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Editorial

EDITORIAL

Nos últimos meses, ocorreram dois importantes eventos na área da publicação científica no Brasil: a Conferência SciELO 15 Anos, em outubro, e o XIV Encontro Nacional de Editores Científicos (promovido pela Associação Brasileira de Editores Científicos – ABEC), em novembro. Em ambos, chamou a atenção não apenas a profusão de temas, mas a complexidade das discussões que cada um deles proporcionou. Política científica, bibliometria, tecnologia da informação e cientometria eram chamadas concomitantemente em cada mesa, em cada palestra e em cada seminário. O resultado tinha algo de vertiginoso, mas a impressão final era muito clara: a publicação científica mudou radicalmente em nível mundial, tais mudanças não serão revertidas e outras mudanças ainda mais profundas e mais aceleradas parecem anunciar-se. O surgimento e a difusão do modelo dos megajournals, cujo exemplo mais eloquente está no sistema PlosOne de publicação, o foco no indivíduo como autor e leitor, o movimento pela publicação dos dados brutos das pesquisas, também conhecido como open data, toda a antiga e complexa discussão a respeito das métricas para avaliar o impacto da produção científica, as novas apostas em modelos alternativos de avaliação dos manuscritos, tudo isso, enfim, mostra que o panorama da publicação científica internacional vai exigir dos editores conhecimentos diversificados, a capacidade de aprender rapidamente, de lidar com cenários desconhecidos e de redefinir os rumos de seu trabalho com grande rapidez.

A tendência à colaboração entre periódicos, por exemplo, tema tratado em ambos os eventos, mostra as dificuldades do cenário enfrentado por editores brasileiros e latino-americanos de modo geral. Os periódicos competem por recursos governamentais, competem por leitores, por citações e, em muitos casos, disputam espaço dentro de suas próprias universidades com outras publicações. Por outro lado, os recursos necessários para gerir adequadamente uma revista neste contexto parecem subutilizados quando dedicados exclusivamente a um periódico. A necessidade de mão-de-obra especializada para a diagramação e a marcação dos artigos, o desenvolvimento, nas universidades e instituições públicas, de know-how por parte dos funcionários técnicos a respeito dos critérios necessários para a realização de licitações em áreas sensíveis como a revisão e a tradução dos textos, a necessidade de desenvolver sites e bancos de dados específicos, tudo isso parece excessivo quando se considera o volume de artigos que pode ser efetivamente processado por um periódico científico. Uma das soluções possíveis é o compartilhamento desses recursos por vários periódicos. Além de permitir que os recursos sejam otimizados, pode tornar mais eficiente o gerenciamento desses processos e liberar os editores para tarefas propriamente científicas. O esforço de colaboração advindo deste modelo de gerenciamento é significativamente diferente do relativo isolamento que marcava os periódicos até muito pouco tempo atrás.

Não se pode esquecer, porém, que esta mudança não se processou apenas por necessidades pontuais ou internas às revistas, mas pela nova posição que o Brasil vem assumindo na produção científica mundial, com uma participação crescente no número de artigos publicados e nos investimentos em ciência e tecnologia - que ficam, por outro lado, ainda muito distantes do que seria desejável para um país com sua importância geopolítica. As revistas brasileiras começaram a espelhar-se nas maiores publicações do mundo e começam a ensaiar passos na direção de uma competição direta com essas revistas. Este movimento apresenta grande heterogeneidade decorrente do amadurecimento relativo das diversas áreas de pesquisa no Brasil, mas o papel de destaque do SciELO entre as maiores coleções de acesso aberto em ciência do mundo mostra bem que não se trata de algo fortuito. Se por um lado, isso pode significar um amadurecimento, por outro, traz uma ameaça que teremos que enfrentar e que muitos editores já acusam: a perda da autonomia editorial dos periódicos e a diminuição da discricionariedade dos editores. Este risco está implícito na própria razão pela qual tal modelo parece impor-se aos periódicos: é que em um mercado editorial extremadamente concentrado como o que se verifica hoje, apenas a centralização administrativo-burocrática parece permitir às revistas concorrer em igualdade de condições no cenário internacional. Neste caso, podemos não estar apenas compartilhando recursos, mas abrindo mão da liberdade de pensamento - do ponto de vista do autor, mas também do editor - que é fundamental para o esforço científico. A alternativa parece ser a adoção de modelos de cooperação, e não apenas colaboração, que garantam a autonomia editorial dos periódicos. O desafio de criar um modelo sustentável para esta forma de publicação, porém, ainda está por ser vencido.

A revista Psicologia USP vem buscando acompanhar tais transformações sem deixar de lado sua identidade editorial. Algumas mudanças, como a aceitação para publicação de artigos em inglês, a ser em breve implantada, são decorrentes desta busca. Outras mudanças deverão ser adotadas, com o objetivo de modernizar os processos editoriais, adequar a divulgação do periódico às mais modernas tecnologias da informação e aproximá-lo de seu público leitor. Mas não devemos jamais deixar de lado a sua intenção fundamental, que é a de permitir ao público o acesso mais amplo possível a textos de qualidade e conhecimento de alto nível na interface entre Psicologia e ciências afins. Neste sentido, temos dedicado todo nosso esforço à seleção dos melhores textos e ao seu aprimoramento durante o processo editorial. Boa ciência, de fato, ainda é algo que não sabemos definir com clareza, exceto quando a temos diante dos olhos e a vemos sobre o pano de fundo da avaliação contínua das eras. As tentativas de criar métricas para avaliar a importância dos trabalhos científicos estão ainda muito longe de ser bem-sucedidas. Como parte das amplas mudanças já mencionadas, a hegemonia do fator de impacto para avaliação da qualidade da pesquisa científica vem sendo duramente questionada. Novas métricas vêm sendo experimentadas e, como mostra um editorial da eLife, em alguns casos, como o do Research Excellence Framework (REF), no Reino Unido, a avaliação da qualidade das pesquisas deverá ser feita sem "qualquer uso de fatores de impacto de periódicos, rankings, listas ou a posição percebida de editores" (Schekman & Patterson, 2013). Este mesmo editorial afirma que "com menos (ou idealmente nenhum) envolvimento dos fatores de impacto na avaliação da pesquisa, nós acreditamos que a comunicação na pesquisa viverá um aprimoramento substancial". Na revista Psicologia USP, nós compartilhamos esta mesma crença e trabalhamos duramente para torná-la realidade.

