Acessibilidade / Reportar erro

Contribuições da psicologia social para o psicólogo na saúde coletiva

Social psychology contributions to the collective health psychologist

Resumos

Neste trabalho tecemos contribuições da Psicologia à saúde coletiva, relacionando os modos de subjetivação com a produção de sintomas. Um dos focos centrais deste estudo consiste na compreensão sobre a produção e manutenção de padrões de adoecimento/saúde a partir da vida cotidiana. Como desdobramentos, desenhamos algumas possibilidades de atuação do psicólogo nos contextos da saúde. Nesse sentido, suscitamos aspectos epistemológicos do fazer psicológico a partir de uma concepção de sujeito sócio-histórico. Assim, baseados na premissa do sintoma como linguagem, propomos um modelo de intervenção psicológica adequado às políticas nacionais de saúde mental, procurando enfatizar as estratégias de atuação no SUS (Sistema Único de Saúde) nos três níveis de atenção em saúde: atenção básica, média complexidade e alta complexidade. Todos os níveis de atenção psicológica em saúde podem ser entendidos a partir da concepção dialética sobre constituição de sujeito e produção de sintomas.

Psicologia; saúde; saúde coletiva


In this study we have tried to understand the collective health through the modes of subjectivity related to the production of symptoms.The central focal point consists in understanding the creation and maintenance of patterns of sickness/health within everyday life. We identified potential treatment options for the psychologist within the context of health. Accordingly, we identify epistemological aspects of practicing psychology based on a socio-historical concept of the subject. Therefore, drawing on the premise of symptoms as a form of language, we propose a model of psychological intervention appropriate to the national politics of mental health, highlighting strategies of action for SUS (Sistema Único de Saúde or Brazil's Universal Health Care System) on three levels of patient-health complexity: low, medium, and highly complex. Each level of psychological treatment in healthcare can be understood based on a dialectic understanding of the construction of the subject and the corresponding production of symptoms.

psychology; health; public health


Contribuições da psicologia social para o psicólogo na saúde coletiva* * Agradecimentos à Universidade Federal de Santa Catarina, especialmente ao Departamento de Extensão, cujos editais Pró-bolsa/Pró-extensão auxiliaram ao desenvolvimento deste trabalho.

Social psychology contributions to the collective health psychologist

Magda do Canto Zurba

Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil

RESUMO

Neste trabalho tecemos contribuições da Psicologia à saúde coletiva, relacionando os modos de subjetivação com a produção de sintomas. Um dos focos centrais deste estudo consiste na compreensão sobre a produção e manutenção de padrões de adoecimento/saúde a partir da vida cotidiana. Como desdobramentos, desenhamos algumas possibilidades de atuação do psicólogo nos contextos da saúde. Nesse sentido, suscitamos aspectos epistemológicos do fazer psicológico a partir de uma concepção de sujeito sócio-histórico. Assim, baseados na premissa do sintoma como linguagem, propomos um modelo de intervenção psicológica adequado às políticas nacionais de saúde mental, procurando enfatizar as estratégias de atuação no SUS (Sistema Único de Saúde) nos três níveis de atenção em saúde: atenção básica, média complexidade e alta complexidade. Todos os níveis de atenção psicológica em saúde podem ser entendidos a partir da concepção dialética sobre constituição de sujeito e produção de sintomas.

Palavras-chaves: Psicologia; saúde; saúde coletiva.

ABSTRACT

In this study we have tried to understand the collective health through the modes of subjectivity related to the production of symptoms.The central focal point consists in understanding the creation and maintenance of patterns of sickness/health within everyday life. We identified potential treatment options for the psychologist within the context of health. Accordingly, we identify epistemological aspects of practicing psychology based on a socio-historical concept of the subject. Therefore, drawing on the premise of symptoms as a form of language, we propose a model of psychological intervention appropriate to the national politics of mental health, highlighting strategies of action for SUS (Sistema Único de Saúde or Brazil's Universal Health Care System) on three levels of patient-health complexity: low, medium, and highly complex. Each level of psychological treatment in healthcare can be understood based on a dialectic understanding of the construction of the subject and the corresponding production of symptoms.

