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Desafios da Avaliação Psicológica para a Prática diante da Atuação Profissional Mediada pela Tecnologia de Informação

Challenges of Psychological Assessment practice in the face of professional performance mediated by information technology

Desafíos de la Evaluación Psicológica para la práctica ante la actuación profesional mediada por la tecnología de la información

Resumo

Objetivou-se refletir sobre os desafios para a prática da Avaliação Psicológica mediada pelas Tecnologias de Informação e Desenvolvimento da Comunicação (TIDCs). Este trabalho teórico foi norteado por três pontos, a saber, as TIDCs como ferramentas que perpassam o funcionamento da sociedade; o aumento exponencial do uso e a regulamentação das TIDCs na prática da avaliação psicológica; e as limitações, potencialidades e possibilidades de ações para qualificar a prática mediada pelas TIDCs. Duas ações foram pensadas, sendo elas a importância de realizar uma pesquisa nacional com a categoria e a sociedade sobre a percepção do processo e dos resultados da avaliação psicológica por meio das TIDcs e a necessidade de repensar a formação básica e continuada das psicólogas para o desenvolvimento de competências que possibilitem uma prática ética, técnica, científica e crítica sobre a avaliação psicológica mediada pelas TIDCs.

Palavras-chave:
tecnologia da informação; avaliação psicológica; justiça social

Abstract

The objective of the present study was to reflect on the challenges for the practice of Psychological Assessment mediated by Information and Communication Technologies for Development (ITCD). This theoretical work was based on three points, i.e., ITCD as tools that permeate the functioning of society; the exponential increase in the use and regulation of ITCD in the practice of psychological assessment; and the limitations, potentialities, and possibilities for actions to qualify ITCD-mediated practice. Two actions were considered, i.e., the importance of conducting a national survey with psychologists and society about the perception of the process and the results of psychological assessment mediated by ITCD, and the need to rethink the basic and continuous training of psychologists for the development of competencies that enable an ethical, technical, scientific, and critical practice of Psychological Assessment mediated by ITCD.

Keywords:
information technology; psychological assessment; social justice

Resumen

El objetivo fue reflexionar sobre los desafíos para la actuación en evaluación psicológica por intermedio de las Tecnologías de la Información y la Comunicación (TICs). El trabajo teórico estuvo guiado por tres ejes, siendo ellos: las TICs como herramientas que permean el funcionamiento de la sociedad; el gran aumento del uso y regulación de las TICs en la práctica de la evaluación psicológica; y las limitaciones, potencialidades y posibilidades de acciones para calificar la actuación mediada por las TICs. Se propusieron dos acciones, las cuales son la importancia de realizar una investigación nacional con los psicólogos y la sociedad sobre la percepción del proceso, y los resultados de la evaluación psicológica a través de las TICs, y la necesidad de repensar la formación básica y continua de los psicólogos para el desarrollo de competencias que permitan una actuación ética, científica y crítica sobre la evaluación psicológica por intermedio de las TICs.

Palabras clave:
tecnología de la información; evaluación psicológica; justicia social

Como a Psicologia se Conecta com as Tecnologias da Informação

A avaliação psicológica no Brasil tem um histórico árduo e de trabalho, a começar pelo descrédito que ocorreu por volta dos anos de 1970 e 1980, em meio à utilização inadequada e má qualidade dos testes psicológicos. No entanto, a partir da década de 1990, com grande mobilização de professores, pesquisadores e profissionais da área, a temática sobre a necessidade de qualificar a prática e a formação em avaliação psicológica se fortaleceu, de modo que, nos últimos 20 anos, ocorre uma expansão significativa da área associada ao seu desenvolvimento técnico, científico e ético (Bueno & Peixoto, 2018Bueno, J. M. H., & Peixoto, E. M. (2018). Avaliação psicológica no Brasil e no mundo. Psicologia: Ciência e Profissão, 38(n/e), 108-121. doi: 10.1590/1982-3703000208878
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).

Na direção do crescimento qualificado, que muito contribuiu para o reconhecimento que a área tem hoje em dia no Brasil, estão as ações do Conselho Federal de Psicologia, em especial as resoluções que abordam a Avaliação Psicológica, sempre construídas com as entidades da avaliação psicológica (Associação Brasileira de Rorschach e Métodos Projetivos-AsBRo e Instituto Brasileiro de Avaliação Psicológica-IBAP). Elas objetivaram responder demandas da sociedade e da categoria para melhorias da atuação nessa área.

Com essa retomada da avaliação psicológica, muitas demandas começaram a surgir no sentido de repensar e adequar a prática em diversos contextos e temáticas da atuação da psicóloga. Como a avaliação psicológica é inerente ao trabalho da psicóloga (Nunes et al., 2012Nunes, M. F. O., Muniz, M., Reppold, C. T., Faiad, C., Bueno, J. M. H, & Noronha, A. P. P. (2012). Diretrizes para o ensino de avaliação psicológica. Avaliação Psicológica, 11(2), 309-316. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-04712012000200016&lng=pt&tlng=pt
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), soma-se a essas demandas, todas as mudanças e enfrentamentos da Psicologia como ciência e profissão. Diante disso, há questões a serem respondidas e ações a serem implementadas que levam tempo e amadurecimento, no entanto, algumas vezes, têm-se em paralelo situações que não permitem essa espera, como é o caso das Tecnologias da Informação Desenvolvimento e Comunicação - TIDCs, que invadiram a dinâmica e funcionamento da sociedade, cabendo à Psicologia se apropriar de uma forma que seja benéfica para o seu desenvolvimento.

Mais especialmente, desde a década de 1990, a Psicologia começou a aproximar-se da área de Tecnologias da Informação (Zanini, Reppold, & Faiad, 2021Zanini, D. S., Reppold, C. T., & Faiad, C. (2021). Do lápis e papel à modalidade remota: considerações sobre a avaliação psicológica em tempos de pandemia. Em K. L. Oliveira, M. Muniz, T. H. Lima, D. S. Zanini & A. A. A., Santos. Formação e estratégias de ensino em Avaliação Psicológica (pp. 38-47), Editora Vozes.). É interessante observar que a aproximação com essa área é ligeiramente diferente das anteriores, visto que tradicionalmente as profissionais da psicologia ofertam os seus saberes e serviços às demais áreas, mas, e ao tratar da conexão da Psicologia com as Tecnologias de Informação, a psicologia tende a absorver a expertise dessa área de atuação profissional para que possa fazer uso das Tecnologias de Comunicação, Desenvolvimento e Informação (TIDCs).

