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Opiniões e vivências de adolescentes acerca dos direitos ao respeito e privacidade e à proteção contra a violência física no âmbito familiar

Adolescent's opinions and experiences about respect, privacy and family violence protection rights

Opiniones y experiencias de los adolescentes sobre los derechos a la privacidad y a la protección contra la violencia física en el contexto familiar

Resumos

O objetivo deste estudo foi investigar a opinião e a vivência de adolescentes acerca dos direitos ao respeito e privacidade, e à proteção contra a violência física no âmbito familiar. Participaram 50 adolescentes de 12 a 18 anos (M=14,46, SD=1,38) da Região Metropolitana de Porto Alegre. Foram utilizados o Inventário de Autorrelato sobre a Situação dos Direitos e o Questionário sobre Conhecimento em Direitos. Do total, 32,7% relataram violação do direito ao respeito e privacidade, e 50% à proteção contra violência física. Não houve diferença significativa entre o grupo que sofreu muitas violações de direitos e o que sofreu poucas em relação à opinião sobre estes direitos específicos, entretanto, o grupo que sofreu tais violações apoiou mais a garantia destes direitos. Estes resultados indicam a importância de espaços de participação e discussão acerca das concepções de adolescentes sobre seus direitos.

direitos humanos; respeito; privacidade; violência familiar; adolescência


This study investigate the opinion and the experience of adolescents about their rights to respect and privacy, and protection from physical violence within the family. Participants were 50 teenagers from 12 to 18 years in the Metropolitan Region of Porto Alegre. The instruments used were the Self-Report Inventory on the Situation of the Rights and the Rights Knowledge Questionnaire. 32.7% reported violation of their rights of privacy and respect, and 50%, violation of the protection against physical violence. There was no significant difference between the group that suffered many rights violations and the one that suffered a few, in relation to the opinion on these specific rights, although, the group that suffered more violations showed a stronger support for campaigns for the protection against those violations. These results indicated the importance of creating spaces that allow the participation and discussion of adolescents' ideas about their rights.

human rights; respect; privacy; family violence; adolescence


El propósito del estudio fue investigar la opinión y la experiencia de adolescentes acerca de los derechos a la y privacidad, y a la protección contra la violencia física en el contexto familiar. Participaron 50 adolescentes de 12 a 18 años (M=14,46, SD=1,38) del área metropolitana de Porto Alegre. Fueron utilizados el Inventario de Autorelato sobre la Situación de los Derechos y Cuestionario sobre Conocimiento en Derechos. Del total, 32,7% relataron violación a su derecho a la privacidad, y el 50% violaciones al derecho de protección contra la violencia física. No hubo diferencia significativa entre el grupo que sufrió muchas violaciones de los derechos y el que sufrió pocas, con relación a opinión sobre estos derechos específicamente. Sin embargo, el grupo que sufrió esas violaciones apoyó más la garantía de esos derechos. Estes hallazgos indican la importancia de espacios de discusión acerca de las opiniones de adolescentes sobre sus derechos.

derechos humanos; respeto; privacidad; violencia familiar; adolescencia


ARTIGOS

Opiniões e vivências de adolescentes acerca dos direitos ao respeito e privacidade e à proteção contra a violência física no âmbito familiar

Opiniones y experiencias de los adolescentes sobre los derechos a la privacidad y a la protección contra la violencia física en el contexto familiar

Adolescent's opinions and experiences about respect, privacy and family violence protection rights

Ana Paula Lazzaretti de Souza; Biana Vasconcellos Lauda; Silvia Helena Koller

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS, Brasil

RESUMO

O objetivo deste estudo foi investigar a opinião e a vivência de adolescentes acerca dos direitos ao respeito e privacidade, e à proteção contra a violência física no âmbito familiar. Participaram 50 adolescentes de 12 a 18 anos (M=14,46, SD=1,38) da Região Metropolitana de Porto Alegre. Foram utilizados o Inventário de Autorrelato sobre a Situação dos Direitos e o Questionário sobre Conhecimento em Direitos. Do total, 32,7% relataram violação do direito ao respeito e privacidade, e 50% à proteção contra violência física. Não houve diferença significativa entre o grupo que sofreu muitas violações de direitos e o que sofreu poucas em relação à opinião sobre estes direitos específicos, entretanto, o grupo que sofreu tais violações apoiou mais a garantia destes direitos. Estes resultados indicam a importância de espaços de participação e discussão acerca das concepções de adolescentes sobre seus direitos.

Palavras-chave: direitos humanos; respeito; privacidade; violência familiar; adolescência.

RESUMEN

El propósito del estudio fue investigar la opinión y la experiencia de adolescentes acerca de los derechos a la y privacidad, y a la protección contra la violencia física en el contexto familiar. Participaron 50 adolescentes de 12 a 18 años (M=14,46, SD=1,38) del área metropolitana de Porto Alegre. Fueron utilizados el Inventario de Autorelato sobre la Situación de los Derechos y Cuestionario sobre Conocimiento en Derechos. Del total, 32,7% relataron violación a su derecho a la privacidad, y el 50% violaciones al derecho de protección contra la violencia física. No hubo diferencia significativa entre el grupo que sufrió muchas violaciones de los derechos y el que sufrió pocas, con relación a opinión sobre estos derechos específicamente. Sin embargo, el grupo que sufrió esas violaciones apoyó más la garantía de esos derechos. Estes hallazgos indican la importancia de espacios de discusión acerca de las opiniones de adolescentes sobre sus derechos.

Palabras clave: derechos humanos; respeto; privacidad; violencia familiar; adolescencia.