Keywords: psychology; health; public health.

Contribuições da Psicologia Social para o psicólogo na saúde coletiva

Este artigo problematiza o processo de subjetivação na vida cotidiana e seus (des) caminhos na construção de sintomas. Construímos elaborações teóricas que nos auxiliaram a pensar o fazer psicológico no âmbito da saúde coletiva a partir de uma concepção sócio-histórica de sujeito e produção de sintomas. Ao mesmo tempo em que abordamos o cenário das experiências subjetivantes como palco de construções simbólicas, entendemos a produção e manutenção de sintomas como formas de linguagem no campo da saúde coletiva. Neste sentido, perspectivando o olhar sobre o fazer do psicólogo no contexto social, observamos que todo o sintoma pode ser entendido na lógica da coletividade. Como June Hahner (1993) demonstrou em seus estudos sobre a história da pobreza urbana no Brasil, o adoecimento esteve relacionado às precárias condições de vida pelo menos desde o tempo do Império:

Mesmo as doenças comumente não-mortais como o sarampo, coqueluche, gastrenterite e infecções parasitárias tornavam-se mortais, devido, em grande parte, à alimentação inadequada. ... O trabalhador urbano pobre, extenuado pelo excesso de trabalho e mal-alimentado, era pego em um círculo vicioso de subnutrição e infecção. (Hahner, 1993, p.227)

A questão da saúde na psicologia

A preocupação da humanidade com a questão da saúde é muito anterior ao surgimento da Psicologia científica. Esta haverá de herdar, contudo, no final do século XIX e início do século XX, o método clínico de que dispunha a Medicina. Entretanto, sucede o fato de que o modelo clínico não respondia em efeitos para a Psicologia, tal como respondia à Medicina. De toda forma, a clínica foi apenas uma das maneiras, e a primeira, pela qual a Psicologia ingressou no terreno da saúde.

Michel Foucault (1998) aponta com cuidado em sua obra O nascimento da clínica que a aplicação de modelos de intervenção médica se repetiam e funcionavam em diferentes pacientes. Entretanto, isso não se sucedeu na Psicologia – aquilo que chamamos de "sintoma psicológico" se repetia em diferentes sujeitos, mas a recuperação não respondia da mesma forma diante de intervenções semelhantes. Autores como Luiz Cláudio Figueiredo (2000) e Fernand-Lucien Mueller (1978) oferecem um detalhado panorama a respeito da história da Psicologia, que não nos caberia aqui resgatar. Vale, contudo, salientar que herdamos, além do paradigma clínico da Medicina, aspectos do próprio vocabulário. O termo "sintoma", por exemplo, amplamente empregado na atividade médica, vai também aparecer no cenário psicológico, mas estará para sempre condenado às especulações sobre suas causas.

Conforme Foucault (1998), a formação do método clínico esperava o olhar do médico no campo dos signos e dos sintomas, de modo que, primeiramente, os sintomas constituíam em si, a própria doença. Na origem do método clínico, Foucault localizou certa ingenuidade naturalística, na medida em que a doença podia ser fenômeno de si mesma, representar a si própria, e não ser vista como anormalidade. Mas, a seguir, haverá o que Foucault denomina como "intervenção da consciência", que há de separar signo de sintoma, embora aquele coincida justamente com este. Assim, em sua realidade material, o signo se identifica com o próprio sintoma, mas já não haverá signo sem sintoma. Eis aí a necessidade do método clínico aperfeiçoado, em que o médico ocupará o lugar daquele que saberá "decifrar" o sintoma, e "traduzi-lo" em um signo correspondente. Dessa forma, a doença passaria a ser "enunciável", descrita como "verdade" através dos signos.

Relevante, sobretudo para a Psicologia, é que a descrição de sintomas baseada no método clínico delegou ao médico um exercício de poder antes inimaginável. Os signos médicos passaram a revelar a "verdade" sobre o homem, mesmo que o sintoma em questão não fosse exclusividade do olhar médico, como por exemplo, a "loucura".

