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COTIDIANO DE UMA EXPERIÊNCIA URBANA INFORME: DILACERAMENTOS, TRAJETÓRIAS E POLÍTICAS DO COMUM

COTIDIANO DE UNA EXPERIENCIA URBANA INFORME: DESGARROS, TRAYECTORIAS Y POLÍTICAS DE LO COMÚN

DAILY LIFE OF A FORMLESS URBAN EXPERIENCE: LACERATIONS, TRAJECTORIES AND POLITICS OF THE COMMON

Resumo

O texto busca estabelecer articulações entre o cotidiano como categoria conceitual e as formas de experimentação urbana dele decorrentes. Para tanto, recorremos a Michel de Certeau, Michel Blanchot e outros autores a fim de estabelecer um contraponto e oposição entre uma noção de cotidiano como existência rotineira, sossegada e acabada e outras formas de apreensão conceitual que apostam na potência de inventá-lo e efetivá-lo em processos diversos, paradoxais e informes. Como indicativo dessa dupla visada, recorre-se a uma imagem do dia a dia urbano de uma cidade brasileira. Com os afetos por e com ela evocados, sugere-se positivar a experiência urbana a partir dos paradoxos de um cotidiano informe e ordinariamente comum, efetivada nos dilaceramentos, tremores e vertigens dos modos instituídos de uso, consumo e apropriação da vida, da cidade e de suas histórias.

Palavras-chave:
Cotidiano; Cidade; Experiência urbana; Comum

Resumen

El texto propone establecer articulaciones entre el cotidiano y las formas de experimentación urbana derivadas de él. Para ello, utilizando los autores como Michel de Certeau, Michel Blanchot y otros, estipula un contrapunto y oposición entre una noción de cotidiano como existencia rutinaria, serena y terminada y otras formas de aprehensión conceptual que apuestan en la potencia de inventarlo y hacerlo en procesos diversos, paradójicos e informes. Como demostrativo de esta doble visada, se recurre a una imagen del cotidiano de una ciudad brasileña. Como conclusión, se sugiere positivar la experiencia urbana a partir de las paradojas de ese cotidiano informe y ordinariamente común, efectivizada en los desgarramientos, temblores y vértigos de los modos instituidos de uso, consumo y apropiación de la vida, de la ciudad y de sus historias.

Palabras-clave:
Cotidiano; Ciudad; Experiencia urbana; Común

Abstract

The text proposes to establish articulations between the daily life and the forms of urban experimentation derived from it. For this, using authors like Michel de Certeau, Michel Blanchot and other, make a counterpoint and opposition between a notion of everyday as a routin, serene and finished existence and other forms of conceptual apprehension that bet on the power to invent it and do it in diverse, paradoxical and formless processes. As demonstrative of them, we resort to an image of the daily life of a Brazilian city. As a conclusion, it is suggested to posit the urban experience from the paradoxes of that daily formless and ordinarily common, effected in the tears, tremors and vertigo of the instituted ways of use, consumption and appropriation of life, of the city and its stories.

Keywords:
Daily life; City; Urban Experience; Common

Imagem cotidiana de uma cidade que se faz fronteira

Meio dia de muito calor, como tantos outros. Entre um sinal que se fecha, uma fila de carros à esquerda e as buzinas que se aglutinam, a avenida ferve ao sol escaldante. O cotidiano da cidade parece repetir o informe meteorológico de quase todo dia: calor, muito calor. O horário denuncia a pressa de quem está abrigado sob o ar condicionado automotivo. O tamanho da cidade torna o meio-dia um horário de retornar para casa, comer, cochilar, fugir um pouco mais do Sol. O vai e vem de pessoas e carros na avenida denuncia a pressa de quem tem fome. Pressa que deve ter, mas não parece caber a um corpo que aparece quase que como miragem que trepida o agitado zum-zum-zum da avenida. Sob o sol que dificulta a ocupação das ruas durante o dia, no sinal fechado para os carros, enxerga-se uma senhora de pele negra, traços indígenas e passo miúdo.

O corpo negro é recoberto até a altura dos joelhos por um tecido vistosamente estampado. Flores amarelas, intercaladas por fitas que escondem ou demarcam as costuras da roupa, denunciam uma indumentária alegre, que veste alguém que não transparece coisa semelhante. O corpo miragem é de uma venezuelana e indígena. Essa dupla referência ajuda a compreender o que se passa no nervoso sinal fechado. A velha índia traz sobre si mais do que o colorido da roupa que denuncia sua origem. Carrega na pele a história de milhares de outros corpos. Chamados imigrantes, os corpos que habitam aquela pele índia compõem com ela, e por meio dela, narrativas silenciosas de um quadro que começou a ganhar contornos de crise humanitária internacional no extremo norte Brasileiro em meados de 2015.

Nos últimos anos, o estado - especialmente a capital - se tornou um dos principais destinos de milhares de imigrantes que saem da Venezuela, fugindo de uma severa crise política e econômica, em busca de emprego, acesso a alimentos, serviços básicos de saúde, educação e assistência social. Segundo apontam os números oficiais, até meados de 2018, algo em torno de 416 venezuelanos entravam todos os dias no Brasil através da fronteira de Pacaraima, município localizado a pouco mais de 200 km de Boa Vista. Na capital, cerca de 2.700 novos venezuelanos se estabeleciam a cada mês. Isso provocou um abrupto inchaço populacional, com aproximadamente 25 mil venezuelanos residentes na capital - o que equivale a 7,5% da população boa-vistense (Rios, 2018Rios, S. (2018). Prefeita apresenta resultado do mapeamento de venezuelanos que vivem em Boa Vista. Recuperado de https://www.boavista.rr.gov.br/noticias/2018/06/prefeita-apresenta-resultado-do-mapeamento-de-venezuelanos-que-vivem-em-boa-vista.
https://www.boavista.rr.gov.br/noticias/...
).

