Resumo
Este artigo é resultado de uma cartografia de si a partir de minhas experivivências como travesti negra e gorda no processo de compreender as diversas formas de solidão que atravessam minha subjetividade, desde a solidão estética, pensada por meio da ausência de representatividade, à solidão afetiva, decorrente do esvaziamento das possibilidades relacionais, mediante uma perspectiva romântica e além. Neste sentido, objetivo analisar os efeitos da colonialidade na produção de solidões e violências em minhas experivivências, enquanto apresento o Afrotranscentramento como uma possibilidade de cura às feridas coloniais. Metodologicamente, a cartografia possibilita mergulhar de forma encarnada em minhas experivivências, desenhando um mapa das afecções que povoam em mim na relação com as solidões. As experivivências afrotranscentradas provocam a clínica psi a romper com o pacto narcísico da branquitude cisheteronormativa. Nesta medida, o afrotranscentramento é um ébo de cura à carga colonial da solidão.
Palavras-chave:
Solidão; Travesti Negra e Gorda; Cartografia; Afrotranscentramento; Decolonialidade
Resumen
Este artículo es resultado de una cartografía de mí misma a partir de mis experiencias como travesti negra y gorda en el proceso de comprensión de las diversas formas de soledad que atraviesan mi subjetividad, desde la soledad estética, pensada a través de la ausencia de representación, hasta la soledad afectiva, resultante del vaciado de posibilidades relacionales, por medio de una perspectiva romántica y más allá. En este sentido, pretendo analizar los efectos de la colonialidad en la producción de soledad y violencia en mis experiencias, al tiempo que presento la afrotranscentración como una posibilidad de sanar las heridas coloniales. Metodológicamente, la cartografía permite profundizar de manera corporeizada en mis vivencias, trazando un mapa de los afectos que me habitan en mi relación con la soledad. Las experiencias afrotrascéntricas provocan que la clínica psi rompa con el pacto narcisista de la blanquitud cisheteronormativa. En este sentido, la afrotrascentración es una cura para la carga colonial de la soledad.
Palabras clave:
Soledad; Travesti negra y gorda; Cartografía; Afrotranscentración; Decolonialidad
Abstract
This article is the result of a cartography of myself based on my experiences as a black and fat transvestite in the process of understanding the various forms of loneliness that cross my subjectivity, from aesthetic loneliness, thought through the absence of representation, to affective loneliness, resulting from the emptying of relational possibilities, through a romantic perspective and beyond. In this sense, I intend to analyze the effects of coloniality in the production of loneliness and violence in my experiences, while I present Afrotranscentration as a possibility of healing colonial wounds. Methodologically, cartography makes it possible to delve in an embodied way into my experiences, drawing a map of the affections that inhabit me in relation to loneliness. Afro-transcendent experiences provoke the psi clinic to break with the narcissistic pact of cisheteronormative whiteness. To this extent, Afrotranscentration is a cure for the colonial burden of loneliness.
Keywords:
Loneliness; Fat and Black Transvestite; Cartography; Afrotranscentration; Decoloniality
Primeiras pegadas para iniciar a travessia
Há um brilho de lágrima no seu olhar
E o castanho no branco se perde na escuridão infinda que a cerca
Não há boca, cabelo, corpo, só seus olhos a me devorar
Queria saber onde exatamente soltei sua mão?”
Letícia Carolina, abril de 2023
Onde deixei de caminhar comigo mesma para percorrer caminhos que não tinham as minhas experivivências como chão imanente? Onde o espelho que refletia a mim mesma se quebrou para que eu me perdesse em reflexos diversos da cis/hetero/branco/magro/normatividade? Por que tantas solidões me povoam, mesmo estando refletida em tantos cacos de espelho? Como criar pontes que me reconectem comigo mesma e com outras iguais desde mim?
Questionar o mundo é uma prática que carrego comigo desde a mais tenra infância. Eu sempre falei sozinha, pelo menos, é o que as pessoas diziam. Hoje eu sei que eu sempre falei comigo mesma, ou pelo menos tentava me conectar comigo mesma na ausência de uma conexão com o mundo que me cercava. Eu ainda falo comigo mesma para não sucumbir em meio a vozes que gritam insistentemente que eu não posso, que eu não devo ser quem sou. Vozes que buscam me embranquecer, me emagrecer, me masculinizar, me cis normatizar, me colocar em uma caixa padrão com o selo de qualidade colonial.
O presente texto assume a linguagem poética como científica e a possibilidade de fazer uma ciência encarnada, uma ciência que diz de si, sem se omitir na casca de uma pseudoneutralidade. Assume a perspectiva de narrar minhas experivivências como práticas de resistência à colonialidade do ser e do saber. Um texto visceral, resultado de uma cartografia de si, a partir de minhas experivivências enquanto uma travesti negra e gorda no processo de compreender as diversas formas de solidão que atravessam minha subjetividade.
Pistas metodológicas: uma cartografia de experivivências
Em alguns textos, tenho optado pela cartografia por considerá-la uma abordagem metodológica que permite seguir os rastros de minhas vivências de maneira afetiva. A cartografia cria mapas a partir de palavras que se unem afetivamente. Tomo o afeto mediante uma dimensão spinozista, de modo que os afetos que me movem não são apenas os alegres, mas os que tencionam, que causam tristezas e dores. E como cartógrafa, permito-me ser fecundada pela palavra e, uma vez penetrada pelo afeto, vou parindo as frases e parágrafos que compõem o texto, um modo de dizer que os afetos pedem passagem e fazem passagem em minha corpa.
Penso que, de modo especial, a cartografia seja um excelente método para a pesquisa com subjetividades no contexto da psicologia, como nos assinala a psicanalista branca e brasileira, Suely Rolnik (2006Rolnik, Suely (2006). Cartografia sentimental. Editora da UFRGS., pp. 15-16), quando afirma que:
Paisagens psicossociais também são cartografáveis. A cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos - sua perda de sentido - e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos.
Embora seja uma abordagem nascida no contexto europeu, logo, na casa dos colonizadores, é útil destacar que sua epistemologia se rebela contra a rigidez da ciência cartesiana, favorecendo outras formas de pensar que têm inspirado pesquisadoras insurgentes do Sul-global. Particularmente, encanta-me a metáfora do mapa, de modo que, para mim, cada texto que escrevo é um mapa, desenhado a partir das intensidades que me povoam. Isso porque a cartografia desenha mapas que também só podem ser lidos a partir da abertura das leitoras para as afecções. Ela se faz a partir de uma gramática fronteiriça, como propõe o pesquisador em Estudos Culturais, Edgar Cézar Nolasco (2019Nolasco, Edgar Cézar (2019). A Ignorância da Revolta. Intermeios.). Em uma tentativa conceitual mais ampla, podemos dizer que a cartografia, em seu mapeamento dos acontecimentos, desenvolve “práticas de acompanhamento de processos e de produção de subjetividades” (Barros & Kastrup, 2009Barros, Laura. P. & Kastrup, Virgínia (2009). Cartografar é acompanhar processos. In E. Passos, Eduardo, V. Kastrup, & L. Escóssia (Orgs), Pistas do método da cartografia. Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 52-75). Sulina., p. 56).
