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“CREIO NO ESPÍRITO SANTO, SENHOR QUE DÁ A VIDA”

I Believe in the Holy Spirit, the Lord, the Giver of Life

Espírito Santo, memória de Deus, reavivai em nós a lembrança do dom recebido. Libertai-nos das paralisias do egoísmo e acendei em nós o desejo de servir, de fazer o bem. Porque pior do que esta crise, só o drama de desperdiçá-la fechando-nos em nós mesmos. Vinde, Espírito Santo! Vós que sois harmonia, tornai-nos construtores de unidade; Vós que sempre Vos doais, dai-nos a coragem de sair de nós mesmos, de nos amar e ajudar, para nos tornarmos uma única família. Amém.

(FRANCISCO, 2020FRANCISCO, Papa. Homilia na solenidade de Pentecostes. Disponível em: <http://www.vatican.va/content/francesco/pt/homilies/2020/documents/papa-francesco_20200531_omelia-pentecoste.html>. Acesso: 10 jul. 2020.
http://www.vatican.va/content/francesco/...
a)

Esta foi a oração com que o Papa Francisco concluiu sua homilia na solenidade de Pentecostes, no dia 21 de maio deste ano. Graças à sua profunda inspiração evangélica, esta prece articula sete dimensões que devem perpassar a reflexão teológica sobre o Espírito de Santidade. O conhecimento íntimo de traços da identidade do Espírito – memória, dom, harmonia – (1) só nos é acessível num contexto de relação pessoal e comunitária – oração, súplica e serviço – (2), sempre encarnada e atenta aos sinais dos tempos – “esta crise” (3). Tal relação aberta traz à luz as possíveis resistências ao Espírito presentes em nós – paralisia do egoísmo, desperdício de oportunidades, fechamento em si – (4) e impulsiona movimentos pessoais e coletivos de transformação – lembrança do dom, desejo de fazer o bem, coragem de sair de si, amar e ajudar (5), em vista de uma maior comunhão, da constituição de uma única família (6). Por fim, o que sustenta esta oração, este conhecimento relacional e este processo de conversão é a convicção – a fé! – de que a Santidade do Espírito está, graciosamente, ao nosso alcance, ao alcance de todas as pessoas (7).

  1. Em relação à identidade do Espírito Santo e à sua especificidade dentro do Mistério do Deus Uno e Trino e da Igreja, a reflexão pneumatológica católica conheceu grandes avanços nas últimas décadas, impulsionada, sobretudo, pelo espírito do Concílio Vaticano II. A abertura a uma maior fraternidade e à oração comum entre fiéis e líderes das diferentes confissões cristãs, o compromisso social compartilhado e o desenvolvimento do diálogo ecumênico em nível teológico enriqueceram a compreensão doutrinal da confissão de fé no Espírito Santo e puseram em evidência suas implicações eclesiais (p. ex., a sinodalidade) e éticas (p. ex., a hospitalidade). Em contexto latino-americano, a pneumatologia também se desenvolveu com um rosto próprio, buscando resgatar e articular as particularidades da experiência pneumática do Ocidente e do Oriente (COMBLIN, 1987COMBLIN, J. O Espírito Santo e a libertação: o Deus que liberta seu povo. Petrópolis: Vozes, 1987.) e integrando, nesta reflexão, as opções epistemológicas e existenciais da tradição teológica de nosso continente: o “Espírito a partir de baixo” (CODINA, 2015CODINA, V. El Espíritu del Señor actúa desde abajo. Santander: Sal Terrae, 2015.). Tudo isso articulado à experiência de eclesiogênese feita pelas Comunidades Eclesiais de Base, que articulam fé cristã e compromisso sociotransformador, levando-as a atualizar nas distintas Igrejas locais o testemunho intrépido de profetas, mártires e santos.