Mais forte do que os números, a miséria humana é constatada no cotidiano do estado. Crianças, mães, desempregados, índios, assassinos, limpadores de para-brisa, vendedores ambulantes se amontoam, nas ruas da cidade fronteiriça. Dentre eles, muitos indígenas da tribo Warao. Eles fazem um percurso de 925 quilômetros de fuga da fome até chegar à capital de Roraima (Simões, Silva, & Oliveira, 2017Simões, G., Silva, L. C. & Oliveira, A. T. (2017). Perfil Sociodemográfico e laboral dos venezuelanos em Boa Vista. In G. F. Simões (Org), Perfil Sociodemográfico e Laboral da imigração venezuelana no Brasil (pp. 21-49). Curitiba: Editora CRV.). Entre eles, o corpo negro coberto de tecido colorido e história. Muitos se revezam entre os abrigos militarizados que se espalham pela cidade ou se avolumarem nas praças, prédios abandonados, barracas improvisadas e avenidas planejadas. Esses milhares de corpos acendem o debate sobre sua presença estrangeira numa cidade planejada - mas, não para eles!1 1 Diferentemente da maioria dos migrantes, inicialmente, aos indígenas Warao não era facultada a permanência em solo brasileiro, nem tampouco a possibilidade de exposição de suas circunstâncias individuais e coletivas, já que não dominavam nem o português nem o espanhol. O modo como os gestores lidaram com eles, então, foi com sucessivas ações de remoção das ruas e deportação até a fronteira localizada a 200 km. Segundo publicado por Souza (2016), entre 2014 e 2016 houve um aumento de 1.248% no número de indígenas venezuelanos deportados. Ao todo, foram 532 deportações nesses três anos. Essas ações esdrúxulas suscitaram diversas críticas por parte de autoridades dos direitos humanos. Encabeçados pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, mais de uma dúzia desses organismos emitiram uma Nota Pública de repúdio, exigindo o cumprimento de um atendimento humanizado, em conformidade com os protocolos internacionais assinados pelo Brasil (Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal PFDC, 2016). Como desdobramento, foi criado o Centro de Referência ao Imigrante, um abrigo improvisado na periferia da cidade, exclusivo para o recebimento de indígenas.

Enquanto notas oficiais tentavam “garantir” o direito dessas pessoas, outro burburinho também ganhava forma. Menos sensível às questões humanitárias, esse último tinha o hálito carregado: pedia ação mais efetiva, exigia intervenção contra os corpos que se lançam do lado de cá. Para isso, a fronteira, quilômetros distante, tornou-se um pouco menos longínqua, moldada nos discursos que tentavam estabelecer uma oposição entre “nós” e “eles”. Para sustentá-lo, se tornou comum recorrer ao enfeiamento da cidade provocado pela presença de tais pessoas, à exacerbação de suas problemáticas, à percepção do aumento da criminalidade, à falta de segurança, tudo supostamente relacionada à presença desses novos habitantes. É por essa via que se produziu a higienização urbana, duplamente praticada. Primeiro, sob a forma de operações de deportação. Depois, com sua institucionalização em abrigos o mais distante possível do bonito e urbanizado centro boa-vistense.

Como justificativa, a retirada dos indígenas é defendida como ação de cumprimento de uma demanda “da população de Boa Vista que vem sendo abordada por pedintes, indígenas estrangeiros e outras pessoas oriundas de países de fronteira que não apresentam documentação legal para permanência em solo brasileiro” (Souza & Gonzalo, 2016Souza, J. & Gonzalo, C. (2016). Crise na Venezuela: índios Warao fogem para o Brasil, mas são deportados pela PF. Recuperado de http://amazoniareal.com.br/crise-na-venezuela-indios-warao-fogem-para-o-brasil-mas-sao-deportados-pela-pf/
http://amazoniareal.com.br/crise-na-vene...
). Dessa maneira, a recusa ao estrangeiro, na impossibilidade de outras razões, aparece como gestão dos ilegais na cidade. Às “pessoas de fronteira”, na impossibilidade de falarem português ou terem documentos, é oferecida a solução mais peremptória: a ignorância frente à fome que os persegue quilômetros, a delimitação de acesso que encerra a caminhada de dias, a barreira que interdita a compreensão sobre seus peculiares modos de vida2 2 O principal abrigo para indígenas em Boa Vista tem uma área de mais ou menos dez mil metros quadrados. O primeiro dos seus muitos problemas é o fato de abrigar os 500 Warao e E’ñepa num espaço relativamente pequeno, situação que acirra as tensões existentes entre os diferentes clãs. Além disso, o abrigo, que desde sua criação era gerido por instituições religiosas, passou ao comando do Exército Brasileiro, como parte do Projeto Acolhida do Governo Federal. A presença dos militares alterou drasticamente a rotina do lugar, passando a se tornarem frequentes as queixas de entidades e organizações da sociedade civil sobre dificuldades de realização de algumas ações ou mesmo impedimento (Yamada & Torelly 2018). Dentre as muitas queixas relatadas, consta o estabelecimento de cartilhas de comportamentos e regras morais incomuns aos costumes e modo de vidas tradicionais, o que somando-se ao impacto das constantes mudanças nas dinâmicas familiares, causa estranhamento e dificuldade de adaptação entre os Warao. Além disso, pontuam os mesmos autores, também são frequentes os relatos e reclamações de maus tratamentos ou negativa de acesso a alguns dos serviços públicos e de preconceito relacionado ao fato de serem indígenas urbanos em situação de rua. Para os autores, isso decorre da falta de entendimento das instituições públicas, seja estadual ou municipal, acerca do contexto específico dos indígenas e, ao mesmo tempo, evidencia uma questão histórica do estado de Roraima na forma discriminatória e pejorativa como são vistos os índios que optam por viver na cidade. .

Seu ilegalismo faz surgir a fronteira urbana na sua forma mais elementar: delimitando quem pode ou não nela viver, circular, fugir! A presença dos índios venezuelanos passa a não ser tolerada, inclusive, por muitos de seus parentes brasileiros que, mesmo não acreditando em fronteiras, acham que é descabido o modo como abarrotam a cidade3 3 Em virtude do acirramento das relações entre brasileiros e venezuelanos, muitos indígenas passaram a se abrigar em comunidades brasileiras localizadas na região de fronteira (Fellet, 2018). A esse respeito, vale mencionar a menção que a reportagem de Fellet (2018) faz à líder indígena e candidata ao Senado Federal por Roraima, Telma Taurepang, que foi taxativa ao afirmar que " Nós, indígenas, não temos fronteiras. Não queremos expulsar os irmãos venezuelanos, muito menos os parentes, mas deslocamentos grandes e não planejados provocam problemas”. . Em meio a tudo isso e o burburinho da hora do almoço, o que mais pode a imagem daquele velho corpo índio lançado contra as forças dessa cidade? Pode o corpo que foge da fome, peregrina quilômetros e se desterra ainda aguentar as fronteiras do lugar feito de concreto e decretos?

Enquanto ainda é possível, a velha está ali, no sinal. Vasilha de leite longa vida cortada ao meio, tecido colorido sobre a pele escura. Tem sobre seu ombro esquerdo um outro tecido. Esse menos colorido, roto, tipo fralda de pano, amarrado como tipoia. Nele, apoia um outro corpo miúdo, de olhos vívidos e rosto tão inexpressivo quanto o da senhora. Aproximam-se ainda mais os dois.