Em levantamento realizado por Zanini, Reppold e Faiad (2021Zanini, D. S., Reppold, C. T., & Faiad, C. (2021). Do lápis e papel à modalidade remota: considerações sobre a avaliação psicológica em tempos de pandemia. Em K. L. Oliveira, M. Muniz, T. H. Lima, D. S. Zanini & A. A. A., Santos. Formação e estratégias de ensino em Avaliação Psicológica (pp. 38-47), Editora Vozes.), consta que a primeira normativa do Conselho Federal de Psicologia (CFP) relativa ao uso das TIDCs foi a Resolução CFP no 02/1995, que incluiu no Código de Ética Profissional a proibição do atendimento psicológico por meio do telefone. Em 2000, as resoluções CFP no 03/2000 e nº 06/2000 regulamentaram o atendimento psicoterapêutico mediado por computador em caráter experimental. Isto é, esse tipo de atendimento deveria ser realizado somente se o objetivo fosse uma pesquisa e não a atuação prática em si, de modo que tais pesquisas deveriam atender aos pré-requisitos éticos de pesquisas com seres humanos do Conselho Nacional de Saúde (CNS) vigentes à época (CNS, 196/96) e tinham que ser cadastradas no site do CFP, que abrigou, na época, as plataformas de telecomunicação.

Para contextualizar o acesso às TIDCs até a década de 2000, é preciso lembrar que a internet foi introduzida no Brasil em 1988, mas os backbones1 1 Termo usado para se referir ao esquema de transmissão de um sistema de redes que possibilita elevar o desempenho e dimensões continentais da rede. comerciais foram inaugurados em 1996. Nesse período, além da internet, já existiam computadores portáteis, tablets e smartphones, mas o custo de aquisição era elevado e a possibilidade desses recursos serem usados como principal estratégia de comunicação era considerada ficção científica. Para se ter uma ideia, no livro “A Psicologia no futuro: Os psicólogos mais destacados do mundo falam sobre o futuro de sua disciplina”, de Ardila (2002Ardila, R. (2002). La psicología en el futuro: Los más destacados psicólogos del mundo reflexionan sobre el futuro de su disciplina. Pirámide.), ainda se especulava se o computador poderia ser utilizado em psicoterapia.

Retomando o histórico das normativas do CFP relacionadas às TIDCs, na Resolução CFP no 12/2005, os atendimentos psicoterapêuticos continuavam em caráter experimental e foram reconhecidos e delimitados outros serviços psicológicos mediados por computador, bem como exigido que o site utilizado para mediar a comunicação entre a profissional e a pessoa atendida tivesse uma certificação, à época chamada de selo do CFP. Já na Resolução CFP no 11/2012, que revogou a anterior, houve alterações relacionadas principalmente ao cadastro do site no Sistema Conselhos, mantendo-se a prerrogativa de que os serviços psicológicos prestados por meio das TIDCs fossem pontuais, informativos, focados no tema proposto e que ocorressem em conformidade com o Código de Ética Profissional da(o) psicóloga(o).

Ao relembrar como ocorria o acesso às TIDCs nesse ínterim, verifica-se que começaram as preocupações com a inclusão digital, entretanto, parte significativa da população brasileira passou a ser considerada excluída digitalmente. Conforme Knop (2017Knop, M. F. T. (2017). Exclusão digital, diferenças no acesso e uso de tecnologias de informação e comunicação: questões conceituais, metodológicas e empíricas. Caderno Eletrônico de Ciências Sociais: Cadecs, 5(2), 39-58. doi: 10.24305/cadecs.v5i2.2017.19437
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), a exclusão/inclusão digital se refere a um fenômeno complexo que envolve questões mais amplas do que disponibilizar computadores ou acesso à internet. Segundo o autor, é preciso considerar aspectos relacionados à infraestrutura física e de suporte às TIDCs, tais como espaços físicos com hardwares, softwares e periféricos que funcionem e estejam atualizados, bem como estabilidade e velocidade de conexão. Além disso, há aspectos relacionados ao uso dessas tecnologias, incluindo-se a autonomia e habilidade de uso, bem como a habilidade e uso social. Para aferir dados sobre a inclusão digital, desde 2016, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) incluiu na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD-contínua) informações sobre o acesso à internet e à televisão nos domicílios particulares e a posse de telefone móvel celular para as pessoas de 10 anos ou mais de idade (IBGE, 2018Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas - IBGE (2018). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - PNAD contínua: acesso à internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso pessoal. Rio de Janeiro: IBGE.).

A amostra do PNAD-contínua de 2018 foi composta por 71.738 mil domicílios particulares permanentes. No que se refere ao acesso à internet, observou-se que ela era utilizada em 74,9% dos domicílios em 2017 e aumentou para 79,1% em 2018, sendo os menores percentuais de acesso nas regiões Nordeste (69,1%) e Norte (72,1%) e mais elevado na região Sudeste (84,8%). Destaca-se que 25% dos participantes da região Norte que não tinham acesso à internet afirmaram que não havia disponibilidade na área do domicílio, enquanto essa justificativa foi pouco frequente nas outras regiões do Brasil. Nos domicílios em que a internet era utilizada, 65,7% da amostra da região Norte declarou acesso somente via telefone móvel celular. Esse percentual foi menor nos outros estados, sendo que a menor porcentagem de uso da internet exclusivo pelo celular foi na região Sul (36,8%) (IBGE, 2018Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas - IBGE (2018). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - PNAD contínua: acesso à internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso pessoal. Rio de Janeiro: IBGE.). Esses dados corroboram as preocupações de Knop (2017Knop, M. F. T. (2017). Exclusão digital, diferenças no acesso e uso de tecnologias de informação e comunicação: questões conceituais, metodológicas e empíricas. Caderno Eletrônico de Ciências Sociais: Cadecs, 5(2), 39-58. doi: 10.24305/cadecs.v5i2.2017.19437
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), quando afirmou que a exclusão digital representa mais uma dimensão de segregação e separação entre pessoas e grupos, na medida em que há uma distribuição desigual de recursos, acesso, compreensão e uso de tais tecnologias.