Foucault (2000) retrata minuciosamente em sua obra História da Loucura como a exclusão do enfermo mental está impregnada de signos médicos, mas também de uma nova ordem social que se impunha na Europa durante o final da Idade Média. Ao mesmo tempo em que a verdade sobre o sujeito insano pressupõe que o sintoma da loucura lhe é um sinal de doença, o descolamento possível entre signo e sintoma nos permite duvidar da precisão pela qual o signo pode desvelar o sintoma. E assim, por meio de uma epistemologia muito apropriada ao fazer psicológico, podemos nos indagar por novos modos de compreender as traduções dos sintomas.

Saúde coletiva e vida cotidiana

As práticas psicológicas em saúde têm, recentemente, considerado que a saúde em si não é isenta de história, mas ao contrário. A saúde tem uma história na vida cotidiana das pessoas e das comunidades. Nesse sentido, estamos empregando o termo "vida cotidiana" além do simples conceito de "vida diária". Vida cotidiana implica, efetivamente, a realidade social em que os homens produzem e reproduzem constantemente suas condições de existência (Heller, 1994; Lukács, 1978).

Entendemos que a "atividade vital consciente" (Vigotski, 1998) na vida cotidiana compreende determinada esfera de atividades que o homem realiza e pelas quais ele pode produzir a si mesmo como homem na sociedade. Essa concepção ontológica de Vigotski pode ser bem compreendida nos escritos de Heller (1994) e Lukács (1978), a partir de um referencial que ficou conhecido como "ontologia do ser social". Nessa perspectiva, os modos de subjetivação na vida cotidiana consistem em sínteses dialéticas constantes, presentes na tensão da tríade: particularidade, singularidade e universalidade. É no campo desses tensionamentos entre as diferentes esferas da vida cotidiana que se estabelece a condição ontológica do homem. Nesse sentido, ao processo de subjetivação é sempre inerente o processo de intersubjetivação.

Dessa forma, é nas atividades relacionadas à constituição intersubjetiva que tecemos nossa raiz cultural e social: as atividades de desenvolvimento de linguagem, de culinária, de vestimenta, o modo como aprendemos a morar, a dormir, enfim, o modo como aprendemos a viver como homens em sociedade.

Por outro lado, desde o advento do capitalismo, o trabalho alienado que se sobrepõe à atividade vital consciente faz com que a atividade vital do homem se torne, muitas vezes, apenas um meio para sua existência. Cabe, portanto, ao particular, desempenhar a mediação entre os homens singulares e a sociedade em que vivem. Nesse sentido, a vida individual e a vida genérica não são distintas. Entretanto, a vida individual pode apresentar modos mais particulares ou mais gerais de vida genérica, e a vida genérica pode se mostrar na forma mais particular ou mais geral de vida individual. Ou seja, a atividade do homem somente seria possível no campo das determinações que a universalidade, a particularidade e a singularidade se colocam mutuamente.

Assim, entendemos que a saúde na vida cotidiana é uma resultante deste permanente exercício dialético (singularidade/particularidade/universalidade) em que os sujeitos produzem e reproduzem a si mesmos e as suas condições de sobrevivência. Dessa forma, os homens particulares se reproduzem, a si mesmos, como particulares - ao mesmo tempo em que recriam a reprodução social. Justamente neste processo de "vir a ser" do homem na comunidade, se trama aquilo que encontramos como saúde coletiva.

Por conseguinte, a promoção de saúde na Psicologia não pode ser neutra ou indiferente às questões cotidianas pois, da mesma forma, a vida comunitária não pode ficar à margem das experiências imediatas, que oferecem significados e criam novos contornos. Constituída na dimensão da particularidade, a experiência cotidiana de saúde necessita considerar diferentes aspectos das relações humanas: a história, a política, a economia, o preço do arroz, do feijão, da carne, ou mesmo como cozinhamos tudo isso... Como lembra Angerami-Camon:

uma verdade psicológica tem de ser ao mesmo tempo uma verdade social, econômica, familiar e quantas outras conceituações puder abarcar. A historicidade das condições e variáveis que envolvem a vida de uma determinada pessoa não podem ficar ausentes de qualquer análise psicológica. Muito mais do que um paciente acometido por uma determinada patologia, ele será um agente de suas condições vitais, alguém que estará trabalhando pela reconstrução de sua saúde e pela sua realidade social, familiar e até mesmo econômica. Uma psicologia que envereda pelos mais diferentes caminhos para procurar um novo delineamento na abordagem e sistematização dos conhecimentos. (Angerami-Camon, 2006, p.13)

