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Paradoxos da família contemporânea

Paradoxes of the contemporany family

Paradoxos da família contemporânea

Paradoxes of the contemporany family

Maria de Fatima Araujo

Universidade Estadual Paulista, Assis, Brasil

"A família de hoje não é mais nem menos perfeita do que aquela de ontem:

ela é outra, porque as circunstâncias são outras"

Émile Durkheim

Referência importante no estudo da família contemporânea ocidental, a obra de François de Singly, Sociologia da família contemporânea, ganha tardiamente sua tradução para o português. Originalmente publicada em 1993, é uma leitura obrigatória para quem se interessa pelo tema. Dentre suas muitas qualidades destacam-se: o caráter didático (destina-se a estudantes de sociologia); o resgate histórico que faz das transformações da família ao longo da modernidade, no contexto da sociedade francesa; a análise crítica das diferentes perspectivas teóricas que orientaram e orientam os estudos da família; a riqueza do material empírico que dá base às articulações teóricas e reflexões do autor.

Para os leitores brasileiros o livro é particularmente interessante. Introduz uma outra perspectiva de análise da influência do individualismo nas mudanças da família, notadamente a partir dos anos 1960 e nos segmentos médios urbanos mais intelectualizados. Diferentemente dos autores brasileiros (Heilborn, 2004; Salem, 1978, 2007; Velho, 1985), que no estudo do tema foram mais influenciados pelas ideias de Louis Dumont (1985) e adotam a perspectiva hierárquica, Singly toma como referência a perspectiva durkheimniana do individualismo relacional.

Tendo como ponto de partida as concepções de Durkheim (1975a, 1975b) sobre a família moderna ocidental, Singly define a família contemporânea como "conjugal, relacional e individualista". Conjugal, por sua natureza restrita, centrada no casal com ou sem filhos; relacional, por enfatizar as relações e não as "coisas" (bens familiares); e individualista, por enfatizar a individualidade e a autonomia dos indivíduos. O autor estrutura sua argumentação em torno de dois grandes paradoxos enfrentados pela família na primeira (final do século XIX até metade do século XX) e segunda modernidade (após os anos 60 do século XX).

O primeiro paradoxo refere-se ao duplo movimento "privatização versus socialização da família", ou seja, ao mesmo tempo em que houve maior valorização da intimidade e qualidade das relações interpessoais, houve também maior intervenção do Estado sobre o grupo familiar. "Durante o século XX a família tornou-se um espaço no qual os indivíduos acreditam proteger sua individualidade (valorizada enquanto tal) e 'um órgão secundário do Estado' que controla, apoia e regula as relações dos membros da família" (Singly, 2007, p.29).

O segundo paradoxo refere-se à contradição implícita na busca por autonomia/independência versus dependência do indivíduo em relação à família e à parentela, e do próprio casal em relação à individualidade/conjugalidade. Mais evidente na segunda modernidade, esse paradoxo acentuou-se nas últimas décadas com as mudanças nas relações de gênero, sob a influência do feminismo, expansão da democracia, diversidade de valores e estilos de vida e surgimento de novos arranjos conjugais e familiares (Giddens, 1993). Fez crescer, igualmente, o grande dilema vivido pelo indivíduo contemporâneo entre a busca por relações mais frouxas e livres das amarras institucionais, e a necessidade, premente, de referências afetivas sólidas como a família, seja ela de qualquer tipo (Araujo, 2008; Bauman, 2004).

Além da introdução e da conclusão escrita para a edição brasileira, o livro está estruturado em três partes, e inclui, no final, algumas indicações bibliográficas comentadas. Na introdução, o autor, inspirado nas ideias de Durkheim (1975b), apresenta um breve retrato da família contemporânea, tendo em vista os três grandes temas analisados em cada parte do livro: a dependência da família em relação ao Estado (parte I), a autonomia da família contemporânea em relação à parentela (parte II), e a autonomização do indivíduo em relação à família contemporânea (parte III). Singly recupera não só as principais ideias de Durkheim, depois retomadas por outros estudiosos da família, mas também as críticas feitas a ele, especialmente por assumir posições conservadoras em relação às mudanças da família, tal como fez com o divórcio.

