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A gramática do corpo e a escrita do nome

The body's grammar and the writing of the name

La grammaire du corps et l'écriture du nom

Resumos

O presente trabalho visa a investigar a função da produção escrita encontrada nas psicoses, como testemunham Schereber, Aimée, Bispo do Rosario, Stela do Patrocínio, entre muitos outros, enfatizando as articulações entre a escrita, o corpo e o nome

Escrita; Letra; Traço; Nome; Psicose


The aim off this article is to investigate the function of writing found in the psychoses as the testemony off Schereber, Aimée, Bispo do Rosario e Stela do Patrocínio, getting enphasis in the articulations between the writte, the body end the name

Writte; Letter; Trace; Name; Psychoses


Ce travail vise à rechercher la fonction de la production écrite trouvée dans les psychoses comme témoignent Schereber, Aimée, Bispo do Rosario, Stela do Patrocínio et beaucoup d'autres, remarquant les articulations entre l'écriture, le corps et le nom

Écriture; Lettre; Trait; Nom; Psychose


ARTIGOS ORIGINAIS : PRODUÇÃO DOS ALUNOS NO CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO DO PROF. LUIZ CARLOS NOGUEIRA, EM 2002

A gramática do corpo e a escrita do nome

The body's grammar and the writing of the name

La grammaire du corps et l'écriture du nom

Andrea Menezes Masagão1 1 Doutoranda em Psicologia Clínica pelo Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Endereço eletrônico: andreamasagao@uol.com.br

Instituto de Psicologia - USP

RESUMO

O presente trabalho visa a investigar a função da produção escrita encontrada nas psicoses, como testemunham Schereber, Aimée, Bispo do Rosario, Stela do Patrocínio, entre muitos outros, enfatizando as articulações entre a escrita, o corpo e o nome.

Descritores: Escrita. Letra. Traço. Nome. Psicose.

ABSTRACT

The aim off this article is to investigate the function of writing found in the psychoses as the testemony off Schereber, Aimée, Bispo do Rosario e Stela do Patrocínio, getting enphasis in the articulations between the writte, the body end the name.

Index terms: Writte. Letter. Trace. Name. Psychoses.

RÉSUMÉ

Ce travail vise à rechercher la fonction de la production écrite trouvée dans les psychoses comme témoignent Schereber, Aimée, Bispo do Rosario, Stela do Patrocínio et beaucoup d'autres, remarquant les articulations entre l'écriture, le corps et le nom.

Mots-clés: Écriture. Lettre. Trait. Nom. Psychose.

Eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo

Eu era ar, espaço vazio, tempo

E gases puro, assim, ó, espaço vazio, ó

Eu não tinha formação

Não tinha formatura

Não tinha onde fazer cabeça

Fazer braço, fazer corpo

Fazer orelha, fazer nariz

Fazer céu da boca, fazer falatório

Fazer músculo, fazer dente

Eu não tinha onde fazer nada dessas coisas

Fazer cabeça, pensar em alguma coisa

Ser útil, inteligente, ser raciocínio

Não tinha onde tirar nada disso

Eu era espaço vazio puro.

(Patrocínio, 2001)

Stela escreveu, ou melhor, falou essas letras, na Colônia Juliano Moreira, hospital psiquiátrico onde viveu durante trinta anos, e morreu. Sua fala, registrada em gravações, deu origem a um livro, publicado em 2001: Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Seus escritos, feitos em papelão, perderam-se, mas sua voz gravada foi transcrita e apresentada no Rio de Janeiro, em 1988, na exposição "Ar subterrâneo", despertando o interesse da comunidade artística: músicas foram gravadas com suas letras, peças foram encenadas com seu texto.

