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Psicologia social, saber, comunidade e cultura

Social psychology: knowledge, community and culture

Resumos

Este trabalho apresenta uma reflexão sobre as relações entre saber, comunidade e cultura desde uma perspectiva psicossocial. Eu parto do conceito de representação e discuto a relação fundamental entre processo representacional e contexto, entendido como o lugar histórico, social, simbólico e cultural de uma comunidade humana. Entender o processo representacional é importante porque ele ocupa um lugar central no processo de constituição dos saberes: não há saber que não deseje representar. Ao mesmo tempo, a análise da forma representacional enquanto estrutura dialógica permite a elucidação das relações sócio-culturais que se encontram na base da formação dos saberes. A forma da representação é tanto forma do saber como forma de constituição de um contexto sócio-cultural.

Processo Representacional; Relações sócio-culturais; Polifasia


This article discusses the relations between knowledge, community and culture from a psychosocial perspective. Departing from the concept of representation, I discuss the fundamental relation between representational process and context, understood as the historical, social, symbolic and cultural place of a human community. It is important to understand the representational process because it occupies a central place in the process of knowledge constitution: there's no knowledge that doesn't desire to represent. At the same time, the analysis of the representational form as a dialogical structure allows for the understanding of the socio-cultural relations that are to be found at the base of knowledge formation. The form of representation is as much the form of knowledge as the form of constitution of a social-cultural context.

Representational process; Social-cultural relations; Polyphasia


Psicologia social, saber, comunidade e cultura

Social psychology: knowledge, community and culture

Sandra Jovchelovitch

London School of Economics and Political Science

RESUMO

Este trabalho apresenta uma reflexão sobre as relações entre saber, comunidade e cultura desde uma perspectiva psicossocial. Eu parto do conceito de representação e discuto a relação fundamental entre processo representacional e contexto, entendido como o lugar histórico, social, simbólico e cultural de uma comunidade humana. Entender o processo representacional é importante porque ele ocupa um lugar central no processo de constituição dos saberes: não há saber que não deseje representar. Ao mesmo tempo, a análise da forma representacional enquanto estrutura dialógica permite a elucidação das relações sócio-culturais que se encontram na base da formação dos saberes. A forma da representação é tanto forma do saber como forma de constituição de um contexto sócio-cultural.

Palavras-chave: Processo Representacional; Relações sócio-culturais; Polifasia

ABSTRACT

This article discusses the relations between knowledge, community and culture from a psychosocial perspective. Departing from the concept of representation, I discuss the fundamental relation between representational process and context, understood as the historical, social, symbolic and cultural place of a human community. It is important to understand the representational process because it occupies a central place in the process of knowledge constitution: there's no knowledge that doesn't desire to represent. At the same time, the analysis of the representational form as a dialogical structure allows for the understanding of the socio-cultural relations that are to be found at the base of knowledge formation. The form of representation is as much the form of knowledge as the form of constitution of a social-cultural context.

Keywords: Representational process, Social-cultural relations, Polyphasia

INTRODUÇÃO

Neste trabalho a análise da forma representacional construirá as premissas para discutir o problema da variabilidade do saber e de como esta variabilidade se expressa sócio-historicamente. Para fazer esta discussão, vou introduzir o conceito de polifasia cognitiva (MOSCOVICI, 1976), traçar as origens do conceito e apontar sua fecundidade para explicar tanto a variação como a relação entre saberes. A polifasia cognitiva refere-se a um estado em que registros lógicos diferenciados inseridos em modalidades diferentes de saber coexistem em um mesmo indivíduo, grupo social ou comunidade.

Ligar o saber ao seu contexto e reafirmar sua relação com a representação é tarefa necessária, mas não fácil. Toda base do pensamento moderno está definida em termos de uma razão progressiva e da capacidade do sujeito do conhecimento colocar a si próprio como objeto e aprender suas próprias condições de possibilidade. Cogito ergo sum: se é possível apontar um começo para mundo moderno ele está lá, nesta frase. A nova consciência da modernidade nasce desta convicção fundamental de que o domínio da natureza e da história por uma racionalidade destinada a saber e compreender era desprovido de mistérios; ele era prometido ao sujeito do conhecimento como inteligibilidade plena. A "Idade da Razão" destronou o poder da autoridade e da religião e condenou a si mesma a livrar-se de sua conexão com sujeito, comunidade e cultura. O desenvolvimento e o progresso do saber torna-se um processo através do qual as estruturas internas do conhecimento libertam-se da emoção, do habitus e da autoridade impostos pela cultura, para atingir sua forma plenamente racional, "verdadeira", "desculturada" e "deslocalizada".

Ora, nós sabemos que este programa não se desenvolveu sem antinomias. Mas o paradoxo de fundo continua marcando nossa relação com os saberes, qual seja, para ser saber, o saber deve descolar-se do contexto de sua produção, livrar-se das "impurezas" de quem o produz, dos interesses, paixões e motivos que estão ligados a uma pessoa humana, a uma polis humana, a uma cultura humana, e buscar a certeza da perfeita descrição do objeto do saber. Assim definem-se as condições do saber, de tarefa humana a tarefa humanamente impossível.

Gostaria de justapor a esta tendência um argumento que recupera a representação enquanto processo psicossocial e teoriza todo saber como representacional. Trata-se então de entender a forma que o saber assume enquanto representação e aquilo que expressa enquanto sistema psicossocial firmemente radicado em um contexto social. Trata-se também de entender como a variabilidade das formas do saber se realiza em esferas públicas e como ela é tratada. Isso porque enquanto alguns saberes gozam de credenciais epistemológicas plenas, reconhecimento e legitimidade, outros são vistos como distorção, superstição e erro. Resta saber se esta distinção parte de uma característica interna dos saberes ou de determinantes sociais mais amplos que conferem poder a alguns saberes e pelo mesmo movimento desapropriam outros de qualquer reconhecimento.