ABSTRACT

This study investigate the opinion and the experience of adolescents about their rights to respect and privacy, and protection from physical violence within the family. Participants were 50 teenagers from 12 to 18 years in the Metropolitan Region of Porto Alegre. The instruments used were the Self-Report Inventory on the Situation of the Rights and the Rights Knowledge Questionnaire. 32.7% reported violation of their rights of privacy and respect, and 50%, violation of the protection against physical violence. There was no significant difference between the group that suffered many rights violations and the one that suffered a few, in relation to the opinion on these specific rights, although, the group that suffered more violations showed a stronger support for campaigns for the protection against those violations. These results indicated the importance of creating spaces that allow the participation and discussion of adolescents' ideas about their rights.

Keywords: human rights; respect; privacy; family violence; adolescence.

Introdução

Nos últimos vinte anos, com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8069, 1990), houve ampla mobilização em prol da garantia dos direitos infanto-juvenis. Entretanto, mesmo com a mudança de paradigma da Doutrina da Situação Irregular para a Doutrina da Proteção Integral, ainda há concepções e práticas que apontam para uma dificuldade em considerar as crianças e os adolescentes como sujeitos de direitos. Esses ainda são vistos como objeto de dominação dos adultos, classes inferiorizadas que devem ser doutrinadas. Neste artigo, são abordados direitos que devem ser garantidos fundamentalmente no âmbito familiar, como o direito ao respeito e à privacidade e à proteção contra violência física.

O direito à privacidade ou à intimidade e proteção da vida privada – Art. 16 da Convenção dos Direitos da Criança/CDC (Organização das Nações Unidas -ONU, 1989) – consiste em proteção à interferência arbitrária na vida particular da criança, suas correspondências, família e domicílio, além de atentados à sua honra. O direito ao respeito (Art. 17 do ECA) abrange a preservação dos espaços e objetos pessoais, além da imagem, identidade, autonomia, valores e crenças.

O direito ao respeito e à privacidade no âmbito familiar remete a reflexões sobre as condições de vida da população infanto-juvenil brasileira. Pode-se questionar como garantir tais direitos em contextos com pouca privacidade, em que uma família numerosa precisa dividir um pequeno espaço, por exemplo. Talvez essa seja uma questão importante para entender a forma como as famílias lidam com o espaço de cada membro. Entretanto, o que também é preciso levar em consideração é a forma como as famílias veem a criança e o adolescente. Se esses são vistos como sujeitos de direitos e têm espaço para participar e expressar sua opinião, então se pode ponderar que as relações são pautadas pelo respeito.

Outro aspecto importante é que há um limite tênue entre este direito à privacidade e o direito à proteção. Questiona-se como respeitar, por exemplo, um espaço de comunicação virtual – redes de contatos, relacionamentos, acesso a diversos conteúdos online – e, ao mesmo tempo, proteger as crianças e os adolescentes de situações que possam prejudicar seu desenvolvimento, como exposição à pedofilia e ao cyberbullying, entre outros. Por vezes, a preocupação em proteger os filhos faz com que pais tenham algumas atitudes, como mexer nos pertences dos filhos. No entanto, há uma diferença sutil entre estar a par do que ocorre com os filhos, acompanhando suas atividades, grupo de amigos, entre outros, e invadir sua privacidade ao mexer em seus objetos pessoais. Há muitos casos em que, para evitar a reprodução da educação autoritária que receberam, os pais costumam negar a sua autoridade – o que também pode ser prejudicial no desenvolvimento infanto-juvenil. Por outro lado, utilizam outras estratégias de controle dos filhos como câmeras nas escolas, GPS nos celulares, espiada nos pertences dos filhos sem a devida autorização (Caetano, 2009).

Com relação ao direito de proteção contra violência intrafamiliar, faz-se necessário, primeiramente, atentar para que lugar a violência ocupa em nossa sociedade, visto que a mesma está presente nas relações humanas desde os mais remotos tempos, servindo como forma de controle, dominação e punição na vida pública e privada. Dessa maneira, a violência é um modelo de sociabilidade que pressupõe o estabelecimento de assimetria na relação e uma coisificação da pessoa que está sendo subordinada à dominação (Silva, 2008). Na sociedade ocidental atual ainda há uma banalização da violência no âmbito público, a qual aparece de forma naturalizada nos meios de comunicação e é utilizada como forma de disciplinamento corporal (Narvaz & Koller, 2004; Silva, 2008). Ainda que pareça paradoxal, mesmo a garantia dos direitos humanos está pautada em uma lógica de medo, punição e responsabilização de poucos pelas injustiças, ao invés de promoção de uma reflexão ética. Ou seja, não costuma haver um debate acerca dos direitos e das relações humanas, mas formas opressivas de punir aqueles que violam alguma norma social.

Em relação a esta lógica, no âmbito privado, ainda se mantém a ideia de uma autoridade familiar inquestionável, através da qual a violência se justifica como demarcação da autoridade parental. Outro resquício da construção histórica da sociedade, que subsidia práticas violentas por parte dos pais, é o entendimento de que o castigo físico serve para a educação dos filhos, por discipliná-los, ensinando-os a terem condutas desejáveis, ou então por fortalecê-los para a vida. Essas concepções mostram que, muitas vezes, os pais acreditam estar sendo bons educadores por meio de práticas fisicamente punitivas (Silva, 2008).

O direito à proteção contra a violência física no contexto familiar está contemplado no ECA, o qual determina a proteção de crianças e adolescentes contra qualquer tipo de negligência, exploração, violência, entre outros (Art. 5 do ECA). Embora não se tenha um artigo jurídico que contemple a violência doméstica, especificamente, a maioria dos casos de violência física contra crianças e adolescentes ocorre nesse âmbito, tendo como principais agressores os seus cuidadores (Silva, 2008).

Os danos que a violência intrafamiliar podem causar às crianças e aos adolescentes refletem-se no desenvolvimento físico, psicológico e social. Alguns desses danos são irritabilidade excessiva, comportamentos imaturos, problemas no desenvolvimento da linguagem, problemas em relação à concentração, doenças psicossomáticas, depressão maior, risco de abuso de substâncias psicoativas, comportamentos de transgressão às leis, entre outros (United Nations Children's Fund -UNICEF, 2006).