Pouco se sabe do passado de Stela. Nasceu em janeiro de 1941, filha de Manoel do Patrocínio e Zilda Xavier do Patrocínio. Sua mãe dizia-se solteira e trabalhava como doméstica. Foi internada no núcleo Teixeira Brandão e saiu depois de alguns anos. Stela trabalhou como doméstica, na mesma casa em que sua mãe enlouqueceu. Aos 21 anos, deu entrada no hospital Pedro II, levada pela polícia. Foi diagnosticada como "personalidade psicopática mais esquizofrênica hebefrênica". Quatro anos depois, foi levada para a Colônia. Depois de trinta anos de isolamento e sem mais nenhum dente na boca, Stela teve a perna amputada em função de uma hiperglicemia grave. Ficou muito triste, não saiu mais da cama, parou de falar, de escrever e de comer. Morreu pouco tempo depois, de infecção generalizada. Ficaram suas letras, a força e a precisão de seu texto.

Segundo Blanchot

( ) escrever é correr o risco da ausência de tempo, onde paira o eterno recomeço. É passar do Eu ao Ele.( ) É dispor da linguagem sob o fascínio e por ela, em ela, permanecer em contato com o meio absoluto, onde a coisa se torna imagem, onde a imagem, de alusão a uma figura se converte em alusão ao que é sem figura e, da forma desenhada sobre a ausência torna-se a presença informe dessa ausência, a abertura opaca e vazia sobre o que é quando não há mais ninguém, quando ainda não há ninguém. (Blanchot, 1987, p. 24)

A ausência e o vazio são aspectos que apontam para uma espécie de apagamento inerente à experiência da escrita e inerente a essa passagem do eu ao ele. A escrita funcionando, aí, como possibilidade de circulação social desse traço/ objeto que resulta da articulação sujeito/Outro (Costa, 2001).

Esse jogo entre a presença e a ausência no ato da escrita posto em evidência por Blanchot, não passou desapercebido a Freud, que viu no jogo de carretel da criança a expressão de certos elementos que formam a matriz da representação, e no qual Lacan vai ler a determinação do significante no sujeito humano:

O significante é unidade por ser único, não sendo, por natureza, senão símbolo de uma ausência. E é por isso que não podemos dizer da carta/letra roubada que, a semelhança de outros objetos, ela deve estar ou não estar em algum lugar, mas sim que, diferentemente deles, ela estará e não estará onde estiver, onde quer que vá. (Lacan, 1956/1988, p. 27).

No jogo do carretel, um jogo aparentemente banal e repetido muitas e muitas vezes, está contida uma série de interpretações. O jogo marca o estabelecimento de uma memória, a memória da saída da mãe. Trata-se de uma memória, pois é na ausência da mãe que uma presença se constitui enquanto representação. No entanto, essa memória só se estabelece se, no par mãe/filho, uma ausência foi compartilhada. É preciso que a mãe tome seu filho como o representante de algo que lhe falta: o filho tomado enquanto falo imaginário aponta, com sua presença, aquilo que falta à mãe. É neste sentido que o carretel pode tanto representar a mãe, tornando-a presente na sua ausência, como a própria criança, fazendo presente o que faltaria à mãe. A memória que se constitui na repetição apresenta-se, prioritariamente, enquanto memória de separação. Essa primeira separação, que estrutura o campo representacional como jogo simbólico, é uma das pré-condições da circulação social (Costa, 2001, p. 37).

Ainda segundo a autora (Costa, 2001, p. 39), é a lógica da presença/ausência presente no jogo do carretel que regula o princípio da circulação social, o corpo coletivo. O corpo não tem apoio apenas na forma, mas, fundamentalmente, o corpo se apóia nas bordas e é precisamente isso que o torna coletivizável. O que sustenta o corpo são os orificios pulsionais nos quais estão os objetos de circulação, os objetos pulsionais. Lacan define como os mais evidentes os seios, as fezes, a voz e o olhar:

