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Memórias de estudantes do início do século XX

Student’s memories in the beginning of the twentieth century

Memorias de estudiantes del inicio del siglo XX

Memoires d’etudiants du debut du XXeme siecle

Resumos

O propósito deste artigo é analisar alguns aspectos das memórias de escolarização de pessoas que estudaram durante as três primeiras décadas do século XX. Concederam depoimentos dez homens e dez mulheres. Esses depoimentos foram analisados partindo da concepção de que o homem é um ser histórica e socialmente determinado, o que possibilitou uma contextualização das falas a partir de um referencial proveniente da história da educação, bem como análise das narrativas, decorrentes de um trabalho de rememoração, lidas a partir da perspectiva de Halbwachs. O desenvolvimento do texto está centrado principalmente em dois aspectos dos depoimentos: as dificuldades encontradas pelos sujeitos para permanecerem na escola e as comparações entre o passado e o presente. Os depoimentos mostram tanto o que há de particular nas memórias arroladas, quanto o que elas trazem de um momento histórico, permitindo que se vislumbre parte do que permaneceu do cotidiano escolar para essas pessoas.

Escolarização; Memória; Exclusão da escola


The purpose of this paper is to analyse aspects of the recollections of school attendance of people who studied during the first three decades of the twentieth century. It accords with accounts given by ten men and ten women. These accounts were analysed starting from the concept that an individual is socially and historically determined, which made possible a contextualisation of the language from a reference point in the history of education, as well as analyzing the narratives as a product of the memory, from the conceptual viewpoint of Halbwach. The development of the article is principally centred on two aspects of the accounts: the difficulties encountered by the subjects in remaining at school, and the comparison of the past and the present. The statements show both what is personal in the listed memoirs, as well as what they bring from a historical moment, allowing a glimpse of what, for those individuals, remains from their everyday schooling.

Schooling; Memory; Exclusion from school


El propósito de este artículo es analizar algunos aspectos de las memorias de la escolarización de personas que estudiaron durante las tres primeras décadas del siglo XX. Fueron reunidas las declaraciones de diez hombres y diez mujeres y sus testimonios analizados a partir de la concepción de que el hombre es un ser histórico y socialmente determinado. Esto posibilitó una contextualización de las entrevistas a partir de un referencial proveniente de la historia de la educación, así como en el análisis de las reminiscencias narradas, e interpretarlas desde la perspectiva de Halbwachs. El desarrollo del texto está centrado principalmente en dos aspectos de las declaraciones: las dificuldades hayadas por los personas para permanecer en la escuela y las comparaciones entre el pasado y el presente. Las declaraciones muestran tanto lo que hay de particular en las memorias evocadas, cuanto lo que éstas traen de un momento histórico, permitiendo que se vislumbre parte de lo que permaneció del cotidiano escolar para estas personas.

Escolarización; Memoria; Exclusión de la escuela


Le but de cet article est celui d’analiser quelques aspects des mémoires de scolarisation des personnes qui ont étudié pendant les trois premières décennies du XXème siècle. Dix hommes et dix femmes ont concédé des déclarations. Ces déclarations-là ont été analysées, étant donné la conception de l’homme comme un être historiquemente et socialement déterminé, ce qui a rendu possible une contextualisation des paroles à partir d’un référentiel provenant de l’histoire de l’éducation, ainsi que l’analyse des récits, originaires d’un travail de remémoration, lus à partir de la perspective de Halbwachs. Le développement du texte est centré surtout sur deux aspects des déclarations: les difficultés trouvées par les sujets pour rester à l’école et les comparaisons entre le passé et le présent. Les déclarations montrent ce qu’il y a de particulier dans les mémoires inventoriées, ainsi que ce qu’elles apportent d’un moment historique, en permettant qu’on entrevoit une partie de ce qui est resté du quodidien scolaire chez ces personnes.

Scolarisation; Mémoire; Exclusion de l’ école


ARTIGOS ORIGINAIS

Memórias de estudantes do início do século XX1 1 Este artigo é decorrente de um projeto de pesquisa proposto pela autora e desenvolvido com o apoio do PIBIC/CNPq ao longo dos anos 2003/2004 que concedeu bolsa às alunas Vivian Gomes Vieira e Myrian Santiago.