Como comentado anteriormente, os direitos abordados até então – privacidade e respeito e proteção contra a violência física – têm como eixo central, para a sua garantia, a família. Sendo assim, para poder intervir nesse âmbito, é importante entender um pouco o contexto familiar. A família é a primeira instituição na qual a pessoa se desenvolve e é certamente um dos referenciais mais importantes para a constituição da personalidade. O processo de socialização ocorre no convívio familiar por meio das práticas educativas, aprendidas através da imitação e repetição de padrões (Szymanski, 2004).

A família tradicionalmente é vista como uma instituição de proteção. Entretanto, muitas vezes o contexto familiar torna-se um fator de risco para o desenvolvimento de crianças e adolescentes (Pelisoli & Dell'Aglio, 2007). Nas situações em que ocorre violência familiar, é comum a presença do segredo diante dos fatos ocorridos. Um estudo com meninas adolescentes vítimas de maus-tratos (De Antoni, 2000) revelou que elas consideravam o segredo como algo prejudicial, que, caso fosse revelado, aumentaria o risco de novas situações de violência por parte dos familiares. A manutenção do segredo ocorre, em geral, por um processo de coerção e por uma necessidade dos membros sentirem-se pertencendo à família (Pincus & Dare, 1981).

Mesmo que o contexto familiar não seja favorável, tem-se visto a importância de trabalhar com essas famílias enfocando a saúde deste sistema como um todo e a responsabilidade dos pais e/ou cuidadores sobre as suas crianças e adolescentes. A própria legislação (Lei n. 8069, 1990, Artigo 4º, Caput, e 19 a 52) e os serviços de proteção infanto-juvenil priorizam o contato com a família e a reconstituição dos laços familiares. Nesse sentido, tem-se percebido que problemas de saúde dessa população são fruto, geralmente, da fragilidade, ausência ou ruptura de relacionamento com adultos significativos (Costa & Bigras, 2007).

Cada família, além de estar inserida em um macrossistema comum a todos, é um microssistema peculiar, tendo uma forma única de se relacionar, por meio de um conjunto de valores, hábitos, pressupostos, formas de sentir e interpretar o mundo (Szymanski, 2004). É fundamental atentar a como essas relações ocorrem em cada família para entender a concepção que a mesma tem acerca da infância e adolescência e as crenças que tem sobre a melhor forma de educar. Muitas famílias acreditam estar dando uma boa educação a seus filhos através de práticas educativas punitivas e agressivas, ou então têm em sua forma de se relacionar a lógica da dominação e da força. Já quanto ao direito de respeito à privacidade, algumas medidas tomadas pelos pais que o violam podem estar sendo entendidas por eles como protetivas.

Além de apostar no trabalho com as famílias, é fundamental que se criem espaços de participação juvenil. O espaço à participação, ao debate sobre os direitos, à valorização da criança e do adolescente, entre outros, pode ser uma forma de prevenção a violações dos direitos infanto-juvenis ou até mesmo um dispositivo interessante de empoderamento deste público para lutar pela garantia de seus direitos (Souza, 2008).

Estudos recentes acerca do conhecimento de crianças e adolescentes sobre os seus direitos têm sido realizados em diversos países (Souza, 2008). Alguns desses estudos focalizam o conhecimento social e a noção de direitos, construída ao longo de fases ou níveis, apostando em uma experiência universal da percepção acerca dos direitos (Barroso, 2000; Chakur, Delval, Del Barrio, Espinosa, & Breña, 1998; Saravali, 1999). Já outros enfatizam que, além do efeito do desenvolvimento cognitivo, o raciocínio infanto-juvenil acerca do tema dos Direitos da Criança parece estar influenciado pelo contexto social, tanto o mais próximo (familiar, escolar) como o mais amplo (sociedade). As experiências e relações nas redes sociais e culturais dos participantes deste conjunto de estudos também têm sido valorizadas (Bock et al., 2006; Casas & Saporiti, 2005; Cherney & Perry, 1996; Molinari, 2001; Morrow, 1999).

O grau de compreensão de crianças e adolescentes sobre os seus direitos parece ser também reflexo do exercício dos mesmos, ou seja, das vivências e experiências em suas próprias vidas (Casas, 1998; Cherney & Perry, 1996). Relacionada a essa maneira de entender a concepção infanto-juvenil a respeito de seus próprios direitos está a chamada explanação cultural. De acordo com essa perspectiva, crianças que têm mais oportunidades de vivenciar diferentes experiências com maior autonomia e que, assim, tomam mais decisões, tendem a favorecer mais os direitos de autodeterminação/participação. Tanto as crianças com mais experiências educacionais liberais como as em situação de vulnerabilidade ou em vivência de rua tendem a defender mais os direitos de autodeterminação do que aquelas que vivem em contextos protegidos, com menos oportunidade de tomar suas próprias decisões (Cherney & Perry, 1996).

Dessa forma, averiguar a opinião de adolescentes sobre seus próprios direitos, bem como o modo como os percebem no seu cotidiano, é importante no sentido de buscar subsídios para futuras intervenções que promovam o conhecimento em direitos e o protagonismo juvenil. Dessa maneira, o principal objetivo deste artigo foi investigar a relação entre a violação dos direitos de privacidade e respeito e proteção contra violência física, e a opinião de adolescentes participantes da intervenção "Juventude em Cena" a respeito dessa relação. Para tanto, buscou-se examinar se a opinião dos adolescentes sobre seus direitos tinha relação direta com a violação ou não dos mesmos. Além disso, foram verificadas as fontes para a obtenção de informações e conhecimentos sobre esses direitos. O presente estudo faz parte de uma pesquisa maior, a qual teve o objetivo de avaliar o programa "Juventude em Cena".