Neste trabalho de composição cartográfica, trago minhas experivivências, embasadas em uma proposta do pesquisador brasileiro em arte e decolonialidade, Marcos Antônio Bessa-Oliveira (2019Bessa-Oliveira, M. A. (2019). Pedagogias da diversalidade. Cadernos de Estudos Culturais, 1(21), 61-85.). Dela, interessa-me o conceito por aglutinar a experiência e a vivência, que reforça o caráter encarnado da memória, daquilo que nos afeta, experimentamos e vivemos. Nessa compreensão, há um rompimento da dualidade entre o corpo e a mente, a emoção e a razão, pois as experivivências emergem de maneira imanente desde dentro-para-fora, desde fora-para-dentro. Uma vida é composta de experivivências!
Uma vida está em toda parte, em todos os momentos que este ou aquele sujeito vivo atravessa e que esses objetos vividos medem: vida imanente que transporta os acontecimentos ou singularidades que não fazem mais do que se atualizar nos sujeitos e nos objetos. Essa vida indefinida não tem, ela própria, momentos, por mais próximos que estejam uns dos outros, mas apenas entre-tempos, entre-momentos. Ela não sobrevém nem sucede, mas apresenta a imensidão do tempo vazio no qual vemos o acontecimento ainda por vir e já ocorrido, no absoluto de uma consciência imediata (Deleuze, 2002Deleuze, Gilles (2002). A imanência: uma vida... Educação & Realidade, 27(2), 10-18., p. 14).
Nessa composição cartográfica de experivivências, apresento minha vida como um mapa dos modos pelos quais sou povoada por solidões inerentes ao meu (não) ser, em meio às relações de poder colonial que me subtraem de um reconhecimento humano. Para o filósofo porto-riquenho Nelson Maldonado-Torres (2007Maldonado-Torres, Nelson (2007). Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In S. Castro-Gómez & R. Grosfoguel (Orgs.), El giro decolonial: reflexiones para uma diversidad epistémica más Allá del capitalismo global (pp. 127-167). Universidad Javeriana-Instituto Pensar; Universidad Central, SiglodelHombre., p. 130), o “surgimiento del concepto ‘colonialidad del ser’ responde, pues, a la necesidad de aclarar la pregunta sobre los efectos de la colonialidad en la experiencia vivida, y no sólo en la mente de sujetos subalternos”. Portanto, em uma dimensão decolonial, essa cartografia de experivivências me oportuniza mapear solidões e possibilidades de cura das feridas coloniais. Por fim, ainda em seus aspectos metodológicos, reforço que essa leitura demanda a aprendizagem de uma gramática fronteiriça, conforme nos ensina o semiólogo argentino Walter Mignolo (2017Mignolo, Walter (2017). Desafios decolonais hoje. Revista Epistemologias do Sul, 1(1), 12-32.), que observa que, mais do que aprender, trata-se de desaprender, de habitar a fronteira como uma possibilidade de exercer encontros nas diferenças.
As infâncias como começo: entre traumas coloniais
As pessoas me perguntam como eu me descobri uma mulher trans, e digo que, se busco na infância, eu sempre me percebi, me reconheci como uma menina. Com isso quero afirmar que, desde a infância, fui cercada por elementos do repertório masculino e feminino, seja nas relações sociais dentro da família ou no contexto social mais amplo, seja nas representações sociais da mídia ou da cultura popular. Isso porque sempre houve ao meu redor homens e mulheres, embora eu me reconhecesse nas representações da mulheridade e feminilidade, até ser impedida de me reconhecer como uma menina.
Há uma grande dificuldade em aceitar que infâncias trans existem, mesmo que frequentemente adultos trans falem de suas experiências quando crianças, ao compreenderem que essa identificação já se fazia presente. Há uma maior dificuldade de ouvir as crianças trans, de permitir que elas falem de suas existências e desejos, de modo que esse debate é constantemente abafado com a desculpa de que “são crianças, não têm autonomia, não podem decidir, nem sabem o que são ainda”. Diante dessa argumentação, concordo com filósofo espanhol e trans Paul Preciado, quando destaca que o discurso de a “criança-precisa-ser-protegida” é o efeito de um dispositivo pedagógico perigoso que busca naturalizar a cishetenormatividade (Preciado, 2013Preciado, Paul B. (2013). Quem defende a criança queer? Jangada, 1, 96-99.).
Cabe enfatizar que é possível compreender as questões geracionais a partir do debate decolonial, uma vez que a Colonialidade do poder é adultocêntrica. A suposta superioridade do adulto em relação à criança também é uma marca de poder eurocêntrica, imposta aos contextos sociais da América Latina durante a colonização. A partir do conceito de “Colonialidade do Poder”, Anibal Quijano (2005Quijano, A. (2005). Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In E. Lander (Org.), A Colonialidade do Saber: etnocentrismo e ciências sociais - Perspectivas Latinoamericanas (pp. 107-126). Clacso.) observa como a relação entre as colônias europeias e os povos sul e mesoamericanos impôs, de maneira violenta, um rígido sistema de classificação social baseado em classe e raça, além do gênero. E conforme salienta também Maria LugonesLugones, M. (2008). Colonialidade e gênero. Tábula rasa, 9, 73-102., nesse contexto podemos incluir as questões geracionais. Já para o pesquisador de infâncias indígenas, Assis da Costa Oliveira:
A colonialidade do poder adultocêntrica nos direitos, e não somente nos mais diretamente relacionados às crianças e jovens, é uma condição que percorre a história “moderna” do campo jurídico, e reproduz as desigualdades pela ótica da proteção jurídica. Nisso, considero que o menorismo, ou a construção sociojurídica e simbólica do menor, torna-se o mecanismo mais eficiente de reprodução do adulto centrismo nas relações sociais e nos direitos ditos “dos menores” (2021Oliveira, Assis da Costa (2021). Colonialidade do poder adultocêntrico e/nos direitos de crianças e jovens. Revista Culturas Jurídicas, 8(20), 950-979., p. 976).