  2. Ainda na América Latina, o aspecto relacional – pessoal e comunitário – do acesso ao Espírito foi particularmente evidenciado pelo surgimento e expansão de grupos de inspiração pentecostal e carismática, mas também pela redescoberta da tradicional dimensão mistagógica da liturgia cristã. Enquanto o primeiro fenômeno privilegia a dimensão pessoal, íntima e afetiva da experiência espiritual, a mistagogia eclesial o reequilibra ao propor a via de uma experiência comunitária, corporal e simbólica. Também digna de nota é a multiplicação de movimentos sociais orientados à promoção da vida e da dignidade humana. Os cristãos e cristãs que têm a oportunidade de participar de alguns destes movimentos podem fazer a experiência de uma comunhão mais ampla, proporcionada pelo serviço ao bem comum. Quando refletido numa perspectiva teológica, este engajamento lhes dá acesso a uma compreensão existencial e social da experiência do Espírito de Santidade, para além das fronteiras da Igreja e dos momentos pessoais e comunitários de oração.

  3. Quanto aos sinais dos tempos, é ainda o Papa Francisco quem nos dá pistas sobre o modo de compreender e viver a experiência do Espírito em tempos de pandemia. Convidando os cristãos e cristãs a tomarem este tempo de provação como um tempo de eleição e decisão, ele diz:

    É a vida do Espírito capaz de resgatar, valorizar e mostrar como nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns – geralmente esquecidas – que não aparecem nas capas de jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último show, mas, sem dúvida, elas escrevem hoje os eventos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiras e enfermeiros, encarregados de reabastecer produtos em supermercados, produtos de limpeza, cuidadores, transportadores, forças de segurança, voluntários, padres, religiosos e muitos, muitos outros, que entenderam que ninguém se salva sozinho.

    (2020bFRANCISCO, Papa. La vida después de la pandemia. Roma: Queriniana, 2020b., p. 22-23)

    Ou ainda, mais adiante neste mesmo livro:

    É o sopro do Espírito que abre horizontes, desperta a criatividade e nos renova na fraternidade para dizer presente (ou aqui estou) diante da enorme e urgente tarefa que nos espera. É urgente discernir e encontrar o pulso do Espírito, a fim de promover, juntamente com outros, a dinâmica que pode testemunhar e canalizar a nova vida que o Senhor deseja gerar neste momento específico da história. (...) O Espírito, que não se deixa prender ou instrumentalizar com esquemas, modalidades ou estruturas fixas ou expiradas, propõe-nos juntar-nos ao seu movimento capaz de “tornar todas as coisas novas” (Ap 21,5).

    (2020bFRANCISCO, Papa. La vida después de la pandemia. Roma: Queriniana, 2020b., p. 48-49)
  4. Se é verdade que as últimas décadas – e também este tempo de crise – favoreceram uma aproximação mais consciente ao Mistério do Espírito, também é um fato que muitos desvios se tornaram patentes, especialmente pela falta de uma atitude de discernimento. Um falso pneumatismo leva, por um lado, à fragmentação eclesial e social, devida a uma relação espiritual demasiado intimista e a certa privatização da fé. Por outro, em nome de inspirações pretensamente espirituais, movimentos políticos de tipo messiânico emergem em todo o continente, causando instabilidade, gerando rompantes autoritários e ignorando o sofrimento da multidão de pobres, sob a desculpa de estarem agindo em nome de Deus. Estas pneumopatologias (VOEGELIN, 2007VOEGELIN, E. Hitler e os alemães. São Paulo: É Realizações, 2007., p. 119) surgem quando perdemos de vista o único critério espiritual seguro para o cristianismo: Jesus Cristo vindo na carne (cf. 1Jo 4,2) – sua vida, sua mensagem e seu projeto, tal qual testemunhado na totalidade dos Evangelhos e dos escritos do Novo Testamento. De fato, a verdadeira e oportuna distinção clássica que se faz entre as três pessoas da Santíssima Trindade não pode conduzir a uma tratativa do Espírito Santo descolada da prática de Jesus de Nazaré, sob pena de sucumbir à conhecida heresia de Joaquim de Fiori – que separava a revelação em três tempos: um do Pai, um do Filho e outro do Espírito Santo. Esse é o perigo que ronda muitos movimentos espiritualistas atuais.