Método

Participantes

Participaram desta pesquisa 50 adolescentes de 12 a 18 anos (M=14,46, SD=1,38), integrantes do programa de intervenção "Juventude em Cena", oriundos da Região Metropolitana de Porto Alegre (Alvorada, Esteio, Igrejinha, São Leopoldo, Taquara e Triunfo). Desses, 56% eram do sexo feminino e 44% do sexo masculino. Do total de participantes, 20% pertenciam ao Município de Porto Alegre e 80% à Região Metropolitana, sendo que todos estavam inseridos em programas da rede de proteção infanto-juvenil de seus municípios. Em relação à escolaridade, 16% relataram estar entre a 2ª e 4ª série do Ensino Fundamental, 59% entre a 5ª e 8ª série do Ensino Fundamental e 25% no Ensino Médio. Do total de participantes, 69,4% relataram alguma repetência. Já quanto à situação de moradia, a média do número de pessoas que moravam com os adolescentes foi M=4,2 (SD=3,3). Eram oriundos de famílias de nível socioeconômico baixo – 82% das mães e 94% dos pais apresentavam ter cursado até o Ensino Médio incompleto. Do total, 54% relataram não ter os pais (casal) morando juntos e possuir uma família numerosa – média de irmãos (M=3,98; SD=2,44).

Instrumentos

Os instrumentos utilizados consistiram em um Questionário Biossociodemográfico1 1 Dell'Aglio, D. D., Poletto, M., De Antoni, C., Teodoro, M. L. M., & Koller, S. H. (2005). Questionário biossociodemográfico. Manuscrito não publicado. Projeto PRONEX/ Fapergs/CNPq, Centro de Estudos Psicológicos sobre Meninos(as) de Rua, Instituto de Psicologia, UFRGS. Disponível em www.psicologia.ufrgs.br/cep_rua , o Inventário de Autorrelato sobre a Situação dos Direitos (Souza, 2008) e o Questionário sobre Conhecimento em Direitos, utilizado por Souza (2008), baseado principalmente na adaptação de Wagner et al. (2009) do original de Casas e Saporiti (2005), mas também com influências de Bock et al. (2006) e acréscimos de Souza. O primeiro abrangeu um apanhado de dados sobre idade, sexo, família, escola, entre outros. Tanto o inventário quanto o questionário sobre direitos são instrumentos já utilizados em pesquisas anteriores (Bock et al., 2006; Souza, 2008; Wagner et al., 2009, no Brasil; Casas & Saporiti, 2005, na Espanha e na Itália). Ambos são constituídos de diferentes questões que abordam situações cotidianas que envolvem os direitos infanto-juvenis.

Os itens do inventário foram elaborados com base no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8069, 1990). Os participantes deviam assinalar V (verdadeiro) ou F (falso) em cada item, confirmando sua visão de que o seu direito é garantido ou violado (31 itens), assim como os direitos de outros adolescentes (7 itens). Para este estudo, foram utilizados apenas 25 itens dos 38 que compõem esse instrumento, como por exemplo: "Quando criança, trabalhei para ajudar no sustento da família", "No meu bairro há lugar para praticar esportes", "Já apanhei de um adulto de minha família", "Já peguei meus pais mexendo em minhas coisas pessoais e secretas", entre outros. Os demais itens não foram considerados, pois se referem aos direitos dos pares dos adolescentes. Foi levantada a frequência dos itens que os participantes identificaram como presença ou ausência de direitos em suas vidas.

Já o Questionário sobre Conhecimento em Direitos é um instrumento com 22 situações hipotéticas, que abordam dilemas cotidianos sobre direitos da criança e do adolescente. Catorze perguntas abertas compõem, ainda, o instrumento, incluindo temas como: conhecimento em direitos, dos detentores de direitos, dos deveres, do conhecimento a respeito do ECA e do Conselho Tutelar e das fontes de tal conhecimento. Os participantes deviam responder "sim" ou "não" diante de perguntas sobre o dilema apresentado, informando, em alguns casos, se a situação apresentada era reconhecida por eles como justa/injusta, correta/incorreta, entre outros, e, em seguida, deviam justificar sua resposta. Para esta pesquisa foram utilizados os dois dilemas seguintes, que se referem aos direitos ao respeito e à privacidade e à proteção contra violência intrafamiliar: "Você recebeu uma carta de um amigo(a) e seus pais a leram. Você ficou chateado?"; "Luiza contou a uma amiga que apanha de seus pais quando faz alguma coisa errada. Você acha que isso que os pais dela fazem é justo?".

Procedimentos

Para formar o grupo do "Juventude em Cena" foram contatadas algumas equipes de programas sociais dos municípios selecionados. Essas equipes, então, convidaram os participantes da faixa etária estabelecida, averiguando se tinham interesse em participar da intervenção. O projeto de tese, da qual este estudo faz parte, foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Psicologia sob o Registro Número 25000.089325/2006-58 (Protocolo 2008/017) em acordo com a Resolução n. 196 (1996) do Conselho Nacional de Saúde. Foram assinados Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) por adolescentes e seus responsáveis.