Student’s memories in the beginning of the twentieth century

Memoires d’etudiants du debut du XXeme siecle

Memorias de estudiantes del inicio del siglo XX

Lilian Rose Margotto

Universidade Federal do Espírito Santo

RESUMO

O propósito deste artigo é analisar alguns aspectos das memórias de escolarização de pessoas que estudaram durante as três primeiras décadas do século XX. Concederam depoimentos dez homens e dez mulheres. Esses depoimentos foram analisados partindo da concepção de que o homem é um ser histórica e socialmente determinado, o que possibilitou uma contextualização das falas a partir de um referencial proveniente da história da educação, bem como análise das narrativas, decorrentes de um trabalho de rememoração, lidas a partir da perspectiva de Halbwachs. O desenvolvimento do texto está centrado principalmente em dois aspectos dos depoimentos: as dificuldades encontradas pelos sujeitos para permanecerem na escola e as comparações entre o passado e o presente. Os depoimentos mostram tanto o que há de particular nas memórias arroladas, quanto o que elas trazem de um momento histórico, permitindo que se vislumbre parte do que permaneceu do cotidiano escolar para essas pessoas.

Palavras-chave: Escolarização. Memória. Exclusão da escola.

ABSTRACT

The purpose of this paper is to analyse aspects of the recollections of school attendance of people who studied during the first three decades of the twentieth century. It accords with accounts given by ten men and ten women. These accounts were analysed starting from the concept that an individual is socially and historically determined, which made possible a contextualisation of the language from a reference point in the history of education, as well as analyzing the narratives as a product of the memory, from the conceptual viewpoint of Halbwach. The development of the article is principally centred on two aspects of the accounts: the difficulties encountered by the subjects in remaining at school, and the comparison of the past and the present. The statements show both what is personal in the listed memoirs, as well as what they bring from a historical moment, allowing a glimpse of what, for those individuals, remains from their everyday schooling.

Keywords: Schooling. Memory. Exclusion from school.

RÉSUMÉ

Le but de cet article est celui d’analiser quelques aspects des mémoires de scolarisation des personnes qui ont étudié pendant les trois premières décennies du XXème siècle. Dix hommes et dix femmes ont concédé des déclarations. Ces déclarations-là ont été analysées, étant donné la conception de l’homme comme un être historiquemente et socialement déterminé, ce qui a rendu possible une contextualisation des paroles à partir d’un référentiel provenant de l’histoire de l’éducation, ainsi que l’analyse des récits, originaires d’un travail de remémoration, lus à partir de la perspective de Halbwachs. Le développement du texte est centré surtout sur deux aspects des déclarations: les difficultés trouvées par les sujets pour rester à l’école et les comparaisons entre le passé et le présent. Les déclarations montrent ce qu’il y a de particulier dans les mémoires inventoriées, ainsi que ce qu’elles apportent d’un moment historique, en permettant qu’on entrevoit une partie de ce qui est resté du quodidien scolaire chez ces personnes.

Mots-clés: Scolarisation. Mémoire. Exclusion de l’ école.

RESUMEN

El propósito de este artículo es analizar algunos aspectos de las memorias de la escolarización de personas que estudiaron durante las tres primeras décadas del siglo XX. Fueron reunidas las declaraciones de diez hombres y diez mujeres y sus testimonios analizados a partir de la concepción de que el hombre es un ser histórico y socialmente determinado. Esto posibilitó una contextualización de las entrevistas a partir de un referencial proveniente de la historia de la educación, así como en el análisis de las reminiscencias narradas, e interpretarlas desde la perspectiva de Halbwachs. El desarrollo del texto está centrado principalmente en dos aspectos de las declaraciones: las dificuldades hayadas por los personas para permanecer en la escuela y las comparaciones entre el pasado y el presente. Las declaraciones muestran tanto lo que hay de particular en las memorias evocadas, cuanto lo que éstas traen de un momento histórico, permitiendo que se vislumbre parte de lo que permaneció del cotidiano escolar para estas personas.

Palabras-clave: Escolarización. Memoria. Exclusión de la escuela.

