controle sobre a mídia, para que as pessoas não sejam influenciadas por potências estrangeiras.

AR: Você está pesquisando atitudes e comportamentos em um número impressionante de países. Você não desenvolveu nenhum estudo com a população brasileira. Até onde me lembro, o único autor brasileiro que você cita no livro TDS é Salvador Sandoval (1991) (Sidanius &Pratto, 1999, p. 186Sidanius, J. & Pratto, F. (1999). Social dominance theory. An integration theory of social hierarchy and oppression. Cambridge, UK: Cambridge University Press.), cientista político, para exemplificar o “rastreamento diferencial” (p.186Sidanius, J. & Pratto, F. (1999). Social dominance theory. An integration theory of social hierarchy and oppression. Cambridge, UK: Cambridge University Press.). Por que você ainda não desenvolveu nenhuma pesquisa no Brasil em colaboração com pesquisadores brasileiros?

JS: Apenas por razões práticas. Usei muitos recursos para citar pessoas, como Fry e outras no caso brasileiro. Mas agora tenho um projeto que utilizará, a longo prazo, dados brasileiros. Estou olhando para a identidade étnica, racial e nacional na América Latina. Começaremos com três países: República Dominicana e Colômbia, e os compararemos com os Estados Unidos. Este é simplesmente um estudo piloto. Se formos financiados, teremos um estudo muito maior nos 33 países da América Latina, incluindo o Brasil. Então, está chegando!

AR: Como você sabe, um candidato de extrema direita e "ex-capitão do exército que elogiou a ditadura do Brasil de 1964-1985 e prometeu uma repressão brutal ao crime e à corrupção" (CNBC, 2018CNBC (2018, Oct. 7). Brazil right-wing presidential candidate wins vote but runoff likely. Reuters, 8:57 PM EDT. Retrieved from https://www.nbcnews.com/news/world/brazil-right-wing-presidential-candidate-wins-vote-runoff-likely-n917611
https://www.nbcnews.com/news/world/brazi...
) venceu a eleição. O presidente foi comparado ao presidente dos EUA, Donald Trump, e às vezes considerado pior que ele. Segundo o Times, “Ele tem uma longa história de invectivas contra gays, minorias raciais e mulheres” (Sandy, 2018Sandy, M. (2018, Aug.23). Jair Bolsonaro Loves Trump, Hates Gay People and Admires Autocrats. He Could Be Brazil's Next President. Time, World Brazil. Brasilia. Retrieved from http://time.com/5375731/jair-bolsonaro/
http://time.com/5375731/jair-bolsonaro/...
). Como a TDS poderia ajudar os cientistas sociais a entender a aquiescência de grande parte da população mundial a candidatos que têm um discurso contra minorias, incluindo minorias sexuais (como no Brasil) e imigrantes (nos EUA e em alguns países europeus)?

JS: A resposta para isso é que argumentaremos que sempre há uma proporção constante e determinada da população orientada para a dominância social, com altas pontuações usando a escala ODS e outros tipos similares de instrumentos. O potencial está sempre lá. É uma questão de saber se essas forças são ou não expressas nos discursos e políticas públicas. Você pode pensar no período final da Segunda Guerra Mundial e na derrota do fascismo como um período de insurgência liberal de esquerda, mas agora essa insurgência de esquerda está sendo equilibrada e superada por esses realçadores da hierarquia, tendências que estavam sempre lá. Faz parte da característica constante da psicologia política humana. A questão é o que a ativa.

Considerações finais

Aqui, apresentei o professor Sidanius à comunidade brasileira de psicologia social e também compartilhei com o/a leitor/a meus pensamentos e dúvidas sobre alguns aspectos da TDS. A entrevista não captura completamente o fascínio que o professor Sidanius instiga em quem o conhece. Eu realmente acredito que encontrei uma figura "clássica" na psicologia social que deve se tornar parte do "corredor da fama" em nosso campo.

Como sou resistente à abordagem da psicologia evolutiva devido aos frequentes usos incorretos dela (por exemplo, variações e desconsideração da transferência e absorção cultural, que visam a generalizações, propósitos eugênicos, distorção observacional, falta de uma perspectiva crítica de gênero), tive que me desafiar para construir perguntas que pudessem mostrar a riqueza dos pensamentos e do trabalho do professor Sidanius sem impor minhas representações da teoria e dos teóricos. Por muitos anos, ouvi dizer que o/a psicólogo/a social convencional americano/a não se dá bem profissionalmente com "construcionistas" ou psicólogos/as sócio-históricos/as e vice-versa. Se esse argumento é realmente correto, estamos rompendo com uma suposição epistemológica fundamental de uma psicologia social crítica, ou seja, erode sua abordagem relacional e dialógica.

Acredito que podemos e devemos aprender com (e respeitar) as perspectivas uns/umas dos/as outros/as, e minha nova relação com o professor Sidanius prova que isso é possível. Embora não concordemos com tudo, não gostamos de todas as suposições teóricas feitas um pelo outro, não devemos esquecer que, nas ciências sociais, devemos estar realmente comprometidas/os em continuar conversando, devemos continuar perguntando, e isso exige abertura, flexibilidade e, acima de tudo, humildade. Não tenho certeza se vou conseguir (ou se desejo) me tornar multilíngue ou multiparadigmática em psicologia social, como o professor Sidanius espera de mim, mas sei que precisamos respeitar os diferentes paradigmas, para apreciar o que eles têm a oferecer e reconhecer as limitações de cada um deles. Caso contrário, estaríamos reforçando uma posição de dominação e uma maneira unívoca de pensar e se envolver com a psicologia social. E isto não seria psicologia social crítica.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    29 Maio 2019
  • Aceito
    23 Nov 2019
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