No que se refere ao campo da Psicologia, ainda que em 2018 o uso das TIDCs nos serviços psicológicos continuava em caráter experimental, haja vista a necessidade de estudos relacionados à eficácia e efetividade dos serviços psicológicos mediados pelas TIDCs, bem como compreensão das condições técnicas e éticas envolvidas, houve um avanço no reconhecimento e impulsionamento dos serviços prestados por meio delas (Zanini et al., 2021Zanini, D. S., Reppold, C. T., & Faiad, C. (2021). Do lápis e papel à modalidade remota: considerações sobre a avaliação psicológica em tempos de pandemia. Em K. L. Oliveira, M. Muniz, T. H. Lima, D. S. Zanini & A. A. A., Santos. Formação e estratégias de ensino em Avaliação Psicológica (pp. 38-47), Editora Vozes.). Conforme art. 2º da Resolução CFP no 11/2018, que revogou a Resolução CFP no 011/2012,

“Art. 2º São autorizadas a prestação dos seguintes serviços psicológicos realizados por meios tecnológicos da informação e comunicação, desde que não firam as disposições do Código de Ética Profissional da psicóloga e do psicólogo a esta Resolução:

I - As consultas e/ou atendimentos psicológicos de diferentes tipos de maneira síncrona ou assíncrona;

II - Os processos de Seleção de Pessoal;

III - Utilização de instrumentos psicológicos devidamente regulamentados por resolução pertinente, sendo que os testes psicológicos devem ter parecer favorável do Sistema de Avaliação de Instrumentos Psicológicos (SATEPSI), com padronização e normatização específica para tal finalidade.

IV - A supervisão técnica dos serviços prestados por psicólogas e psicólogos nos mais diversos contextos de atuação.”

É mister mencionar que todas as resoluções do CFP aqui citadas demandam que a psicóloga explicite à pessoa atendida sobre seus direitos e especifique quais recursos tecnológicos serão utilizados, visando tanto a garantia dos direitos da pessoa atendida quanto o sigilo das informações. Assim, nota-se que essa aproximação da Psicologia com as Tecnologias da Informação ocorreu paulatinamente até que foi abruptamente alavancada após a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2020Organização Mundial de Saúde. (2020). Folha Informativa COVID-19. Recuperado de https://www.paho.org/pt/covid19
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) informar a existência de uma pandemia mundial.

O Uso das TIDCs Decorrente da Pandemia da Covid-19

Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2020Organização Mundial de Saúde. (2020). Folha Informativa COVID-19. Recuperado de https://www.paho.org/pt/covid19
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) declarou o surto ocorrido em função da nova espécie do vírus SARS-CoV-2, que causa a COVID-19, como uma pandemia global. Sem previsão de quando será possível o efetivo controle dessa pandemia, sabe-se que o Coronavírus pertence a uma família de vírus que causa graves doenças respiratórias e que tem elevado potencial de contágio por meio dos aerossóis da respiração. Usualmente os sintomas aparecem nos primeiros 15 dias, mas o vírus é transmissível desde o momento que a pessoa o contrai, independentemente da apresentar ou não os sintomas. Assim, no contato entre duas ou mais pessoas, pode ser que uma esteja contaminada e, sem saber, transmita o vírus para outras (WHO, 2020World Health Organization. (2020) WHO Director-General’s opening remarks at the media briefing on COVID-19 - 3 March 2020 [Internet]. World Health Organization; 2020 Recuperado de https://www.who.int/dg/speeches/detail/who-director-general-s-opening-remarks-at-the-media-briefing-on-covid-19---3-march-2020
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). Essa impossibilidade de detectar se alguém está com a COVID-19 faz do distanciamento social uma das principais medidas contra o vírus até que se tenha uma vacinação eficaz disponível para todos e/ou alguma medicação que o combata.

Considerando que o distanciamento social fez com que a população tivesse que se adaptar a uma nova realidade que, entre outras situações, demanda que o trabalho e o ensino em diversos segmentos sejam remotos, sem o contato presencial e com o uso mais amplo das TIDCs, um desafio que se coloca aos diversos campos de saber é como aproveitar os avanços tecnológicos em favor das pessoas de um modo geral. Desde o início da pandemia, a discussão sobre o uso das TIDCs na Psicologia tem sido orientada por duas linhas de reflexão: a prática profissional e o ensino da profissão. A partir desse ponto, busca-se aprofundar a reflexão sobre as especificidades da área de Avaliação Psicológica.

Poucos meses após a OMS declarar o surto da COVID-19 como uma emergência na saúde pública mundial, surgiram as primeiras publicações com reflexões sobre a avaliação psicológica no contexto pandêmico e sobre a possibilidade de realizá-las a distância (American Psychological Association [APA], 2020American Psychological Association. (2020). How to do psychological testing via telehealth. American Psychological Association. Recuperado de https://www.apaservices.org/practice/reimbursement/health-codes/testing/psychological-telehealth
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; CFP, 2020aConselho Federal de Psicologia. (2020a). Cartilha de boas práticas em avaliação psicológica em contexto de Pandemia. Brasília: CFP. Recuperado de https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2021/02/Cartilha-Boas-Pra%CC%81ticas-na-pandemia.pdf
https://site.cfp.org.br/wp-content/uploa...
; CFP, 2020bConselho Federal de Psicologia. (2020b). Resolução no 04, de 26 de março de 2020. Dispõe sobre regulamentação de serviços psicológicos prestados por meio de Tecnologia da Informação e da Comunicação durante a pandemia do COVID-19. Brasília. Recuperado de http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-4-de-26-de-marco-de-2020-250189333
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; Marasca, Yates, Schneider, Feijó, & Bandeira, 2020Schneider, A. M. A., Marasca, A. R., Yates, D. B., Feijó, L. P., Rovinski, S. L., & Bandeira, D. R. (2020). Boas Práticas para a Avaliação Psicológica Online Porto Alegre: GEAPAP/UFRGS.; Schneider et al., 2020Schneider, A. M. A., Marasca, A. R., Yates, D. B., Feijó, L. P., Rovinski, S. L., & Bandeira, D. R. (2020). Boas Práticas para a Avaliação Psicológica Online Porto Alegre: GEAPAP/UFRGS.). Dentre as diversas convergências expressas nessas publicações iniciais, tem-se reflexões sobre a real pertinência de serem realizadas avaliações psicológicas naquele momento e as preocupações sobre como conduzir esses processos avaliativos de modo a assegurar os benefícios para a pessoa avaliada, a proteção das pessoas envolvidas na avaliação e os princípios éticos da profissão.