Considerações preliminares

Local por excelência da cultura escrita, mas também tributária de um forte componente de transmissão oral observável nas práticas pedagógicas cotidianas, a escola configura-se como uma instituição que permite observar a intersecção entre a oralidade e o registro escrito. É quando o pesquisador se defronta com certas questões sobre os componentes ditos “orais” – inerentes ao processo pedagógico, inseparáveis do cotidiano escolar, mas que escapam a toda possibilidade de apreensão pela via do domínio material – que a cultura escolar se revela lacunar. A história da escolarização transcende, em muitos aspectos, toda e qualquer possibilidade de investigação pelas vias materiais e permanece submersa, em grande parte no domínio do vivido, no modo como o cotidiano escolar foi ressignificado por aqueles que o vivenciaram. É um passado que se esvai junto com aqueles que o viveram, pois só pode ser retomado a partir das suas memórias.

Este artigo trata principalmente do modo como as pessoas rememoram sua escolarização. Neste caso, trata-se de entender o que permanece para o sujeito do cotidiano escolar e de que maneira ele ressignifica a formação recebida. É, sobretudo, um estudo sobre a memória, entendendo-a como constituída social e historicamente, mas também reelaborada por cada sujeito. Dois eixos principais de análise estão presentes aqui: o primeiro deles trata dos aspectos do cotidiano escolar que emergem nas narrativas, articulados com as estratégias empregadas por cada depoente para prosseguir seus estudos apesar das adversidades do meio. O segundo eixo mostra as comparações espontâneas entre o comportamento dos jovens em épocas diferentes. Falas que foram lançadas em tom de desabafo e que poderiam parecer apenas saudosismo de pessoas no ocaso das suas vidas, caso a análise individualizasse o sujeito, privando a sua narrativa das possibilidades de análise trazida pela contextualização histórica e social. Entretanto, há muito mais que isso no desconforto que os depoentes exprimem em alguns momentos.

De forma bem ampla, o propósito dessa pesquisa foi analisar, a partir dos depoimentos de dez homens e dez mulheres que estudaram durante as primeiras décadas do século XX, as rememorações destes sujeitos sobre a escolarização. Trata-se, portanto, de uma pesquisa sobre a memória, sobre o que permanece da escolarização para as pessoas. Embora inscrita em um conjunto de indagações sobre a história da escolarização, esta serve mais como pano de fundo para a retomada de experiências res-significadas pelos depoentes no decorrer das entrevistas. Pois, como analisa Nora (1993),

A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre problemática do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivo no eterno presente; a história é a representação do passado. (p. 9)

É justamente aí, nesse entendimento de que a memória traz algo da vida e da experiência do sujeito, reelaborada a partir da experiência presente, passível de ser recuperada em alguns momentos que propiciam essa retomada de vivências aparentemente perdidas, que está uma das finalidades desta pesquisa. Halbwachs (1990) explica que quando se trata de evocar certos conteúdos do nosso passado, há uma aparente facilidade de se trazer aqueles que fazem parte de um domínio comum, que são constantemente lembrados por um grupo do qual fazemos parte. O mesmo não ocorre quando se trata de algo que permanece circunscrito à experiência apenas daquele que rememora. Pois, sem a possibilidade de lançar mão do suporte proporcionado pelas menções dos outros, certas lembranças permanecem como parte de um domínio exclusivo do sujeito. É preciso então um esforço, para que seja possível a retomada progressiva dessas experiências, há muito guardadas nos vãos de um passado que permanece distante do cotidiano daquele que rememora. Essa aparente cisão, entre um passado já há muito esquecido e um presente que oferece poucas possibilidades de que ele seja retomado, foi admiravelmente expressa por uma das entrevistadas:

O tempo vai passando e a gente esquece tudo. Agora, quando eu for chegar em casa, eu vou lembrar de muita coisa porque me deito e fico pensando.... A moça me perguntou, e eu não sabia responder, agora eu estou lembrando. (D. Alaíde).

Ainda sob essa perspectiva, o que está em questão é a valorização de algo que permanece no domínio do vivido, algo da ordem de uma experiência que é simultaneamente individual e coletiva, como aponta Halbwachs (1990), ao analisar que inevitavelmente, a memória é coletiva, mesmo quando recordamos de algo que vivemos sozinhos, ou recordamos sozinhos de algo que vivemos com um grupo. Pois, a memória está inevitavelmente inscrita em um conjunto de circunstâncias que para serem revividas, rememoradas e ressignificadas, é preciso uma inscrição do sujeito em um contexto social que tanto permite o armazenamento dessas lembranças, atribuindo-lhe significados, assim como a própria rememoração também não ocorre em um vazio social ou temporal. O que é rememorado inscreve-se em uma gama de experiências passadas e também presentes que fornecem as bases para comparações e elaborações posteriores dessas reminiscências (Halbwachs, 1990).