Iniciamos o presente número com a publicação de uma versão traduzida das diretrizes básicas do Commitee on Publication Ethics (COPE) para revisores de periódicos científicos. A revista Psicologia USP busca iniciar por este documento uma série de publicações que tratem da ética na publicação e contribuam com os acalorados debates que este tema tem suscitado recentemente, em virtude, em grande medida, das consequências nefastas que a pressão para publicar tem trazido ao ambiente acadêmico. Em seguida, encontram-se três artigos dedicados a estudar a relação entre Psicologia e Saúde. No primeiro, Atenção à saúde mental na Estratégia Saúde da Família: recursos não reconhecidos, Ribeiro, Caccia-Bava e Guanaes-Lorenzi estudam o discurso de agentes que trabalham em programas de Saúde da Família, concluindo que sua fala indica a existência de importantes recursos de atuação que não são, porém, reconhecidos pelos próprios agentes, produzindo uma percepção de fracasso e exigindo a constituição de espaços de locução que permitam a esses agentes refletir sobre sua relação com o campo onde atuam. O segundo artigo, A dor no cotidiano de cuidadores e crianças com anemia falciforme, de Dias, Oliveira, Enumo e Paula, investiga as diferenças entre crianças com anemia falciforme e seus cuidadores no que diz respeito à percepção dos episódios de dor, concluindo pela necessidade de estudar com mais profundidade as estratégias por eles adotadas para enfrentar as consequências desses episódios para sua qualidade de vida. Em seguida, Braga e Queiroz apresentam, no artigo Cuidados paliativos: o desafio das equipes de saúde, um quadro da produção científica brasileira a respeito dos cuidados paliativos em neonatologia, concluindo pela baixa frequência de estudos nesta área e pela necessidade premente de mais investigações. Os três artigos seguintes tratam de questões atuais da Psicanálise e apresentam leituras originais sobre os problemas levantados: Do grafo do desejo aos quatro discursos de Lacan, de D'Agord, que investiga a etapa de elaboração da passagem de Lacan à formalização do matema dos quatro discursos; A influência dos autores canônicos na autorização do psicanalista, de Franco e Figueiredo, refletindo sobre a relação entre a adesão a uma figura de autoridade e a "autorização" do psicanalista; e, por fim, La pulsión de muerte: apuntes para una inversión semántica del paradigma inmunitario desde el psicoanálisis, de Sánchez, que parte de uma reflexão sobre a Biopolítica para traçar uma reflexão profunda a respeito das contribuições que o paradigma imunitário pode oferecer à compreensão da pulsão de morte. No artigo A dimensão pulsional do sensível: elaborações acerca da percepção em Renaud Barbaras, Veríssimo aborda o clássico tema da percepção sob perspectiva fenomenológica e resgata a importância da proposição de Barbaras de que o sujeito da percepção é um vivente, retomando a ideia de que o desejo poderia permitir superar a oposição sujeito-objeto. Goldstein, no artigo Trauma, memória e justiça em "A Morte e a Donzela", de Roman Polanski, resgata temas caros à reflexão psicológica, como o da possibilidade de rememoração de episódios traumáticos, para observá-los sob a luz da obra de Polanski e discutir episódios contemporâneos da vida social e política do país, como a instauração da Comissão da Verdade. Por fim, o texto publicado na seção Memória e intitulado Professor Severo, de autoria de Ecléa Bosi, tem como personagem o Professor José Severo de Camargo Pereira - na época, docente da disciplina de Estatística no curso de graduação em Psicologia na USP - e nos oferece uma situação de aparição e iniciativa do professor Severo, ao mesmo tempo em que nos faz compreender algo do ambiente político da faculdade na década de sessenta e sua relação com o contexto político mundial do período. O episódio, transcorrido no ano de 1961, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, então situada na rua Maria Antônia, no Centro de São Paulo, além da sua importância histórica, assume igualmente importância científica no texto quando compreendido sobre o pano-de-fundo das contribuições realizadas pela autora ao longo de sua trajetória acadêmica ao tema da substância social da memória. É possível experimentar na leitura o trabalho da memória e a narrativa do episódio iluminando o contexto social e político no qual os agentes tomam parte. A lembrança age como um mediador fundamental entre as gerações, de tal forma que nos permite uma relação com o passado que não se caracteriza como uma mera competência abstrata, obtenção de dados ou informações de um tempo que não mais existe, mas como a possibilidade de nos fazer enxergar igualmente intenções, aspirações e esperanças não cumpridas.

Desejamos a todos uma ótima leitura.

Gustavo Martineli Massola

Editor

  • Randy Schekman, R., & Patterson, M. (2013). Reforming research assessment. eLife doi:10.7554/eLife.00855

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2014
  • Data do Fascículo
    Dez 2013
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