O Uso das TIDCs no Processo de Avaliação Psicológica

Pensando cronologicamente, é importante demarcar que as preocupações sobre a condução de avaliações psicológicas remotas foram fomentadas, no Brasil, a partir da Resolução CFP n° 011/2018 (CFP, 2018Conselho Federal de Psicologia. (2018). Resolução no11, de 11 de maio de 2018 - Regulamenta a prestação de serviços psicológicos realizados por meios de tecnologias da informação e da comunicação e revoga a Resolução CFP no 11/2012. Recuperado de https://e-psi.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/11/Resolu%C3%A7%C3%A3o-Comentada-Documento-Final.pdf
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), mas que se intensificaram nesse contexto de pandemia. A título de exemplo, pode-se citar a demanda do CFP ao publicar a Resolução CFP n° 04/2020 no dia 26 de março de 2020, isto é, 15 dias após a OMS ter declarado situação pandêmica. Essa nova normativa flexibilizou os serviços da psicóloga que podem ser prestados online para garantir a continuidade de assistência à população (CFP, 2020bConselho Federal de Psicologia. (2020b). Resolução no 04, de 26 de março de 2020. Dispõe sobre regulamentação de serviços psicológicos prestados por meio de Tecnologia da Informação e da Comunicação durante a pandemia do COVID-19. Brasília. Recuperado de http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-4-de-26-de-marco-de-2020-250189333
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). A suspensão se refere aos artigos 3º, 4º, 6º, 7º e 8º da Resolução CFP nº 011/2018, permitindo: a prestação de serviços psicológicos por meio das TIDCs após o cadastro junto ao CFP mesmo enquanto a psicóloga aguarda a formalização da autorização (artigos 3º e 4º); o atendimento de pessoas e grupos em situação de urgência e emergência (artigo 6º); o atendimento de pessoas e grupos em situação de emergência e desastres (artigo 7º); e o atendimento de pessoas e grupos em situação de violação de direitos ou de violência (artigo 8º).

Importante destacar que a suspensão dos artigos citados foi para garantir a continuidade do atendimento à população, e a decisão do CFP ocorreu refletindo sobre o menor prejuízo à sociedade diante desse momento de pandemia. No entanto, não há como deixar de observar que possíveis consequências negativas também possam ocorrer diante da inexperiência profissional (a própria formação nos cursos de graduação até o momento não oferece atividades para o desenvolvimento das competências necessárias para os serviços online) e a falta de estrutura física e tecnológica para ofertar esse tipo de atendimento. Além disso, importante retomar a ideia de Knop (2017Knop, M. F. T. (2017). Exclusão digital, diferenças no acesso e uso de tecnologias de informação e comunicação: questões conceituais, metodológicas e empíricas. Caderno Eletrônico de Ciências Sociais: Cadecs, 5(2), 39-58. doi: 10.24305/cadecs.v5i2.2017.19437
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), no sentido de pensar que o atendimento remoto/online só é possível para uma pequena parcela da população brasileira, deixando de lado, principalmente, as mais vulneráveis que, certamente, são as que mais sofreram e sofrem os impactos econômicos, sociais e de saúde decorrentes da pandemia. Nota-se, desse modo, a necessidade de que sejam contínuas as reflexões sobre as melhores estratégias para que sejam fornecidos serviços psicológicos devidamente qualificados e que alcancem a toda a população, e não apenas uma parcela que, por si só, já possui alguns privilégios e prerrogativas que lhe permitem amenizar, minimamente, os impactos da pandemia.

Em meio a essas preocupações, inclui-se questões específicas da área da Avaliação Psicológica que, para além de ser inerente ao trabalho da profissional (Nunes et al., 2012Nunes, M. F. O., Muniz, M., Reppold, C. T., Faiad, C., Bueno, J. M. H, & Noronha, A. P. P. (2012). Diretrizes para o ensino de avaliação psicológica. Avaliação Psicológica, 11(2), 309-316. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-04712012000200016&lng=pt&tlng=pt
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), tem como uma das preocupações basilares a validade consequencial da avaliação psicológica (AERA et al., 2014American Educational Research Association, American Psychological Association, & National Council on Measurement in Education (2014). Standards for educational and psychological testing. American Educational Research Association., Zanini et al., 2021Zanini, D. S., Reppold, C. T., & Faiad, C. (2021). Do lápis e papel à modalidade remota: considerações sobre a avaliação psicológica em tempos de pandemia. Em K. L. Oliveira, M. Muniz, T. H. Lima, D. S. Zanini & A. A. A., Santos. Formação e estratégias de ensino em Avaliação Psicológica (pp. 38-47), Editora Vozes.). As evidências de validade consequencial se referem à utilização dos testes psicológicos em relação às consequências sociais, intencionais ou não, produzidas por esse uso e, para isso, deve-se considerar a finalidade para a qual o teste foi construído e se os resultados emergidos contemplam os princípios da ética, da moral, da justiça e dos direitos humanos (AERA et al., 2014American Educational Research Association, American Psychological Association, & National Council on Measurement in Education (2014). Standards for educational and psychological testing. American Educational Research Association.).

O termo validade consequencial foi criado para ressaltar a necessidade do uso ético de um teste psicológico, ou seja, pode-se ter um teste muito bom sob a perspectiva psicométrica, mas é preciso se questionar e se atentar para o modo como o uso dele influenciará na vida da pessoa avaliada e se o seu uso realmente será bom para as pessoas e para a sociedade. Preocupações éticas na construção e uso de um teste psicológico é indispensável, assim como devem ser consideradas a qualidade psicométrica e a intenção de uso do teste psicológico.

Assim, o termo “validade consequencial” também deve ser aplicado ao processo de avaliação psicológica. É imprescindível refletir sobre as implicações sociais, intencionais ou não da realização da avaliação psicológica e qual o motivo desse processo ser iniciado. O próprio Código de Ética da Profissional Psicóloga-CEPP (CFP, 2005Conselho Federal de Psicologia. (2005). Resolução no 12, de 18 de agosto de 2005 - Regulamenta o atendimento psicoterapêutico e outros serviços psicológicos mediados por computador e revoga a Resolução CFP N° 003/2000. Recuperado de https://cadastrosite.cfp.org.br/docs/resolucao2005_12.pdf
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), por meio dos sete princípios fundamentais, orienta para um trabalho embasado no respeito e promoção aos direitos humanos. Diante disso, independentemente de neste momento vigorar uma resolução que permite os serviços psicológicos por meio das TIDCs, cabe à psicóloga julgar se ofertará essa modalidade de serviço após analisar todas as variáveis que a permeiam. Entre os fatores a serem considerados pela psicóloga, incluem-se as normativas e orientações do CFP, a competência da profissional para desempenhar as atividades, os recursos disponíveis e o cuidado com quem receberá o serviço. Para auxiliar essa análise, destaca-se que as produções mencionadas anteriormente (APA, 2020; CFP, 2020aConselho Federal de Psicologia. (2020a). Cartilha de boas práticas em avaliação psicológica em contexto de Pandemia. Brasília: CFP. Recuperado de https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2021/02/Cartilha-Boas-Pra%CC%81ticas-na-pandemia.pdf
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; CFP, 2020bConselho Federal de Psicologia. (2020b). Resolução no 04, de 26 de março de 2020. Dispõe sobre regulamentação de serviços psicológicos prestados por meio de Tecnologia da Informação e da Comunicação durante a pandemia do COVID-19. Brasília. Recuperado de http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-4-de-26-de-marco-de-2020-250189333
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; Marasca et al., 2020Marasca, A. R., Yates, D. B., Schneider, A. M. de A., Feijó, L. P., & Bandeira, D. R. (2020) Avaliação psicológica online: considerações a partir da pandemia do novo coronavírus (COVID-19) para a prática e o ensino no contexto a distância. Estudos de Psicologia (Campinas), 37(e200085), 1-11. doi: 10.1590/1982-0275202037e200085
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, & Schneider et al., 2020Schneider, A. M. A., Marasca, A. R., Yates, D. B., Feijó, L. P., Rovinski, S. L., & Bandeira, D. R. (2020). Boas Práticas para a Avaliação Psicológica Online Porto Alegre: GEAPAP/UFRGS.) contribuem imensamente para as reflexões, possibilidades e cuidados na avaliação online.