De certo modo, todas as crianças estão sob-julgo do poder adulto cêntrico, sob a condição de “menores”. Todavia, é importante ressaltar que as crianças do gênero feminino, negras, indígenas, pobres, com deficiências e LGBTQIAP+ sofrem esse controle mais intensamente. É a partir do conceito jurídico, de base colonial, de “menor”, que a fala das crianças é constantemente desprezada. Por isso, uma criança não pode se dizer trans, pois, primariamente, as crianças não podem dizer de si, sendo algo intolerável permitir que uma comente sobre seu gênero.
Entretanto, se uma criança considerada biologicamente um menino pede como presente uma bola, seu desejo é respeitado como algo legítimo, mas se a mesma criança pede uma boneca, além de ter seu desejo desprezado - o que já é uma forma de violência -, essa criança pode sofrer outras sanções e castigos verbais, físicos e simbólicos de seus responsáveis. Na verdade, não é que as crianças não possam dizer de seus gêneros, pois elas podem, desde que isso esteja de acordo com a normatização colonial que estabelece uma rígida divisão binária entre os gêneros masculino e feminino a partir de uma base biológica. Ao questionarmos a norma, cabe refletirmos: existe a infância cis? A categoria cisgeneridade ocupa certa centralidade no pensamento transfeminista, exatamente por colocar a norma em interrogação (Nascimento, 2021Nascimento, Letícia Carolina (2021). Transfeminismo. Jandaíra.).
E do mesmo modo como propõe a crítica e teórica indiana Gayatri Chakravorty Spivak (2010Spivak, G. C. (2010). Pode o subalterno falar. UFMG.), em Pode o subalterno falar, a questão não é se as crianças podem ou não falar, mas sim, se nós adultos podemos romper com a colonialidade do poder adultocêntrico para ouvir as infâncias em suas singularidades. Cresci como uma criança “afeminada”, negra e gorda, a ponto de não me reconhecer em nenhum lugar. E as pessoas sempre diziam que eu deveria ser o oposto do que era, que eu deveria ser mais menino, mais branco e mais magro. Logo, eu não sabia o que tinha de errado comigo, pois minha existência não era possível.
Quando criança, não pude desenvolver uma consciência étnico-racial negra, era como se eu não tivesse raça. Às vezes, se referiam a mim como “morena clara”, de modo que eu não era branca e não tinha condições de me reconhecer como negra. Igualmente, eu não era um menino e não tinha permissão para me reconhecer como uma menina. Vivia em uma corda bamba que me deixava emocionalmente frágil, insegura. E em conversa com a minha criança trans, posso afirmar que:
“Queria ir até você e abraçá-la muito, queria lembrar de tudo que a gente viveu, queria saber por que sou tão insegura, quais os motivos de às vezes sentir tanta necessidade de ser amada. Queria entender por que, após chegar aonde cheguei, ainda sinto que sou você tentando se equilibrar naquele elástico que brincávamos na vizinhança. Eu só queria que a gente entendesse que temos um lugar no mundo, não mais a incerteza do precipício, [pois] se precisarmos pular o vento de Oyá, [ele] nos dará asas” (Carta para a pequena Leca, a menina que sempre fui. [Arquivo pessoal, abril de 2021]).
É extremamente difícil mensurar as marcas que as violências sofridas na infância por crianças trans e negras produzem no modo de sermos adultas. Frantz Fanon (2008), psiquiatra e filósofo martinicano, em Pele Negra, Máscaras Brancas, aborda traumas e violências que atravessam a consciência de pessoas negras, considerando a ausência de representatividade e da comparação constante aos valores e estilo de vida da família tradicional, branca e burguesa. Ao ressalvarmos as singularidades dessas violências coloniais, podemos, a partir das reflexões de Fanon, compreender que as relações assimétricas de poder e representatividade entre brancos e negros, entre pessoas cisgêneras e pessoas travestis e transexuais, entre pessoas magras e pessoas gordas, produzem traumas ainda pouco tangíveis para a psiquiatria e a psicologia, que centralizam a experiência do sofrimento psíquico a partir de uma matriz branco/cis/hetero/magro/normativa.
É importante situar Fanon como um homem negro cis heterossexual, de modo que suas análises resultam desse seu lugar particular e do tempo histórico em que viveu. E faço uma ressalva disso, sobretudo pela maneira bastante limitada e reduzida que a homossexualidade é abordada em uma nota de rodapé de seu livro supracitado (2008, p. 154). Todavia, como uma referência decolonial, sua produção me inspira algumas aproximações que podem ser feitas entre o racismo e a transfobia. Primeiramente, como já expus, quando pensamos que o lugar de norma e referência da branquitude e cisgeneridade infringe traumas nas subjetividades de pessoas não-brancas e não-cisgêneras. E, em segundo lugar, que este não se trata de um problema particular, centrada em mim ou outrem, e sim, que diz respeito a toda uma sociedade racista, machista, transfóbica e gordofóbica de maneira estrutural.
Diante desse panorama, conforme apela Fanon (2008, p. 29), “de uma vez por todas, a realidade exige uma compreensão total”. Por isso, os conceitos de “branquitude”, “heteronormatividade”, “cisgeneridade” e “patriarcado” são engrenagens de sustentação da colonialidade, sendo centrais em análises decoloniais. Tão importante quanto romper o silêncio e erguer nossas vozes para falar de nós subalternos, como asseveram algumas feministas decoloniais, incluindo Gayatri Spivak, Audre Lorde e Djamila Ribeiro, é que nomeemos a norma. Esse processo de nomeação instaura uma concepção relacional nos termos do filósofo e médico francês Georges Canguilhem (1995Canguilhem, Georges (1995). O normal e o patológico. Forense Universitária.), quando argumenta que o patológico só se define mediante uma relação com a norma.
Por isso, posso inferir que falar de crianças trans só se torna necessário por conta de as crianças cisgêneras ocuparem um lugar de norma, assim como pensar em representatividade para crianças negras só se torna necessário por conta da centralidade ocupada por crianças brancas. O que sinto é que, desde a infância, essa ausência de representatividade positiva instaurou uma série de inseguranças em minha subjetividade, pois é como se eu fosse a falha, o fracasso. E eu realmente cresci achando que havia algo de errado comigo, em vez de perceber que o mundo cobrava padrões inalcançáveis para uma criança trans, negra e gorda, e que essa régua injusta pela qual minha performance era medida, constrangia e me humilhava constantemente.
Em diálogo com esse lugar de insegurança e culpa, de mecanismos coloniais instalados na infância, registrei, em uma carta endereçada aos meus agressores, que:
“Vocês estão comigo, seus olhares me seguem aonde eu vou, seus dedos apontados, suas vozes graves e estridentes, seus risos ecoam, quantas vezes vocês riram e gritaram: baleia, viado! Vocês são o medo em cada passo que dou, vocês me puseram em uma corda bamba que se estende entre mim e o passado, entre mim e o futuro, vocês me fazem tremer quando olho para trás, hesitar quando olho para frente” (Carta aos meus agressores: com amor, Letícia [Arquivo pessoal, março de 2021]).