REPRESENTAÇÃO, MEDIAÇÃO E SABER - A CONTRIBUIÇÃO DA PSICOLOGIA SOCIAL

A psicologia social é, no meu entendimento, a ciência do "entre". Isso significa dizer que o lugar privilegiado do inquérito psicossocial não é nem o indivíduo nem a sociedade, mas precisamente aquela zona nebulosa e híbrida que comporta as relações entre os dois. O foco no "entre" é, obviamente, um dispositivo teórico, já que empiricamente nos deparamos sempre com instanciações objetivadas produzidas pelo espaço relacional que constitui o "entre". Estas objetivações se apresentam como unidades, como todos, como realidades acabadas e fechadas. Mas, tão logo começamos a escavar sua superfície a realidade, que aparece como um todo contido e fechado, se esvanece. Surgem então redes móveis e extremamente complexas de relações, cuja natureza necessita ser investigada, descrita e se possível explicada. É nesta zona mais subterrânea de mediações, profundamente relacionada, contudo, com a superfície que ao mesmo tempo ela cobre e revela, que reside o psicossocial. Categorias como a identidade, o eu, o discurso, a representação e a ação, para citar apenas algumas, são todas produzidas lá, no espaço do "entre". É minha convicção que este espaço constitui o objeto específico do inquérito psicossocial e é o entendimento detalhado deste espaço que a psicologia social pode oferecer a um diálogo interdisciplinar.

Há uma longa tradição, tanto dentro como fora da psicologia, que milita contra o "entre". Não há aqui tempo ou espaço para elaborar o impacto e poder constitutivo da filosofia cartesiana sobre o desenvolvimento da psicologia enquanto disciplina. Basta dizer que tanto o behaviorismo como o cognitivismo, ambos se construíram sobre a hipótese cartesiana (MARKOVÁ, 1983) e nenhuma das duas abordagens deve ser minimizada enquanto forças que deram forma à abrangência, aos objetivos, aos arranjos institucionais, aos códigos e práticas da psicologia. O cartesianismo impôs a lógica do "ou isso, ou aquilo" no modo como pensamos sobre o psicológico e sua constituição. Trata-se ou do indivíduo (representando o psíquico) ou do social, ou do corpo ou da mente, ou do discurso ou da representação, ou da atitude ou do comportamento e assim por diante. A lista de dicotomias é infindável, como nós todos sabemos bem. Seria injusto, entretanto, culpar apenas a psicologia por pensar através destas dicotomias e seria certamente injusto culpar apenas a Descartes; como podemos esquecer a lógica aristotélica e a lei da não-contradição? As dicotomias estão tão profundamente arraigadas no pensamento e auto-interpretação ocidental que até hoje elas continuam influenciando o conjunto das ciências sociais (MARKOVÁ, 1983).

Se eu coloco ênfase nesta concepção de psicologia social é porque a noção de representação e polifasia cognitiva que vou apresentar, dependem desta visão de nossa disciplina como a ciência do "entre". Uma vez que nós tomamos a sério o "entre", concepções mentalistas sobre a representação caem por terra e a representação já não é mais definida através de processos intra-psíquicos e isolados que encontramos na forma dominante da ciência cognitiva. Ao mesmo tempo uma clarificação do "entre" permite a integração tanto do objeto quanto do outro na conceituação da representação. Como a nova psicologia social da coisa mostra (Bauer, 2000), a representação não pode prescindir de sujeitos em relação e de objetos. Nesse sentido, a representação é tanto social como está enredada na materialidade do mundo (LATOUR, 1996).

Daí que a especificidade da Psicologia Social é teorizar espaços de mediação que residem na contradição e coexistência de opostos. A Psicologia Social se fizer a devida justiça ao seu objeto de estudo pode dar uma contribuição incisiva aos debates mais amplos sobre representação, identidades, discursos e linguagem, estudando como estas categorias se relacionam e ao mesmo tempo constituem a vida e o contexto cotidiano de comunidades humanas.

REPRESENTAÇÃO: MEDIAÇÃO ENTRE SUJEITO, OBJETO E OUTRO

A noção de representação é central para uma teoria dos saberes sociais e para qualquer epistemologia. Ela é obviamente um dos conceitos-chave da teoria das representações sociais. A noção tem sido cercada de controvérsias desde sua concepção e não é minha intenção aqui traçar sua trajetória filosófica, ou como ela é usada em diferentes disciplinas das ciências sociais. Em Psicologia, a representação teve uma história turbulenta e seu papel crucial, de fato constitutivo, na formação do sujeito psicológico nem sempre foi vista de forma consensual.

O problema da representação se inicia com a não-imediaticidade do mundo existente para os humanos. Quando me refiro ao mundo existente, note, não estou me referindo a alguma realidade externa que é independente do saber humano. Estou me referindo a tudo aquilo que existe para as pessoas, incluindo o próprio Eu, o Outro, objetos físicos e artefatos culturais, saberes acumulados, enfim, a tudo que constitui o existente. Seguindo a Psicologia do Desenvolvimento de Piaget (1969, 1975, 977) e Winnicott (1971, 1988), eu chamo este tudo de "objeto-mundo". O objeto-mundo não se entrega aos humanos perfeitamente e nós também não estamos equipados para nos "colar" perfeitamente a ele. Em suma, não há uma relação direta, uma correspondência perfeita entre o ser humano e o mundo. O objeto-mundo somente se torna nosso conhecido se nós nos dermos o trabalho de representá-lo. Faz parte, tanto de nossa história ontogenética como filogenética, nos darmos a este trabalho: é um trabalho que leva tempo e é um trabalho duro, que envolve um processo intenso e apaixonado de co-construção entre infante, aquele que lhe presta cuidados e o objeto-mundo (DUVEEN, 1997, 2001; VALSINER, 2000) .