Neste campo, há duas espécies de objeto, os que podem ser compartilhados e os que não podem. Os que não podem, quando os vejo correr no domínio da partilha com os outros objetos, cujo estatuto repousa inteiramente sobre a concorrência, nossa concorrência ambígua que ao mesmo tempo é rivalidade, mas também acordo, são objetos cotáveis, são objetos de intercâmbio. Mas existem outros, e se coloquei antes o falo, é seguramente porque ele é o mais ilustre no que concerne à castração; mas existem outros, vocês sabem, outros que vocês conhecem, os equivalentes mais conhecidos deste falo, que o precedem; o cíbalo, o mamilo. (Lacan, 1962-1963/1997, p. 97)

São objetos que se caracterizam por serem, ao mesmo tempo, internos e externos, objetos destacáveis e intercambiáveis, que abrem caminho para a constituição do objeto comum, do objeto comunicável. O seio faz parte do corpo da mãe, mas a criança o toma como seu. Em relação às fezes, o orificio se recorta, pulsionalmente, no momento em que se instaura o controle esfincteriano, onde o cocô torna-se objeto da demanda materna. A voz inclui a presença do outro e a entonação, o ritmo etc vão construindo essa presença. Quanto ao olhar, é o mais evanescente e incerto dos objetos, na medida em que mantém a indefinição de nossa imagem.

O corpo pulsional funciona a partir da inscrição dessas bordas que desenham os contornos do corpo, desenho que não está dado para sempre e que precisa ser constantemente refeito:

Este corpo que se trata, trata-se de entendermos que ele não nos é dado de modo puro e simples no nosso espelho, que, mesmo nesta experiência do espelho, pode chegar um momento onde esta imagem, esta imagem especular que cremos ter se modifica; o que temos a nossa frente, que é nossa estatura, que é nosso rosto, que é nosso par de olhos, deixa surgir a dimensão do nosso próprio olhar, a imagem começa então a mudar, sobretudo se há um momento onde este olhar que aparece no espelho começa a não mais olhar para nós mesmos, aurora de um sentimento de estranheza que é a porta aberta sobre a angústia. (Lacan, 1962-1963/1997, p. 94)

A escrita de Stela aparece como um ato, pois é no tempo da escrita que Stela produz forma e toma forma. Mas Stela não se fixa na forma que toma, ela é a encarnação de um fluxo infinito, incessante de formas. É preciso recomeçar sempre, a cada letra posta no papel:

"Não sou eu que gosto de nascer

Eles é que me botam para nascer todo dia

E sempre que eu morro me ressuscitam

Me encarnam me desencarnam me reencarnam

Me formam em menos de um segundo

Se eu sumir desaparecer eles me procuram onde eu estiver

Pra estar olhando pro gás pras parede pro teto

Ou pra cabeça deles e pro corpo deles." (Patrocínio, 2001, p. 79)

Nascer todo dia como forma é o trabalho ao qual Stela se dedica, incessantemente sem ter em nada em que se apoiar; ela sustenta sozinha sua forma no tempo e na materialidade da escrita que, a cada letra, permanece para em seguida desvanecer Por que Stela precisa da letra para tomar forma, nem que seja por um breve instante? Será que Stela suporta seu corpo apenas na forma e não nas bordas? Será que a escrita seria uma maneira de tentar produzir borda em um corpo destinado ao suporte evanescente das formas ?

No Seminário sobre as psicoses, Lacan (1957/1998) vai abordar o desencadeamento da psicose por meio da coincidência de duas quedas, a justaposição de dois furos: um no simbólico e outro no imaginário. O furo no simbólico refere-se à foraclusão do significante do Nome do Pai, à ausência de um significante primordial que organiza a filiação do sujeito e porta a ordenação das gerações. O furo no imaginário refere-se à elisão da significação fálica que ordena as produções de sentido, a representação. Nesse encontro casual, um acontecimento vai colocar em cheque a frágil estrutura na qual o sujeito pré-psicótico funcionava até então. Lacan faz uma analogia entre este funcionamento e um banquinho de três pés, no qual o sujeito se equilibra, precariamente, sustentando-se por meio de bengalas imaginárias: Trata-se de uma série de identificações, puramente conformistas, com personagens que lhe darão o sentimento do que se deve fazer para ser um homem, ou do que é preciso fazer para ser uma mulher.