Nos dois capítulos que compõem a primeira parte do livro, Singly trata da "dependência da família moderna em relação à escola e ao Estado". Na análise que faz do papel da escola, ele retoma, além de Durkheim, autores como Philipe Ariès (1981) e Pierre Bourdieu (1989), para entender como o "capital escolar" tornou-se um valor fundamental para as famílias contemporâneas, uma verdadeira estratégia de reprodução social e familiar, fundamental na aquisição e preservação do capital econômico e cultural. Com relação ao Estado, destaca seu papel como "um substituto econômico do marido", regulador da família em três níveis – jurídico, econômico e institucional – e através de diferentes estratégias e procedimentos – leis, políticas e intervenções voltadas para a assistência e proteção. A psicologização da família, culpabilização dos pais e dependência dos especialistas são algumas das consequências destacadas nesse processo (Donzelot, 1986).

Na segunda parte, "A autonomia da família contemporânea em relação à parentela", o autor faz uma releitura de Talcolt Parsons (1968) e das mudanças que apontam para uma maior independência da família em relação à parentela, tais como: descontinuidade intergeracional na incorporação de valores e tradições; distanciamento da família conjugal (família de procriação) em relação à família de origem; menos vigilância e maior liberdade de escolha, inclusive do parceiro; novos laços de afeição e independência, incluindo maior reciprocidade entre pais e filhos.

A terceira parte "A autonomização do indivíduo em relação à família contemporânea" trata das transformações da família na segunda modernidade, do sentido e consequências dessas mudanças nas relações conjugais, na construção de novos modelos familiares distanciados do padrão tradicional (família nuclear ou restrita, homem provedor mulher dona-de-casa). O autor destaca, especialmente, a influência do feminismo, a inserção da mulher no mercado de trabalho, a reorganização das relações de poder dentro da família, maior valorização da intimidade e qualidade das relações, e, também, o aumento da fragilidade e instabilidade dos laços conjugais e familiares.

E, por fim, na conclusão, Singly faz uma breve revisão das mudanças da primeira e segunda modernidade e suas consequências nas tensões e conflitos vividos pelas famílias e indivíduos contemporâneos. Segundo ele, o deslocamento da centralidade da família para o indivíduo, com tanta ênfase na autonomia e individualidade, acabou resultando em muitos excessos e na crescente necessidade de se buscar um novo equilíbrio entre autonomia e segurança, e dependência e independência, dos indivíduos em relação à família e desta em relação ao Estado.

Recebido em: 25/11/2009

Revisão em: 08/03/2010

Aceite em: 12/03/2010

Maria de Fatima Araujo é Doutora em Psicologia Social (IPUSP), Docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UNESP de Assis/SP, pesquisadora do Núcleo de Estudos Violência e Relações de Gênero. Endereço: Rua Henrique Schaumann, 1180/101 São Paulo/SP, Brasil. CEP 05413-011. Email: fatimaraujo@uol.com.br

  • Araújo, M. F. (2008). Família, democracia e subjetividade.  ORG&DEMO,  9(1-2)111-124.
  • Ariès, P. (1981). História social da criança e da família (D. Flaksman, Trad.). Rio de Janeiro: Zahar.
  • Baumann, Z. (2004). Amor líquido (C. A. Medeiros, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores.
  • Bourdieu, P. (1989). La noblesse d'État Paris: Minuit.
  • Donzelot, J. (1986). A polícia das famílias (M. T. C. Albuquerque, Trad., 2Ş ed.). Rio de Janeiro: Edições Graal.
  • Dumont, L. (1985). O individualismo uma perspectiva antropológica da ideologia moderna (A. Cabral, Trad.). Rio de Janeiro: Editora Rocco.
  • Durkheim, E. (1975a). Introduction à la sociologie de la famille. In E. Durkheim, Textes III (pp. 9-34). Paris: Minuit.
  • Durkheim, E. (1975b). La famille conjugale. In E. Durkheim, Textes III (pp.35-49). Paris: Minuit.
  • Heilborn, M. L. (2004). Dois é Par. Gênero e identidade sexual em contexto igualitário Rio de Janeiro: Garamond Universitária.
  • Giddens, A. (1993). A transformação da intimidade (M. Lopes, Trad.). São Paulo: Editora Unesp.
  • Parsons, T. (1968). Élements pour une sociologie de l'acion Paris: Plon.
  • Salem, T. (1978). O velho e o novo: um estudo de papéis e conflitos familiares Petrópolis, RJ: Vozes.
  • Salem, T. (2007). O casal grávido. Disposições e dilemas da parceria igualitária Rio de Janeiro: Editora FGV
  • Singly, F. de (2007). Sociologia da família contemporânea (C. E. Peixoto, Trad.). Rio de Janeiro: Editora FGV.
  • Velho, G. (1985). Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Nov 2011
  • Data do Fascículo
    Ago 2011
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