Esta não correspondência entre os seres humanos e o objeto-mundo está inscrita em nossa constituição biológica e seria uma bobagem ignorá-la. Qualquer Psicologia humana deve enfrentar o corporificação das estruturas psíquicas, até porque a gênese do pensamento e do saber se encontra na ação do corpo. Se nossa constituição biológica não fosse importante, qualquer organismo serviria para produzir um ser humano. Nós sabemos, contudo, que tentativas de ação comunicativa com alguns de nossos parentes genéticos mais próximos, os bononos, fracassaram em produzir uma forma distintamente humana de comunicação (SAVAGE,RUMBAUGH AND FIRLEDS, 2000; STRAYER, 2000). Ora, o biológico importa, e é a chave para entender a não-correspondência entre os seres humanos e o objeto-mundo. Mas a Psicologia deve avançar e dar conta daquilo que a Biologia sozinha não consegue explicar. Quando as fundações biológicas se complexificam pelo desenvolvimento de um sujeito que é tanto psicológico como social, a abrangência da explicação científica também dever ser levada adiante. A representação, enquanto fenômeno psicológico e social, é um conceito central nesta tarefa.

A representação é uma estrutura de mediação entre o sujeito-outro, sujeito-objeto. Ela se constitui enquanto trabalho, ou seja, a representação se estrutura através de um trabalho de ação comunicativa que liga sujeitos a outros sujeitos e ao objeto-mundo. Neste sentido pode-se dizer que a representação está imersa na ação comunicativa: é a ação comunicativa que a forma, ao mesmo tempo que forma em um mesmo e único processo, os participantes da ação comunicativa. A ação comunicativa envolve a linguagem assim como envolve ação de tipo não-discursivo; estas se manifestam nas práticas do cotidiano, nas instituições sociais e nas estruturas informais do mundo vivido (HABERMAS, 1988).

O trabalho comunicativo da representação produz símbolos cuja força reside em sua capacidade de dar sentido, de significar. A representação trabalha colocando algo no lugar de algo, seu trabalho é um trabalho de deslocamento simbólico. Este deslocamento de objetos e pessoas que dá a cada um e a todos uma nova configuração é a essência da ordem simbólica. Ele mostra claramente que a criação e a construção estão na base do registro simbólico, já que suas operações estão ontogeneticamente ligadas e envolvem resíduos da capacidade de fazer-de-conta desenvolvida na primeira infância. Ele também demonstra a concepção entre a construção do simbólico, a arte e a cultura, já que esta última é um acúmulo de significados e símbolos que se solidificam ao longo do tempo.

Esta concepção de representação enquanto estrutura de mediação pertencendo ao espaço do "entre" pode ser vista na Figura 1:


Este modelo representa uma fatia do processo representacional vista no tempo e em contexto. Bauer e Gaskell (1999) projetam a figura acima no tempo e propõe o "Modelo Toblerone" que adiciona a dimensão fundamental de projeto ao processo representacional. Como eles observam "a este triângulo básico uma dimensão temporal, tanto de passado como de futuro, é adicionada para denotar o projeto explícito ou implícito ligando os sujeitos e o objeto" (1999: 170). O problema do tempo, que corresponde ao problema fundante da história, é portanto claramente integrado ao processo representacional. Temos, portanto, os vínculos sujeito-sujeito-objeto- projeto- tempo- contexto- ação comunicativa como fenômenos constituintes do processo total do fenômeno representacional.

Daí que o estatuto da representação é polivalente. A representação é uma construção ontológica, epistemológica, psicológica, social, cultural e histórica. Ela é todas estas dimensões ao mesmo tempo e cada um destes atributos só pode ser entendido em relação a todos os outros, já que do ponto de vista fenomênico eles são dimensões simultâneas do sistema representacional. Quando as pessoas se engajam em processos de comunicação - que as situa em relações concretas ligadas a uma específica configuração cultural, social e histórica que elas ativamente (re)produzem - elas ao mesmo tempo produzem os meios simbólicos que constroem uma representação particular de um objeto - seja ele concreto, físico ou abstrato - que entra na rede de outras representações de um quadro social, cultural e histórico. Este processo é ontológico na medida em que tem um papel constitutivo na emergência do sujeito humano como um ser que representa a si mesmo e, portanto, possui uma identidade. É epistemológico na medida em que permite o (re)conhecimento: o saber sobre o objeto - tanto o Eu como um objeto para si mesmo como o objeto-mundo. Ele é um processo psicológico na medida em que se estrutura e se manifesta como processo psíquico suscetível aos estratagemas da paixão, da ilusão e do desejo. É um processo social porque o intersubjetivo é sua condição de possibilidade e sua matéria advém da inteligibilidade da história e da cultura. Este status polivalente reafirma a sua estrutura mediadora. A representação não está localizada em nenhum dos cantos do triângulo de mediação; seu espaço é o "entre" do triângulo e os elementos constituintes que o formam.

Dentro de tal concepção de representação, visões intra-mentais da representação se tornam obviamente redundantes: a representação pertence ao entre da comunicação humana e da ação social; não é produto de uma ação humana fechada em si mesma. Esta visão também descarta aquelas concepções que negam o papel dos objetos no processo de formação da representação. Aqui a representação não é o ato único de um sujeito cuja ação dá forma à representação. A materialidade do objeto-mundo é integral ao processo representacional e interage com o sujeito dando forma tanto quanto ele dá ao resultado representacional.