O sintoma como linguagem

Os modos de subjetivação na vida cotidiana nos indicam os modos de produção e manutenção de sintomas. Ou seja, o modo como o sujeito adoece e morre é revelador sobre o modo como vive. Contudo, essa premissa nada tem a ver com a concepção cartesiana a respeito da dissociação somática repetida na literatura psicossomática.

A constituição dialética de sujeito nos permite observar o fenômeno da produção de sintomas imediatamente a partir da particularidade, ou seja, na experiência da vida cotidiana. Na perspectiva de superar a compreensão meramente dicotômica da díade saúde/doença – tão mencionada nas políticas de saúde -, entendemos a compreensão da formação do sintoma no âmbito da totalidade do sujeito, segundo um olhar que não irá distinguir aspectos físicos ou mentais, e, por conseguinte, sintomas físicos ou mentais. Assim, quando pensamos em sintomas, estamos nos referindo a qualquer sintoma: dor lombar, enxaqueca, arritmia cardíaca, tristeza profunda, depressão, ansiedade, prisão de ventre, fobias, crises renais, etc. Sobretudo, entendemos o sintoma no campo do simbolismo da linguagem como forma de comunicação do sujeito em seu mundo.

Com base em Vigotski, Luria e Leontiev (1988), observamos aspectos da semiótica e da ontologia na compreensão do sintoma e dos fazeres psicológicos possíveis no contexto da saúde. Aparentemente, o fenômeno da formação de símbolo seria muito simples, visto que a criança pequena, principalmente a partir de dois anos de idade, já consegue se comunicar com elevada habilidade, coordenando vocabulários e expressões complexas por meio da linguagem verbal. Contudo, o mais treinado dos macacos não poderia chegar, sequer, a se aproximar do desenvolvimento corriqueiro de uma criança de dois anos. O desenvolvimento da linguagem complexa é, portanto, uma capacidade inerente à espécie humana, uma vez que não apenas nos comunicamos (tais como as abelhas, os cães, etc.), mas passamos a pensar através de símbolos, utilizando símbolos sobre símbolos.

Dessa forma, a linguagem mesma passa a organizar o pensamento. A própria linguagem reorganiza o campo simbólico do sujeito que, então, passa a modificar seu pensamento - alterando a linguagem subsequente, e assim por diante. Dependente da interação com o outro, portanto, o símbolo é a construção de um sinal coletivo, quando o significado foi descolado de seu objeto. Por conta desse "descolamento", podemos pensar em "amigo", por exemplo, sem necessariamente dispormos diante de nós do amigo a que nos referimos. Essa capacidade de desenvolver a linguagem, descolando signo e significado, ocorre porque generalizamos propriedades, e sobretudo, fazemos isso porque nos comunicamos, ou seja, interagimos com os outros. Esse processo de ressignificação de símbolos e incessantes construções ocorre a vida inteira, de modo que aprendemos a produzir significados em meio a um caldo cultural - cidade, bairro, família, tempo histórico, etc. - que nos auxilia a produzir novos significados. Enfim, ao mesmo tempo que nos tornamos sujeitos pela mediação simbólica, aprendemos a pensar complexamente reproduzindo e produzindo símbolos sobre símbolos.

Nesse sentido, a ontologia é indissociável do processo semiótico. Da mesma forma, é na coletividade que construímos as condições concretas de existência e desenvolvemos a capacidade de interação sociocognitiva.

Dessa compreensão decorrem possíveis estratégias de ação para o psicólogo, bem como contribuições para outros profissionais que atuam no âmbito da saúde coletiva. A compreensão do sujeito sócio-histórico, quando entendida neste contexto, implica observar o sintoma como linguagem – superando assim tanto a visão dualista da psicopatologia clássica quanto a visão cartesiana de sintoma meramente somático, esta última fortemente impregnada nos currículos das áreas da saúde.