O Programa "Juventude em Cena" teve o intuito de promover o protagonismo juvenil, mediante a ampliação do conhecimento sobre Direitos da Criança e do Adolescente (DCA) pelos próprios adolescentes e por técnicos (psicólogos, assistentes sociais, educadores sociais e oficineiros) que trabalham com os mesmos. A intervenção foi desenvolvida buscando atender aos três princípios dos DCA: Provisão, Proteção e Participação. A partir dessas três vertentes, o programa de capacitação foi desenvolvido em oito eixos, trabalhados de modo transversal ao longo da intervenção: Direitos da Criança e do Adolescente; Identidade; Solidariedade; Cidadania; Saúde, Risco e proteção -Violação de direitos; Projetos de vida; Políticas públicas para jovens e Protagonismo juvenil. O programa foi realizado ao longo de dez encontros quinzenais com os adolescentes. Em um turno, era proporcionada uma instrumentalização teórica – através de palestras, exibição de filmes, debates, entre outros – e, no outro, eram aplicadas dinâmicas de trabalho, em pequenos grupos de adolescentes, relacionadas aos eixos temáticos. Cada grupo foi coordenado por um estudante de pós-graduação, com o apoio de monitores (graduandos em Psicologia e áreas afins). Os técnicos acompanhavam os adolescentes e participavam das atividades teóricas.

A coleta de dados foi realizada de forma coletiva. Os coordenadores de grupo e monitores do programa estavam atentos às dúvidas que surgiram durante o preenchimento dos questionários. Notou-se que alguns adolescentes tiveram maior dificuldade ao responder os instrumentos e, portanto, a esses foi dispensada maior atenção. Apesar das dificuldades, nenhum participante recusou-se a participar da pesquisa. A coleta foi realizada no primeiro encontro do programa, em duas etapas, sendo que na primeira foram aplicados o Questionário Biossociodemográfico e o Inventário sobre a Situação dos Direitos – tendo duração de, em média, duas horas – e, na segunda, o Questionário sobre Conhecimento em Direitos – tendo duração de, em média, 1,5 horas.

Resultados

Para verificar se a experiência de ter direitos violados estava associada a um reconhecimento ou não dos direitos à privacidade e à proteção contra a violência, foi calculado o escore da situação em direitos de maneira geral. Para averiguar o escore de violação dos direitos relatados pelos participantes, no Inventário de Autorrelato sobre a Situação dos Direitos foi somado um ponto para cada resposta que indicasse uma violação de direito e um ponto para a resposta que indicasse uma ausência de garantia de direito, pois entende-se que tal ausência corresponde a uma violação de direitos. Por exemplo, na afirmação "Quando criança, trabalhei para ajudar no sustento da família", o ponto foi somado nos casos em que o participante marcou a opção "verdadeiro", pois isso indica uma violação de direitos. Já na afirmação "No meu bairro há lugar para praticar esportes", o ponto foi somado nos casos em que o participante assinalou a opção "falso". Como foram utilizadas 25 afirmações, o escore máximo possível de violação foi de 25 pontos. A pontuação máxima atingida neste estudo foi 17, sendo M = 5,6; SD = 3,4; MD = 5,5. O mais violado ou menos reconhecido pelos adolescentes foi o direito à prioridade de atendimento, representado pelo item "Quando vou ao posto de saúde, sou atendido antes dos adultos". Do total, 72% dos participantes relataram que tal afirmação era falsa.

Para verificar se o escore total de violação dos direitos se associava à opinião dos adolescentes quanto à garantia dos direitos analisados, foi utilizado Qui-quadrado e Mann-Whitney para comparação entre os grupos que apresentaram alto e baixo índice de violação. Esses testes estatísticos não paramétricos foram utilizados porque a amostra era pequena e para que fosse verificado se havia diferença significativa em relação à opinião sobre os direitos entre o grupo que havia sofrido mais e o que havia sofrido menos violações de direitos. Para realizar o Qui-quadrado, o total de participantes foi distribuído em dois grupos, sendo que um contou com adolescentes que obtiveram escores de 1 a 4 (baixo) pontos no inventário, e o outro com os que somaram de 7 a 17 pontos (alto). A divisão foi realizada para que fosse possível trabalhar com a variável dicotômica, já que o tipo de análise estatística utilizada exige uma variável desse tipo. Não houve participantes que apresentaram escore maior de 4 e menor que 7 pontos. Em ambas as análises não foram encontradas diferenças significativas entre os grupos (com escore de violação de direitos alto e com escore de violação de direitos baixo) quanto a sua opinião acerca desses direitos. Ou seja, não foi encontrada associação entre a quantidade de violações de direitos relatadas pelos adolescentes e a opinião dos mesmos acerca dos direitos analisados neste estudo.

Para verificar a frequência, em cada grupo, quanto à violação de direitos, derivada do Inventário de Autorrelato sobre a Situação dos Direitos, e a sua opinião acerca dos direitos investigados, derivada do Questionário sobre Conhecimento em Direitos, foram utilizadas análises descritivas. A Tabela 1 mostra as percentagens referentes à afirmação dos adolescentes acerca da vivência dessas violações de direitos. Na Tabela 2 estão apresentadas as percentagens com relação à discordância dos adolescentes com relação às violações de direitos expostas nos dilemas.

Do grupo que relatou ter sofrido violência intrafamiliar, apenas 22,7% demonstraram concordar com a mesma, ou seja, responderam ao dilema do questionário concordando com a situação violência doméstica que a protagonista da história passava. Houve um aumento dessa percentagem em relação ao grupo que não relatou ter passado por esse tipo de violação, o qual apresentou concordância com a situação de violência em 37,5% das respostas. Do grupo que relatou ter tido seu direito ao respeito e à privacidade violado, apenas 31,6% indicaram "não se importar que seus pais mexam em seus objetos particulares sem o seu consentimento" – ou seja, mostrou ser desfavorável a esse direito – em contraposição a 50% do grupo que não relatou ter passado por esse tipo de violação. Ou seja, embora se observe que em ambos os grupos – com violação e sem violação de direitos – a opinião favorável à violação não predomine (pois os percentuais correspondem, em sua maioria, a menos da metade das respostas do grupo), no grupo que não sofreu tais violações há mais adolescentes que concordam com as mesmas. Em outras palavras, há um aumento no percentual das respostas – do grupo que relatou ter sofrido tais violações para o grupo que relatou não as ter sofrido – que indicam concordância com a situação de violação de direitos, isto é, que apoiam que os protagonistas dos dilemas sejam submetidos a práticas punitivas/violência física e tenham a privacidade invadida.