Finalmente, esta concepção de representação não dá ao processo representacional o poder de definir completamente o objeto. Não nos esqueçamos dos perigos envolvidos na hiper-representação, o termo que eu uso para descrever aquelas situações onde as representações são produzidas sem consideração alguma com a realidade do objeto. A representação também distorce, mente, ilude e confunde. A hiper-representação é, naturalmente, parte do poder da representação, já que o simbólico é uma esfera onde a lei do "faz-de-conta" se aplica. Esta é a faceta do processo representacional que tem um papel decisivo tanto na dimensão criativa e positiva da sua construção como na dimensão negativa e nas possibilidades de subjugação que estão presentes no construcionismo exagerado. Dentro de relações de poder mais amplas que operam em qualquer sociedade, estes efeitos podem, e certamente são, usados por vários grupos sociais em vários momentos para produzir efeitos ligados a interesses e projetos. Daí que a distinção entre representação e seu objeto é crucial e precisa ser preservada como única possibilidade de sustentar a idéia de crítica e precisão na cognição. A não ser que queiramos nos relativizar até a morte, por assim dizer, é impor tante reconhecer que o objeto-mundo vai além de nossos esforços para representá-lo. Este é o caso não apenas porque a pluralidade humana abre este objeto para os esforços de representação de outros diferentes e diferentes contextos, mas também porque a representação humana é uma forma de mediação que nunca consegue capturar plenamente a totalidade de um objeto. Tendo então discutido, o problema da representação e seu status polivalente, na próxima secção discutirei o conceito de polifasia cognitiva. Como se verá, a polifasia cognitiva é um conceito que expande o laço entre representação e contexto e, ao mesmo tempo, permite uma concepção maleável e plural de saber social.

O CONCEITO DE POLIFASIA COGNITIVA: SABER, COMUNIDADE E CULTURA

O conceito de polifasia cognitiva foi introduzido por Serge Moscovici em seu estudo clássico sobre representações e psicanálise na França (MOSCOVICI, 1961/1976). Ele foi cuidadoso em apresentá-lo como uma hipótese, mas os dados eram claros: havia evidência suficiente no material para sugerir que tipos diferentes de racionalidade estavam envolvidos na construção de representações sobre psicanálise. Estas racionalidades diversas dependiam de seu contexto de produção e procuravam responder a objetivos diferentes. O que era interessante notar, contudo, era que ao contrário de interpretações estabelecidas de fenômenos cognitivos, estas racionalidades diversas não apareciam em grupos diferentes, ou em contextos diferentes; ao contrário, elas eram capazes de existir lado a lado em um mesmo contexto, mesmo grupo social e, mutatis mutandis, no mesmo sujeito individual. As pessoas lançariam mão de um ou outro saber dependendo das circunstâncias particulares em que se encontravam e dos interesses particulares que sustentavam em um dado espaço e tempo.

Moscovici propôs este conceito no contexto de debates ligados a diversidade do saber e como dar conta das diferenças entre a lógica e a racionalidade embebida em formas de saber como a crença, a ciência, a representação social, etc. Para que possamos entender o conceito e sua contribuição específica à investigação do laço entre saber social e contexto é necessário traçar as origens do debate sobre a diversidade dos saberes e os temas centrais que nele estão presentes. Isso também nos permitirá ligar o problema da diferença na forma do saber com a conceituação de representação que foi proposta no início deste texto.

SABER EM CONTEXTO: RE-VISITANDO OS PIONEIROS

Ao desenvolver a noção de polifasia cognitiva e usá-la para dar sentido aos dados empíricos de seu estudo sobre a psicanálise, Moscovici estava se posicionando em uma tradição particular. De fato, a teoria das representações sociais como um todo se desenvolveu em relação direta com os debates clássicos sobre a racionalidade do saber conduzida por psicólogos, sociólogos e antropólogos europeus no início do século XX. Estes debates, profundamente influenciados por tradições fenomenológicas, buscavam explicar como a racionalidade do conhecimento se intersecciona com a condições sociais concretas de sua formação1 1 É importante observar que este tipo de discussão possui uma longa história que pode ser lida como uma, entre as tantas formas, com que a racionalidade moderna produziu uma crítica de si mesma. No começo do século XIX Hegel demonstrou o caráter social e histórico das estruturas da consciência, enquanto Marx foi além para demonstrar que ela também é prática e incorporada. Darwin ligou a inteligência à adaptação, enquanto Freud mostrou a existência do inconsciente no coração da consciência. . Na psicologia em particular este problema sempre foi constante; Piaget e Vygotsky, para não mencionar James e Freud lutaram com o problema da consciência, sua formação, desenvolvimento e a racionalidade que ela produz.

A tentativa de estabelecer que para cada forma de saber corresponde um conjunto fundamental de relações sociais foi central para o pensamento que se desenvolveu sob a influência da fenomenologia e da hermenêutica. Foi também central para as psicologias de Piaget e Vygotsky, que tinham um entendimento claro da natureza social da lógica e se propuseram a demonstrar em detalhe a maneira através da qual a sociedade dá forma ao desenvolvimento das estruturas lógicas na criança. Os dois mostraram que relações sociais diferentes levam a modos de saber diferentes. Piaget, em As Operações Lógicas e a Vida Social (1967), discutiu o problema extensivamente. Lá ele afirma que uma vez reconhecido o papel da interação social na formação da lógica, o problema não é mais o impacto do social, mas qual o tipo de interação social que é prevalente e qual a lógica que produz. A análise da constrição e da cooperação - os dois tipos de relação social que Piaget estudou - forneceram mais evidência à proposição de que formas diferentes de interação produzem lógicas diferenciadas.

A psicologia de Vygotsky não estava menos preocupada com o problema. Studies in the History of Behaviour: Ape, primitive and child, escrito por Vygotsky e Luria (1993) constitui uma tentativa de estabelecer as três linhas de desenvolvimento que produzem aquilo que chamamos o homem cultural. Ao analisar o uso de instrumentos por macacos antropóides, as formas do pensar de povos ditos primitivos e o desenvolvimento ontogenético da criança, eles se propõem a construir uma noção de desenvolvimento que une o evolucionário, o histórico e o ontogenético. Como Wertsch nota em seu prefácio, o livro é um dos mais importantes documentos que temos para entender o que Vygotsky entendeu por desenvolvimento. Como ele escreve:

"o termo psicologia do desenvolvimento se aplica quase exclusivamente ao domínio genético da ontogênese, e tipicamente de forma ainda mais estreita aos períodos da infância e adolecência. Em contraste a esta lente estreita, Vygotsky e Luria argumentam que uma verdadeira análise genética deve dirigir-se aos modos como o conhecimento sobre todos os três domínios genéticos contribui para nosso entendimento do comportamento e do funcionamento mental. Daí que, além de considerar como uma forma particular do funcionamento mental reflete as transições ontogenéticas que levam até ele, também é necessário levar em conta as forças da filogênese e da história sociocultural que lhe formou." (WERTSCH, 1993:x, minha tradução).