Ainda no que se refere à validade consequencial da avaliação psicológica ofertada por meio das TIDCs, é importante a psicóloga garantir que esse processo seja ofertado com qualidade e ética ao ponderar as especificidades de uma avaliação psicológica envolvendo instrumentos, métodos e técnicas. Será que o formato online permite o uso dos variados procedimentos científicos para esse momento de coletar informações e compreender o funcionamento social, emocional e/ou cognitivo de uma pessoa ou de um grupo?

Na Resolução CFP nº 009/2018 consta no Art. 1º, §2 - “A psicóloga e o psicólogo têm a prerrogativa de decidir quais são os métodos, técnicas e instrumentos empregados na Avaliação Psicológica, desde que devidamente fundamentados na literatura científica psicológica e nas normativas vigentes do Conselho Federal de Psicologia (CFP)”, e no Art. 2º - “Na realização da Avaliação Psicológica, a psicóloga e o psicólogo devem basear sua decisão, obrigatoriamente, em métodos e/ou técnicas e/ou instrumentos psicológicos reconhecidos cientificamente para uso na prática profissional da psicóloga e do psicólogo (fontes fundamentais de informação), podendo, a depender do contexto, recorrer a procedimentos e recursos auxiliares (fontes complementares de informação)”. Além disso, na Nota técnica do CFP no 07/2019 é explicitado que os testes psicológicos podem ser administrados nos formatos lápis e papel ou informatizado (por meio de computador) e que é preciso diferenciar administração informatizada presencial de administração informatizada remota (sem a presença do examinador e examinando no mesmo ambiente físico). Em ambas normativas tem-se que a psicóloga tem autonomia para decidir qual técnica, instrumento e/ou método será utilizado para a compreensão da demanda a ser avaliada desde que ampare a condução da avaliação psicológica em estratégias cientificamente fundamentadas.

A partir do momento que se tem liberdade para a condução da avaliação psicológica garantindo-se uma prática ética, técnica e empiricamente sustentada na ciência psicológica, é requerido da psicóloga o cuidado com cada passo a ser percorrido no processo e sempre se questionando “devo utilizar essa técnica, esse instrumento, esse método para melhor compreender a demanda? quais os limites e contribuições dessa minha opção? Qual é a escolha mais adequada?”. Por exemplo, no formato online para o desenvolvimento de uma avaliação psicológica, será que somente a técnica da entrevista é suficiente para a investigação da demanda ou seria importante conseguir realizar uma observação do comportamento de forma mais detalhada ou ainda fazer uso de um teste psicológico?

No que se refere à técnica de entrevista, por ser amparada principalmente no diálogo estabelecido entre a psicóloga e a avalianda, parece ser a mais viável a ser utilizada no formato online. Ainda assim, é preciso estar sempre atenta para possíveis prejuízos, uma vez que ainda não há estudos suficientes que possibilitem compreender a influência das TIDCs na construção do vínculo terapêutico ou do rapport. Como bem destacado por Tavares (2012Tavares, M. (2012). Cosiderações Preliminares à Condução de uma Avaliação Psicológica. Avaliação Psicológica, 11(3), 321-334. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-04712012000300002&lng=pt&tlng=pt
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), o resultado de uma avaliação psicológica depende, entre outras questões, da percepção que a avaliada teve da avaliação, ou seja, se foi algo significativo e da qualidade da relação estabelecida nesse processo.

A técnica da observação tende a apresentar maior limitação devido à dificuldade para se fazer uma leitura mais detalhada do não verbal por meio da tela de um computador ou celular, impossibilitando uma observação mais apurada dos comportamentos. Ressalta-se que essa restrição na observação também é um limitador na condução da entrevista, pois observar o comportamento e a expressão facial durante o relato de uma pessoa contribui para uma melhor análise sobre o que está sendo verbalizado. A título de exemplo, podem ser observados sinais contraditórios entre o relato e a expressividade facial ou a inquietação do corpo.

Já ao tratar dos testes psicológicos, em 2020 havia no Satepsi o registro de quatro testes com parecer favorável para aplicação no formato remoto (CFP, 2020aConselho Federal de Psicologia. (2020a). Cartilha de boas práticas em avaliação psicológica em contexto de Pandemia. Brasília: CFP. Recuperado de https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2021/02/Cartilha-Boas-Pra%CC%81ticas-na-pandemia.pdf
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; Marasca et al., 2020Marasca, A. R., Yates, D. B., Schneider, A. M. de A., Feijó, L. P., & Bandeira, D. R. (2020) Avaliação psicológica online: considerações a partir da pandemia do novo coronavírus (COVID-19) para a prática e o ensino no contexto a distância. Estudos de Psicologia (Campinas), 37(e200085), 1-11. doi: 10.1590/1982-0275202037e200085
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; Schneider et al., 2020Schneider, A. M. A., Marasca, A. R., Yates, D. B., Feijó, L. P., Rovinski, S. L., & Bandeira, D. R. (2020). Boas Práticas para a Avaliação Psicológica Online Porto Alegre: GEAPAP/UFRGS.). Até a finalização deste artigo, em abril de 2021, esse número havia dobrado para 11 instrumentos nessa situação. Esse dado, mais uma vez, exemplifica como a pandemia impulsionou a ampliação da possibilidade uso das TIDCs na área de avaliação psicológica.