Os conteúdos das respostas abertas ao Questionário Sobre o Conhecimento em Direitos, as quais dizem respeito às justificativas dos adolescentes quanto ao seu posicionamento sobre esses direitos, foram analisados qualitativamente e quantitativamente com base nas categorias apresentadas na literatura (Casas & Saporiti, 2005; Souza, 2008; Wagner et al., 2010). Ademais, outras categorias foram criadas, de acordo com a Análise de Conteúdo proposta por Bardin (1979). A leitura das respostas aos dilemas foi realizada vertical e horizontalmente com o intuito de captar o conteúdo e a lógica para a formulação das categorias. Três juízes cegos realizaram a categorização. Posteriormente, foram realizadas reuniões de discussão para avaliar itens em que não havia consenso sobre as categorias, as quais estão explicitadas nas tabelas que seguem e são melhor explicadas na discussão deste artigo. As Tabelas 3 e 4 apresentam as frequências dessas categorias. Os adolescentes também foram solicitados a informar as fontes de obtenção de conhecimentos sobre seus direitos. Análises descritivas dessas frequências estão ilustradas na Tabela 5.

Foi observado, ainda, que, do grupo de adolescentes que relatou ter conhecimento de seus direitos por meio da família, 83,3% haviam sofrido no mínimo um dos dois tipos de violação de direitos. Desses, 66,6% relataram ter sofrido violência intrafamiliar, 50% relataram ter tido seu direito à privacidade e ao respeito violados e 33,3% relatam ter sofrido ambas as violações.

Discussão

No grupo pesquisado, notou-se que a média de violações de direitos relatada foi baixa, embora os participantes fossem vinculados a programas sociais da rede de proteção infanto-juvenil e, portanto, trata-se de adolescentes que a princípio estão em situações que remetem a algum tipo de risco. Este resultado pode estar indicando uma modificação das famílias inseridas nos programas com relação às violações dos direitos das crianças e dos adolescentes membros da família, ou, então, pode estar refletindo a complexidade de revelar o que ocorre no âmbito familiar, expondo uma realidade pouco aceita socialmente. De fato, conforme De Antoni (2000), muitas vezes é difícil revelar situações que podem despertar emoções negativas ou, ainda, que não estejam de acordo com o que seria esperado socialmente. Isso também pode ter relação com a dificuldade de romper o segredo familiar, especialmente nos casos de violência.

Ademais, pôde-se observar que o fato de terem sofrido violações de poucos ou muitos direitos em geral não pareceu influenciar na opinião dos adolescentes acerca dos direitos à proteção contra violência física e ao respeito e à privacidade no âmbito familiar. A partir desse dado, sugere-se que não necessariamente o(a) adolescente que passou por diversas situações de violação de direitos reproduzirá ideias relacionadas ao desrespeito aos direitos. A literatura tem apontado para a importância da experiência (Casas & Saporiti, 2005; Cherney & Perry,1996) na concepção de adolescentes sobre seus próprios direitos. No entanto, é importante ter em vista a experiência como um todo, e não apenas a vivência específica de violação de direitos. As experiências familiares positivas, o vínculo com vizinhos, amigos, outros familiares, a inserção em outros microssistemas, a relação com a rede de apoio social, entre outros fatores, também são fundamentais para a construção de valores e crenças (Brito & Koller, 1999).

Também se pôde perceber que, tanto no grupo que relatou ter sofrido violação de direitos quanto no grupo que relatou não ter sofrido, houve maior quantidade de adolescentes que discordaram da violação dos direitos específicos – proteção contra violência física e ao respeito e à privacidade no âmbito familiar. Entretanto, proporcionalmente, no segundo grupo – que não sofreu violação de direitos – houve uma maior frequência de adolescentes que concordaram com a violação. Isso parece indicar que, ao passar pela experiência de violação de um direito em específico, tende-se a identificar essa violação de forma negativa. Esse fato aponta para a importância de trabalhar com adolescentes que tiveram ou ainda têm seus direitos violados, criando um espaço de expressão das suas opiniões e de ressignificação das experiências. Esse espaço pode contribuir para o empoderamento desses adolescentes, por meio da participação do processo de garantia de seus direitos e da busca por proteção, por exemplo. Além disso, tal espaço pode ser acolhedor, possibilitando que os adolescentes percebam que não estão sozinhos na busca pelos seus direitos, nem que são os únicos a sofrer determinada violação. Essa oportunidade pode minimizar uma suposta culpa pela ocorrência da violação, permitindo que o segredo familiar, que costuma ser escondido, possa ser revelado. Consequentemente, uma intervenção que propicie tal espaço de acolhimento poderia impedir a continuidade do ciclo de violação pelos adolescentes, uma vez que mostraria outra forma de se relacionarem, diferente das que eles têm como referência – a da lógica da dominação. Os próprios adolescentes poderiam ser protagonistas de uma mudança de visão da sociedade acerca da adolescência.

Em relação ao respeito e à privacidade, diferentemente de outro estudo (Souza, 2008) em que grande parte dos adolescentes apoiou este direito, a presente pesquisa indicou que muitos dos participantes não o reconhecem. No estudo de Souza (2008) com adolescentes que viviam com suas famílias ou em abrigos, 71,3% mostraram-se favoráveis a esse direito. Já entre os adolescentes participantes da intervenção Juventude em Cena, os quais foram entrevistados para a presente pesquisa, apenas 57,1% reconheceram tal direito. Investigando a justificativa do grupo de adolescentes que não apoiou esse direito, percebeu-se que as categorias mais frequentes são "Nenhuma importância" (ver Tabela 3), que corresponde a respostas em que o adolescente não vê problema na atitude dos pais de terem lido a carta; e "Pais têm Direito", que contempla respostas que indicam que os pais têm direito de abrir a correspondência dos filhos para saber o que se passa em suas vidas. Essas categorias reforçam a questão da delegação de uma autoridade inquestionável aos pais e não necessariamente refletem um desconhecimento por parte dos adolescentes acerca de seu direito de privacidade. Assim, mesmo que os pais infrinjam os direitos dos adolescentes, esses acabam por idealizar seus cuidadores, como se só os adultos soubessem o que é o melhor para a vida de seus filhos.