Através de uma imitação da imagem do semelhante, do par que lhe serve de muletas, o pré-psicótico sustenta-se, vivendo em conformidade com os modelos que lhe são propostos pelo social, até que um terceiro, um ímpar, vem desfazer seu arranjo. Será que este arranjo procura suportar-se apenas na forma, fazendo do corpo uma vestimenta, um invólucro que se desfaz na dissolução imaginária que caracteriza o desencadeamento da psicose? Será que podemos pensar nesse corpo como um corpo social, cujo apoio são os ideais propostos pelo social e não como corpo coletivo, como o é o corpo pusional, cujo apoio são os orificios? O que desfaz este arranjo é o que Lacan nomeia como um encontro com o pai real, não necessariamente o pai do sujeito, mas Um-pai. Lacan fornece algumas situações em que esse encontro se dá e nas quais é possível situar o início da psicose: "( ) Para aquele que confessa seu erro, na pessoa de seu confessor, para a mocinha enamorada, no encontro com o pai do rapaz (...)" (Lacan, 1957/1998, p. 584).

Trata-se, aí, de situações vividas pelo sujeito, mas a importância dessas situações não está no vivido, mas na posição que o sujeito ocupa diante delas e que remete ao que Lacan chamou de oposição simbólica. O encontro com Um-pai remete o sujeito, que se encontra em uma relação dual, imaginária (a – a') com o semelhante, a um elemento terceiro, simbólico. É comum na clínica da psicose, pacientes que situam o início de sua psicose no encontro com o Outro sexo. Trata-se, aí, de um acontecimento que remete o sujeito a uma alteridade radical, pois ele não tem acesso à diferença sexual inscrita pela significação fálica e, sem esta referência, não lhe é possível responder, não lhe é possível representar o Outro sexo e situar-se como sujeito diante dele.

No encontro fortuito com um elemento terceiro, simbólico, o sujeito não encontra resposta no imaginário, pois o modelo das significações dadas pelos outros sociais não lhe basta. Schreber nos fornece um belo exemplo, em uma observação a respeito de sua nomeação ao cargo de presidente da câmara da corte de apelação de Dresdem: "Essa tarefa é tanto mais pesada porque os membros do conselho cuja presidência eu tinha que assumir ultrapassavam em muito a minha idade" (Julien, 1999, p. 21). Ocorre, aí, uma inversão de gerações. Como buscar apoio na imagem oferecida pelo semelhante, sendo que todos à sua volta são muito mais velhos? Como assumir uma função de autoridade paterna nesse caso? Isso só é possível passando do outro ao Outro, da imagem aos significantes. Essa passagem requer que no lugar do Outro sejam inscritos, para o sujeito, os significantes fundamentais, em particular o da paternidade. Nessa condição, o sujeito pode deixar as amarras vascilantes do especular e lançar-se no desconhecido, sustentado apenas na lei do significante inconsciente. Mas o que acontece aí, no lugar do significante é que o sujeito se depara com um outro furo, um furo no simbólico.

Sem ter como o sujeito responder tanto do ponto de vista imaginário como do ponto de vista simbólico, ocorre o desencadeamento da psicose e a única resposta possível é encontrada no delírio:

À foraclusão segue-se um processo cuja primeira etapa chamamos um cataclismo imaginário, ou seja, que nada mais pode ser arrendado da relação mortal que é em si mesma a relação com o outro imaginário. Depois, desdobramento separado e investido por todo o aparelho significante-dissociação, despedaçamento, mobilização do significante enquanto palavra jaculatória, insignificante ou demasiado significante, carregada da insignificância, decomposição do discurso interior, que marca toda a estrutura da psicose. Após o encontro, a colisão com o significante inassimilável, trata-se de reconstitui-lo, já que esse pai não pode ser um pai bem simples, um pai redondinho, o pai que é o pai para todo mundo. E o presidente Schreber o reconstitui com efeito. (Lacan, 1975/1985, p. 360)