A interação da profissional com a pessoa avaliada por meio das TIDCs pode ocorrer por diferentes recursos e atualmente as mais comuns são computadores portáteis ou celulares (IBGE, 2018Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas - IBGE (2018). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - PNAD contínua: acesso à internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso pessoal. Rio de Janeiro: IBGE.). O recurso usado para comunicação, seja por parte da avalianda ou da psicóloga, pode interferir com maior ou menor gravidade no uso das técnicas, instrumentos e /ou métodos da ciência psicológica utilizados no processo de avaliação

É importante mencionar que, com os avanços da inteligência artificial, em meados de 2020 começaram a surgir, no Brasil, relatos sobre uma tecnologia de fiscalização de provas com ferramentas que asseguram a identificação de quem é que está realizando a prova na frente do computador. As ferramentas realizam leitura facial, monitoramento ocular e da movimentação do respondente para identificar possíveis movimentos de consulta de materiais e de dispositivos não permitidos durante a prova ou presença de outras pessoas no ambiente (ABRAPP, 2020Associação Brasileira de Entidades Fechadas da Previdência Privada - ABRAPP (2020). Sistema de inteligência artificial garante validade de provas da UniAbrapp. Recuperado de https://blog.abrapp.org.br/blog/sistema-de-inteligencia-artificial-garante-validade-de-provas-da-uniabrapp/
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). Trata-se de tecnologia inovadora, cuja divulgação ainda se concentra no marketing da tecnologia sem que tenha sido encontrado respaldo científico que evidencie sua efetividade. Assim, no que se refere ao uso dos testes psicológicos, ainda se faz presente a limitação para gerar dados qualitativos obtidos pela observação do comportamento durante a testagem, bem como se a pessoa avaliada não está sendo influenciada por alguém externo ao processo de avaliação e/ou se variáveis do ambiente estariam interferindo na manutenção de sua atenção. Esses são somente alguns exemplos para se ponderar o quanto a avaliação pode ficar comprometida por meio das TIDCs.

Essas reflexões foram compartilhadas por Miguel (2020Miguel, F. K. (2020). Avaliação psicológica on-line. Em A. K. C. Nascimento, & M. B. Sei (Orgs.), Intervenções psicológicas on-line: reflexões e retrato de ações (pp. 67-79). Clínica de Psicológica da UEL. Recuperado de http://www.uel.br/clinicapsicologica/pages/publicacoes.php
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), que abordou sobre as limitações de outras técnicas como dinâmica de grupo, caixa lúdica e desenho livre, e por Zanini et al. (2021Zanini, D. S., Reppold, C. T., & Faiad, C. (2021). Do lápis e papel à modalidade remota: considerações sobre a avaliação psicológica em tempos de pandemia. Em K. L. Oliveira, M. Muniz, T. H. Lima, D. S. Zanini & A. A. A., Santos. Formação e estratégias de ensino em Avaliação Psicológica (pp. 38-47), Editora Vozes.), que reforçaram seis cuidados a serem considerados pela psicóloga durante a avaliação. Os aspectos por elas citados envolvem (1) ponderar sobre as competências que possui para utilizar o método, técnica ou procedimento; (2) avaliar se as competências que possui são desenvolvidas nos cursos de formação profissional de Psicologia; (3) considerar as possibilidades de treinamento adequado para manusear as ferramenta, seja por parte da avaliadora ou da avalianda; (4) assegurar que o resultado da avaliação possa efetivamente revelar informações sobre o construto avaliado, e não da competência da examinanda para responder o procedimento; (5) fornecer informações suficientes que assegurem as condições necessárias à interação, conforme também abordado por CFP (2020Conselho Federal de Psicologia. (2020a). Cartilha de boas práticas em avaliação psicológica em contexto de Pandemia. Brasília: CFP. Recuperado de https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2021/02/Cartilha-Boas-Pra%CC%81ticas-na-pandemia.pdf
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), Marasca et al. (2020Marasca, A. R., Yates, D. B., Schneider, A. M. de A., Feijó, L. P., & Bandeira, D. R. (2020) Avaliação psicológica online: considerações a partir da pandemia do novo coronavírus (COVID-19) para a prática e o ensino no contexto a distância. Estudos de Psicologia (Campinas), 37(e200085), 1-11. doi: 10.1590/1982-0275202037e200085
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) e Schneider et al.( 2020Schneider, A. M. A., Marasca, A. R., Yates, D. B., Feijó, L. P., Rovinski, S. L., & Bandeira, D. R. (2020). Boas Práticas para a Avaliação Psicológica Online Porto Alegre: GEAPAP/UFRGS.); e (6) refletir sobre os aspectos deontológicos associados à prática em si.

No que se refere às competências das psicólogas para uso dos métodos, técnicas ou procedimentos psicológicos, sejam eles desenvolvidos na formação inicial ou continuada da psicóloga, observa-se que a formação em avaliação psicológica já era insuficiente para o desenvolvimento das competências básicas (para maiores informações sobre as competências indica-se Nunes et al., 2012Nunes, M. F. O., Muniz, M., Reppold, C. T., Faiad, C., Bueno, J. M. H, & Noronha, A. P. P. (2012). Diretrizes para o ensino de avaliação psicológica. Avaliação Psicológica, 11(2), 309-316. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-04712012000200016&lng=pt&tlng=pt
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
; Muniz, 2017Muniz, M. (2017). Competências e cuidados para a administração da avaliação psicológica e dos testes psicológicos. Em M. R. C. Lins; & J. Borsa (Orgs.), Avaliação Psicológica: aspectos teóricos e práticos (pp.100-114). Vozes.) e para a atuação nessa área (e.g., Ambiel, Zuanazzi, Sette, Costa, & Cunha, 2019Ambiel, R. A. M., Zuanazzi, A. C., Sette, C. P., Costa, A. R. L., & Cunha, F. A. (2019). Análise de ementas de disciplinas de avaliação psicológica: Novos tempos, velhas questões. Avaliação Psicológica, 18(1), 21-30. doi: 10.15689/ap.2019.1801.15229.03
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; Mendes, Nakano, Silva, & Sampaio 2013Mendes, L. S., Nakano, T. de C., Silva, I. B., & Sampaio, M. H. de L. (2013). Conceitos de avaliação psicológica: conhecimento de estudantes e profissionais. Psicologia: Ciência e Profissão, 33(2), 428-445. doi: 10.1590/S1414-98932013000200013
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; Noronha, 2002Noronha, A. P. P. (2002). Os problemas mais graves e mais frequentes no uso dos testes psicológicos. Psicologia: Reflexão e Crítica, 15(1), 135-142. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-79722002000100015
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; Padilha, Noronha, & Fagan, 2007Padilha, S., Noronha, A. P. P., & Fagan, C. Z. (2007). Instrumentos de avaliação psicológica: uso e parecer de psicólogos. Avaliação Psicológica, 6(1), 69-76. Recuperado de http://bit.ly/2LG9roL
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) antes mesmo das demandas para que fossem realizadas avaliações psicológicas por meio remoto. Acrescido a isso, as Diretrizes Curriculares Nacionais da Psicologia-DCNs (CNE, 2011Conselho Nacional de Educação - CNE. (2011). Resolução nº 5, de 15 de março de 2011. Recuperado de http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=7692-rces005-11-pdf&Itemid=30192
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), ainda em vigor, não destacam conteúdos sobre os serviços remotos, mesmo porque não eram permitidos. Supõe-se, desse modo, que tais competências não estejam sendo desenvolvidas. Adiciona-se a essa discussão a preocupação sobre quais competências específicas precisam ser desenvolvidas durante o curso de formação em Psicologia.