Este livro também fornece um panorama extremamente interessante da extensão dos diálogos que se travavam entre os psicólogos russos e psicólogos, antropólogos e sociólogos ocidentais. Köhler, Lévy-Bhrul, Mauss, Durkheim, Rivers, Wertheimer, Kofka, Kurt Lewin para citar somente alguns, estão presentes na discussão. Köhler, Lévy-Bhrul e Piaget, em particular, fornecem a base para três capítulos do livro. Isso não é um acidente. Talvez nenhum outro problema tenha sido tão central para este período histórico como o debate sobre o que constitui a unidade e a evolução da razão. As expedições antropológicas que estavam colocando intelectuais ocidentais face a face com modalidades de pensar de outras culturas eram empurradas não apenas pelo poder e força do Império, mas também pelo desejo de dar apoio ou descartar a ideia central de uma racionalidade una.

É neste contexto que Vygotsky e Luria conduzem seu estudo sobre as diferentes modalidades de saber no Uzbekistão e na Khirgizia. Como já foi dito antes, eles foram claramente influenciados pelas idéias de Durkheim de que o psicológico se origina no social e tinham um conhecimento detalhado dos debates entre Lévy-Bhrul e W.H.Rivers. Seu estudo foi importante não apenas porque comparou como culturas diferentes levam a processos diferentes de pensar e de saber; ele era, de fato, único, porque foi conduzido sob condições de extrema mudança social possibilitadas pela Revolução Russa. Este estudo é relatado nas memórias de Luria (LURIA, 1979) e constitui um exemplo fascinante de combinação de metodologias vindas da psicologia e da antropologia. Ao invés de pesquisar remotos vilarejos russos, eles optaram por "vilarejos e campos nômades do Uzbekistão e da Kirgizia na Asia Central onde grande discrepância entre formas culturais prometia maximizar a possibilidade de detectar mudanças tanto nas formas básicas como no conteúdo do pensar" (LURIA, 1979: 60). Lá eles buscaram determinar se as novas relações sociais e o acesso à escola possibilitados pelo novo regime socialista poderiam produzir mudanças no conteúdo e na forma de pensar das comunidades experienciando estas mudanças. Os resultados foram inequívocos: encontraram-se transformações claras na organização do pensamento ligadas a diferentes tipos de atividades e a estrutura social específica dos grupos envolvidos. Além disso, eles verificaram que estas mudanças ocorriam em um período de tempo relativamente curto. Graças a estes estudos hoje nós podemos afirmar que tanto o conhecimento como a mentalidade do sujeito do saber que lhe corresponde são organicamente vinculados ao contexto social da comunidade em que eles são produzidos.

A VARIABILIDADE DOS SABERES: HIERARQUIA, EXCLUSÃO OU CO-EXISTÊNCIA DA DIFERENÇA?

Da proposição que o saber é amarrado a uma comunidade e seu contexto, segue-se a derivação quase óbvia que os saberes variam. Há um número infinito de formações sociais que produzem um número infinito de formas diferentes de saber. E é aqui que começa o problema. Se há variação nas formas do saber, como eles são comparados? Reconhecer variação e diferença entre, saberes não é o fim de nossa história. Na verdade, é apenas o começo. O problema, diria, não é tanto o de entender que as estruturas psíquicas e cognitivas mudam na medida que condições sociais mudam. O problema é o velho problema da modernidade, o centro mesmo de uma racionalidade iluminada: como formas inferiores desenvolvem-se até formas superiores e como estas formas superiores, uma vez estabelecidas, deslocam o "inferior" para sempre.

Variação na forma do saber então coloca o problema crucial de como conceber esta variação e de que quadros explicativos nós vamos utilizar a fim de dar sentido à diferença contida nesta variação. Mais uma vez, o problema não é novo e nos leva de volta a concepções sobre o desenvolvimento e a transformação do saber. Como muda o saber de uma forma a outra? Haveria uma escala progressiva cujo enquadre geral explicaria o desenvolvimento de todo saber desde as formas baixas/primitivas/simples até as formas altas/civilizadas/complexas? Colocando-se em outras palavras: seria o saber de uma criança uma forma primitiva do saber adulto? Ou seria o saber de outras culturas (primitivas ou "inferiores" como as chamava a literatura do século XIX e início do século XX) uma forma rudimentar da lógica encontrada em sociedades ocidentais, ditas civilizadas? Estas questões, espero, sejam suficientes para demonstrar porque estes temas continuam a ser nossos contemporâneos. A idéia de uma escala progressiva que leva a uma forma de saber, mais desenvolvida e melhor, que serve de norma a todos os outros saberes é invasiva. Não apenas é este o caso na tradição acadêmica que constituiu as ciências sociais e a Psicologia. A idéia também se fundou em áreas de aplicação que vão desde a promoção a saúde, a intervenções desenvolvimentistas em sociedades não-ocidentais, até os embates entre ciência e saber cotidiano em esferas públicas contemporâneas (veja, por exemplo, debates sobre biotecnologia, vacinação, meio-ambiente, etc.).

Em Durkheim e Piaget era claro que formas superiores de saber, encontradas em adultos e populações "civilizadas", deslocariam formas primitivas, encontradas em crianças e povos "primitivos". Para eles, o saber progride em direção ao domínio total do mundo objetivo baseado em operações lógicas que deixam para trás os mitos, as superstições e as crenças. O artigo de Piaget sobre as operações lógicas e a vida social argumenta que a socialização, ou a internalização das regras sociais pela criança, é a condição sine qua non para a emergência da lógica e da educação da razão. Contudo, como nota ele, nem toda a socialização conduz ao pensamento lógico. Povos primitivos, cujo sociocentrismo é analogo ao egocentrismo da primeira infância, não produzem o tipo de laço social que é requerido para o alcance do saber racional. É somente em sociedades onde a individuação e a argumentação preponderam que a razão propriamente dita pode ser alcançada.