Não foi mergulhando em mim mesma que me tornei uma criança insegura, uma vez que este não é um sentimento exclusivamente endógeno, tampouco inato, ou então algo que é inerente à infância trans, negra ou gorda. É preciso compreender que esses traumas - que, em união ao educador e capoeirista brasileiro Luiz Rufino (2019Rufino, Luiz (2019). Pedagogia das encruzilhadas. Mórula.), prefiro chamar de “carrego colonial” - não são privativos. Essa compreensão é fundamental, especialmente na clínica psi, para que possamos operar o que a psicóloga travesti Céu Cavalcanti (2019Cavalcanti, Céu (2019). Patologizações, autodeterminações e fúrias-uma breve carta de amor. In Marília S. Amaral, Daniel K Santos, & Ematuir T. Sousa (Orgs), Psicologia, travestilidades e transexualidades: Compromissos ético-políticos da despatologização (pp. 28-42). Tribo da Ilha., p. 35) chama de “desprivatização da dor”, já que nos alerta que “desprivatizar dores não é dessingularizar dores”. Nossas dores são únicas, mas além de se relacionarem com as dores de outras de nós, também se relacionam diretamente com as violências exercidas nesse sistema-mundo colonial.
Solidão estética e afetiva: as pedagogias culturais em um sistema-mundo colonial
Retomando o diálogo com Fanon (2008), reconheço que, a partir de minhas experivivências na infância, a engrenagem do “complexo de inferioridade” foi sendo instalada em minha subjetividade. E acredito que toda essa ausência de representatividade faz com que pessoas negras, trans e gordas experimentem uma solidão estética, além de uma solidão afetiva. Mas, por que nomear essa solidão estética? É importante não secundarizar a estética, pois, para uma criança trans, negra e gorda é difícil crescer achando-se bela, uma vez que sua corporalidade em nada, ou quase nada, reflete aquilo que é normatizado como belo.
É difícil não se sentir representada em nenhum lugar. Eu não me percebia nas pessoas negras, pois não era alimentada com uma consciência étnico-racial. E também não me percebia em outras pessoas trans, pois simplesmente elas não existiam ao meu redor. Além disso, fui uma criança gorda criada por uma mãe gorda que sempre me obrigava a fazer dieta com ela, então, por mais que eu tivesse minha mãe como referência de mulher gorda, sentia assim como ela, isto é, de que era necessário emagrecer para ser aceita.
A solidão estética é reforçada pela ausência de representatividade nos mais variados espaços, inclusive nos meios midiáticos, como em novelas, desenhos e programas de televisão, onde as pessoas são brancas, cisheterossexuais e magras. Na escola, na igreja e nos ambientes sociais há tanto um esvaziamento de pessoas negras, trans e gordas, quanto uma política de subalternização e sub-representação dessas identidades quando conseguem circular em alguns espaços. Engajada no conceito de pedagogia cultural que se fortalece a partir dos estudos do educador norte-americano Henry Giroux (1995Giroux, Henry (1995). Memória e pedagogia no maravilhoso mundo da Disney. In T. Silva (Org.), Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação (pp. 132-158). Vozes.) e do educador canadense Peter McLaren (2000McLaren, Peter (2000). Multiculturalismo crítico. Cortez.), compreendo que não apenas a escola, mas também as demais instituições sociais possuem um caráter educativo, e que, portanto, devem exercer suas atividades mediadas por relações de poder.
O conceito de pedagogia cultural coaduna com a perspectiva da Solidão Estética, uma vez que o esvaziamento da representatividade de mulheres negras, trans e gordas nos campos da arte, mídia e cultura, impõe obstáculos no processo de construção de uma autoimagem positiva. Mais do que o esvaziamento da representatividade, as pedagogias culturais contribuem na construção de estereótipos negativos e caricaturais acerca da negritude, da transgeneridade e da corporalidade gorda. Essas imagens negativas e estereotipadas de mulheres negras, trans e gordas se alinham ao projeto colonial de bestialização de nossas subjetividades e subtração de nossas corporalidades da ideia de humanidade, conforme analisam a psicóloga e artista interdisciplinar portuguesa Grada Kilomba (2019Kilomba, Grada (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Cobogó.), a filósofa e ativista gorda Malu Jimenez (2020Jimenez, Maria Luisa J. (2020). Gordofobia: injustiça epistemológica sobre corpos gordos. Revista Epistemologias do Sul, 4(1), 144-161.) e como consta na obra Transfeminismo (Nascimento, 2021Nascimento, Letícia Carolina (2021). Transfeminismo. Jandaíra.).
A jornalista e escritora feminista estadunidense Naomi Wolf (2018Wolf, Naomi (2018). O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Record.) mobiliza o conceito de “mito da beleza” para expor que o ideal de beleza funciona como um dispositivo de controle das corporalidades e subjetividades femininas. Neste sentido, as inúmeras pedagogias culturais contribuem para a crença de que só existe uma corporalidade válida, o que leva mulheres a se esforçarem para atingir tais padrões, por vezes inalcançáveis por natureza. Para bell hooks (2018hooks, bell (2018). O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras (1a ed.). Rosa dos Tempos.), teórica feminista negra norte-americana, todas as mulheres mais jovens ou mais velhas foram socializadas de modo a acreditar que seu valor é exatamente proporcional à sua beleza.
Quando penso na solidão estética e em sua relação com a solidão afetiva, quero destacar que, ao nos subtrair do padrão de beleza branco/cis/hetero/magro/normativo, o sistema mundo-colonial instaura gatilhos de insegurança, como o medo a ser trocada, as fragilidades emocionais, as distorções da autoimagem e o ciúme/sentimento de posse, os quais contribuem para gerar problemas no modo como nos relacionamos sexual e afetivamente. E nesse ponto retomo o conceito de “desprivatização da dor” (Cavalcanti, 2019Cavalcanti, Céu (2019). Patologizações, autodeterminações e fúrias-uma breve carta de amor. In Marília S. Amaral, Daniel K Santos, & Ematuir T. Sousa (Orgs), Psicologia, travestilidades e transexualidades: Compromissos ético-políticos da despatologização (pp. 28-42). Tribo da Ilha.), e de como é difícil não ter esses gatilhos emocionais quando somos, desde a infância, socializadas em um sistema-mundo que subalterniza nossas experivivências, que não nos educa para o (auto)amor.