A partir desse olhar ampliado, observamos que os sintomas descritos pelas equipes de saúde podem indicar um sinal de desordem no cuidado das inter-relações grupais ou familiares. Ou seja, uma criança que recorrentemente aparece no Posto de Saúde para consultar por questões de cuidados à epiderme, ou mesmo por dificuldades respiratórias, pode estar suscitando, além dos cuidados médicos, atenção à psicodinâmica de sua família ou a dificuldades de socialização na creche. O "sintoma" recorrente pode estar revelando, sobretudo, a incapacidade dos grupos ou atores sociais em gerenciar seus recursos, tanto materiais como pessoais, para dar suporte ao desenvolvimento das pessoas na vida em sociedade.

A intervenção psicológica na saúde coletiva

Desde a promulgação do SUS na Constituição de 1988, e sua paulatina implementação nas últimas duas décadas, passamos a viver, no Brasil, uma verdadeira revolução no modelo de atenção à saúde. Hoje as políticas nacionais de saúde preconizam que o olhar sobre o paciente na saúde pública tende sempre a incluí-lo como sujeito social: o paciente é um ser que vive em rede social. É a partir do "território" de moradia do sujeito que os profissionais das equipes de saúde devem iniciar seu olhar sobre o sintoma ou queixa. Ou seja, é no bairro, na família, nas relações imediatas do campo da particularidade na vida cotidiana que os sintomas surgem e/ou se consolidam.

O fazer psicológico na perspectiva da saúde coletiva necessita considerar os princípios do SUS (Sistema Único de Saúde), que são: universalidade, equidade e integralidade. Nesse sentido, é fundamental a noção de rede de saúde que inclui a perspectiva do diálogo entre a atenção básica (postos de saúde), a média complexidade (por exemplo, os CAP´s: Centros de Atenção Psicossocial) e a alta complexidade (hospitais). É necessário incorporar, nas ações do psicólogo, aspectos como interdisciplinaridade, capacidade de relacionar conhecimentos da psicologia social com a psicologia clínica, bem como focar a promoção em saúde mental como eixo das intervenções relacionadas ao campo.

Um mapa das políticas de saúde mental a partir do olhar social sobre o sintoma

A figura abaixo ilustra os diferentes níveis de atenção a saúde conforme o nível de complexidade e custos envolvidos nas políticas públicas. Para o psicólogo, sobretudo, interessa perceber a complexidade que o sintoma adquire na vida do sujeito.


No nível 1, ou seja, na atenção básica, o psicólogo encontrará o sintoma em processo de instalação, configurando-se na trama de relações subjetivantes da vida cotidiana. Esse é o espaço de intervenção em saúde mental que nos permite maior profilaxia dos sintomas graves, é ainda o momento em que a gênese da desorganização afetiva aparece indiferenciada dos problemas somáticos. Nesses anos de intervenção e pesquisa junto a postos de saúde, observamos que nos sintomas mais corriqueiros da atenção básica podemos identificar fecundos campos de intervenção psicológica. Por exemplo, quando um paciente procura o posto de saúde porque costuma apresentar insônia frequente, provavelmente estará em busca de medicamentos, e não de um processo de autopercepção. Nesse ínterim cabem intervenções do psicólogo tanto no campo da educação em saúde junto à equipe quanto junto ao paciente, o que possivelmente não excluirá o uso de medicação de imediato. Com bem apontaram Dimenstein, Santos, Brito, Severo e Morais (2005, p. 33), "a atenção básica tem conquistado espaço privilegiado nas intervenções em saúde mental devido à possibilidade que oferece de superar o modelo psiquiátrico, ainda hegemônico".

Cabe lembrar que no espaço da atenção básica a intervenção psicológica foge ao modelo psicoterápico tradicional, tal como Andrade e Simon (2009) indicam em sua pesquisa sobre o papel do psicólogo nesse contexto. O fazer psicológico consiste em intervenções curtas, muitas vezes de um único contato, em que se estabelece um diálogo focado na autopercepção e fortalecimento da autonomia, e não em atenção psicoterápica de nível secundário. Na atenção básica é necessário, sobretudo, um trabalho de promoção à saúde e prevenção dos níveis mais complexos de adoecimento. Casos como dificuldades de aprendizagem infantil, enxaquecas, gastrites, dermatites e assim por diante são comumente encaminhados ao olhar do psicólogo na atenção básica, cuja intervenção específica pode reorientar as estratégias de enfrentamento aos problemas cotidianos.