A partir dessas considerações iniciais, é possível situar a metodologia desta pesquisa, pois ela decorre justamente do reconhecimento da existência desses componentes indissociáveis da memória, de ordem individual e coletiva, da diferenciação entre história e memória, bem como dos propósitos desse trabalho. Dado que o objetivo não era verificar a veracidade ou a fidedignidade dos fatos narrados, nem mesmo traçar um painel rigoroso do cotidiano escolar durante o período pesquisado, mas sim, tentar apreender o que permaneceu da escolarização para os sujeitos. A preocupação maior de ordem metodológica foi apenas a seleção de sujeitos de ambos os sexos que tivessem estudado durante o período a ser pesquisado (até a década de 1930), que tivessem vontade de conceder entrevista. Para isso, o contato com os sujeitos ocorreu por meio da indicação de parentes, amigos ou dos próprios depoentes. A maior parte das entrevistas foi realizada na residência dos(as) entrevistados(as), com exceção de três (um homem e duas mulheres) que foram feitas na Sociedade de Assistência à Velhice Desamparada (Brasil, estado do Espírito Santo, cidade de Vitória). Todos os entrevistados residiam, no momento da pesquisa, nos municípios de Vitória e Vila Velha (ES). No contato inicial com os sujeitos, eram esclarecidos os propósitos da pesquisa e era marcado o segundo contato em dia, horário e local definidos pelos entrevistados.

Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas, sendo que a primeira questão era bem ampla – “O que o senhor(a) lembra da sua época de escola?” – justamente para que o sujeito relatasse de forma livre o que lembrasse da sua escolarização. As demais questões presentes no roteiro de entrevista eram a relação professor/aluno, métodos de ensino, as formas de controle de comportamento exercidas pela escola, as formas de avaliação, a importância concedida à escolarização pela família e pelos sujeitos e a descrição física da escola. Estas questões eram colocadas gradativamente, na medida em que o próprio discurso do depoente o permitia, para que fosse possível tanto observar o que era lembrado primeiro, bem como, as articulações entre os temas que os próprios sujeitos faziam. Decorre justamente dessa liberdade narrativa, o aparecimento de assuntos nos depoimentos, que, muitas vezes, não estavam relacionados diretamente com enfoque da pesquisa, mas que observados cuidadosamente, pela coerência intrínseca, se mostraram de fundamental importância. Além dessas entrevistas gravadas na íntegra, foram utilizadas também as Fichas do Informante cujo propósito era a caracterização dos entrevistados quanto ao: sexo, data de nascimento, ano em que entrou na escola, grau de escolaridade, onde estudou, profissão e onde mora atualmente. Todos os nomes dos entrevistados foram alterados de forma que impossibilitasse sua identificação.

Em relação aos dez homens entrevistados, o período de ingresso na escola ocorreu entre 1917 a 1929 e na época, todos possuíam entre sete e oito anos; 70% (7 entrevistados) permaneceu na escola por menos de cinco anos e 30% (3 entrevistados) permaneceram até a conclusão do segundo grau (ensino médio). As dez mulheres entrevistadas tiveram seu ingresso na escola entre os anos de 1923 e 1926 e na época, todas possuíam entre sete e dez anos, também 70% delas (7 entrevistadas) permaneceram na escola por até cinco anos e 30% (3 entrevistadas) concluíram o segundo grau (ensino médio).

Memórias, resistências e exclusão

A caracterização sumária dos depoentes esboçada acima permite entrever alguns dados que podem servir para iniciar uma discussão sobre a escolarização no Brasil. Embora o intuito desse trabalho não seja traçar uma história da educação durante as primeiras décadas do século XX, inevitavelmente, a contextualização histórica deve permear as discussões e será tomada aqui como pano de fundo para situar algumas questões. A primeira delas diz respeito ao acesso da população brasileira à escola, extremamente reduzido nesse momento que a pesquisa abarca. Assim, longe de ser apenas uma característica da população pesquisada, este acesso restrito à escola, como aponta Romanelli (1994) “era um fato na década de 1920” (p. 64). Pois, de acordo com essa autora, naquele momento, apenas 9% da população, entre 5 e 19 anos, frequentava a escola. E, mesmo em 1940, os índices apresentados, embora mais substanciais, também demonstram a exclusão da maior parte da população da escola, uma vez que, naquele momento, apenas 21, 43% dos jovens entre 5 a 19 anos estavam na escola.