E esses gatilhos não produzem problemas apenas quanto ao ideal de “amor romântico burguês”, na ideia de que precisamos nos casar ou estar em um relacionamento cisheteronormativo para sermos felizes. Isso porque, mesmo nas amizades, nas relações pessoais mais diversas, na família e no trabalho, é a nossa autopercepção que é embaçada, distorcida, o que influi em nossa autoestima, já que o espelho que o sistema-mundo colonial põe à nossa frente não nos reflete, visto que somos ensinadas a sonhar com uma outra corporalidade destinada a atender a padrões irreais de beleza branco/cis/hetero/magro/normativos.
É difícil transcender quando a violência é o chão da imanência. Em sua análise acerca do racismo e do machismo, Grada Kilomba (2019Kilomba, Grada (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Cobogó.) observa que somos ensinadas a acreditar que sofremos essas violências pelo fato de sermos diferentes, quando, na verdade, são essas violências que inscrevem em nossas corporalidades as diferenças. E elas impõem barreiras entre nós e nós mesmas, na medida em que implantam, de maneira perversa, um sentimento de inferioridade em relação aos corpos branco/cis/hetero/magro/normativos, assim como um sentimento de inveja, primariamente inconsciente, de possuir os atributos físicos associados à norma estética.
Constantemente ouço comentários do tipo: “você deseja ser uma mulher cis”, mas é a implantação desse desejo, a partir das pedagogias culturais presentes no sistema-mundo colonial, que garante a manutenção da norma cisgênera. E o mesmo se pode dizer da branquitude e da magreza, pois somos ensinadas que esse desejo de ser a norma faz parte de nós, quando, na verdade, é a crença coletiva e (in)consciente nessa inveja que produz a manutenção da hegemonia branco/cis/hetero/magro/normativa.
Hoje posso afirmar que eu não quero ser cis, eu já desejei, pois fui levada a acreditar que esta era a única possibilidade de ser aceita, amada, desejada, de ter um lugar neste mundo. Por isso, é tão fundamental ao feminismo que desafiemos aquilo que o sistema-mundo colonial deseja de nós. Creio, conforme nos ensina bell hooks (2018hooks, bell (2018). O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras (1a ed.). Rosa dos Tempos.), que a nossa tarefa é enfrentar a indústria da moda, o mercado estético da beleza e bem-estar e os distúrbios alimentares, e assim criar nossas próprias alternativas de beleza. A figura estereotipada de que as feministas não cuidam de si, de que somos peludas e mal-amadas, é uma armadilha que precisa ser desfeita. A autonomia da corporalidade sempre foi uma pauta importante dentro do feminismo, pois, se de um lado não podemos ser reféns de padrões de beleza criados em um sistema-mundo colonial, de outro, precisamos ser criativas no momento de construir maneiras éticas, afetivas e estéticas de (re)descobrir nossa beleza, criando outras possibilidades de beleza e rompendo com o universalismo eurocêntrico.
Diversos são os estigmas que marcam as corpas de mulheres trans, negras e gordas, a ponto de essas feridas coloniais operarem na produção de nossa desumanização. Entre tantos significados que não ser humana acarreta, evidencio o esvaziamento afetivo, desde a patologização das corporalidades gordas à fetichização das corporalidades travestis, negras e gordas. Como fetiche, somos apenas um passatempo sexual; como mulheres gordas, somos doentes, incapazes. Além disso, nega-se às mulheres a intelectualidade. E aqui, a clássica separação entre o corpo e a mente opera de maneira ainda mais cruel, quando mulheres negras servem apenas como mão de obra escravizada, um corpo sem mente (Gonzalez, 1984Gonzalez, Lélia (1984). Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, 2(1), 223-244.; hooks, 1995hooks, bell (1995). Intelectuais Negras. Revista de Estudos Feministas, 3(2), 464-478.; Jimenez, 2020Jimenez, Maria Luisa J. (2020). Gordofobia: injustiça epistemológica sobre corpos gordos. Revista Epistemologias do Sul, 4(1), 144-161.; Pacheco, 2013Pacheco, Ana. C. L. (2013). Mulher negra: afetividade e solidão. Edufba.).
A solidão afetiva e estética pode ser constatada em inúmeras experivivências:
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Ser a única mulher trans ou negra ou gorda em um espaço social (escola, emprego, etc.) e, por causa disso, ser (ou se sentir) rejeitada e isolada nele;
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Não ser representada na mídia, na cultura e na arte, ou então, ser representada de maneira estereotipada e caricatural;
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No contexto familiar: não ser socializada com gestos de carinho e afeto, pois muitas famílias negras e pobres, ao sucumbirem frente à dureza do trabalho, acreditam que abraços são coisas secundárias; ou, no caso da transgeneridade, a incompreensão da família acerca dessa identidade e o medo de ser expulsa de casa;
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Os amores na adolescência: se apaixonar por meninos padrões (brancos cisheterrosexuais e magros) e não ser correspondida, ou então, ter experiências afetivas e sexuais clandestinas e sigilosas;
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Ter experiências sexuais geralmente rápidas e com o objetivo de gozo momentâneo, cujo foco do prazer é o outro;
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Ser preterida por outras mulheres brancas/cis/magras;
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Não receber manifestações públicas de carinho;
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Ser motivo de piadas, chacotas e escárnios públicos, ou perceber que as pessoas olham para você de maneira jocosa ou objetificadora (em termos sexuais);
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Ter insegurança com o próprio corpo;
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Receber diagnósticos médicos/psicológicos (obesidade/incongruência sexual).
Grada Kilomba (2019Kilomba, Grada (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Cobogó., p. 223) argumenta que “somos assombrados por memórias coloniais intrusivas, que tendem a voltar”, uma vez que são inúmeras as experivivências com a dor, a solidão e a ausência de representatividade que vivenciamos diariamente desde a infância, e que nos fazem acreditar que existe algo em nós que cause essas situações. Todavia, as diferenças não estão fixadas em mim, ou em nós, pessoas trans, negras e gordas, pois a diferença é sempre relacional, só existindo nesse sentido. Por isso, a cura das feridas coloniais também precisa ser coletiva, embora envolva o desenvolvimento de recursos pessoais. E nesse momento penso no espelho de Oxum1 1 Oxum é uma orixá associada às águas doces, à beleza e ao amor. Vaidosa, casou-se com Xangô e com Oxóssi. Extremamente perspicaz, isso lhe garantiu o domínio do jogo dos búzios em uma disputa com Exu. como uma tecnologia ancestral de cura individual e coletiva.