Essa situação é ilustrada pelo estudo de De Antoni e Koller (2000), em que vítimas de abuso sexual intrafamiliar tinham uma visão idealizada de seus cuidadores, mostrando a ambiguidade de relações familiares em que há violações de direitos. Esse fato pode indicar que, para estes adolescentes, os pais invadirem sua privacidade não necessariamente é incômodo. Em outras palavras, demonstra que talvez os adolescentes não percebam essa invasão como um direito violado. Nesse caso, estes adolescentes parecem ter internalizado uma visão em que eles não são possuidores de um espaço que deve ser respeitado, ou seja, não está posto que são sujeitos de direitos. Isso demonstra a necessidade de intervenções com os jovens, para que tenham espaço de debate sobre a questão dos direitos e para o empoderamento desse grupo através da participação. Ademais, são importantes intervenções com os pais, na tentativa de questioná-los acerca da visão que têm da infância e adolescência e das formas educativas que utilizam.

A idealização dos pais e a naturalização da autoridade dos mesmos sobre os filhos podem estar justificando o fato de o grupo que não sofreu tal violação de direitos ter maior frequência de concordância com a violação. Ou seja, como os mesmos não partem da experiência de terem sofrido tal violação, apoiam-se apenas na idealização de como seria essa violação de direito, e não da vivência da mesma.

Com relação às respostas que apontam uma posição favorável dos adolescentes a esse direito, a categoria mais frequentemente referida foi "Propriedade da carta", que engloba respostas referentes à posse da carta, que é um objeto do(a) adolescente e, por isso, os pais não devem mexer. Esse resultado mostra que alguns adolescentes entrevistados acreditam ter um espaço e que o mesmo deve ser respeitado, independentemente da autoridade da pessoa ou da justificativa para esta atitude. Outra categoria referida com frequência foi "Reciprocidade", que conta com respostas que indicam que a atitude dos pais com os filhos e dos filhos com os pais deve ser recíproca, ou seja, os pais não devem mexer nos objetos pessoais dos adolescentes, pois estes também não mexem nos objetos dos pais.

Quanto ao direito à proteção contra a violência intrafamiliar, 70,2% foram favoráveis, resultado que se aproxima ao encontrado por Souza (2008), em que 79,2% dos adolescentes apoiaram tal direito. Isso pode estar relacionado com suas vivências anteriores, mais especificamente a inserção em programas sociais em seus municípios de origem, os quais têm o intuito de inserir os adolescentes em contextos protetivos e trabalhar com os mesmos acerca de seus direitos. Todavia, a parcela dos que não apoiaram tal direito é relevante e, portanto, intervenções como o "Juventude em Cena" são necessárias. Investigando as justificativas dos adolescentes que foram favoráveis a esse direito, as mais citadas enquadram-se na categoria "Diálogo" (ver Tabela 4), a qual engloba respostas como a de que conversar diante de alguma atitude do adolescente que os pais consideram errada é melhor do que punir fisicamente. As outras categorias mais frequentes referem-se a uma condenação da violência, sendo elas "Violência não é a melhor forma" e "Violência". A primeira aponta que a violência não é a melhor forma de educar, e a segunda condena práticas violentas de uma forma geral. Apesar de terem diferenças entre si, todas essas categorias parecem demonstrar uma reprovação por parte dos adolescentes de formas fisicamente punitivas de educação. Esse fato sugere que estes adolescentes valorizam o direito à participação – a partir do diálogo e da possibilidade de expressarem sua opinião – e o respeito ao outro, ao invés de maneiras impositivas e autoritárias de resolver a situação. Ou, então, pode indicar uma reprovação dessas práticas, em função do afeto e/ou experiência negativa em relação às mesmas.

Quanto às respostas dos adolescentes que se mostraram favoráveis a formas punitivas de educação, a maioria compõe a categoria "Merece punição" e a categoria "Direito dos pais". Esses dados apontam para a presença de uma cultura da violência, em que os conflitos familiares são resolvidos através da coerção e da punição física. Ademais, sugerem a existência de uma crença dos adolescentes de que os conflitos devem ser resolvidos de forma violenta e que a autoridade dos pais é inquestionável e, portanto, devem submeter-se à sua dominação. Certamente é importante que o adolescente tenha uma figura que represente uma hierarquia e que o ensine a respeito dos limites que o mesmo encontra dentro e fora de casa. No entanto, essa hierarquia é inerente a uma relação de respeito mútuo entre pais e filhos e não é saudável que seja imposta de forma fisicamente punitiva. O que é mais grave é a forma de sociabilidade que esses adolescentes estão internalizando, a qual autoriza o mais forte a atingir a integridade e a vontade do outro em prol de seus desejos e objetivos. Isso pode levar a situações em que estes adolescentes, sentindo-se mais fortes, ou, então, desejando ser respeitados, talvez se sintam autorizados a humilhar e dominar. Assim, o que está em questão não é o tipo ou intensidade da violação, mas o princípio desta forma de se relacionar e ensinar, a qual deve ser questionada, independentemente da intenção de quem a reproduz (Silva, 2008).