  5. Urge, por isso, examinar continuamente a transformação concreta vivida pelas pessoas e grupos humanos. Oxalá todos façam experiências espirituais pessoais e comunitárias! Mas, quando tais experiências são dons do Espírito de Santidade, elas conduzem, necessariamente, a um descentramento, à saída da autorreferencialidade: em síntese, elas conduzem à comunhão fraterna e ao serviço aos demais. Este é o testemunho apostólico do Novo Testamento. A relação entre experiência espiritual e compromisso ético perpassa a reflexão pneumatológica de Paulo (p. ex., em 1Cor 11-12). O mesmo apóstolo expressa a articulação intrínseca entre os dons do Espírito Santo e os frutos que ele produz em nós (p. ex., em Gl 5,16-26). Se não se pode separar a vida de Jesus da instauração e crescimento do Reino de Deus no meio de nós, não se pode fazer uma experiência autêntica de seu Espírito sem um compromisso, ainda que progressivo, com a inauguração deste Reino em si e em torno de si.

  6. Quanto ao horizonte da formação de uma “única família”, o amadurecimento da experiência espiritual e da reflexão pneumatológica levaram-nos a tocar dois “extremos”. Por um lado, houve um resgate do chamado universal à santidade, retirando este traço característico do Espírito da condição de exceção e heroísmo para reconhecê-lo na “porta ao lado”, nas práticas e relações mais prosaicas do quotidiano (FRANCISCO, 2018FRANCISCO, Papa. Gaudete et exsultate: sobre o chamado à santidade no mundo atual. São Paulo: Paulus, 2018., p. 10-11). O reconhecimento da presença do Espírito na “porta ao lado” também alimentou, mais amplamente, as várias formas de diálogo intercultural e inter-religioso que, para além da simples tolerância, buscam a valorização das diferenças no poliedro variado que compõe a comum humanidade. Por outro lado, vivemos a redescoberta da presença da Santidade do Espírito em toda a criação – em cada ser de nossa casa comum –, renovando-a continuamente e conduzindo-a, com o auxílio da multidão anônima de homens e mulheres santificados por Deus, à sua consumação. Livrando-nos de um antropocentrismo autorreferencial, estes novos ventos de uma pneumatologia do diálogo e ecológica lembram-nos que o Espírito de Jesus Cristo, morto e ressuscitado, é aquele que “sopra onde quer”. É ele quem expande sem cessar a diversidade e a comunhão de culturas e religiões e a diversidade e comunhão das criaturas chamadas a se tornarem, pela graça, uma única família em Deus.

  7. Por fim, como em toda boa teologia, a reflexão pneumatológica vem da práxis da fé e nos conduz, mais amadurecidos, de volta a ela. Não poderíamos terminar este editorial sem destacar o “fruto” do Espírito que é reiteradamente suplicado nos documentos e reflexões do pontificado do Papa Francisco: a alegria. A alegria do Evangelho, a alegria do amor, o júbilo pela criação... Somente a fé no Espírito do Ressuscitado pode suscitar a alegria verdadeira em nossos corações. Esta fé e esta alegria transfiguram nosso olhar em relação a este mundo ainda desfigurado, dando-nos força para continuarmos oferecendo, até o fim, o “fruto da terra e do trabalho humano”, desejosos de colaborar com a realização da promessa orante de Jesus (cf. Jo 17,21): nós seremos um, como Ele e o Pai são um!

Referências

  • CODINA, V. El Espíritu del Señor actúa desde abajo Santander: Sal Terrae, 2015.
  • COMBLIN, J. O Espírito Santo e a libertação: o Deus que liberta seu povo. Petrópolis: Vozes, 1987.
  • FRANCISCO, Papa. Gaudete et exsultate: sobre o chamado à santidade no mundo atual. São Paulo: Paulus, 2018.
  • FRANCISCO, Papa. Homilia na solenidade de Pentecostes Disponível em: <http://www.vatican.va/content/francesco/pt/homilies/2020/documents/papa-francesco_20200531_omelia-pentecoste.html>. Acesso: 10 jul. 2020.
    » http://www.vatican.va/content/francesco/pt/homilies/2020/documents/papa-francesco_20200531_omelia-pentecoste.html
  • FRANCISCO, Papa. La vida después de la pandemia Roma: Queriniana, 2020b.
  • VOEGELIN, E. Hitler e os alemães São Paulo: É Realizações, 2007.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Out 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    20 Jun 2020
  • Aceito
    12 Ago 2020
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