A comunicação é rústica, mas clara: enquanto segura a criança, ela estica o outro braço, mostrando o pequeno recipiente. A pequena embalagem de leite, funciona como convite à contribuição dos motoristas apressados. Não apenas ela pede, não apenas ela aguarda o sinal verde. Mistura-se a tantos outros “Mira”. Espremem-se, vendendo, limpando, pedindo, tentando comunicar-se. Mas ela não fala nada. Apenas olha, estica o braço e espera. Insuportável silêncio instaura-se. Silêncio que desdiz e desafia a barulhenta avenida, sobrecarregada de calor, buzina, motor e hálito xenófobo de alguns cidadãos.

Na sorte da avenida barulhenta e da vasilha de leite, põe-se ao improrrogável esforço de sustentar-se com corpo que não aguenta mais: não apenas seu velho corpo índio, surrado pelo tempo e recoberto pelos panos. Também aquele corpo história, vilipendiado pelas negativas de garantia de direitos criados por humanos e subjugado como perigoso e execrável pelos nativos daquele lugar. Não é possível mais suportar! Ou, como diz David Lapoujade (2002Lapoujade, D. (2002) O corpo que não aguenta mais. In D. Lins & S. Gadelha. Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo (pp. 81-90). Rio de Janeiro: Relume Dumará.), um corpo que não pode mais suportar as submissões que lhe são demandadas do exterior, sob a forma de coerções e adestramentos, na mesma medida em que não aguenta mais também aquilo a que é submetido no plano de uma interiorização que tenta fazê-lo ressentido. Portanto, um corpo que não aguenta mais, não como signo de uma fraqueza da potência. Ao contrário, como aquele que exprime a sua potência de resistir. Exatamente por seu esgotamento, alija-se também da possibilidade de ser reconhecido como carente, pedinte, abandonado.

O corpo que não aguenta mais caminhar, padecer de fome, ser supliciado e injuriado torna-se o mesmo que não suporta mais ver-se reduzido a uma modalidade de vulnerabilidade que o torna desqualificado e incompetente para a vida (Paulon & Romagnoli, 2018Paulon, S. & Romagnoli, R. (2018). Quando a Vulnerabilidade se faz Potência: Notas acerca de um conceito polissêmico nas Políticas Públicas. Interação em Psicologia, 22(3), 1-7.). Toma para si a potência de um gesto menor: não recorre às formas usuais, corriqueiras de “pedir”. Enquanto outros pedem falando, emocionando-se, expondo a vida, as agruras, as necessidades, ela apenas convoca o estranho ao olhar. Nada de cabeças baixas que possam ignorar a atenção que os ouvidos recobram. Naquele sinal fechado, o olhar ultrajante da velha índia faz tremer o silencioso turbilhão de ações e políticas direcionadas aos Warao. Faz lembrar, em silêncio, o quanto sua visão oblitera aquela Boa Vista.

Quebrando o encadeamento narrativo de um tempo que convoca à confissão de sua fraqueza, sua imagem silenciosa nos inquire sobre o que pode um pobre corpo nos seus embates urbanos, afirmando a potente e precária forma com que sua existência e drama migratório entram em cena no cotidiano da cidade, da avenida lotada de carro e do motorista que se dirige para sua sesta. Embates cotidianos também contra aquelas fronteiras erguidas na cidade, e que berram contra elas, anunciando-se como acontecimento, subversão, ruptura, brecha, invenção, devir imperceptível.

Imagem, nesse sentido, de trepidações de uma existência forjada no ordinário da vida, que não promete apenas cores e flores, mas compele a velha índia ao encontro com aquilo que a cidade, a rua, o calor, os cheiros e vozes demandam e exigem dela: a astúcia em experimentar e consumir as mazelas e felicidades que se espraiam por entre ruas, vielas e esquinas. Silenciosa imagem de uma velha cotejando essa cidade, suas fronteiras e as formas de resistência.

No meio dia de muito calor, como tantos outros, entre um sinal que se fecha, uma fila de carros à esquerda e as buzinas que se aglutinam, numa avenida que ferve ao sol escaldante, um gesto silencioso nos faz cambalear no encontro com o imprevisto e impetuoso cotidiano da cidade. Ele não mais parece repetir o informe meteorológico de quase todo dia, nem nos poderá fazer descansar no reconfortante cochilo pós-almoço da cidade quente. No lugar disso, das certezas e barulhos, seu olhar nos envolve com outras questões: o que não mais pode suportar nosso corpo no embate fronteiriço com a cidade? Como, no e com o cotidiano, “exercer sobre si, como resistência à biopolítica colonizadora da vida (e da vida acadêmica), um trabalho que nos constitua como o que nunca fomos?” (Rodrigues, 2014Rodrigues, H. B. C. (2014). Prefácio. In R. Romagnoli & M. Dimenstein (Orgs.), Cotidiano e processos de subjetivação (pp. VII-XII). Vitória/ES: EDUFES., p. VII)

Cotidiano: algumas aproximações teórico-conceituais

Uma possível resposta é inicialmente apresentada por Michel de Certeau, na sua já clássica frase de que o cotidiano se inventa com mil formas de caça não autorizadas. Com ela, o autor indica que, mesmo sob o signo de uma produção capitalista da vida, as maneiras como as pessoas lidam com os produtos disso resultantes mostram-se diversas. Isto é, como enfrentamento a uma produção espetacular, racionalizada, expansionista e centralizada, tem-se outra de cunho diverso - ‘consumo’, a qual se notabilizaria por suas astúcias, sua clandestinidade, seu murmúrio incansável, sua quase invisibilidade (Certeau, 2009Certeau, M. (2009). A invenção do cotidiano 1. Artes de fazer (16a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes.). Tem-se, com isso, a possibilidade de outros usos e sentidos atribuídos àquilo que sugere, incita ou professa a ordem econômica dominante. Dispersas, insidiosas e insinuantes, tais iniciativas evocam procedimentos populares, ‘minúsculos’, os quais jogam com os mecanismos da disciplina, seja para deles discordarem ou para alterá-los.

Para dar conta dessas práticas, o historiador francês recorre à noção de trajetória, dela fazendo a digressão entre estratégias e táticas. Segundo ele, a ‘trajetória’ refere-se a um movimento temporal no espaço. Ou seja, o desenho não necessariamente compreensível ou ordenado formado diacronicamente pelos pontos que percorremos. Como uma trilha, produzida pelas tantas andanças que, feita de rastro, se torna usual, a trajetória diria respeito a um espaço, cujos valores ou atribuições tornam-se possíveis apenas em presença do tempo, das agruras, vontades e sentidos denotados por aqueles que o atravessam e quando o fizeram. O cotidiano, então, fundamenta-se na presença e transcrição desses rastros deixados ou formados, sem que necessariamente disso resulte ou seja possível a apreensão definitiva desses caminhos. Isso, sugere ele, abre-se para a possibilidade de o pensarmos como traço ou relíquia, sinal de resto ou apagamento.