Aprendendo a manejar o espelho de Oxum: afrotranscentrar é gostoso demais
No começo do processo de cura das feridas coloniais, o que nos vem é raiva. Particularmente, odeio essa polaridade ingênua de base cristã que divide o mundo entre sentimentos bons e ruins, céu e inferno. A raiva é um sentimento extremamente necessário, pois não é possível não se indignar, não se enfurecer com tanta injustiça social e com um sistema-mundo que normaliza a violência contra as pessoas marcadas a ferro e fogo como diferentes. Por isso, é preciso abraçar a raiva e pôr fogo nos racistes, transfobiques e gordofobiques. Eu sinto as chamas furiosas de Xangô2 2 Xangô é um orixá que rege a justiça, conhecido por seu comportamento diplomático. Possui também o domínio dos trovões e do fogo, tendo sido casado com Oxum, Oyá e Obá. , orixá da justiça, queimando esse sistema-mundo colonial.
Nossa raiva é legítima, sendo que, por vezes, nem raiva temos, mas é pelo fato de nos perceberem raivosas que ousamos exigir nossa humanidade, que ousamos fazer frente aos estereótipos da “negra barraqueira”, da “travesti violenta” e da “gorda mal-educada”, de modo que nos acusar desse adjetivo diz mais sobre aqueles que se beneficiam com a nossa violência do que sobre nós. Então, mulher trans, negra e gorda, assumamos nossa raiva como um sentimento legítimo que nos move em nossas trincheiras. Audre Lorde (2019Lorde, Audre (2019). Irmã outsider: ensaios e conferências. Autêntica.), escritora negra norte-americana, adverte que, pelo fato de não termos sido ensinadas a construir ferramentas para lidar com a nossa própria raiva, é fundamental que nós feministas aprendamos que a raiva faz parte do processo de crítica às estruturas patriarcais e coloniais, e que devemos transformar não só a raiva, mas nosso silêncio em ação revolucionária. Endosso a voz potente de Audre Lorde, pois certamente o silêncio e a ocultação da raiva não irão nos proteger das violências coloniais, é preciso que exerçamos sororidade e dororidade.
Ao longo desse processo, recuperei o espelho de Oxum como uma tecnologia ancestral. Por diversas vezes eu chorei diante dele olhando para meu próprio rosto, ou olhando meu corpo por inteiro, despida, nua, crua, sem o filtro do Instagram, sem a maquiagem e sem a camuflagem da roupa. As lágrimas fazem transbordar a dor, o ódio que eu tenho de mim é, na verdade, o ódio que o sistema-mundo colonial moveu contra mim, o ódio não faz parte de mim, por isso, eu preciso encontrar meios de transmutá-lo. Por isso, eu começo redescobrindo o meu corpo, passando a mão em meu rosto, e percebo que o toque é macio, como se houvesse o mel de Oxum entre meus dedos. E sigo dedilhando todo o meu corpo, pois esse é o meu corpo, minha corpa, logo, é possível me amar?
Engana-se quem pensa que Oxum é uma mulher fútil, na verdade, reconhecê-la como fútil é subestimar seu poder, e quanto mais se subestima uma mulher, mas fácil se é seduzido por seus feitiços. A beleza não é fútil, já que a construção de um padrão de beleza é uma estratégia de controle imposta pelo patriarcado e pelo capitalismo no sistema-mundo colonial (Wolf, 2018Wolf, Naomi (2018). O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Record.). Oxum exerce a diplomacia ao lado de Xangô. Ele tem mel em suas palavras, não porque só diz coisas doces, mas porque suas palavras são sabiamente escolhidas. É capaz de vencer uma guerra sem derramar sangue. E maneja o espelho para se ver com clareza e para olhar o que acontece detrás de si, sagaz, nada escapa ao seu olhar atento. Oxum, assim como todas as yabás (orixás femininos), é um arquétipo poderosíssimo que podemos construir mediante uma práxis feminista.
O espelho de Oxum, que passa a nos refletir sem os desejos de sermos brancas, cisgêneras e magras, desfaz a ilusão e a inveja imposta pelos aparatos das pedagogias culturais que sustentam as violências do sistema-mundo colonial. Logo, é preciso curar o olhar, não apenas ele e os sentidos, mas mergulhar em cosmopercepções que rompam com a branco/cis/hetero/magro/normatividade. A cura se move em direção às margens, se faz em comunidade, de modo que nesse movimento o espelho de Oxum é passado de mão em mão entre nossas corporalidades transvestigêneres, negras e gordas, em uma espécie de dançar coletivo, espelho que nos permite ver-de-ouvir-sentir para além da cosmovisão colonial.
Em meu processo de cura, deixei de querer me ver em mulheres cis, brancas e magras que a mídia me apresentava, passando a me ver refletida em minhas irmãs. É fundamental a construção dessa comunidade que cria e nos mantêm vivas. Neste sentido, Céu Cavalcanti (2019Cavalcanti, Céu (2019). Patologizações, autodeterminações e fúrias-uma breve carta de amor. In Marília S. Amaral, Daniel K Santos, & Ematuir T. Sousa (Orgs), Psicologia, travestilidades e transexualidades: Compromissos ético-políticos da despatologização (pp. 28-42). Tribo da Ilha., p. 41) afirma que:
São as vidas das várias pessoas trans que sigo, mesmo aquelas que nem conheço, que emprestam sentido e lugar para a minha própria vida e todos os dias, ao acordar, agradeço por me perceber como parte dessa grande corrente. Desejo a nós amor, nos seus níveis mais fundos. Amor-próprio para saber das potências de nossos corpos não cisgêneros. Amor por nós, amor entre nós. Amor pelas nossas ancestralidades trans, posto que hoje somos seus impossíveis sonhados. Amor pelas gerações trans a vir depois de nós, posto que somos somente o começo de seus passos ainda inimagináveis.
As palavras de Céu são como o mantra que eu gostaria de cantar, ao dançar uma ciranda com minhas irmãs transvestigêneres, negras e gordas, uma ciranda caótica, em que cada uma de nós tem seu próprio ritmo. As cirandas feministas não precisam de harmonia ou consenso, logo, as comunidades feministas precisam aprender a acolher a divergência, a raiva e a dor. Precisamos falar de nossas feridas, já que abafá-las só intensificará a infecção colonial. Com nossas corpas doentes, marcadas a ferro e fogo, poderemos chorar, mas de nossas lágrimas o rio Níger nascerá, ele que é o próprio corpo mítico de Oyá3 3 Oyá ou Iansã é uma orixá ligada aos raios, às ventanias, ao fogo e até ao domínio dos mortos. Seu culto está relacionado ao rio Níger. Foi esposa de Xangô, com quem dividiu o segredo do fogo, mas também se relacionou com Ogum, com quem aprendeu o manejo da espada, com Oxossi, com quem aprendeu a caçar, com Oxaguiã, com quem aprendeu a usar o escudo, e com Omolu, com quem aprendeu o domínio dos mortos. . Nós, mulheres, somos medicina, somos cura.