Assim, é parte do contexto histórico e social, a existência de uma série de dificuldades de acesso à escola. E é a partir desse painel que certas informações que aparecem de maneira sistemática nos depoimentos devem ser entendidas. Os dados estatísticos, dessa forma, tornam-se passíveis de outra inteligibilidade, ao serem observados em sua dimensão cotidiana. Pois, já não se trata mais de uma história da escolarização, mas sim, de outra face indissociável que permanece quase sempre submersa no domínio do vivido, que é a história dos revezes, das resistências e das superações possíveis. Nesse sentido, Benjamin (1993) oferece reflexões fundamentais, pois, para ele, “[...] articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela lampeja no momento de um perigo” (p. 224).

Inclusive, alguns trechos dos depoimentos que constituem a presente pesquisa, remetem, de forma inequívoca, a aspectos das rememorações sobre a escola, presentes no inspirador trabalho de Bosi (1979). As lembranças de D. Brites (Bosi, 1979, p. 257-258), por exemplo, trazem detalhes sobre as escolas isoladas narradas de uma forma muito semelhante também por uma depoente desta pesquisa, D. Alda, quando explica como funcionava a escola onde estudou:

Era uma sala só com todas as séries juntas: primeira, segunda, terceira e quarta série, tudo junto. Era uma professora só para dar conta daquele monte de aluno, quase uns quarenta, meninos e meninas, todo mundo junto.

Rememoradas pelos depoentes, mencionadas de forma recorrente nas suas falas e articuladas com outras questões presentes no roteiro de entrevista, de diferentes maneiras, emergem questões que apontam para o tema comum que é o modo como cotidianamente se constitui uma história de exclusão da escola. Mais do que isso, é possível entrever, sobretudo, um conjunto de estratégias empregadas pelos depoentes e por suas famílias, cujo propósito era subverter essa lógica excludente do meio. Trata-se portanto, de analisar como essas dificuldades narradas se configuram, na verdade, como mecanismos de resistência rememorados, que perpassam quase todas as entrevistas. Observadas por essa óptica, é possível agrupar em torno dessa questão da exclusão escolar, falas que poderiam parecer fragmentadas, desconexas ou “alheias” às perguntas feitas pelos pesquisadores. É que o uso da rememoração como fonte permite outra abordagem da relação entre a escola e seus atores, pois torna possível trazer algumas faces de uma ‘crônica’ escolar. Nesse sentido que Benjamin (1993) atribui a função do cronista, pois segundo ele, o “cronista narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história” (p. 223).

Parte de uma crônica cotidiana, narrados em diferentes momentos dos depoimentos, os impasses enfrentados para estudar, mesmo que não estivessem contemplados no roteiro de entrevista, mostram as estratégias empregadas. Mais do que isso, é o modo como essas estratégias de resistência se articulam no fluxo narrativo dos sujeitos que permite uma compreensão mais apurada da lógica interna da rememoração. Assim, os arranjos empregados para estudar foram sendo rememorados justamente quando a pergunta dirigida tocava em algum detalhe cuja superação foi necessária para que o depoente continuasse a frequentar a escola.

Analisadas sob essa perspectiva, respostas como as de D. Jaira, ganham outra inteligibilidade. Em diferentes momentos do seu depoimento, ao ser interpelada sobre algumas questões, ela respondia mostrando o modo como sua trajetória escolar foi permeada por ajustes elaborados no dia a dia para suprir diferentes necessidades. É por isso que quando perguntada se havia merenda na escola, ela responde que

o colégio era público, mas para comer merenda tinha que pagar. O prato de sopa custava um tostão, eu me lembro como se fosse hoje. Meu pai era muito pobre e eu não podia comprar a merenda, mas duas professoras me ajudavam, a professora Maria Inês e uma outra... Não me lembro muito bem o nome. Mas, as duas me ajudavam e cada dia uma comprava um prato de sopa para mim (D. Jaira).