Ao refletir sobre as possibilidades do avaliando compreender de modo adequado as orientações para manusear as ferramentas e a preocupação em assegurar que os resultados da avaliação possam efetivamente revelar informações sobre o construto avaliado (ambos citados por Zanini et al. (2021Zanini, D. S., Reppold, C. T., & Faiad, C. (2021). Do lápis e papel à modalidade remota: considerações sobre a avaliação psicológica em tempos de pandemia. Em K. L. Oliveira, M. Muniz, T. H. Lima, D. S. Zanini & A. A. A., Santos. Formação e estratégias de ensino em Avaliação Psicológica (pp. 38-47), Editora Vozes.), pondera-se que a exclusão digital é mais uma variável a ser considerada (Knop, 2017Knop, M. F. T. (2017). Exclusão digital, diferenças no acesso e uso de tecnologias de informação e comunicação: questões conceituais, metodológicas e empíricas. Caderno Eletrônico de Ciências Sociais: Cadecs, 5(2), 39-58. doi: 10.24305/cadecs.v5i2.2017.19437
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). Do mesmo modo que, ao criar os instrumentos de autorrelato, há uma preocupação com o domínio da leitura do avaliando (que inclusive, influencia na caracterização do público-alvo), há agora que se considerar, não apenas o acesso ao equipamento tecnológico, mas também a fluência no manuseio das ferramentas tecnológicas.

De um lado, é importante que os desenvolvedores dos testes psicológicos possam construir ferramentas intuitivas e, do outro lado, é fundamental que a psicóloga que faz uso dessas ferramentas em sua prática profissional atente-se a fluências do avaliando para manusear de modo autônomo as TIDCs necessárias para que a avaliação aconteça. Faz pertinente reforçar, mais uma vez, para que a desigualdade social e de acesso à tecnologia não sejam subestimadas nas avaliações psicológicas, pois isso prejudicaria os preceitos de justiça e proteção dos direitos humanos na Avaliação Psicológica, conforme Resolução CFP no 09/2018.

Assim, ao tratar das condições necessárias à interação, reitera-se a importância de que os desenvolvedores dos testes psicológicos informatizados e remotos se atentem à realidade nas diferentes regiões geográficas brasileiras. Dados estatísticos revelam que aproximadamente 20% da população brasileira não tem acesso à internet no domicílio e que para uma parcela representativa da população o acesso a ela se dá exclusivamente por meio da tela de um celular (IBGE, 2018Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas - IBGE (2018). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - PNAD contínua: acesso à internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso pessoal. Rio de Janeiro: IBGE.).

Por fim, ao abordar sobre os aspectos deontológicos, é pertinente lembrar que a reflexão constante dos aspectos deontológicos é inerente a qualquer prática psicológica. A possibilidade de ofertar os serviços psicológicos por meio das TIDCs, demanda revisão de algumas resoluções do CFP, além da Resolução CFP nº 011/2018 (alterada pela CFP nº 04/2020 enquanto durar a pandemia), a Resolução CFP nº 010/2005 sobre o Código de Ética da Profissional Psicóloga (CEPP). O CEPP apresenta princípios fundamentais, assim, qualquer conduta que não esteja descrita deve ser analisada a partir desses princípios. No entanto, mesmo os princípios resguardando a prática dentro de uma ética, seria interessante uma mudança no código para contemplar questões que envolvem a prática da psicologia mediada pelas TIDCs, pois isso contribuiria para que as profissionais da psicologia oferecessem o serviço ou aceitassem alguma demanda com maior direcionamento se está ou não infringindo o código.

Além disso, considerando as ponderações sobre a validade consequencial já amplamente defendida neste texto, é conveniente fazer a pergunta “a quem serve a avaliação psicológica mediada pela tecnologia?”. As TIDCs, ao mesmo tempo que podem facilitar o acesso das pessoas aos serviços prestados pela profissional psicóloga por não ter a necessidade de deslocamento, também tendem a privilegiar pessoas com acesso à tecnologia e perpetuar exclusões sociais históricas e muitas vezes não reconhecidas na área. Ter uma variedade de formatos de atendimento, com qualidade, pode incluir, mas é preciso cuidar para que o formato online não se torne o único, ainda mais por ser um formato no qual há menos gastos, então pode começar a ser uma preferência não apenas das psicólogas, mas das instituições que ofertam serviços psicológicos, o que poderá contribuir para a precarização do trabalho.

Proposições para Qualificar o Uso das TIDCs na Psicologia e na Avaliação Psicológica

As TIDCs são indispensáveis ao mundo atual e a tendência é o seu desenvolvimento, expandindo para todos os setores da sociedade e para todos os tipos de interações de maneira a mediar as relações entre as pessoas e entre elas e a sociedade. Dentro disso, a psicologia também pode e deve fazer uso dessas ferramentas, mas ainda há necessidade de compreender os impactos tecnológicos para quem recebe o serviço e para a sociedade, em especial para a realidade atual e para a população brasileira. Como para os brasileiros o uso das TIDCs mediando os serviços psicológicos, incluindo a avaliação psicológica, é recente, Schneider et al. (2020Schneider, A. M. A., Marasca, A. R., Yates, D. B., Feijó, L. P., Rovinski, S. L., & Bandeira, D. R. (2020). Boas Práticas para a Avaliação Psicológica Online Porto Alegre: GEAPAP/UFRGS.) apontam para o fato de que ainda é necessário se atentar para várias questões que envolvem essa nova prática e fazendo uma discussão com a categoria, junto ao Sistema Conselho de Psicologia e desenvolvimento de pesquisas científicas.