Traço ou rastro que parece vincular-se ao proposto por Blanchot (2007Blanchot, M. (2007). A fala cotidiana. In A conversa infinita 2: a experiência-limite (pp. 235-246). São Paulo: Escuta.), quando define o cotidiano como platitude, aquilo que é suspeito e oblíquo, “vida residual de que se enchem nossas latas-de-lixo e nossos cemitérios, rebotalhos de detritos” (p. 237). Um caminho que, aparentemente, de tão batido, pertence à insignificância, fazendo disso sua ação afirmativa, não se deixando apanhar, identificar ou ser passível de veridição. Ademais, um insignificante também como aquilo que não comporta o implícito ou secreto. A evocação de uma trajetória-rastro nos faz supor exatamente o contrário:

Quaisquer que sejam os seus aspectos, o cotidiano tem esse traço essencial: não se deixa apanhar. Ele escapa. Ele pertence à insignificância, e o insignificante é sem verdade, sem realidade, sem segredo, mas é talvez também o lugar de toda significação possível. O cotidiano escapa. É nisso que ele é estranho, o familiar que se descobre (mas já se dissipa) sob a espécie do extraordinário É o despercebido, em primeiro lugar no sentido de que o olhar sempre o ultrapassou e não pode tampouco introduzi-lo num conjunto ou fazer-lhe a “revista”, isto é, fechá-lo numa visão panorâmica; pois, por um outro traço, o cotidiano é aquilo que não vemos nunca uma primeira vez, mas que só podemos rever, tendo sempre já o visto por uma ilusão que é precisamente constitutiva do cotidiano. (Blanchot, 2007Blanchot, M. (2007). A fala cotidiana. In A conversa infinita 2: a experiência-limite (pp. 235-246). São Paulo: Escuta., p. 237)

Se o cotidiano escapa, é porque as trajetórias e trilhas daqueles que o praticam estabelecem e formulam a impossibilidade de captura ou identificação. Assim, nos avisa o filósofo francês, quando se vive o cotidiano, é o homem qualquer que o vive. Mas é também aquele que não recusa o peso entorpecedor desse cotidiano nas suas vidas, apreciando-o com bom senso. O homem do cotidiano será aquele que na recusa pela identidade pode ainda fazer-se político. Anonimato nutrido na mesma cadência com que recusa o heroísmo daquilo que pratica. Isso é fundamental para entendermos que não se trata de tomar o cotidiano enquanto sua conotação corriqueira de existência média ou o jeito frequente de agir e ser das pessoas, tampouco do heróico. Esse, dirá Blanchot, é o cotidiano tornado tédio, impresso sob a esfinge do médio burguês moderno que, na sua lúgubre tentativa de ser herói da própria existência, recusa-se a se reconhecer e ser reconhecido no outro. Aquele que teme o cotidiano, porque enxerga nele a possibilidade de sua dissolução, desconstrução, destino.

Segundo Baptista (2014Baptista, L. (2014). Demolições da memória de um psicólogo anônimo: a invasão no cotidiano por flechas do Vietnã. In R. Romagnoli & M. Dimenstein (Orgs.), Cotidiano e processos de subjetivação (pp. 257-274). Vitória: EDUFES.), temos nessa produção de heróis a atualidade de um capitalismo que encontra na vida ordinária do homem comum o fomento ao empreendedorismo de si, delegando aos indivíduos a responsabilidade por alcançar suas glórias ou fracassos. Empreendimento que tornaria o homem tanto semelhança quanto refém de uma imagem de divindade, sustentando-se tal dualidade numa criação solipsista. Assim, inspirado em Maurice Blanchot, Baptista (2014Baptista, L. (2014). Demolições da memória de um psicólogo anônimo: a invasão no cotidiano por flechas do Vietnã. In R. Romagnoli & M. Dimenstein (Orgs.), Cotidiano e processos de subjetivação (pp. 257-274). Vitória: EDUFES.) apontará como essa será uma divindade fracassada, porque solitária, ressentida e culpada tem seu olhar sobre o mundo turvado de falta e dívidas. Quando muito, esse mundo o serviria apenas para alcançar seu gozo efêmero ou para conservar a esperança triste nalgum paraíso vindouro. Fracassado porque esquecido da condição limiar que denotaria sua cotidianidade: a zona em que já não há mais um verdadeiro e um falso, em que não se nasce nem morre, em que - humanamente - se experimenta a eternidade (Blanchot, 2007).

Desse modo, cotidiano torna-se tão somente o lugar onde pode exercitar o cumprimento de seu desafio de alcançar o transcendental, tendo, do mundo, ou do outro, somente o respeito fundado numa moral triste: “a tristeza de um outro que só exigiria tolerância e fraternidade (...) O mundo finito dos afetos, dos corpos e formas estranhos ao seu território não necessitariam de atenção, não valeria a pena aliar-se para criar ou inventar com esplendor.” (Baptista, 2014, p. 258)

Entender essa primazia do cotidiano do homem qualquer, por seu turno, também significa compreendê-lo naquilo que ele tem de estrangeiro ao espaço e tempo em que habita. Ou seja, o cotidiano, tomado como alienação do homem em relação ao seu mundo, remete à possibilidade de dobradura e tensão que estabelecemos com nosso tempo, do mesmo modo que as composições outras que podem ser engendradas nos espaços tido como consagrados ou herméticos. Segundo afirma Blanchot (2001Blanchot, M. (2001). Lo extraño y el extranjero. Archipiélago: Cuadernos de crítica de la cultura, 49, 80-86.), trata-se aqui de se fazer estranho ou de praticar a estranheza como o movimento de rejeição afirmativa - “rechazo de afirmación” (p. 82). Isto é, a capacidade de, rejeitando tais composições prontas de sentido, fazermos tal qual pode a poesia: abrir-se à afirmação do que é novidade, de fazermo-nos capazes de captar o estranho que se quer sempre se realizar de novo. Como consequência, alinhavar esse cotidiano aos modos e moldes assumidos por fronteiras contemporâneas demandaria, o esforço de tentarmos aproximar o “que escapa” do cotidiano da experiência errática do estrangeiro (Guerra, 2007Guerra, M. C. S. (2007, december). Im-pensar lo cotidiano. Revista Euphorion. Dossiê Filosofia Contemporânea - El espectro de una fascinación: Jornada conmemorativa del centenário del nacimiento de Maurice Blanchot. Recuperado de: https://revistaeuphorion.files.wordpress.com/2012/05/dossiers-_el_espectro_de_una_fascinacion_diciembre_2007.pdf.
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).