Nomeei esse processo de afrotranscentramento com base no conceito de afrocentricidade de Molefi Kete Asante (2016Asante, Molefi Kete (2016) Afrocentricidade como crítica do paradigma hegemônico ocidental: introdução a uma ideia. Ensaios Filosóficos, XIV, 9-18.), filósofo negro estadunidense. O termo nos possibilita romper com as narrativas de violência sobre nós para que possamos contar nossas histórias a partir de nós mesmas, de nossas ancestralidades; não é um contraponto, não se faz por oposição, é uma outra possibilidade. E como o sistema-mundo colonial se coloca como o centro de toda a sociedade, é fundamental que rompamos com a noção de centro para que as perspectivas possam se multiplicar. As variadas culturas possuem suas próprias formas de compreender o mundo, e essas culturas não precisam competir entre si ou se medir a partir das outras. Não mais a régua colonial para medir o mundo, não mais o etnocentrismo.
O processo de afrotranscentramento é parte de uma política de cuidado ético e afetivo do afrotransfeminismo (transfeminismo negro). Sobre isso, a educadora travesti Maria Claro Araújo dos Passos (2021Passos, Maria Clara de Araújo (2021) Afrotransfeminismo, Autorrecuperação e Quilombos. In Apolo V. Oliveira et al. (Orgs.), Transvivências negras entre afetos e aquilombamentos: contando histórias afro-diaspóricas (pp. 112-117). Devires., p. 117) observa que:
Presenciar afetos nas coletividades constituídas por travestis negras como parte de uma experiência quilombola afrotransfeminista, nos move para além da resistência, visto que o que estamos a viver é uma reexistência. Estamos conclamando existências plenas. Existências enquanto sujeitos que conhecem o que o afeto pode agregar em nossas vidas.
Desta feita, o processo de afrotranscentramento de mundo apresenta-se como uma possibilidade de cura das feridas coloniais implicadas pela transfobia, pelo racismo, pelo machismo e pela gordofobia, na medida em que nos espelhamos a partir de outras experiências de corporalidades transvestigêneres, negras e gordas produzindo acolhimento e fortalecimento.
É possível afrotranscentrar a clínica psi?
A afrotranscentricidade nos possibilita a criação de outras línguas para criar outros mundos, uma vez que o processo de negação e glorificação da colonialidade sufoca essas possibilidades, conforme aponta Grada Kilomba (2019Kilomba, Grada (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Cobogó.). Neste sentido, o primeiro movimento que esperamos das escutas clínicas é de que nossas experiências de dor não sejam negadas. Não cabe aos psicólogues, especialmente homens, brancos e magros, definir o que é o racismo, o que é a transfobia, o que é a gordofobia, pois essas violências são reais em nossas experivivências. Se é difícil para alguns psicólogues perceber a existência dessas violências, isso se deve ao não reconhecimento de seu lugar, de seus privilégios, na crença de que as técnicas psicológicas majoritariamente criadas na Europa e nos Estados Unidos sejam neutras e universais, aplicáveis a todes sem distinção.
De maneira eloquente, Paul Preciado (2022Preciado, Paul B. (2022). Eu sou o monstro que vos fala: Relatório para uma academia de psicanalistas. Editora Companhia das Letras., p. 31), filósofo trans espanhol, nos provoca da seguinte maneira:
Mas por que as senhoras e os senhores estão convencidos, queridos amigos binários, de que só os subalternos têm uma identidade? Por que estão convencidos de que só os muçulmanos, os judeus, os gays, as lésbicas, os trans, os moradores de periferias, os migrantes e os negros têm uma identidade? Vocês, os normais, os hegemônicos, os psicanalistas brancos da burguesia, os binários, os patriarco-coloniais, por acaso não têm identidade? Não existe identidade mais esclerosada e mais rígida do que a sua identidade invisível. Que a sua universalidade republicana. Sua identidade leve e anônima é o privilégio da norma sexual, racial e de gênero. Ou bem todos temos uma identidade ou então não existe identidade. Ocupamos todos um lugar diversificado em uma complexa rede de relações de poder.
É preciso reconhecer-se na branquitude, na cisgeneridade, na heterossexualidade, como homens e como corpos magros. Esse reconhecimento implica na compreensão dos privilégios gerados a partir de um sistema de opressão que coloca mulheres, transvestigêneres, negras, pobres e gordas em uma base de produção de desigualdades sociais. Como parte das ciências coloniais, a Psicologia parece também ter nascido na Grécia, pois, se recordo das minhas aulas de história e filosofia, a sentença “conhece a ti mesmo” estava grafada na entrada do Templo de Apolo, em Delfos. Como vemos, os mitos são poderosos, e assim como o espelho de Oxum tem o poder de nos revelar como somos, a máxima de Delfos também exige esse reconhecimento. O processo terapêutico parte de nossos lugares concretos, de nossas experivivências.
A psicóloga travesti Sofia Favero (2020Favero, S. R. (2020). (Des) epistemologizar a clínica: o reconhecimento de uma ciência guiada pelo pensamento cisgênero. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto) biográfica, 5(13), 403-418.) reflete acerca de uma psicologia que não se apresente como uma tela em branco, que se assume rabiscada, que assume a possibilidade de falar outras línguas, como o pajubá4 4 Pajubá ou Bajubá é uma linguagem criada por travestis em situação de prostituição como uma estratégia de se comunicar entre si, a fim de não serem compreendidas por policiais e outras pessoas. Faz uso de palavras de origem Iorubá. , ou então, o pretuguês5 5 O termo pretuguês foi cunhado por Lélia Gonzalez para se referir à herança ancestral linguística dos povos africanos no Brasil. Esse “modo diferente” de falar é constantemente deslegitimado e designado como um erro linguístico. . É preciso partir de seu lugar, de sua língua, mesmo que seja em direção ao desconhecido, que se saiba de onde se partiu, mesmo que se rompa com a origem. A apreensão desse nosso lugar de percepção é fundamental na construção de relações terapêuticas. E no intuito de ampliar essa discussão, transcrevo um relato oral que tive a oportunidade de observar em um grupo de Gestalt-terapeutas:
“Na relação terapêutica, tanto o terapeuta como o cliente precisa ter percepções sobre seus lugares de fala. Eu sou uma mulher branca e cisheterossexual que atende uma mulher travesti negra. Estamos nessa relação, a percepção dos diferentes lugares que ocupamos precisa ser considerada. Não é sobre se colocar no lugar do outro, cada um só vive na sua pele, mesmo que você tente nunca conseguirá calçar o meu sapato, vestir a minha pele, sentir o que eu sinto diariamente como uma travesti negra e gorda”.