Nessa passagem, Lacan nos oferece uma preciosa síntese do processo psicótico, que vai do seu desencadeamento no encontro com Um-pai até a sua cura na restituição delirante do pai, além de todos os fenômenos imaginários e simbólicos que povoam essa estrutura. Neste momento de seu ensino, Lacan aborda o pai enquanto um significante. No Seminário sobre as formações do inconsciente, o pai vai aparecer como metáfora; a substituição de um significante por outro e, como toda metáfora, engendra um sentido, uma linhagem. Posteriormente, com a introdução da topologia dos nós, o pai é um nome e sustenta-se no "pelo menos três", ou seja, o pai como nome sustenta-se a partir dos três registros, RSI, e não mais prioritariamente no simbólico. Do pai como significante, passando pelo pai como metáfora e chegando ao pai como nome Podemos extrair deste percurso de Lacan uma série de conseqüências para a clínica da psicose.

Tomando como referência o pai como metáfora temos, como já foi dito a superposição de dois furos na estrutura psicótica. Como decorrência, não existe para o psicótico um ponto de amarração central (a referência fálica) em torno do qual se organizam todas as significações. Ele se movimenta na errância, tomando direções que não se orientam a partir de um ponto de referência central. Segundo Costa (2001), a errância característica da psicose se traduz em um andar incessante, onde o psicótico traça, com seu próprio corpo, um contorno no corpo ilimitado da cidade. Em relação à linguagem, Lacan nos diz que o psicótico está fora do discurso, o que não significa que ele esteja fora da linguagem. No entanto, diferentemente do neurótico, que nos oferece um testemunho encoberto da existência do inconsciente, o psicótico nos oferece um testemunho direto. Ele é habitado pela linguagem, ele nos fala de algo que lhe falou. A relação com a palavra não passa pela mediação do semelhante, ela vem direto do Outro e, muitas vezes, revela um código absoluto e enigmático.

O saber psicótico não está organizado ao redor de um significante, mas se encontra organizado em uma espécie de exigência de totalidade. Já que não pode contar com o saber suposto do pai, o psicótico é obrigado a sustentar, sozinho, uma significação que permite um ordenamento da sua relação com o mundo externo, os objetos e seu corpo. Na construção delirante de Schreber, as coisas vão tão longe que o mundo inteiro está tomado neste delírio de significação, de modo que não há nada do que o cerca, que, de certo modo, não seja ele. Em compensação, tudo o que o cerca é, de certa maneira, vazio dele próprio. Ele o articula de mil maneiras e, especialmente, quando observa que Deus não compreende nada de tudo o que é próprio dos seres vivos e que ele jamais lidou senão com sombras e cadáveres.

Assim como Stela, Schreber testemunha, em sua escrita, esse paradoxo em que transita o psicótico, o absoluto e o nada, a totalidade das significações e a significação vazia, bem como essa necessidade constante de escrever, que poderíamos chamar de um empuxo à escrita. A construção delirante entraria aí como uma possibilidade de metáfora, uma metáfora delirante por meio da qual o sujeito teria a possibilidade de se representar, colocando um limite à demanda materna ilimitada, já que essa não é interditada pelo significante do Nome do Pai. A construção de uma filiação delirante, enquanto possibilidade de ordenação simbólica e o empuxo ao falo, na forma do que Lacan apresenta como empuxo à mulher, entrariam enquanto elementos privilegiados dessa nova organização, a partir da qual o psicótico conseguiria sustentar-se. E a escrita?