Em alguns casos, a prática do psicólogo na atenção básica envolve desafios metodológicos no acolhimento ao paciente, mesmo que se trate apenas de um acolhimento inicial. Ocorre que, no contexto da Estratégia de Saúde da Família (ESF), uma vez que o psicólogo não pertence à equipe mínima – e portanto costuma atender a várias equipes de ESF num único município -, encontrará dificuldades em acompanhar longamente cada caso clínico encaminhado. O desafio recai, sobretudo, naqueles casos nos quais os sintomas exijam um olhar apurado de muitos meses ou até anos de psicoterapia. É este o caso das psicoses, das ações de violência intrafamiliares, abusos corporais, rupturas abruptas no ciclo vital - tais como mortes, assassinatos, etc. Enfim, não é raro que o psicólogo encontre necessidade de encaminhar o paciente para outro nível de atenção. Contudo, é importante lembrar que nem todos os municípios do Brasil usufruem de organização adequada para o fluxo de atenção em saúde mental. Ou seja, é necessário que o psicólogo tenha para onde encaminhar.

Os Centros de Atenção Psicossocial (CAP´s), que consistem em serviços de média complexidade, geralmente dão conta de uma parcela mínima da população que necessita de atenção em saúde mental, além disso, costumam focar apenas os tratamentos de dependência química sem internação, certos níveis de psicoses e apoio a crianças com dificuldades psicológicas mais severas. Poucos municípios do Brasil contam com ambulatórios públicos de psicoterapia no contexto da rede de saúde. Alguns locais contam apenas com serviços de acadêmicos ou estagiários dos cursos de graduação dentro das clínicas-escolas das universidades, mas sem convênio com o SUS, ou seja, sem receber encaminhamentos específicos dos postos de saúde ou hospitais da região. Nesse caso, apesar de gratuitos, os atendimentos psicológicos não são parte do sistema público de saúde, deixando assim de priorizar os pacientes conforme o grau de necessidade indicado na rede, e também sem o compromisso de atender aos princípios do SUS ou mesmo de realizar a contrarreferência junto ao prontuário de origem.

Existem casos, por exemplo, de pacientes que tentam suicídio por ingestão de medicamentos, e então ingressam em hospitais gerais públicos para realizar lavagem gástrica. Mas em termos de saúde mental, esse tipo de paciente costuma receber apenas o parecer do psiquiatra, uma visita do psicólogo hospitalar e mais nada. Isto porque, na maior parte do Brasil, não existe local para encaminhar esse paciente para um acompanhamento de nível secundário em saúde mental, como, por exemplo, do tipo psicoterápico ambulatorial após a alta hospitalar. Reside, também aí, um arsenal de dificuldades na prática do psicólogo hospitalar, como bem já apontaram Santos e Jaco-Vilela (2009).

É preciso considerar que a reforma psiquiátrica abriu espaço para que as demandas de saúde mental passassem a se tornar mais presentes nos diferentes níveis de atenção a saúde, e não apenas na internação. Desse modo, as problematizações sobre os serviços substitutivos não recaem apenas sobre os CAP´s. Porém, de acordo com a Figura 1, certamente que nos níveis 2 e 3 os sintomas costumam apresentar maior grau de comprometimento do que aqueles que corriqueiramente aparecem na atenção básica. Aleverga e Dimenstein (2006) problematizaram, sobremaneira, alguns aspectos da reforma psiquiátrica e seus desafios diante do projeto de desinstitucionalização do paciente, de modo que é preciso considerar um profundo impacto no modelo de atenção a saúde mental em todos os níveis.