Como nos alerta Blanchot (2001Blanchot, M. (2001). Lo extraño y el extranjero. Archipiélago: Cuadernos de crítica de la cultura, 49, 80-86.), essa experiência estrangeira pode ser de tipos e finalidades variados. Tomando como elemento de análise o livro do crítico inglês Colin Wilson, Blanchot (2001) aponta que se pode, por exemplo, experimentar essa estrangeirice de modo radicalmente niilista. Por exemplo, como alguém que descobre o absurdo da existência humana e, diante da impossibilidade de dar a ela algum sentido, passa a desacreditar nas relações, no mundo, nas possibilidades e regras do convívio em civilização. Tem-se assim um modo de se fazer estrangeiro que torna o homem abandonado à constatação de que nada vale a pena, nada faz sentido, nenhuma vida pode ainda resistir ou existir.

A partir daí, como um dos personagens do referido crítico, pode-se passar a duas possibilidades: um segundo estágio em que nos damos conta dessa condição de descrença e nos voltamos à ação, mas como alguém que as executa de modo mecânico, sem vida. Ou, ao estágio em que se toma consciência da condição de estrangeiro e pretende-se abrir mão dela, crentes numa forma de salvação que nos redima, por um lado, dessa experiência errática e, por outro, de todo compromisso social. Seja como for, esses tipos são exemplares do que o autor denomina como “estrangeiro romântico”, daquele que se sente estrangeiro em sua própria terra e que, como um “sonhador de outros mundos”, pensa que nenhuma parte conduz a parte alguma, fazendo-se ressentido, deslocado, inadaptado, infeliz.

Não é nesse tipo de estrangeirice que poderá se constituir um cotidiano potente. Referindo-se a um estrangeiro não romântico, Blanchot (2001Blanchot, M. (2001). Lo extraño y el extranjero. Archipiélago: Cuadernos de crítica de la cultura, 49, 80-86.) o positivará não por se reconhecer ou sentir-se estranho, tampouco por ansiar deixar de sê-lo, mas por uma terceira possibilidade:

en la manera cotidiana de ser, en la charla sin profundidad, en la curiosidad que se interesa por todo y que no se fija en nada, en la nulidad vacía, vaga, atareada, allí donde me acerco lo más posible a la banalidad impersonal y a la ausencia anónima, siendo indiferentemente cualquiera, es donde hago la experiencia radical de la extrañeza (en la misma medida en que se me escapa).

Lo más extraño coincide com la completa dissolución de todo lo que es pretendidamente personal, com la presencia impersonal, la pura descripción sin presencia… No tiene ningún deseo, ni siquiera la testarudez de continuar siendo el que es. Aún más, no sabe que es extranjero. Y no lo es, porque ahí donde está, en la región de lo anónimo y de lo impersonal, no hay “si mesmo” que permita llamarlo extranjero. (Blanchot, 2001Blanchot, M. (2001). Lo extraño y el extranjero. Archipiélago: Cuadernos de crítica de la cultura, 49, 80-86., pp. 84-85)

Tal experiência dirá respeito, de modo mais atávico, aos homens urbanos, os quais, devido sua presença extraviada na cidade, estariam lançados ao anonimato, sem nome, determinação social ou particularismo. A imagem evocada por Blanchot é a da rua, cheia de gente, passando de um lado para o outro. Existências visíveis e invisíveis, sumidas no tédio do dia a dia, indisponíveis às máquinas de captura. O cotidiano assim pensado faz supor uma presença ausente que o notabiliza pela contradição manifesta por esse homem estranho da rua: o de ser e de não ser, portanto.

Perigoso cotidiano! Sua “força corrosiva do anonimato humano” torna-o não possível de categorização, conceituação ou remetido a uma origem, alerta Blanchot (2007Blanchot, M. (2007). A fala cotidiana. In A conversa infinita 2: a experiência-limite (pp. 235-246). São Paulo: Escuta.). Força que se afirma na modulação entre um tédio niilista, que cobra a experimentação da vida sem sujeito, jogada ao ermo da cidade que se fabrica pelo esvaziamento do coletivo, ao tempo que forja a produção de si, que recusa a homogeneidade que esse mesmo cotidiano faz assumir - quando identificado como rotina, sina, destino ou dia-a-dia igual para todos (Guerra, 2007Guerra, M. C. S. (2007, december). Im-pensar lo cotidiano. Revista Euphorion. Dossiê Filosofia Contemporânea - El espectro de una fascinación: Jornada conmemorativa del centenário del nacimiento de Maurice Blanchot. Recuperado de: https://revistaeuphorion.files.wordpress.com/2012/05/dossiers-_el_espectro_de_una_fascinacion_diciembre_2007.pdf.
https://revistaeuphorion.files.wordpress...
). Aliás, será nesse paradoxo que o cotidiano poderá sustentar a possibilidade de constituir-se diferente, fazendo-se ambíguo e imanente, contradizendo-se, remetido a uma “profundidade do que é superficial”.

O cotidiano surge, portanto, como a possibilidade de inversão, desdobramento, disputa e remodelagem das trajetórias inventadas e reinventadas no dia-a-dia de pessoas comuns, nas situações ordinárias de sua vida prática. Dizê-las “ordinárias” remete ao caráter medíocre e banal dessas trajetórias, mas não para tomá-las numa acepção pejorativa ou depreciativa desses termos. Ao contrário, o uso de tais termos anseia potencializar esse seu aspecto minoritário, apostando que com esse proceder o cotidiano se imiscui como produção temporal e espacialmente modelada entre os visíveis (o instituído, a rotina, o costumeiro) e os invisíveis (o instituinte, as resistências, o devir) que o compõem. Enfim, trajetórias ordinárias do cotidiano, recordemos Certeau, como algo da ordem das descontinuidades, do fragmentado e inconcluso.

Dirá Certeau que essa empreitada se refere ao quiproquó entre o já concebido e as operações de desvio articuladas em ocasiões ordinárias. Assim, no espaço já construído e escrito, as trajetórias formam imprevisíveis e, por vezes, ilegíveis trilhas, as quais desenham e fazem verter interesses e desejos que não são determinados, nem tampouco captados pelos sistemas onde se desenvolvem. Mas, segundo ele, há que se conceber um outro “modelo” que nos ajude a compreender esse quiproquó.

Dessa necessidade, recorremos à distinção entre estratégias e táticas. Grosso modo, as estratégias referir-se-ão a ações estruturadas, importadas do modelo panóptico-militar, cujas funções voltam-se ao cálculo ou manipulação das forças que permitam isolar, circunscrever e gerir um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição científica). Referem-se, dessa maneira, a ações que, graças ao postulado de um lugar de poder, elaboram lugares teóricos totalizantes que sejam capazes de gerir os espaços e as relações ali firmadas.

Por seu turno, ele irá denominar de “táticas” os procedimentos que atuam sobre o tempo, fazendo das circunstâncias o momento pertinente para a ação, transformando uma situação desfavorável, mudando a organização do espaço, agindo por golpes minúsculos e sucessivos. Segundo essa diferenciação, enquanto a estratégia é pensada e gestada tendo por finalidade um espaço que lhe seja próprio, a tática não tem lugar, senão o do outro. As táticas operam, segundo suas palavras, “golpe por golpe, lance por lance. Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia” (p. 95).