Abolição, rejeição, elisão, foraclusão, são muitos os nomes que Lacan emprega para determinar essa ausência de Bejahung (afirmação) relativa a um significante e que permitiria, em seguida, o recalque através da Verneinung. A ausência de uma afirmação primordial em relação ao significante do Nome do Pai leva a uma outra definição do inconsciente, a uma função distinta do recalcado: inconsciente como transmissão de uma não transmissão. A essa não transmissão o psicótico pode responder, utilizando-se da letra no empuxo à escrita ou da passagem ao ato. O que faz da letra suporte privilegiado para se fazer uma transmissão? Também podemos perguntar, por que a matemática é o paradigma da transmissibilidade? Por causa da letra. Sendo deslocável, empunhável, a letra é transmissível. Através dessa transmissibilidade própria, ela transmite aquilo de que ela é, no meio de um discurso, o suporte. (Lacan, 1975/1985) Assim como a matemática, a lógica busca uma linguagem universal, um ideal de transmissão no qual a linguagem não apresenta mais nenhum equívoco:

A lógica caberia organizar, ordenar e sistematizar as formas corretas do uso das convenções, garantindo que cada palavra e cada idéia, cada proposição e cada conceito pudessem corresponder-se, livres de toda confusão e ambigüidade. (Chaui, 1987, p. 195)

Lacan, em seu ensino, privilegia o uso das letras como ideal de transmissão. Ele lê o escrito com o escrito. Trata-se, aí, do que Jean Allouch (1995) denomina transliteração. Ele define três operações de escrita: a transcrição, quando o escrito é regulado pelo som; a tradução, quando o escrito se baseia no sentido; e a transliteração, quando o escrito é regido pela letra. Transliterar é escrever regulando o escrito no escrito. Trata-se de uma operação simbólica na qual ocorre a transferência de uma escrita, aquela que se escreve, para uma outra, aquela que escreve. É assim que Lacan lê o caso Hans por meio da fórmula da metáfora, o caso Schreber por meio do esquema I, Gide com o esquema L, Joyce por meio da invenção do nó borromeano. A transliteração aponta, justamente, para o funcionamento inconsciente. Freud lê o inconsciente, propondo uma analogia do funcionamento inconsciente a uma escrita do tipo rébus ou do tipo hieroglífica. A letra que rege a escrita inconsciente é uma letra híbrida que se situa na fronteira entre a letra e a imagem, como os hieróglifos e os ideogramas, que têm ao mesmo tempo função de letra e desenho. A gramática pulsional é híbrida; o sonho é uma realização de desejo e sua gramática aponta para uma letra híbrida que diz dos orificios do corpo, efeito do recalque (Costa, 2001). É nesse sentido que a letra destácavel circula no lugar dos objetos pulsionais.

Talvez o psicótico tenha, no uso frenético das letras, o vislumbre de uma transmissão possível É assim que Orifeu (Masagão, 2000) dedica-se, em determinado momento a uma insistente e trabalhosa correção da língua. Ele corrige as palavras, manipulando as letras de tal forma que cada palavra tenha um único significado; afinal, não é esse o ideal de transmissibilidade das ciências matemáticas? No entanto, para Orifeu, a correção se dá por meio da feminilização das palavras, processo que ocorre simultaneamente à feminilização de seu corpo; um significado único para as palavras, um sexo único para a humanidade. Tal processo culmina na invenção de um nome próprio: Travesta. No lugar do significante do Nome do Pai, que não lhe foi transmitido, Orifeu encontra na manipulação das letras um nome ao qual pode nomear a si mesmo e, a partir daí, sustentar a transmissão de seu saber singular. Se Stela se esforça para tomar forma, cunhando cada parte de seu corpo sobre as letras no papel, fazendo bordas e contornando um corpo passível de representação, Orifeu se dedica à correção da língua visando a apagar as letras da diferença entre os sexos e os equívocos da linguagem.