Ainda que Lévy-Bhrul e Vygotsky tenham problematizado esta visão, eles não escaparam totalmente da idéia de progresso. Lévy-Bhrul que, como veremos, virou essa visão hierárquica de cabeça para baixo, também não esteve completamente imune à noção de progresso. Ao examinar o funcionamento da mentalidade pré-lógica no capítulo três de "How Natives Think", ele declarou que a lógica é a condição necessária para a liberdade do pensamento e "o instrumento indispensável para seu progresso". O programa de Vygotsky, ainda que não tão explícito como o de Piaget, possuía uma preocupação muito similar. O socialismo, esperava-se, produziria uma sociedade baseada na ciência, capaz de deixar para trás o mito, a superstição, a crença e o senso comum. Comparar o saber dos camponeses da Ásia Central, vistos como detentores de crenças atrasadas e irracionais e o novo sujeito racional produzido pelas condições sociais novas do socialismo, tinha como objetivo mostrar como um tipo específico de condições sociais podia produzir racionalidade.

Intrínseco ao trabalho destes pioneiros estava a premissa implícita de que esferas públicas des-tradicionalizadas, baseadas na argumentação, na ciência e no enfraquecimento da tradição são o lugar por excelência de toda racionalidade possível. São estas sociedades que produzem saber, um saber que descarta a irracionalidade da crença, da superstição e do mito e busca o controle lógico do mundo objetivo. A questão óbvia é perguntarmo-nos então sobre "outras" formas de organização social. Será que elas podem produzir lógica e saber racional?

Ainda que Lévy-Bhrul e Vygotsky tenham valorizado muito o desenvolvimento da lógica e o progresso da razão, o trabalho deles contém elementos para produzir uma crítica radical destas idéias e recolocá-las de forma completamente diferente. O trabalho de Lévy-Bhrul sobre a mentalidade "primitiva" constitui, no meu modo de ver, um dos movimentos mais importantes em direção à decentração das cosmovisões e, não há dúvida, que foi mais dele do que de Durkheim, que Moscovici buscou inspiração para propor o "estado de polifasia cognitiva" (MOSCOVICI, 2001).

Lévy-Bhrul desmantelou a concepção dominante de seu tempo, que sustentava que há apenas um tipo de racionalidade, e qualquer evidência contrária nada mais era que um conjunto de estágios sub-desenvolvidos destinados a progredir até chegar a este "tipo" ideal. Ele mostrou que a lógica é, ela própria, uma categoria maleável e que lógicas diferentes não são menos lógicas que nossa própria lógica. De fato, todas as tentativas de enquadrar lógicas diferentes em categorias lógicas que são nossas, mostram apenas as limitações de nossa própria lógica. Ele também demonstrou que lógicas diferentes não são mutuamente excludentes e não operam sob o imperativo da substituição. Ao comparar a chamada mentalidade pré-lógica dos povos primitivos com a mentalidade lógica dos povos desenvolvidos ele enfatizou que "o pensamento lógico não irá superar inteiramente a mentalidade pré-lógica." Este é a razão pela qual o pensamento lógico não consegue preencher as funções que ele exclui e pela qual certa porção de pensamento pré-lógico subsistirá. Os insights de Lévy-Bhrul sobre a relação entre padrões culturais e modalidades do saber ajudaram a iluminar a gênese e variação dos códigos semióticos que dão forma ao modo como comunidades humanas dão sentido ao mundo e se comportam em relação a ele.

Há muitos paralelismos entre a noção de desenvolvimento de Vygotsky e as idéias de Lévy-Bhrul. Mesmo sendo crítico de Lévy-Bhrul em vários aspectos de seu trabalho, Vygotsky coincidia na noção mais fundamental de que a transformação do saber é descontínua e não há substituição nas formas do saber, mas co-existência. Ao invés de conceber o desenvolvimento e transformação do saber dentro de uma escala progressiva e linear que substituem formas primitivas por formas superiores, eles viram cada forma de saber como uma entidade própria. As formas de saber se relacionam uma a outra, mas não necessariamente sucedem uma a outra linearmente. Elas necessitam ser entendidas em relação ao contexto em que são usadas e em relação às funções que preenchem. As formas do saber coexistem e podem ser contraditórias, mas isso não é um problema se nós abandonamos a lógica formal e sua dualidade ao concebê-las como opostas e abraçamos uma perspectiva dialética.

Moscovici foi muito influenciado por estes insights (MOSCOVICI, 1998; 2000). A descoberta da polifasia cognitiva em seu estudo sobre a psicanálise corresponde a uma continuação, desta vez dentro da Psicologia Social, de um debate que já havia iniciado há muito tempo e do qual Lévy-Bhrul provou ser uma das mais importantes fontes de inspiração. Em A Psicanálise, sua Imagem e seu Público, Moscovici recupera o debate sobre os sistemas cognitivos e a racionalidade que eles possuem à luz dos dados empíricos de seu estudo. Estes mostravam a presença de estilos de raciocínio próximos às operações concretas da criança. Mas o raciocínio estudado era o de toda uma sociedade e os participantes eram adultos. Como explicar a presença de uma modalidade do pensar relacionada à infância que, de acordo com as concepções dominantes sobre a transformação do conhecimento, deveriam ter sido superadas? A resposta de Moscovici é mais a la Lévy-Bhrul e Vygotsky do que a la Durkheim e Piaget. "A coexistência de sistemas cognitivos deveria ser mais regra do que exceção", ele escreveu. (MOSCOVICI, 1976:286, minha tradução). E mais adiante: "o mesmo grupo e, mutatis mutandis, o mesmo indivíduo são capazes de utilizar registros lógicos diferentes nos domínios em que se relacionam com perspectivas, informação e valores que são distintos. (...) De modo geral, pode-se dizer que a coexistência dinâmica - interferência e especialização - de diferentes modalidades de saber correspondendo a relações específicas entre o homem e seu contexto determinam um estado de polifasia cognitiva." (MOSCOVICI, 1976: 286, minha tradução).