O cotidiano surge, nessa visada, como multiplicidade de gestos articulados entre o que é possível no dia a dia e aquilo que é burilado em seus ‘detalhes’. Resistências contumazes e antidisciplinas minúsculas, nem sempre visíveis, mas ainda assim potentes. Jeitos de gente astuta que desafia a ordem das coisas, quebra a sisudez dos rostos, restaura o poder da relação franca e transmuta em política o gesto derrisório. Ações do fraco contra o forte, que fazem operar e se reconhecer pelos rastros e marcas que se produz.

Para Certeau, no entanto, a generalização e a expansão da racionalidade tecnocrática parecem ter criado um esfacelamento progressivo das táticas, em detrimento do fortalecimento de uma malha estratégica de poder que se adapta e recobre cada vez mais espaços onde se dá a vida. A razão para isso seria o esvaziamento das funções e modo de organizações sociais ancoradas nos modos coletivistas e comunitários. O caráter vulgar e ordinário do cotidiano, portanto, encontraria certo impedimento diante do colapso do “comum”. A velha índia urbana, longe da aldeia e da rede de solidariedade e apoio, apareceria como fraca e desprotegida, então? Por outro lado, vimos que residiria na experiência cotidiana e comum (tornada astúcia de um fraco contra o forte) o fio de resistência às tiranias dessa modernidade insólita e incólume, fria e metálica. Ou seja, ao mesmo tempo em que reside no comum a possibilidade de inventar-se, também se aponta como ele tem sido cada vez mais formalizado e serializado. O que resta de potência ao corpo jogada àquele viver comum da cidade planejada e longe da comunidade de onde procede?

Cotidiano e políticas do comum

Para avançar um pouco mais na compreensão do que aqui definiremos como “comum”, e suas possíveis articulações com o cotidiano, comecemos pela sociologia clássica de Ferdinand Tönnies. Ela concebe um sentido ao comum que se sustenta, basicamente, em quatro aspectos: as relações entre as pessoas sendo definidas por sangue, lugar ou parentesco-vizinhança-amizade; a comunidade como lugar que remonta à intimidade entre seus integrantes; a participação como fruto de uma vontade tácita, a que se denominará compreensão ou concórdia; e, por fim, o comum não necessariamente entendido como supressão das desigualdades entre os membros. Isto é, embora existam desigualdades (de obrigações e direitos), elas são menores do que um comum que os une (Tönnies,1995Tönnies, F. (1995). Comunidade e Sociedade. In O. Miranda (Org.), Para ler Ferdinand Tönnies (pp. 231-352). São Paulo: EDUSP.).

Trata-se, assim sendo, de uma perspectiva essencialista que atrela o comum a uma lógica aquisitiva e/ou reparadora. Nela, se concebe a comunidade como posse ou propriedade, referindo-a a um conjunto de indivíduos que se reafirmam sujeitos na medida que participam, possuem ou detém elementos de semelhança (em relação ao grupo) e distinção (em relação a elementos exteriores). Ou, conforme aponta Nancy (2016Nancy, J. (2016). A Comunidade Inoperada. Rio de Janeiro: 7 Letras.), uma comunidade que embora se constitua pela distribuição de tarefas e bens, é, fundamentalmente, sustentada na separação, difusão, ou impregnação da identidade, de maneira que é apenas pela identificação com ela que cada membro pode se reconhecer.

À luz do mencionado sobre o cotidiano, eis aqui um comum que não pode achar lugar de se fazer diferente. Torna-se tédio, rotina, obrigação. Estrutura-se um “como-um”, um todo mais ou menos uniforme que espelhará unidade, homogeneidade, rigidez identitária, delimitação geográfica, impossibilidade de fluxos. Um comum que se funda na fabricação de segmentaridades binárias, diriam Deleuze e Parnet (1998Deleuze, G. & Parnet, C. (1998). Diálogos. São Paulo: Escuta .). De contornos bem determinados, dualista e até mesmo dicotômico, esses segmentos constituem-se a partir de “máquinas binárias de classes sociais, de sexos, homem-mulher, de idade, criança-adulto, de raças, branco-negro, de setores, público-privado, de subjetivações, em nossa casa-fora de casa” (p. 150).

Registro sumário que faz atuar dispositivos de poder que codificam o direito e garantia de acesso a territórios, jeitos e modos de ser, estar ou ocupar a vida. É o velho chavão que, repaginado em nossos dias, regula as passagens, prevalência e homogeneização das coisas, assumindo a forma de proteção e segurança nacional, propriedade privada, acesso restrito, muros, cercas, vistos e revistas: “não se aproxime de meu território, sou eu quem manda aqui” (Deleuze & Parnet, 1998Deleuze, G. & Parnet, C. (1998). Diálogos. São Paulo: Escuta ., p. 151).

Enfim, um espaço comunitário no qual aquilo que se diz comum se afirmaria como produto da conjunção e sobreposição de identidades entre iguais (Rocha, 2012Rocha, T. (2012). Discutindo o conceito de comunidade na psicologia para além da perspectiva identitária. Global Journal of Community Psychology Practice, 3(4), 01-06.). Nele, temos um cotidiano que, preso entre presente e passado, os vincula para sacralizar as heranças entre esses iguais. Tanto para reafirmar os laços que unem identidades, como cabides que seguram subjetividades que se repetem, quanto para evitar outros arranjos e composições em nome da pureza de outrora (Rolnik, 1997Rolnik, S. (1997). Toxicômanos de identidade. Subjetividade em tempo de globalização. In D. Lins (Org.), Cul tura e subjetividade. Saberes Nômades (pp. 19-24). Campinas, SP: Papirus.). Curiosa contradição de um cotidiano que é tomado como comum para dizer de tudo o que é corriqueiro, rotineiro e repetitivo. Cotidiano comumente visto como vazio de importância, já que se faz de matéria-prima do dia a dia que se repete.

Em direção oposta a isso, podemos também pensar um cotidiano comum enquanto partilha, apreensão ético-política que sustenta os sentidos da existência e da vida no fato de a experimentarmos num plano extra individual. Não que tais dicotomias devam ser de todo deixadas de lado. Bem sabemos dela também sermos dependentes para nos reafirmarmos -diuturnamente - outros. A empreitada aqui mostra-se a de, junto a conformação binária e moral, podermos conjurar possibilidades de experimentação também éticas da vida (Rolnik, 1995Rolnik, S. (1995). À sombra da cidadania: alteridade, homem da ética e reinvenção da democracia. In M. C. R. Magalhães (Org.), Na sombra da cidade (pp. 141-170). São Paulo: Escuta .).