Diante disso, fazem-se importantes algumas ações que ajudem o entendimento dessa prática e a melhoria dos serviços que serão prestados. O primeiro é uma política de conscientização das psicólogas quanto aos limites e possibilidades dos serviços psicológicos a serem prestados. A Resolução CFP n° 011/2018 abarca diretrizes e normas a serem cumpridas, bem como restringe o serviço para determinadas populações (artigos em suspensão pela Resolução CFP n°004/2020). No entanto, os contextos de atuação da psicóloga são muito diversos, com inúmeras populações e uma infinidade de demandas específicas. Para que essa política de conscientização seja respaldada, é ponto crucial que seja realizada pesquisa com os serviços sendo prestados desde 2018. O CFP poderia junto às entidades da Psicologia e a categoria promover um levantamento de dados para saber quais serviços estão sendo prestados, onde, como, para quem, para quais demandas, em quais contextos, bem como qual a percepção das psicólogas e das pessoas atendidas sobre os resultados obtidos, quais as dificuldades enfrentadas, quais as possibilidades que surgiram com o formato online e quais as sugestões para a continuidade dos serviços prestados. A partir desses resultados, repensar as práticas que assim forem necessárias e conscientizar a sociedade sobre os serviços psicológicos oferecidos apontando para questões a serem consideradas ao procurar ou ao aceitar o formato online. No entanto, tudo isso só pode ocorrer desde que, primeiramente, entenda e assuma enquanto categoria que, ao falar dessa temática, está-se falando de uma parcela pequena da população brasileira. Isso pois, atualmente, as relações sociais estabelecidas por meio das tecnologias só contemplam e permitem que apenas uma parte da sociedade seja envolvida na discussão. Ter isso em mente é fundamental, para não permitir que a AP se torne excludente, classista e destinada a um grupo pequeno de favorecidos socioeconomicamente.

Outra ação é investir na conscientização para que os cursos de Psicologia englobem em suas grades curriculares disciplinas e/ou atividades que promovam as competências básicas necessárias para a prestação de serviços psicológicos online, trabalhando e refletindo, por exemplo, em relação à avaliação psicológica, os seis pontos citados por Zanini et al. (2021Zanini, D. S., Reppold, C. T., & Faiad, C. (2021). Do lápis e papel à modalidade remota: considerações sobre a avaliação psicológica em tempos de pandemia. Em K. L. Oliveira, M. Muniz, T. H. Lima, D. S. Zanini & A. A. A., Santos. Formação e estratégias de ensino em Avaliação Psicológica (pp. 38-47), Editora Vozes.) e os demais questionamentos levantados no presente artigo. ]

Para a determinação de quais habilidades são importantes e delinear propostas, é imperativo um debate com a categoria (profissionais e professoras de psicologia) e alunas, futuras profissionais da área. Aqui cabe destacar as DCNs aprovadas em 2019 e aguardando homologação do MEC (CNE, 2019Conselho Nacional de Educação - CNE. (2019). Recuperado de http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=139201-pces1071-19&category_slug=dezembro-2019-pdf&Itemid=30192
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) “Art. 3º- O curso de graduação em Psicologia deve ser oferecido na modalidade presencial, tendo em vista a natureza complexa das competências profissionais do psicólogo, e segue os marcos legais para os cursos de bacharelado” e “Parágrafo único. As ações de ensino a distância, mediadas pela tecnologia, direcionadas para os cursos de bacharelado, devem ser utilizadas com a finalidade de levar o estudante a compreender e a utilizar as tecnologias digitais de forma crítica, reflexiva e ética, como recurso para acessar, disseminar e produzir conhecimento”. Então, as tecnologias fazem parte do cotidiano e da profissão da psicóloga e o uso deve ser abordado nos cursos de graduação.

Considerações Finais

O presente artigo teórico, por fazer parte do número temático da Revista Psico-USF sobre Contextos e Desafios da Avaliação Psicológica: teoria, prática e pesquisa, teve a finalidade de gerar reflexões sobre a prática da Avaliação Psicológica no formato remoto. A AP por meio remoto foi viabilizada através da Resolução CFP nº 011/2018 alterada pela Resolução CFP no 04/2020. Entende-se que os serviços psicológicos oferecidos por meio das TIDCs vão ao encontro de uma demanda da sociedade potencializado pelo contexto pandêmico, mas que ainda carece de maior compreensão sobre os impactos dessa nova modalidade para as psicólogas, para as pessoas usuárias desses serviços e para a sociedade.

Nesse sentido, é imprescindível que se desenvolvam ações que busquem respostas para qualificar esse formato do serviço e minimizar futuras implicações éticas. Para a área da Avaliação Psicológica, foram apresentadas e discutidas diversas questões, mas que não se esgotam, e o mesmo deve ser feito para as demais áreas. Com a pandemia, tais ações parecem ainda mais urgentes, pois, como mencionado, houve um aumento exponencial dos serviços prestados por meio das TIDCs e muitos não retornarão ao presencial. Concluindo, os serviços psicológicos por meio das TIDCs são imensamente utilizados, mas ainda pouco conhecidas as consequências, e esse é o grande desafio para a Psicologia e para a Avaliação Psicológica.

Para finalizar, é preciso resgatar as reflexões de Bicallho e Vieira (2018Bicalho, P. P. G., & Vieira, E. S. (2018). Direitos Humanos e Avaliação Psicológica: Indissociabilidade do Compromisso Ético-Político Profissional. Psicologia: Ciência e Profissão, 38(n/e.), 147-158. doi: 10.1590/1982-3703000211836
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, p.147) quando afirmam “que o exercício de direitos humanos junto ao processo de avaliação psicológica deve fazer-se presente e efetivo não somente na construção de seus instrumentos e em seus requisitos técnicos, como também em sua manipulação e aplicação, ou seja, na postura ético-política de quem executa a avaliação, levando-se em consideração que a subjetividade dos brasileiros é também (e principalmente) produzida pelos processos históricos de desigualdade e violência, efeitos de quatrocentos anos de colonização e escravização”. E, nesse sentido, é preciso lembrar que o contexto pandêmico escancarou as desigualdades sociais de um modo nunca antes vivenciado.

Referências

  • 1
    Termo usado para se referir ao esquema de transmissão de um sistema de redes que possibilita elevar o desempenho e dimensões continentais da rede.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Dez 2021

Histórico

  • Recebido
    23 Abr 2021
  • Revisado
    22 Jun 2021
  • Aceito
    28 Jun 2021
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