Lacan aborda o suporte material do significante tanto por meio da letra como por meio do conceito de traço. No final do seminário sobre a transferência, ele retoma o Einziger Zug de Freud como uma primeira identificação do sujeito, algo extremamente pontual e que Lacan trata, inicialmente, como uma identificação narcísica:

Este olhar do Outro, devemos concebê-lo como sendo interiorizado por um signo. Isso basta. Einziger Zug. Não há necessidade de todo um campo de organização e de uma introjeção maciça. Esse ponto, grande I, do traço único, este signo do assentimento do Outro, da escolha de amor sobre a qual o sujeito pode operar, esta alí em algum lugar e se regula na continuação do jogo do espelho." (Lacan, 1969-1970/1992, p. 344)

O traço unário, herdeiro do Einziger Zug freudiano, é, no ensino de Lacan, aquele que marca o sujeito como 1. É a estrutura elementar que estaria na base do significante, um simples 1, no entanto um 1 distintivo que se diferencia do Um da filosofia, enquanto Um unificante, unidade imaginária. O traço é a condição do significante, a condição para que algo possa ser representado; é a partir do traço que o sujeito pode se contar como um entre outros. Na lição quatro do Seminário sobre a identificação, Lacan (1962) nos apresenta os elementos que serão trabalhados durante todo o seminário. Ele parte de um jogo de palavras - La trace d'un pas - para abordar os diversos apagamentos através dos quais o significante vem à luz. Quando Robson Crusoé se depara com a pegada de um passo marcada na areia sabe que não está sózinho na ilha. O pas da expressão francesa aponta tanto para o passo da pegada quanto para a partícula da negação. Lacan mostra que o passo que é dado pela inscrição do traço, enquanto condição do significante, é justamente o passo da negação, do apagamento. É nesse sentido que o significante se diferencia do signo, pois o signo representa alguma coisa para alguém, enquanto que o significante representa o sujeito para um outro significante. O significante implica que a relação do signo com a coisa seja apagada, pois o significante não significa nada, ele é pura diferença.

O traço aponta, com sua insistência, para a inauguração da cadeia significante por meio da repetição, para uma memória inconsciente, algo que permanece na ausência, mas que insiste na presença. A questão da repetição da diferença através do mesmo é abordada por Lacan por meio de exemplos bastante interessantes. O primeiro refere-se às inscrições encontradas na costela de um animal morto, exposto no museu de Saint Germain: uma série de pequenos bastões feitos, provavelmente, por um caçador para marcar os animais abatidos. Outro exemplo nos é dado pelo Marquês de Sade, que marcava na madeira de sua cama pequenos traços que apontavam para as mulheres abatidas. O traço aponta para uma forma de registro que não existe no reino animal. A cadela de Lacan, Justine, o reconhece porque para ela Lacan é sempre o mesmo. Na identificação significante, o que se repete no mesmo é a diferença. O trem das onze horas é sempre o mesmo e, no entanto, cada novo trem que chega no horário das onze horas é diferente do anterior. Ainda outro exemplo: o empregado cujo patrão morre reconhece-o no corpo de um rato. Como diz Lacan, o "é ele" se manifesta no "ainda é ele".

Encontramos nestes exemplos as mesmas condições para a representação, já abordadas por meio do exemplo do jogo do carretel. O traço é, ao mesmo tempo, materialidade extrema, como apresenta uma imensa dificuldade para ser captado em sua essência: "Do traço de estrutura mais simples, do traço único, absolutamente despersonalizado, não apenas de todo o conteúdo subjetivo, mas até de toda a variação que ultrapasse esse único traço." (Lacan, p. 10) Traço e letra, ambos despersonalizados, vazios de todo o conteúdo subjetivo. O traço, ainda mais que a letra, pode ocupar o lugar de qualquer coisa, pois repete sempre o mesmo, enquanto que a letra do alfabeto apresenta uma variação limitada, mas existente. É por se prestar a ser qualquer coisa que o traço pode, também, ser pensado como o ápice do simbólico, encarnando a descolagem do real a um nível máximo. Já a letra tem a propriedade de circular entre os diferentes registros. A letra liga, une, promove encontros "O significante deriva apenas da instância S; mas a letra vincula RSI que são mutuamente heterogêneos" (Milner, 1996, p. 105).