A hipótese da polifasia cognitiva, argumentou Moscovici, poderia abrir novas perspectivas na Psicologia Social, já que nos levava a estudar não apenas as correspondências entre situações sociais e modalidades de saber, mas também as transformações e intercâmbios entre as diferentes modalidades. Isso, notou ele, é sobretudo importante porque nos permite relacionar o movimento das formas do saber e sua ordem com o problema da interação social e da cultura. Ligar a dinâmica dos saberes à Psicologia Social dos contextos e da cultura era é uma das proposições teóricas centrais que substancia o conceito de polifasia cognitiva. Este conceito permite recolocar o problema dos saberes em um outro patamar: saber é uma atividade que só pode ser entendida em relação ao contexto do qual ela deriva sua lógica e a racionalidade que contém. Os saberes, portanto, devem ser vistos como uma forma dinâmica que emerge continuamente. A dinâmica da forma representacional lhe permite a variação e a capacidade de conter tantas racionalidades quantas necessárias à variedade infinita de situações socioculturais que caracterizam a experiência humana. Além dos estudos clássicos no campo das representações sociais, a pesquisa recente em Psicologia Social corroborou solidamente a hipótese da polifasia cogntiva (WAGNER ET AL, 1999, WAGNER ET AL, 2000; GERVAIS AND JOVCHELOVITCH, 1998; JOVCHELOVITCH AND GERVAIS, 1999).

A DIVERSIDADE E A COMUNICAÇÃO ENTRE SABERES

A concepção de representação apresentada nas páginas iniciais deste trabalho e a discussão do conceito de polifasia cognitiva mostram que todo saber é produzido em uma relação entre sujeito-sujeito-objeto, no tempo e no espaço. O entendimento dos saberes e de suas múltiplas lógicas envolve o entendimento da representação, enquanto um sistema de relações psicossociais que envolvem:

1) Os produtores/sujeitos do saber, o que abrange a consideração de identidades, interesses, acesso a recursos e poder.

2) Os meios de produção do saber, que correspondem sempre aos tipos de relações sociais estabelecidas entre as pessoas e seu ambiente tanto social, como natural.

3) Os produtos/objetos do saber, que se referem tanto aos objetos físicos como aos objetos abstratos que formam o meio-ambiente simbólico e material de uma comunidade humana. Estes podem ser, por exemplo, tecnologias de todos os tipos, mas também as operações simbólicas e abstratas que dão sentido à ordem físico-material e que se tornam objetivadas em monumentos, máquinas, livros, documentos, legislação, na mídia, etc.

Neste sentido, o saber é um sistema de representações simbólicas organicamente ligado à Psicologia Social dos contextos e enredado produtivamente com um modo de vida e com sua cultura. Fica claro aqui que o saber é sempre obra de uma comunidade humana e, portanto, deve ser entendido no plural. Não há uma forma de saber apenas, mas muitas. Essa variação corresponde à variação nas formas de relação social que constituem tanto o saber como a comunidade. Daí que o saber é uma forma plástica e heterogênea, cuja racionalidade e lógica não se definem por uma norma transcendental, mas devem ser avaliadas em relação ao contexto psicossocial e cultural de uma comunidade. Empiricamente, o inquérito sobre os saberes desloca-se de um produto aparentemente "fechado" e "acabado", para a investigação das relações fundamentais que constituem o "entre" da formação dos saberes. Estas relações e sua realização empírica tornam-se o foco do esforço investigativo.

Reconhecer a pluralidade do saber significa reconhecer a localização fundamental de todo saber e o que essa localização expressa em termos de ecologias humanas, culturas humanas, psicologias humanas2 2 Aqui é importante notar que, especialmente em esferas públicas contemporâneas, todo local está dialeticamente ligado ao global. O "aqui e agora" de uma situação está sempre ligado a uma história e a um conjunto amplo de redes que explode as fronteiras do presente e do local. Para uma discussão excelente da dinâmica global/local veja Latour (1993). Ainda que o local e o global estejam profundamente conectados, eles não são inseparáveis enquanto termos analíticos e empíricos. É importante ser capaz de delimitar a especificidade do local. . Proposições epistêmicas são também proposições ontológicas - elas não apenas propõem leituras do objeto-mundo mas declaram estados do ser. Permanece, entretanto, o problema de como formas diferentes de saber se encontram e se relacionam. É preciso, em outras palavras, indagarmo-nos sobre as possibilidades comunicativas entre formas diferentes de saber, se elas existem, se são possíveis, ou se o encontro entre saberes no mundo contemporâneo está destinado à exclusão e opressão. É aqui que nos deparamos com questões ligadas aos embates e direitos de sobrevivência de formas diferentes de saber. Reconhecer pluralidade não basta: é preciso perguntar como esta pluralidade foi historicamente tratada e é socialmente realizada. Este é o problema central ligado ao estudo e à discussão sobre os saberes hoje e constitui o dilema central que psicólogos sociais precisam enfrentar quando trabalham com saberes do cotidiano e com o mapeamento de saberes locais vis à vis formas dominantes de saber.

A proliferação dos meios de comunicação de massa e o impacto de práticas globalizadas em arenas locais intensifica os embates entre formas diferentes de saber e levanta questões sobre como comunidades locais apropriam e dão sentido aos saberes que chegam de lugares dominantes (JOVCHELOVITCH, 1997). Estas questões se relacionam diretamente ao problema das assimetrias no status e na valoração de diferentes saberes e como atores sociais com acesso desigual a recursos apropriam os saberes que penetram seus horizontes. As relações entre saberes são, na maior parte das vezes, assimétricas: assimetria no status e na valoração de formas diferentes de saber impinge diretamente na forma como o saber é comunicado, estabelece sua veracidade e constrói autoridade.

