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resistência à barbárie: educação e psicologia pelos direitos humanos

resistencia a la barbarie: educación y psicología por los derechos humanos

resistance to barbarism: education and psychology for human rights

Resenha de Cássio, Fernando. (Org.). (2019). Educação contra a barbárie: Por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar . Boitempo.

O livro foi publicado no início do governo Bolsonaro, num contexto de ataques à educação, à escola pública, à ciência e aos(às) professores(as). No prólogo, Fernando Haddad afirma que, na eleição de 2018, venceu o “ultraliberalismo obscurantista” (“neoliberalismo regressivo”), e que a obra compõe o “esforço nacional de repor em bases minimamente civilizadas o debate sobre educação no Brasil” (p. 11). Na apresentação, Fernando CássioCássio, Fernando (Org.). (2019). Educação contra a barbárie: Por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar. Boitempo., organizador da obra, explica que o título do livro faz referência ao debate radiofônico transcrito com o título “A Educação contra a barbárie”, publicado em Educação e Emancipação, no qual Adorno (1968Adorno, Teodor (1968). Educação e emancipação. Paz e Terra.) dimensiona a barbárie como produção dos sistemas sociais e aponta para a urgência de desbarbarizar a educação.

A obra resulta da articulação dos(as) 29 autores(as), incluindo duas Redes, que “não têm medo de dizer quem são os inimigos da educação” (p. 16). Subdivide-se em três partes. A parte I, “a barbárie gerencial”, trata dos ataques engendrados por agendas empresariais cada vez mais indistinguíveis das políticas oficiais, com parcerias público-privadas e modelos de gestão “inovadores” e “rentáveis”.

Daniel Cara denuncia que, na contramão da perspectiva constitucional da educação como um direito humano, ações ultraliberais e ultrarreacionárias, ao tratarem a educação como um insumo econômico e oporem pedagogia e disciplina, instituem a barbárie. Defende, contra a barbárie, o direito à educação.

Carolina Catini aponta para a captura da educação pelo capital, de modo que a competitividade, a privatização dos direitos sociais e a limitação da educação a um “produto” são naturalizadas mediante tecnologias de gestão cuja lógica é a da produtividade empresarial.

Silvio Carneiro visibiliza a aniquilação do caráter relacional da educação mediante a chamada “ideologia da aprendizagem”, a partir da qual a relação “ensino-aprendizagem” é apagada. O “ensino” torna-se antiquado e a “aprendizagem”, o novo valor ancorado em metas e índices de desempenho. Porém, educação pressupõe vida, desejo, significação de experiências, alteridade radical.

Ana Paula Corti traça um panorama histórico do ensino médio anunciando a relação educação e estrutura social, que envolve interesses contraditórios nas políticas e práticas educacionais. Se a expansão do ensino médio público ocorreu historicamente pela demanda popular, reformas de caráter neoliberal têm destruído esta etapa a favor da acumulação de capital.

Catarina Santos alerta que a análise da expansão da Educação a Distância deve considerar a força do mercado educacional e a incidência dos(as) empresários(as) do ramo nas esferas estatais, inclusive regulatórias. A partir de 2017, com Temer, a desregulamentação da modalidade promoveu a expansão sem controle e sem qualidade.

José Pinto discute o financiamento da educação a partir do que denomina de mitos: o Brasil não gasta pouco, gasta mal; gasta muito com a educação superior pública, frequentada por jovens cujas famílias poderiam pagar mensalidades, o que dificulta a melhoria da educação básica; e a ampliação dos gastos não vai melhorar a qualidade. Trata da necessidade de gastar 10% do PIB na próxima década para pagar a enorme dívida educacional.

Vera Chaves aborda o ensino “superior privado-mercantil”, que no contexto do capitalismo financeiro mundializado passa a educação de direito a serviço altamente lucrativo, consolidado por grandes conglomerados empresariais (holdings) que objetivam declaradamente o lucro. Este é incrementado inclusive com recursos públicos, ao passo que são cortados recursos da educação pública. A oligopolização do setor é incompatível com os princípios que norteiam os processos educativos.

Marina Avelar busca “desmistificar a política educacional e humanizar o seu funcionamento”, atentando para a nova tendência internacional de gestão pública em que operam redes de governança complexas e dinâmicas formadas por governo, filantropia e mercado, que têm colaborado na formulação e na execução de políticas públicas com foco no lucro e relegam questões pedagógicas, éticas e sociais. Há um empenho de “despolitização” da política pública, por isso defende que é preciso “repolitizar” a política educacional e fortalecer um projeto democrático de educação, contra a redução da educação a uma questão técnico-administrativa.