Enquanto no nível 2 encontraremos os CAP´s e os ambulatórios psicoterápicos, no nível 3 teremos os hospitais gerais e alas psiquiátricas. Nesse sentido, as estratégias de intervenção do psicólogo devem variar, sem perder de vista, entretanto, que o sintoma continua existindo como linguagem. Na média e na alta complexidade podemos entender a linguagem no campo da "metacognição", como diria Piaget (1973). Ou seja, existe um grau de abstração e sobreposições de signos, cujos significados implicam "signos sobre signos". O sintoma visto assim pode nos auxiliar a entender os adoecimentos crônicos, a autonegligência, o suicídio, o descuido pessoal que gera cistite, flebite, entre outras formas de desordens "médicas", em que a desordem emocional precisa ser cuidada.

Em suma, podemos entender que de acordo com o nível de atenção o psicólogo encontrará problemas distintos, e necessitará de estratégias distintas.

Figura 2


As estratégias de intervenção do psicólogo, no âmbito do SUS, invariavelmente necessitam incluir a equipe multi e interdisciplinar em suas ações. Assim, as intervenções que se inserem na equipe multiprofissional incluem: educação permanente, controle social, acolhimento e organização da demanda, diagnóstico de saúde, enfoque de atenção à saúde da família e da comunidade, organização de ações de promoção de saúde, intervenção clínica junto ao paciente ou ao seu sistema íntimo – seja através de atendimentos domiciliares ou ambulatoriais.

O fazer da Psicologia no âmbito da saúde coletiva, no contexto da equipe interdisciplinar, requer que o profissional desenvolva algumas habilidades (Ohara & Saito, 2008), tais como: capacidade de trabalhar em equipe, ética, utilizar linguagem acessível à população e empatia. Além disso, o psicólogo precisa estar atento à construção de um novo estilo de setting terapêutico, que no ambiente domiciliar, por exemplo, inverte as relações de poder, bem como o lugar da narrativa psicológica.

Vale lembrar, contudo, que historicamente a área disciplinar da Psicologia não esteve habituada a compartilhar os conhecimentos das experiências clínicas com os saberes da psicologia social. De tal forma que praticamente todas as intervenções sobre sintomas psicológicos permaneceram anos a fio como "propriedade" da intervenção clínica, bem como restritas ao modelo privatista. De toda forma, o cuidado com a saúde da população sempre há de ser um exercício de poder, como bem lembrou Silva (2005), a partir de Foucault, em seu trabalho sobre psicologia da saúde.

Enfim, talvez tenha sido esse o grande impulso que a saúde pública tenha oferecido à Psicologia nos últimos anos: forçou-nos a uma quebra de paradigma. A quebra reside no ponto de partida: toda atenção psicológica em saúde depende de um olhar sociológico sobre a constituição de sujeito e produção de sintomas.

Conclusões

Pensar a saúde e a produção de sintomas como um processo histórico pode auxiliar, significativamente, o fazer psicológico a superar o modelo linear (causa/sintomas) historicamente hegemônico na Psicologia. Isso não significa, contudo, que neste descolamento de signo/sintoma neguemos a existência mesma do sintoma. A "loucura", por exemplo, pode "desaparecer" apenas na medida em que foi significada antes, ou seja, na sua cultura, e há sempre de mudar em cada tempo histórico. Ou seja, cada cultura há de lidar de forma distinta com a transgressão que lhe é própria.

Além disso, enquanto necessitamos considerar o valor simbólico que cada "sintoma" adquire na cultura em que aparece, precisamos considerar que essa não é uma tarefa simples. Reside aí um arsenal possível de dificuldades metodológicas, uma vez que nosso próprio lugar na vida tende a ser o ponto de partida para a compreensão do mundo. Seria importante, por conseguinte, que pudéssemos reconhecer as formas de organização simbólica que o sintoma psicológico adquire em cada família, bairro, cidade e cultura, até alcançarmos suas implicações na experiência subjetiva.