A partir da leitura de Joyce, Lacan propõe a idéia de suplência, que se diferencia da idéia de metáfora delirante. Joyce conseguiu, por meio da arte de escrever, ser o Sinthoma, o quarto elemento que faz com que se mantenha a estrutura borromeana do nó. Graças ao seu editor, ele pôde fazer um nome no público, publicamente. Joyce faz do patronímico um nome qualquer, por meio de um ato de nomeação onde o nome é subtraído da filiação. Não se trata da construção de uma filiação delirante, visando a uma metáfora que viria no lugar do fracasso da metáfora paterna. O pai como nome refere-se ao nome de Deus, que diz "Eu sou o que sou". O nome que nomeia não aponta para a metáfora paterna, não é o nome reconhecido pelo desejo da mãe. O nome que nomeia é um buraco como o é o nome de Deus. Ao fazer um nome através de sua obra Joyce obtém a inscrição de um traço distintivo.

Joyce manipulava a letra, quebrava as palavras, destruía a língua inglesa e ria sozinho em seu quarto, jogando com a equivocação. Manipular as letras no lugar de manipular o corpo, fazer um traço no corpo por meio da escrita, promover um apagamento ali onde havia excesso. É nesse sentido que a escrita pode também funcionar como uma possibilidade de esvaziamento do gozo do corpo, o que, na psicose, assume uma função fundamental, já que é o corpo do psicótico que a língua vem fustigar. Língua que não passa pela mediação do outro.

Ao ser bem sucedido nesta empreitada de ser o sinthoma, o quarto elo do nó, Joyce não delira e faz, no público, o seu nome próprio, o que o interessa é a vida pública, não a vida privada. Na psicose existe uma desqualificação da vida privada, um fracasso do gozo fálico, do gozo sexual e um apelo a uma inserção social bem sucedida, onde o nome próprio jamais seja reduzido a um nome comum. Apelo que encontra eco em certas imagens apresentadas na televisão ou no jornal. A escrita é justamente a passagem ao que é comum, ao que pode ser compartilhado, transmitido. No entanto, na psicose, a escrita aparece justamente como a possibilidade de fazer, no público, um nome que possa ser compartilhado e não um nome comum no sentido de um nome anônimo. O anônimo, na psicose, aparece muitas vezes como uma tentativa de aplacar a perseguição, a invasão, a exposição excessiva. No entanto, o anônimo é aí colocado enquanto possibilidade de uma identidade coletiva, uma identidade grupal na qual o eu se dilui, e não enquanto afirmação do eu, através do nome próprio, quando este pode ser construído a partir do apelo ao público, como é o caso de Joyce com sua escrita. É no público que se constrói o ego, o eu de Joyce, é aí que ele encontra uma suplência, justamente por meio da participação social, e não na sua vida privada. Nesse sentido, na psicose, não há essa passagem do eu ao ele, apontada por Blanchot (1987) como inerente ao ato de escrita, mas talvez a passagem do ele, da exterioridade, da invasão do Outro, das palavras impostas, ao eu escrito, inscrito no público. O Sinthoma tem função de suplência e de compensação através do nome público: Marguerite, as irmãs Papin, Camile Claudel, Comte, Joyce, Orifeu, Stela do Patrocínio...

Recebido em 09.09.2004

Aceito em 17.11.2004

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  • Machado, A. (1998). Presença e implicações da noção de escrita na obra de Jacques Lacan. Porto Alegre: Editora Unijui.
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    Doutoranda em Psicologia Clínica pelo Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Endereço eletrônico:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Jun 2005
    • Data do Fascículo
      Jun 2004

    Histórico

    • Aceito
      17 Nov 2004
    • Recebido
      09 Set 2004
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