“A barbárie total”, parte II, examina projetos e estratégias contra a escola e que se materializam em ataques às práticas docentes e à educação democrática.

Bianca Correa debate os sentidos em torno da educação na primeira infância: educação pública defendida para a criança, sujeito de direitos; ou educação como “empreendimento social” na formação de capital humano. Na perspectiva de educação como estratégia econômica, reformadores(as) empresariais sustentam medidas “alternativas” e de baixo custo, segundo as quais a educação se dá no âmbito familiar (consumidor de produtos educacionais), e o Estado é mero “parceiro” de tais negócios de “impacto social”.

Isabel Frade enuncia a alfabetização como conceito em disputa: ou como processo tecnicista e neutro ou como direito coletivo, instrumento para a participação social. Diante do índice de analfabetismo funcional, o atual governo culpa o letramento (condição adquirida por grupos e pessoas que utilizam a leitura e a escrita para diferentes fins) e retorna a duas polêmicas falaciosas: a de que existe um método melhor para alfabetizar e a de que a solução é meramente técnica e relacionada ao treino da consciência fonêmica desde a infância. Volta, assim, a uma visão restrita de alfabetização que privilegia um único método (o fônico) e a separa da compreensão e do sentido das aprendizagens, exaltando o “mito do alfabetismo”, segundo o qual basta alfabetizar para que as mudanças sociais ocorram.

Matheus Pichonelli contextualiza o debate sobre homeschooling, que encontra um cenário favorável no atual governo. Diante dos ataques aos(às) docentes e de discursos que prezam pela restauração de uma suposta ordem perdida, cabe questionar os interesses e disputas em torno da defesa da educação domiciliar, que, ao afirmar a escola como uma ameaça, atua a favor da “domesticação” do(a) aluno(a) e não de sua autonomia.

Rudá Ricci versa sobre a militarização das escolas públicas enquanto expressão de disputas no campo da educação. Através da comoção perante os índices de violência e da sedução dos resultados pedagógicos, promove-se o convencimento público de que a gestão escolar deva ser entregue a corporações militares e que tal modelo se torne referência. Nesse processo é negado o debate necessário entre autonomia e submissão do(a) educando(a).

Denise Botelho destaca que o debate sobre a diversidade de religiões afro-indígenas exige reflexões acerca do racismo, tendo como princípio a laicidade da educação. Na contramão do proselitismo e das manifestações de ódio à diversidade étnico-racial, o conhecimento religioso, a partir de sua indissociabilidade com as noções de democracia, direitos humanos, cultura e constituição de identidades, é um caminho em prol da educação para a diversidade religiosa.

Maria Carlotto pauta o anti-intelectualismo, alertando que seus(suas) adeptos(as) não apenas desprezam a educação e o conhecimento, mas apresentam outro perfil de intelectual que reivindica uma nova concepção de educação e saber; não se empenham na mera destruição do espaço de produção e difusão do conhecimento, mas se armam para operar nele uma disputa pelos critérios de geração e legitimação da verdade. A autora conclama os(as) intelectuais para a defesa do conhecimento produzido por instituições, procedimentos e metodologias científicas modernas, e para o engajamento mais decisivo na democratização desse conhecimento, não só por meio da divulgação, mas também adotando dinâmicas e metodologias de ampla participação social.

Alexandre Linares e José Bezerra evidenciam que o Escola sem Partido faz parte de um movimento reacionário mais geral contra os direitos sociais, no qual a neutralidade propalada é um mito que encobre uma ação partidária associada a agendas da direita e da extrema-direita e ataca a liberdade de ensinar. Tal movimento, por meio da assertiva de que a ideologização na educação substituiu o ensino propriamente dito desde o fim da ditadura e resultou em fracos resultados escolares, figura o(a) professor(a) como um(a) doutrinador(a)-pervertido(a) de esquerda e introduz nas escolas métodos de gestão que acentuam valores privado-familiares em substituição a um ensino laico e científico. Ao submeter e limitar o ensino escolar ao que é aceitável pelas famílias liquida o próprio conceito de escola. Combater tais censuras é defender a escola pública.