Assim, para a construção desse cotidiano tornado comum, tomamos por premissa o reconhecimento dos limites desse vetor de nossa subjetividade que transita no visível, sustentado no registro e tradução de códigos, valores, regras e identidades. A isso, julgamos necessário adensar outros vetores que nos constituem subjetivamente e que se movem fora desses registros óbvios, guiando nossas escolhas, porém selecionando o que favorece e o que não favorece a vida, reafirmando e positivando sua potência criadora - “daí porque chamá-lo de ‘ético’” (Rolnik, 1995Rolnik, S. (1995). À sombra da cidadania: alteridade, homem da ética e reinvenção da democracia. In M. C. R. Magalhães (Org.), Na sombra da cidade (pp. 141-170). São Paulo: Escuta ., p. 155).

Além disso, embora possamos afirmar esse comum como aquilo que nos é “dado” e partilhado diariamente, acrescenta-se a ele o traço fundamental de também constituir-se como processo de desdobramento de si. Ou seja, aquilo que nos arrasta para uma história que caminhe ao encontro do invisível de nós mesmos (Certeau, Giard, & Mayol, 1996Certeau, M, Giard, L., & Mayol, P. (1996) A invenção do cotidiano: 2, morar, cozinhar. Petrópolis, RJ: Artes de Fazer.). Assim, para além de um respeito pelo outro em sua diferença meramente identitária, passa-se a almejar uma “nova suavidade”, que visa à alteridade e exige de nós o exercício de nos diferenciarmos de nós mesmos. Nas definições dadas por Rolnik (1995Rolnik, S. (1995). À sombra da cidadania: alteridade, homem da ética e reinvenção da democracia. In M. C. R. Magalhães (Org.), Na sombra da cidade (pp. 141-170). São Paulo: Escuta .), uma espécie de amor pelo desconhecido e pela incerteza criadora, em detrimento da arrogada pretensão às definições e verdades prontas. Remete-se, desse modo, à construção de um comum como plano das forças que habitam um território, mais que um plano dessas formas bem definidas e organizadas (Rocha, 2012Rocha, T. (2012). Discutindo o conceito de comunidade na psicologia para além da perspectiva identitária. Global Journal of Community Psychology Practice, 3(4), 01-06.).

Na perspectiva que assumimos nesse texto, isso significa reconhecer que será precisamente a suposta perda de comunhão ou unidade que será constitutiva da comunidade, ao invés de seu declínio. Temos aí, como define Pélbart (2003Pélbart, P. P. (2003). A comunidade dos sem comunidade. In Vida capital: ensaios de biopolítica (pp. 28-41). São Paulo: Iluminuras.), a comunidade como o compartilhamento de uma separação dada pela singularidade. Ou seja, aquilo que se nominará comum será possível como um exercício de convívio com o heterogêneo...

onde possamos aprender e transformar através de carecimentos não-vampirescos, ou então, pela descoberta da solidariedade. Não a de “irmãos” fundada no medo e na culpa, que assassinou índios, negros e os que transgrediram à “Ordem” dos corpos ou dos afetos, mas a solidariedade gerada pela aventura e pela rebeldia. (Baptista, 2000Baptista, L. (2000). A fábrica de interiores: a formação psi em questão. Rio de Janeiro: EdUFF., p. 93)

Ao contrário de uma concepção que recorreria à ideia de fusão, homogeneidade ou relação entre semelhantes, essa “comunidade dos sem comunidade” se definiria por sua fragmentação das formas, das semelhanças para dar lugar à proeminência transgressora e rebelde de formas de existência que se recusem a se verem reduzidas às categorias e explicações individualizantes e individualistas.

O silencioso berro: dilacerações cotidianas na cidade

Abrimos as discussões sobre cotidiano com a imagem silenciosa de uma negra, velha índia que permanece no sinal fechado de uma capital brasileira, esticando a parte do corpo que as flores felizes não alcançam. É a ela que retornamos para apontar esse cotidiano sorrateiro, feito na recusa à vida tornada sempre o mesmo, espelho de uma comunidade de iguais. Um cotidiano que não apenas desvincula-se das formas dadas, mas que se afirma como abertura e laceração que condena à morte qualquer substância ou essencialismo de um corpo - seja ele índio ou não, velho ou não. No mesmo interim, um dilaceramento que inventa algo absolutamente novo, dá algo à luz. A imagem da velha índia no indica, nesses termos, um cotidiano informe (Didi-Huberman, 2015Didi-Huberman, G. (2015). A semelhança informe: ou o gaio saber visual segundo Georges Bataille. Rio de Janeiro: Contraponto.).

O informe qualificaria, assim, certo poder que as próprias formas têm de se deformar sempre, de passar subitamente do semelhante ao dessemelhante e, mais precisamente - pois teria bastado dizer deformação para nomear tudo isso -, de engajar a forma humana nesse processo descrito com tanta exatidão por Bataille a propósito do sacrifício asteca: um processo em que a forma se abre, se ‘desmente’ e se revela ao mesmo tempo; em que a forma se esmaga, se entrega ao lugar na mais inteira dessemelhança consigo mesma; em que a forma se aglutina, no momento em que o dessemelhante vem tocar, mascarar, invadir o semelhante; e em que a forma, assim desfeita, termina por se incorporar a sua forma de referência. (Didi-Huberman, 2015Didi-Huberman, G. (2015). A semelhança informe: ou o gaio saber visual segundo Georges Bataille. Rio de Janeiro: Contraponto., pp. 148-149)

Não apenas ou tão somente recusa às formas. Mas construção transgressora a partir delas. Inventar, no cotidiano, algo que seja irruptivo em relação às trajetórias que estabelecemos, sem que isso se firme como abandono ou depreciação completa ao caminho outrora estabelecido. Um cotidiano informe, portanto, feito possibilidade de não captura: primeiro como aquilo que não tem forma definida e esvai-se por entre os dedos das forças que o querem rendido/abrigado; segundo, como aquilo que não tem forma perene e inventa sempre uma outra para si; terceiro, como sintoma ou aquilo que resta, banalizado, tomado como sobrevivência de algo ou alguma coisa (Anglada, 2016Anglada, C. (2016). Forma, informe, formação: considerações sobre o saber morfológico em Georges Didi-Huberman. Revista Digital do LAV, 9(3), 85-103.).

Nesse sentido, cabe aqui notar que, se não devemos concebê-lo como dado, acabado, apontando para a potência de inventá-lo por diferentes formas, tampouco estamos aqui afirmando que o tomamos como sossegado ou aprazível. Entre gestos estratégicos e táticos que definem esse informe, se passam processos cruéis e paradoxais que não podem ser reduzidos a qualquer síntese apaziguadora, e cujos sentidos, poderes e efeitos são, de partida, inapreensíveis em sua totalidade.