Para a construção de uma relação de confiança e respeito entre pais e filhos é importante que haja autoridade, a qual implica diálogo, respeito, mas que não beire o autoritarismo. A autoridade estaria demarcando a figura dos pais como uma referência importante, de apoio à criança ou ao adolescente, enquanto o autoritarismo reforçaria um papel meramente impositivo, sem uma relação de ensino e reflexão e, portanto, sem a participação da criança ou do adolescente nas decisões que o(a) envolvem, fundamentalmente. De qualquer modo, pode-se perceber que a violação do direito à proteção contra a violência intrafamiliar é mais condenada pelos adolescentes que a violação quanto ao direito à privacidade e ao respeito. Isso pode se dar pelo fato de que esse tipo de violência ser mais questionado socialmente e gerar consequências mais visíveis. Entretanto, ambas as violações estão pautadas na mesma lógica, em que os pais controlam os filhos por meio de coação externa e dominação. Nos dois tipos de violações o adolescente está sendo modelado por meio de ameaça, medo de que seus pais o agridam ou invadam seu espaço privativo, tendo autoridade e poder para agir como bem entenderem nos casos em que a atitude do adolescente vai contra o que acreditam ser melhor. Propõe-se, portanto, que a questão deve ser trabalhada em seu cerne, que é a forma de sociabilidade que esses adultos têm interiorizada e, consequentemente, a utilização de métodos educativos autoritários, que não pressupõem a valorização do adolescente.

Quanto às fontes de informação sobre direitos que os adolescentes relataram, as mais frequentes foram instituições, família e escola (ver Tabela 5). Esse dado corrobora a ideia de que o raciocínio infanto-juvenil acerca dos direitos é influenciado pelo contexto social (próximo e amplo) e por suas relações estabelecidas nas redes sociais onde se inserem (Bock et al., 2006; Casas & Saporiti, 2005; Cherney & Perry, 1996; Molinari, 2001; Morrow, 1999). Ainda, esses dados reforçam a importância da escola para o desenvolvimento moral dos adolescentes e como um contexto para realizar construções que vão além do ensino formal, constituindo um importante espaço de promoção dos direitos e de incentivo à participação. Também se salienta o papel não meramente protetivo de instituições para jovens em situação de vulnerabilidade social, mas de estímulo à reflexão acerca dos seus direitos. Quanto à família, como já citado anteriormente, pode-se perceber que é referenciada como fonte de informação em direitos, mesmo quando há violação desses.

Considerações finais

A partir dos dados obtidos, pode-se observar a importância de promover intervenções tanto com os cuidadores quanto com adolescentes, em que sejam trabalhadas as concepções que os mesmos têm acerca dos direitos infanto-juvenis – não necessariamente de forma direta. Para tanto, abordar as formas de relação e de resolução de conflitos que ocorrem no ambiente familiar é fundamental. Com os familiares, pode-se trabalhar com dinâmicas que os façam refletir acerca dessas práticas, questionando relações pautadas na lógica de dominação e punição, e que permitam que se coloquem no lugar dos adolescentes. Já com os adolescentes, pode-se abordar os sentimentos acerca de suas relações familiares e propor que se coloquem no lugar de seus cuidadores. O trabalho com ambos os grupos deveria ter ênfase em novas formas de resolução de conflitos e a possibilidade de ver os adolescentes como sujeitos de direitos, para garantir espaço para participação.

As intervenções com a finalidade de abordar a educação em direitos humanos ou aquelas com foco no combate às violações desses direitos devem considerar que a prática de proteção contra a violência física intrafamiliar, por exemplo, não pode ser meramente paliativa, passiva e focada no agressor. Pelo contrário, deve permitir que o adolescente seja incluído no processo, permitindo que ele opine sobre como esta medida pode ser encaminhada.

Como limitações do estudo, apontam-se características dos próprios instrumentos, que dão margem a respostas socialmente esperadas, ao invés do que o sujeito realmente vivenciou ou pensa. Ademais, por a amostra ser heterogênea, a multiplicidade dos contextos e vivências dos participantes traz muitos elementos que podem interferir em sua opinião acerca dos direitos, que não foram aqui investigadas. Dessa forma, nota-se a importância de um maior aprofundamento desta investigação. Portanto, como continuidade deste estudo, seria importante seguir abordando aspectos qualitativos, como a visão dos adolescentes e dos cuidadores sobre seus direitos e relações familiares, para subsidiar futuras intervenções. Tendo em vista que neste estudo foi indicado que a concepção dos adolescentes acerca dos direitos é formada por múltiplos fatores contextuais, também seria relevante pesquisar como as variáveis do contexto interferem nessa construção, como, por exemplo, a qualidade das relações intrafamiliares, a relação com os grupos de pares, a inserção em outros microssistemas relevantes, entre outras.

Nota

Agradecimento

À CAPES -Bolsa de doutorado da primeira autora e ao Ministério da Educação/Secretaria de Educação Superior: Editais MEC/SESu PROEXT 2007, 2008 e 2009.

Submissão em: 09/05/2011

Revisão em: 08/04/2012

Aceite em: 12/10/2012

Ana Paula Lazzaretti de Souza é Psicóloga, doutora e pós-doutoranda em Psicologia na UFRGS, professora do Curso de Psicologia das Faculdades Integradas de Taquara (FACCAT). E-mail: anapaula.lazzaretti@gmail.com

Biana Vasconcellos Lauda é acadêmica do Curso de Psicologia da UFRGS. E-mail: bianalauda@yahoo.com.br

Silvia Helena Koller é Professora Adjunta do Curso de Pós-Graduação em Psicologia da UFRGS. Endereço: Rua Ramiro Barcelos, 2600, sala 104. Porto Alegre/RS, Brasil. CEP 0035-003. E-mail: silvia.koller@gmail.com

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Ago 2014
    • Data do Fascículo
      Ago 2014

    Histórico

    • Aceito
      12 Out 2012
    • Recebido
      09 Maio 2011
    • Revisado
      08 Abr 2012
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