Rogério Junqueira explica o sintagma, de origem católica, “ideologia de gênero” e argumenta que, em vez de uma posição defensiva daqueles(as) que são acusados(as) de promover esta “ideologia”, valeria afirmar que ela existe, mas não como descrevem os cruzados antigênero, e sim como objeto construído e evidenciado pelo discurso que o denuncia em favor de um projeto de sociedade regressivo, antidemocrático e antilaico. Diferentemente de uma das suas estratégias ideológicas centrais que é a de renaturalizar a ordem social, moral e sexual tradicional e tratar como antinaturais tudo o que a contraria, o autor indica que o conceito sociológico de ideologia de gênero (sem aspas) pode ser útil para identificar, compreender e criticar a naturalização das relações de gênero, das hierarquias sexuais e da heterossexualização compulsória.

Sérgio Haddad assinala que as críticas de setores conservadores a Paulo Freire se dão no sentido da qualidade literária dos seus textos e da sua pedagogia, acusando-a de proselitismo político em favor do comunismo; responsabilizam-no pela piora da qualidade no/do ensino; afirmam que seus escritos estão ultrapassados, e que o lugar de fazer política é nos partidos e não nas escolas. O autor argumenta que são críticas infundadas advindas de setores que não reconhecem em Freire o interlocutor consagrado e respeitado internacionalmente, ao que resgata a afirmação de Celso Beisiegel de que ele é “o educador proibido de educar”.

“Educação contra a barbárie” (parte III) delineia a defesa coletiva por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar.

Rodrigo Ratier discorre sobre o papel de afetos e emoções na educação, problematizando que abordá-los não significa, necessariamente, falar de competências socioemocionais, como na Base Nacional Comum Curricular, em que aspectos comportamentais e cognitivos são colocados como polos opostos e a personalidade é entendida como um conjunto de disposições estáveis e imutáveis. Com referenciais frágeis, a abordagem dos aspectos afetivos tende a reforçar ora o paradigma da eficiência e da produtividade, ora o enquadramento disciplinar. A conceituação caricatural sobre a afetividade suprime as emoções consideradas “difíceis”, e o autor sinaliza que, ao contrário, a escola transformadora não condena a raiva e a rebeldia, mas as compreendem como parte do processo para a formação de indivíduos autônomos, capazes de crítica e reflexão.

Pedro Pontual ressalta a necessidade de se fazer trabalho de base com educação popular, tomando o território como ponto de partida para a constituição de redes de resistência e por direitos, como espaço de construção social e de identidades, e de articulação dos(as) atores e atrizes sociais para uma ação integrada, participação e controle dos(as) cidadãos(ãs) sobre as políticas públicas. Destaca a cultura como educação e elo de articulação de práticas emancipadoras, e a necessidade de priorizar a construção de novas estratégias de educação política, construindo uma contra-hegemonia que fortaleça subjetividades críticas e a participação das classes populares nos processos de transformação social.

Bianca Santana foca os recursos educacionais abertos (REA) - materiais de ensino, aprendizagem e investigação de domínio público ou de licença aberta - como alternativas aos livros didáticos e apostilas produzidas por grandes editoras, cuja principal finalidade é o lucro. Embora a noção de REA tenha sido elaborada no alinhamento com políticas neoliberais, projetos e políticas que usam esses recursos se contrapõem à ideia de educação como mercadoria. Refere os projetos Folhas e Livro Didático Público, desenvolvidos no Paraná, como experiências em que o conhecimento foi considerado bem comum e se apostou na autonomia de professores(as) e estudantes para definirem conteúdos e abordagens utilizados em sala de aula.

Sonia Guajajara reflete sobre o conhecimento tradicional indígena como práxis de resistência no modo de fazer educação, conectada com a cultura, a identidade e o território. Para tal, é preciso desconstruir a visão hegemônica estereotipada e distorcida da sociedade brasileira acerca do “índio” em direção à interculturalidade (troca de saberes), em que os conhecimentos tradicionais formam a base para a prática de descolonização do pensamento. A educação indígena ensina o respeito aos diferentes espaços e tempos, enfatiza a territorialidade e o fazer democrático e plural.

Alessandro Mariano apresenta o projeto educativo do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), que busca a formação e o desenvolvimento humano pleno, e propõe uma forma escolar que tem como base as pedagogias socialista, do oprimido e do MST. As escolas e práticas educativas do movimento visam contribuir com a construção da sociedade socialista, configurando, num cenário de recrudescimento da criminalização dos movimentos e organizações populares, uma pedagogia da/em resistência construída no processo de organização das famílias sem-terra na luta pela Reforma Agrária popular e pela escola pública da classe trabalhadora.