Em outro momento, quando perguntada sobre o uniforme, primeiro descreve a indumentária, de maneira bem sucinta, mas se detém realmente na peculiaridade da sua roupa:

Era uma saia pregueada vermelha e uma camisa branca. O colégio dava tênis pra crianças carentes e eu só usava desse tipo, porque meu pai tinha muita dificuldade. Era muito triste ver as meninas todas arrumadas com seus uniformes e eu com uma camisa feita de saco. A minha mãe era muito caprichosa, mas meu uniforme era muito feinho (D. Jaira).

É ainda nesse sentido que, quando perguntados sobre a localização ou como faziam para chegar à escola, aparecem depoimentos que narram os obstáculos que alguns enfrentavam no percurso. O Sr. Alfredo, por exemplo, que na época morava em uma região rural, conta que

para chegar à escola andava quatro, cinco quilômetros à pé. Na roça como tem um que mora aqui, outro lá, daqui a dois, três quilômetros, era muito difícil ter dois, três alunos naquele mesmo sentido de caminhada pra ir até a escola. Enfrentava cobra, enfrentava bicho bravo: cachorro, boi, chuva, sol, trovoada.

Outro depoente, o Sr. Ivo, explicando o motivo pelo qual deixou de estudar, narra as dificuldades que a família enfrentava e que o afastaram da escola:

Meu pai era colono na fazenda... nessa época foi muito difícil para a gente porque a minha mãe faleceu e deixou nós, nove irmãos. A minha irmã mais velha ficou com quinze anos e o caçulinha com um ano. Já pensou, um pai com uma penca de filhos pra dar conta? Alguma coisa vai ficar pra trás, né?

O depoimento de D. Alaíde, por exemplo, mostra um arranjo familiar entre ela e a irmã para frequentarem as aulas. Quando indagada sobre quanto tempo estudou, o que ela lembra primeiro e explica é o modo como foi possível que frequentasse as aulas:

Estudei muito pouco porque não tínhamos tempo para estudar direito. Ajudava muito minha mãe em casa, então, trocava com minha irmã. Um dia eu ia para o colégio e ela ficava em casa, outro dia, ela ia... Era assim. Nós trocávamos os dias para ir ao colégio.

Essa perspectiva de análise proposta aqui, que considera as estratégias empregadas para superar os diferentes obstáculos, como indicando uma resistência dos depoentes à lógica excludente do meio, fica mais evidente a partir de certos lampejos presentes nas falas. É observando certas colocações que aparecem, muitas vezes permeadas por um orgulho de ter superado as adversidades, seja na sua própria trajetória pessoal/profissional ou por meio dos filhos e irmãos mais novos, que torna mais clara a existência de um esforço dirigido para a superação de certos limites. Um bom exemplo é o depoimento de D. Alda. Perguntada sobre quando começou a estudar, ela descreve primeiro a sua escola, em seguida explica porque teve de abandonar a escola e então fala das irmãs mais novas que se tornaram professoras.

Eu comecei a estudar com sete anos em um colégio comum no interior. Era um grupo escolar em Afonso Cláudio (Espírito Santo).... A gente sentava em um banco em volta de uma mesa grande, era tudo muito simples. Eu queria ter estudado mais... Eu só estudei até a terceira série e depois eu tive que parar, foi triste pra mim porque eu gostava muito. Eu tive que ajudar a minha mãe a criar meus irmãos, as coisas eram muito difíceis e a minha mãe teve filhos gêmeos duas vezes seguidas. Era muito filho pra uma mãe só [...]. Outras irmãs minhas que eu ajudei a criar foram professoras, são muito inteligentes... Eu não... o que eu mais sei fazer é cozinhar, dizem que eu cozinho muito bem (D. Alda).

Por sua vez, o depoimento do Sr. Américo permite aquilatar tanto as dificuldades de quem teve de aprender a conciliar os estudos com o trabalho, quanto seu orgulho pelos conhecimentos adquiridos na escola.