Ao estudarmos representações em uma diversidade de esferas públicas nós, psicólogos sociais, queremos revelar como contextos e comunidades diferentes produzem saber sobre si mesmos e sobre outros, bem como sobre questões que são relevantes para seu modo de vida. A preocupação central é entender como o saber local é produzido, sustentado e defendido por comunidades bem como de que maneira estes processos estão enredados com categorias psicossociais centrais como a identidade, a memória social e a participação na esfera pública. Estou convicta que o reconhecimento da relação fundamental entre saber e lugar foi um dos resultados mais importantes deste tipo de Psicologia Social. Isso se deu com o esforço para reabilitar os chamados saberes locais de um lado e, de outro, questionar porque alguns saberes são localizados enquanto outros recebem o estatuto e a legitimidade da universalidade. Daí a necessidade de avaliar as formas dominantes de produção do saber de forma a produzir uma crítica das ações estratégicas que, tanto na ciência, como em projetos sócio-políticos, legitimaram uma forma de saber como superior a todas as outras.

É importante então reter, acreditar e lutar pela possibilidade de reconhecer não apenas a diversidade dos saberes, mas também a legitimidade e o status de suas diferentes formas. Esta diversidade precisa ser entendida para mais além das práticas que localizam o saber em termos de exclusão, segregação e, nos casos mais extremos, destruição. O diálogo entre formas diferentes do saber não apenas é possível como é desejável; se o que todo saber deseja é, de algum modo, dar sentido ao estranho, isso significa dizer que todo saber é capaz de encontrar a estranheza do outro desconhecido e mediar as diferenças que encontra. Ao estudarmos a transformação dos saberes e os potenciais e os perigos inseridos na comunicação entre formas diferentes do saber, a Psicologia Social pode fazer uma contribuição ao entendimento dos dilemas enfrentados por comunidades multiculturais bem como a todas aquelas outras comunidades cujos saberes e modos de vida estão expostos a contínua ameaça e destruição.

CONCLUSÃO

A pesquisa clássica sobre a construção do saber em psicologia demonstrou com clareza que todo saber é localizado, isto é, ligado a um lugar e, portanto, plural. O saber enquanto sistema representacional emerge de um contexto de relações socioculturais. Entretanto, houve uma forte tendência a entender a variação do saber em termos de uma escala progressiva. A construção de um padrão contra o qual o sujeito do saber poderia ser avaliado levou a um processo sócio-político de colocar saberes e as pessoas que o produzem em uma escala hierárquica onde formas inferiores e formas superiores de saber (e ser, já que todo saber possui uma dimensão ontológica) são comparadas.

Através do conceito de representação e polifasia cognitiva, propus que a Psicologia Social dos saberes deve recuperar espaços de mediação como o lugar central de seu inquérito. Isso envolve:

1) Uma mudança na conceituação do saber que o desloca de uma relação dualista e dicotômica entre indivíduo e sociedade para a intersubjetividade e interobjetividade da forma representacional.

2) Aceitar a diversidade das formas do saber e das racionalidades que estas formas contêm, bem como reconhecer a legitimidade de diferentes formas e seu potencial comunicativo.

3) Repensar a evolução e transformação do saber a fim de descartar a idéia de uma evolução ou progresso linear de formas inferiores para formas superiores.

Quando as tentativas de explicação do mundo partem de uma razão que vê a si mesma como o parâmetro de todo o fenômeno humano, a explicação será necessariamente parcial e limitada. O reconhecimento da diversidade de lógicas implicadas no saber e, sobretudo, o reconhecimento da coexistência de racionalidades diferentes no mesmo grupo ou pessoa apagam boa parte das deformações impostas por construções eurocêntricas e nos fornece um conceito mais sábio de razão, uma razão capaz de entender sua diferença interna e estabelecer um diálogo com o seu outro. Ler Lévy-Bhrul nos faz lembrar que é preciso entender a luta da razão consigo mesma e aquilo que é real em suas antinomias. Somente assim poderemos corrigir as limitações de perspectivas cêntricas e criar uma abordagem conceitual mais compreensiva e decentrada, capaz de explicar não apenas a posição do outro, mas também a posição do centro que fala como nada mais do que aquilo que é: uma, entra as tantas variações, que constituem as possibilidades de realização do fenômeno humano.

NOTAS

Recebido: 20/01/2004

1ª revisão: 18/6/2004

Aceite final: 5/7/2004

Sandra Jovchelovitch é docente vinculada a London School of Economics and Political Science.

O endereço eletrônico da autora é: s.jovchelovitch@lse.ac.uk.

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  • 1
    É importante observar que este tipo de discussão possui uma longa história que pode ser lida como uma, entre as tantas formas, com que a racionalidade moderna produziu uma crítica de si mesma. No começo do século XIX Hegel demonstrou o caráter social e histórico das estruturas da consciência, enquanto Marx foi além para demonstrar que ela também é prática e incorporada. Darwin ligou a inteligência à adaptação, enquanto Freud mostrou a existência do inconsciente no coração da consciência.
  • 2
    Aqui é importante notar que, especialmente em esferas públicas contemporâneas, todo local está dialeticamente ligado ao global. O "aqui e agora" de uma situação está sempre ligado a uma história e a um conjunto amplo de redes que explode as fronteiras do presente e do local. Para uma discussão excelente da dinâmica global/local veja Latour (1993). Ainda que o local e o global estejam profundamente conectados, eles não são inseparáveis enquanto termos analíticos e empíricos. É importante ser capaz de delimitar a especificidade do local.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Nov 2004
    • Data do Fascículo
      Ago 2004

    Histórico

    • Recebido
      20 Jan 2004
    • Revisado
      18 Jun 2004
    • Aceito
      05 Jul 2004
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