A Rede Brasileira de História Pública manifesta os usos do passado como uma arena de disputas. A defesa por histórias públicas pautadas na reflexão coletiva faz frente a narrativas tomadas como legítimas porque contadas por homens brancos, a partir de seus privilégios sociais e políticos. Uma atitude historiadora, fundamentada na pesquisa científica, na circularidade do conhecimento e na ampliação ética dos públicos da história, é proposta contra o revisionismo histórico, que, ao legitimar teses negacionistas, impede a democratização da história.

Aniely Silva relata sua experiência e a construção de um olhar sobre a escola como lugar de ocupação e existências. Esse olhar, construído na sala de aula, no curso de Direito à Educação, nas atividades durante as ocupações, na (re)criação de uma cultura política, permitiu à autora e a muitos(as) estudantes de ensino médio significar “por que a escola existe e a quem ela pertence” (p. 191).

A Rede Escola Pública e Universidade apresenta sua trajetória com início nas ocupações de escolas, em 2015, contra a reorganização da rede estadual paulista. A partir da intersecção entre universidade, escolas e movimentos sociais, a Rede defende que a produção e difusão do conhecimento deve estar disponível para as lutas educacionais.

Por fim, bell hooks defende uma educação democrática, pautada na formação como experiência em oposição à educação fora do “mundo real”. A universalização da alfabetização, a noção de estudar para aprender, a abertura dos espaços de aprendizagem, o compromisso com a justiça social e com o pluralismo são pautas de luta.

O trabalho do(a) psicólogo(se) que pretende ser transformador não pode prescindir dos conhecimentos críticos advindos dos(as) pensadores(as) da educação, como os(as) deste livro. A educação compõe uma arena de disputas políticas, sociais e econômicas; e a escola, um espaço disputado por concepções pedagógicas e psicológicas divergentes. Por isso, é fundamental evidenciar posicionamentos e seus pressupostos, problematizar as práticas e implicar-se com seus efeitos, sendo oportuno questionar: qual Psicologia Escolar defendemos, se a favor da reprodução da barbárie ou da construção da emancipação.

Na perspectiva da Psicologia Social, Odair Sass (2000Sass, Odair (2000). Educação e psicologia social: Uma perspectiva crítica. São Paulo em Perspectiva, 14(2), 57-64. https://doi.org/10.1590/S0102-88392000000200009
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) argumenta em prol da contribuição crítica da Psicologia com a educação escolar, com vistas à “formação do indivíduo autoconsciente e autônomo” (p. 63). Também Maria Helena Patto (1984Patto, Maria Helena (1984). Psicologia e ideologia: Uma introdução crítica à psicologia escolar. T. A. Queiroz.) reivindica um posicionamento crítico e político acerca do papel social do(a) psicólogo(a) escolar, tomando a ciência psicológica como uma produção sócio-histórica que pode ou justificar ou denunciar as estruturas de poder. Assim, os(as) psicólogos(as) devem estar atentos(as) a todas as formas de captura do sistema escolar pelas quais se manifestam a individualização, a medicalização e a patologização, que muitas vezes lhes exigem papéis e funções incongruentes com uma perspectiva popular e libertadora.

Lutar, resistir e construir uma educação escolar pautada nos Direitos Humanos é uma tarefa civilizatória, cuja importância se assevera nestes tempos de pandemia de covid-19 (e no pós-pandemia), que escancarou e aprofundou a crise do capitalismo e demonstrou que sem serviços públicos não há como manter a vida humana. Desnudada a falácia da receita ultraliberal, o livro contribui com o intento de reconstituir uma maioria civilizatória em nosso país e permite evidenciar um posicionamento ético-político pela vida, cada vez mais necessário.

Referências

  • Adorno, Teodor (1968). Educação e emancipação Paz e Terra.
  • Cássio, Fernando (Org.). (2019). Educação contra a barbárie: Por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar Boitempo.
  • Patto, Maria Helena (1984). Psicologia e ideologia: Uma introdução crítica à psicologia escolar T. A. Queiroz.
  • Sass, Odair (2000). Educação e psicologia social: Uma perspectiva crítica. São Paulo em Perspectiva, 14(2), 57-64. https://doi.org/10.1590/S0102-88392000000200009
    » https://doi.org/10.1590/S0102-88392000000200009

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    06 Mar 2021
  • Revisado
    16 Jun 2021
  • Aceito
    16 Jun 2021
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