A gente tinha que trabalhar na roça. Eu já era rapazinho tinha que trabalhar na roça para ajudar meus pais, tocar a colônia, o café, essas coisas.... E trabalhava de dia e de noite ia às aulas. Então, nós começamos com uns 15 vizinhos indo lá, mas a metade não agüentou não, fez só um pouco. Agora, eu fiz até o fim. O quanto o professor sabia, eu aprendi. Agora, português eu não aprendia muito porque o professor era um alemão foragido da Guerra, ele ficou escondido lá. Agora, matemática e as outras coisas, tudo que ele sabia eu aprendi. Até tem muitas coisas que depois que eu voltei, já rapaz, eu dava aula para os meus irmãos. A gente não precisava contratar professor. Eles aprenderam um pouco... Até há pouco tempo atrás meu irmão falou assim comigo: ‘ah Américo, eu tenho uma filha que é professora, formou agora, mas ela sabe menos do que sei quando aprendi com você’

O depoimento do Sr. Alfredo é outro exemplo. Quando perguntado sobre a sua profissão, mostra as dificuldades que teve de superar para prosseguir estudando e conclui falando das filhas que puderam estudar mais do que ele.

Trabalhei desde criança na roça, mas depois fui para o comércio. Quarenta anos de comércio, porque o comércio é uma escola, né? Sem dúvida para quem tem capricho, pra quem não tem capricho não é nada não. Desanimei de puxar enxada, queria aproveitar minha vontade de vencer mais ainda, mas independente da roça. Desanimei, fiquei na roça até os vinte anos, depois vim para Alfredo Chaves (município do Espírito Santo), para um lugar chamado Matilde. Lá tinha meus primos e uma casa grande de comércio. Ingressei lá [...] aí me casei, me estabeleci lá durante quarenta anos. Vim para aqui depois que me aposentei lá. Essas meninas, minhas filhas, uma quis acabar o nível superior e outra quis se aperfeiçoar mais... Já professora, quis fazer matemática e ciência que ela gosta.

A constatação dessas resistências por parte dos entrevistados também deve ser acompanhada de uma análise de outros aspectos do contexto em que essas pessoas viviam, a fim de que tais esforços não sejam pensados a partir de uma lógica voluntarista. Nesse sentido, o esforço mencionado nos depoimentos em prol de uma superação dos reveses colocados por suas condições de vida, pode ser analisado dentro de um universo maior de idéias que circulavam a respeito da importância da escolarização. Pois, desde o final do século XIX, encontravam-se disseminadas entre os intelectuais brasileiros as noções de que a educação era fundamental para fomentar o desenvolvimento nacional (Barros, 1959) e também de que ela era um instrumento que proporcionaria um aperfeiçoamento ao sujeito e lhe garantiria uma maneira de “vencer na vida” (Paris, 1980, p. 22). Tais discursos ganharam força justamente durante a última década do século XIX e início do século XX quando, como aponta Antunha (1975, p. 4), começa realmente a amadurecer no âmbito do governo federal, um conjunto de discursos favoráveis a implantação de um sistema nacional de ensino.

No que diz respeito à população, de uma maneira geral, cabe salientar que esta também alimentava, já nessa época, um conjunto de expectativas sobre os benefícios provenientes da escolarização, como aponta Demartini, Tenca e Tenca (1985, p. 70). Tomando como base depoimentos de professores que lecionaram durante a Primeira República nas regiões rurais de São Paulo, Demartini et al. (1985), concluíram que os setores mais desfavorecidos da população faziam enormes esforços para permanecer na escola. Assim, há um contexto social que fornece um conjunto de explicações sobre a importância da escola como instituição, que por um lado subsidia o empenho dos sujeitos para permanecerem na escola e, por outro, aparece nos depoimentos de maneira explícita quando os entrevistados tratavam da importância que suas famílias e eles/ elas mesmos(as) concediam à escola.

Nos depoimentos presentes no livro de Bosi (1979) também aparecem falas que permitem perceber a importância concedida à escolarização e ao esforço individual para alcançar uma posição mais valorizada socialmente. Os relatos de D. Alice (Bosi, 1979, p. 69) e D. Lavínia (Bosi, 1979, p. 205), por exemplo, mostram que elas e seus pais tiveram de superar muitas dificuldades para estudar. Da mesma forma, os depoentes do presente trabalho, mencionaram, em diversos momentos, explicações sobre a importância da escola como uma via de ascensão social e progresso individual. Como relata D. Maria Alzira ao tratar do seu esforço para conseguir executar as tarefas escolares: “O dever de casa era imenso, trabalho demais, muitas tarefas para fazer.... A gente estudava muito... era pobre, tinha que estudar, né? Se não estudasse, o que ia ser da gente?”. É considerando a disseminação entre a população desses preceitos de que a escola se constituía como uma via (senão a única) de ascensão social que a interrogação da D. Maria Alzira se revela plena de significados.