Mas, mais importante, aponta ele para uma política do comum em que o reconhecimento do nosso existir não se faz por um traço ou essência ou pertença (aquele “como-um”), mas na possibilidade de estabelecer consigo e com o mundo a inextrincável relação de codependência, partilha e vinculação “como-um”. Vinculação e partilha que passam longe da obrigação, por que não remetida ao plano moralizante e intransigente da reafirmação de identidades, personalidades, comunidades, mas que também não deixa de ser volitiva, no sentido de que nos força a tomar parte das questões mais prementes à cidade, dilacerando as “conveniências das noções tradicionais” (Didi-Huberman, 2015Didi-Huberman, G. (2015). A semelhança informe: ou o gaio saber visual segundo Georges Bataille. Rio de Janeiro: Contraponto.) ao nosso tempo, à vida que se leva, aos pequenos fascismos que nos perseguem e nos atravessam como pessoas comuns, com vidas comuns.

Banal cotidiano que “remete à existência em sua espontaneidade mesma e tal como se vive, no momento em que, vivida, subtrai-se a todo enformar-se especulativo, talvez a toda coerência, toda regularidade” (Blanchot, 2007Blanchot, M. (2007). A fala cotidiana. In A conversa infinita 2: a experiência-limite (pp. 235-246). São Paulo: Escuta., p. 237). Dilaceramentos, tremores, e vertigens do cotidiano, no cotidiano, com o cotidiano. De modo que, daquele fragmento de um meio dia urbano pulula o caráter paradoxal daquela existência índia como imagem que faz tremer as formas assumidas pelo mundo, pela questão migratória ou pelos motoristas presos no sinal fechado. O braço esticado em direção aos motoristas, oferta-nos a dádiva do seu proceder banal, mas também o que há de mais importante. Rasga os mapas, instaura o novo, despedaça as barreiras, faz ruína e poeira nossa desmedida presunção de eternidade. As flores estampadas, vistosas e enramadas tentam dizer que essa rotina é eterna. O que se passa naquela esquina demonstra o paradoxo de um viver informe e ordinariamente comum que trepida os indicativos de manutenção de fronteiras visíveis e invisíveis na cidade. Um cotidiano que escapa de algumas dessas fronteiras, enquanto nos denuncia outras.

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  • 1
    Diferentemente da maioria dos migrantes, inicialmente, aos indígenas Warao não era facultada a permanência em solo brasileiro, nem tampouco a possibilidade de exposição de suas circunstâncias individuais e coletivas, já que não dominavam nem o português nem o espanhol. O modo como os gestores lidaram com eles, então, foi com sucessivas ações de remoção das ruas e deportação até a fronteira localizada a 200 km. Segundo publicado por Souza (2016Souza, J. (2016). Crise na Venezuela: O repúdio das instituições dos Direitos Humanos contra a deportação em massa dos índios Warao. Recuperado de http://amazoniareal.com.br/crise-na-venezuela-o-repudio-das-instituicoes-dos-direitos-humanos-contra-a-deportacao-em-massa-dos-indios-warao/
    http://amazoniareal.com.br/crise-na-vene...
    ), entre 2014 e 2016 houve um aumento de 1.248% no número de indígenas venezuelanos deportados. Ao todo, foram 532 deportações nesses três anos. Essas ações esdrúxulas suscitaram diversas críticas por parte de autoridades dos direitos humanos. Encabeçados pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, mais de uma dúzia desses organismos emitiram uma Nota Pública de repúdio, exigindo o cumprimento de um atendimento humanizado, em conformidade com os protocolos internacionais assinados pelo Brasil (Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal PFDC, 2016Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal [PFDC]. (2016). Nota Pública. Recuperado de http://midia.pgr.mpf.gov.br/pfdc/hotsites/diversos/Nota-Publica-Venezuelanos-RR.pdf.
    http://midia.pgr.mpf.gov.br/pfdc/hotsite...
    ). Como desdobramento, foi criado o Centro de Referência ao Imigrante, um abrigo improvisado na periferia da cidade, exclusivo para o recebimento de indígenas.
  • 2
    O principal abrigo para indígenas em Boa Vista tem uma área de mais ou menos dez mil metros quadrados. O primeiro dos seus muitos problemas é o fato de abrigar os 500 Warao e E’ñepa num espaço relativamente pequeno, situação que acirra as tensões existentes entre os diferentes clãs. Além disso, o abrigo, que desde sua criação era gerido por instituições religiosas, passou ao comando do Exército Brasileiro, como parte do Projeto Acolhida do Governo Federal. A presença dos militares alterou drasticamente a rotina do lugar, passando a se tornarem frequentes as queixas de entidades e organizações da sociedade civil sobre dificuldades de realização de algumas ações ou mesmo impedimento (Yamada & Torelly 2018Yamada, E & Torelly, M. (2018). Aspectos jurídicos da atenção aos indígenas migrantes da Venezuela para o Brasil. Brasília, DF: OIM [Organização Internacional para as Migrações/Agência das Nações Unidas para as Migrações].). Dentre as muitas queixas relatadas, consta o estabelecimento de cartilhas de comportamentos e regras morais incomuns aos costumes e modo de vidas tradicionais, o que somando-se ao impacto das constantes mudanças nas dinâmicas familiares, causa estranhamento e dificuldade de adaptação entre os Warao. Além disso, pontuam os mesmos autores, também são frequentes os relatos e reclamações de maus tratamentos ou negativa de acesso a alguns dos serviços públicos e de preconceito relacionado ao fato de serem indígenas urbanos em situação de rua. Para os autores, isso decorre da falta de entendimento das instituições públicas, seja estadual ou municipal, acerca do contexto específico dos indígenas e, ao mesmo tempo, evidencia uma questão histórica do estado de Roraima na forma discriminatória e pejorativa como são vistos os índios que optam por viver na cidade.
  • 3
    Em virtude do acirramento das relações entre brasileiros e venezuelanos, muitos indígenas passaram a se abrigar em comunidades brasileiras localizadas na região de fronteira (Fellet, 2018). A esse respeito, vale mencionar a menção que a reportagem de Fellet (2018Fellet, J. (2018). Hostilizados nas cidades, venezuelanos buscam abrigo em aldeias indígenas de Roraima. BBC News Brasil. Recuperado de https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45325672.
    https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45...
    ) faz à líder indígena e candidata ao Senado Federal por Roraima, Telma Taurepang, que foi taxativa ao afirmar que " Nós, indígenas, não temos fronteiras. Não queremos expulsar os irmãos venezuelanos, muito menos os parentes, mas deslocamentos grandes e não planejados provocam problemas”.
  • Agência de fomento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPes - Código de Financiamento 001
  • Consentimento de uso de imagem: Não se aplica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    26 Nov 2018
  • Revisado
    21 Fev 2019
  • Aceito
    07 Mar 2019
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