“O que eu quero da minha terapeuta não é que ela se coloque no meu lugar, eu desejo que ela me sinta do lugar dela. Que quando ela me atenda, ela não se coloque no centro, no cerne de quem ela é, que ela se permita perceber as conexões entre as minhas experiências e as dela. Assim criamos pontes, habitamos fronteiras, nos colocamos na periferia de nós, onde os encontros são possíveis. Que possamos perceber os estranhamentos que nos atravessam, que pensemos sobre isso, sobre possibilidades de deslocamentos possíveis e necessários, respeitando nossos ritmos. Os nossos lugares precisam se encontrar sem se impor, sem hierarquias, sem a sobreposição de um lugar sobre o outro, devemos compartilhar nossas percepções. Que possamos ter abertura para estas relações (Nascimento, 2022 Nascimento, Letícia Carolina (2022). Cisgeneridade. In M. Alvim, P. Barros, S. Alencar, & V. Brito (Orgs.), Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual (pp. 60-66). Editora Fi., pp. 610-611).
Nem todes ês psicólogues podem afrotranscentrar, embora seja possível se referenciar por leituras e experivivências de pessoas transvestigêneres, negras e gordas. Por isso, penso em uma psicologia que possa habitar as margens e sair de seu centro eurocêntrico, colonial e normativo, que se permita sentir outros cheiros, provar outros sabores e se abrir às diferenças. Que assuma sua responsabilidade ética e política de um cuidado coletivo, que entenda a saúde mental como um direito, como uma necessidade, sobretudo para populações forçadas a encarar feridas abertas desde a colonização. Eu gosto de sonhar com essa psicologia, gosto ainda mais de vê-la acontecer em alguns espaços.
Se precisamos de um fim, que este fim seja da colonialidade
Àquelas de nós cuja existência social é matizada pelo terror; àquelas de nós para quem a paz nunca foi uma opção; àquelas de nós que fomos feitas entre apocalipses, filhas do fim do mundo, herdeiras malditas de uma guerra forjada contra e à revelia de nós; àquelas de nós cujas dores confluem como rios a esconder-se na terra; àquelas de nós que olhamos de perto a rachadura do mundo, e que nos recusamos a existir como se ele não tivesse quebrado: eles virão para nos matar, porque não sabem que somos imorríveis. Não sabem que nossas vidas impossíveis se manifestam umas nas outras. Sim, eles nos despedaçarão, porque não sabem que, uma vez aos pedaços, nós nos espalharemos. Não como povo, mas como peste: no cerne mesmo do mundo, e contra ele (Mombaça, 2017Mombaça, Jota (2017). O mundo é meu trauma. Piseagrama, 11(11), 20-25. https://piseagrama.org/artigos/o-mundo-e-meu-trauma/
https://piseagrama.org/artigos/o-mundo-e... , s/p).
Desta forma, dançaremos engenhosas no fogo que destruirá o sistema-mundo colonial, esse fogaréu que não foi iniciado por nós, que já queimou com ferro nossas peles, as peles de nossas ancestrais. Não iremos sucumbir frente ao fogo colonial, pois clamamos pelo fogo de Xangô e Oyá, o fogo da justiça. Dançaremos como no ritual do Ajere6 6 Ajere é um ritual do candomblé de tradição Ketu que pertence a Xangô e Oyá. Nele, ambos dançam com uma panela de barro cheia de brasas acessas na cabeça, por meio de uma disputa pelo domínio do elemento. , dançaremos e curaremos nossas feridas, dançaremos no fogo (Iná), banharemos no rio Níger, plantaremos o caos, a desordem, não mais a ordem colonial, os binarismos redundantes e os antagonismos hierárquicos: homem x mulher, cis x trans, branco x negro, magro x gordo, não mais!
Inspirada pela artista sudaka e kuir indisciplinada Jota Mobança (2017), ouso afirmar que somos maiores que os nossos traumas. É preciso que sejamos maiores para que possamos nos abraçar em meio a eles, e se o nosso abraço não for suficiente, outros abraços poderão se juntar a esse movimento de acolhida, que a terapia possa ser esse abraço, que nossa irmandade seja esse abraço. Esses poucos mais de 500 anos de colonização não são maiores que nossa ancestralidade. Tempo é rei, canta o griot Gilberto Gil, e nós dançamos nas areias do tempo, areias que se espalham na brasa de Xangô, que se esfriam nas águas do rio Níger de Oya e que refletem no brilho do espelho do Oxum. Podemos inventar um novo tempo, e que este seja pleno de ancestralidade. O afrotranscentramento é um ebó coletivo de cura contra a carga colonial.
Referências
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Oxum é uma orixá associada às águas doces, à beleza e ao amor. Vaidosa, casou-se com Xangô e com Oxóssi. Extremamente perspicaz, isso lhe garantiu o domínio do jogo dos búzios em uma disputa com Exu.
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Xangô é um orixá que rege a justiça, conhecido por seu comportamento diplomático. Possui também o domínio dos trovões e do fogo, tendo sido casado com Oxum, Oyá e Obá.
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Oyá ou Iansã é uma orixá ligada aos raios, às ventanias, ao fogo e até ao domínio dos mortos. Seu culto está relacionado ao rio Níger. Foi esposa de Xangô, com quem dividiu o segredo do fogo, mas também se relacionou com Ogum, com quem aprendeu o manejo da espada, com Oxossi, com quem aprendeu a caçar, com Oxaguiã, com quem aprendeu a usar o escudo, e com Omolu, com quem aprendeu o domínio dos mortos.
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Pajubá ou Bajubá é uma linguagem criada por travestis em situação de prostituição como uma estratégia de se comunicar entre si, a fim de não serem compreendidas por policiais e outras pessoas. Faz uso de palavras de origem Iorubá.
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O termo pretuguês foi cunhado por Lélia Gonzalez para se referir à herança ancestral linguística dos povos africanos no Brasil. Esse “modo diferente” de falar é constantemente deslegitimado e designado como um erro linguístico.
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Ajere é um ritual do candomblé de tradição Ketu que pertence a Xangô e Oyá. Nele, ambos dançam com uma panela de barro cheia de brasas acessas na cabeça, por meio de uma disputa pelo domínio do elemento.
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Financiamento
Não houve financiamento. -
Aprovação, ética e consentimento
Não se aplica. -
Errata
No artigo “QUANTAS SOLIDÕES HABITAM A CORPA DE UMA TRAVESTI NEGRA E GORDA?”, publicado na revista Psicologia & Sociedade, volume 35 (https://doi.org/10.1590/1807-0310/2023v35e277385), na primeira página, na afiliação institucional de Letícia Carolina Pereira Nascimento:Onde se lê:Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa/PB, Brasil;Leia-se:Universidade Federal do Piauí, Teresina/PI, Brasil
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
30 Out 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
07 Ago 2023 -
Revisado
03 Out 2023 -
Aceito
03 Out 2023