Tais dificuldades metodológicas que hoje experimentamos já foram antecipadas por outros autores. Spink (2003), em um ensaio específico a respeito da construção social do saber sobre a saúde e a doença, percebia novas formas epistemológicas neste campo:

Ao abordar as contribuições possíveis da psicologia social para a compreensão do processo de adoecimento e das práticas adotadas para a prevenção deste adoecer, sua cura ou a promoção do estado de saúde, partiremos, neste ensaio, de uma concepção psicossocial bastante específica. Concepção esta que é fruto de todo um processo de questionamento que perpassa não apenas esta disciplina mas, de forma geral, inaugura uma nova epistemologia nas ciências sociais de forma decisiva. (Spink, 2003, p.40)

Por fim, vale dizer que, ao psicólogo, cabe também a tarefa de compreender como realiza seu exercício de poder durante o fazer psicológico, identificando qual o lugar que ocupa na complexa rede de forças que se confrontam no ambiente da saúde coletiva. Afinal, o psicólogo não é neutro, nem sua técnica.

Nota

Recebido em: 14/03/2010

Revisão em: 21/06/2010

Aceite em: 21/07/2010

Magda do Canto Zurba é Professora do Departamento de Psicologia da UFSC. Doutora em Educação e Mestre em Psicologia do Desenvolvimento. Endereço: Departamento de Psicologia/CFH/UFSC. Campus Universitário, Trindade. Florianópolis/SC, Brasil. CEP 88040-970. Email: macanzu@gmail.com

  • Alverga, A.R. & Dimenstein, M. (2006, julho/dezembro). A reforma psiquiátrica e os desafios na desinstitucionalização da loucura. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, 10(20), 299-316.
  • Andrade, J. F. S. M. & Simon, C. P. (2009). Psicologia na atenção primária à saúde: reflexões e implicações práticas. Paidéia (Ribeirão Preto), 19(43), 167-175.
  • Angerami-Camon, V. A. (2006). Psicologia da saúde: um novo significado para a prática clínica. São Paulo: Thomson Learning.
  • Dimenstein, M., Santos, Y. F., Brito, M., Severo, A. K., & Morais, C. (2005, novembro). Demanda em saúde mental em Unidades de Saúde da Família. Mental, ano 3, 5, 33-42.
  • Figueiredo, L. C. (2000). Matrizes do pensamento psicológico (8ª ed.). Petrópolis, RJ: Vozes.
  • Foucault, M. (1998). O nascimento da clínica (5ª ed.). Rio de Janeiro: Forense Universitária.
  • Foucault, M. (2000). História da loucura (6ª ed.). São Paulo: Perspectiva.
  • Hahner, J. E. (1993). Pobreza e política. Brasília: Edunb.
  • Heller, A. (1994). Sociología de la vida cotidiana (4ª ed.). Barcelona: Península.
  • Lukács, G. (1978). Introdução a uma estética marxista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
  • Mueller, F. L. (1978). História da psicologia (2Şed.). São Paulo: Cia Ed. Nacional.
  • Ohara, E. C. C. & Saito, R. X. S. (Orgs.). (2008). Saúde da Família: considerações teóricas e aplicabilidade. São Paulo: Ed. Martinari.
  • Piaget, J. (1973). Estudos Sociológicos. São Paulo: Cia Editora Nacional.
  • Santos, F. M. S. & Jaco-Vilela, A. M. (2009). O psicólogo no hospital geral: estilos coletivos de pensamento. Paidéia (Ribeirão Preto), 19(43), 189-197.
  • Silva, L. B. C. (2005). A psicologia na saúde: entre a clínica e a política. Revista do Departamento de Psicologia da UFF, 17(1), 79-92.
  • Spink, M. J. (2003). Psicologia social e saúde. Petrópolis, RJ: Vozes.
  • Vigotski, L. S. (1998). A formação social da mente (6ª ed.). São Paulo: Martins Fontes.
  • Vigotski, L. S., Luria, A. R., & Leontiev, A. N. (1988). Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone.
  • *
    Agradecimentos à Universidade Federal de Santa Catarina, especialmente ao Departamento de Extensão, cujos editais Pró-bolsa/Pró-extensão auxiliaram ao desenvolvimento deste trabalho.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Mar 2012
    • Data do Fascículo
      2011

    Histórico

    • Revisado
      21 Jun 2010
    • Recebido
      14 Mar 2010
    • Aceito
      21 Jul 2010
    Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
    E-mail: revistapsisoc@gmail.com