Outro exemplo é a rememoração que o Sr. Nelson apresenta quando indagado se gostava de estudar. Ao explicar o quanto gostava da escola, entremeia suas rememorações com a importância que a sua mãe concedia à escolarização como uma via de ascensão social.

Eu sempre gostei de estudar, só não gostava muito de matemática, mas do resto eu gostava de tudo. Eu sempre fui muito esforçado. Minha mãe dizia que eu ia ter um futuro muito bom por não ser igual a ela, sem estudo.... A minha mãe sempre falou que a gente tinha que estudar, ela sempre foi muito rígida, muito mais que meu pai. Mas, ele também queria que a gente estudasse. Eu me lembro que eu gostava muito de dormir, mas não tinha jeito: quando dava a hora de ir para a escola a minha mãe gritava e tinha que ir, não podia enrolar nem um pouquinho.... Minha mãe obrigava. Ela dizia que se eu não estudasse ia carregar pedra ou puxar burro.

Assim, quando falam da relação das suas famílias com a escolarização, muitos depoentes apontam, de maneira mais explícita, esse conjunto de discursos sobre a importância da escola como uma instituição formadora, e é também nesse momento que muitos demonstram que era justamente por isso que os filhos estudavam apesar das adversidades. O Sr Alfredo, ao ser inquirido sobre a relação dos seus pais com a escola, remete justamente às condições difíceis de sobrevivência naquela época, mostrando que estudar só era possível quando se valorizava muito a formação dos filhos.

Primeiro, o dinheiro era muito curto. Era o tempo do mil réis. Então, a família fazia uma força medonha pra ter condições. E a família que tinha menos filhos, tinha sete, oito, dez filhos. A renda era insignificante. Tinha que fazer uma economia muito grande e tinha que fazer esse sacrifício pro filho não ficar analfabeto.

As questões apresentadas até o presente momento indicam uma preocupação que norteou essa pesquisa no sentido de analisar o modo como os depoentes estruturam suas narrativas. Embora existisse um roteiro de entrevista semiestruturado, a liberdade concedida ao fluxo narrativo dos sujeitos permitiu que certas questões aparentemente distintas, mas que remetem a impasses semelhantes, fossem evocadas. Ao significado social da escolarização da época que fazia com que, apesar das dificuldades, os depoentes persistissem, acrescenta-se a vivência dos impasses cotidianos de cada um, que são rememorados justamente no momento em que tratam de determinados aspectos da sua trajetória escolar. Daí a aparente circularidade dos depoimentos quando retomados apenas sob a forma de trechos, útil para elaborar categorias de análise, mas de uma complexidade infinitamente maior, que só aparece a partir de uma análise que considere o momento em que certas questões são enunciadas.

O enunciado do vivido: onde o passado e o presente se entrecruzam

Foi justamente com base no modo como certas questões aparecem nas falas dos depoentes que as categorias de análise foram elaboradas. Estas nos falam mais da construção das narrativas pelos sujeitos, da maneira como as memórias de escolarização foram evocadas, do que do próprio roteiro de entrevista que, após uma análise mais detida, revelou-se menos importante na categorização dos dados do que foi suposto inicialmente. Além da narrativa das dificuldades enfrentadas diariamente, analisadas aqui como indicando formas de resistência à lógica excludente da escola, outro eixo de análise não previsto no roteiro inicial que apareceu foram as comparações entre presente e passado. Estas análises, claramente reavaliações de certas situações, que só poderiam ser atribuídas a uma elaboração posterior, como adulto, das circunstâncias narradas e as comparações com o presente, surgiam espontaneamente nas falas em diferentes momentos.

É a partir dessa retomada e reavaliação do passado, que pode ser analisado o saudosismo que impregna mesmo as lembranças dos professores extremamente severos, descritos como ‘muito dedicados e bons’, que permeiam as narrativas de vários depoentes. Por exemplo, D. Zilda, ao relembrar a professora, afirma que esta última, “era uma professora muito boa, ela gostava de brincar com a gente, era muito boa a D. Neneca”. Logo em seguida, ao ser inquirida sobre as provas, D. Zilda conta o que essa mesma professora fazia se surpreendesse algum aluno tentando “colar”. Nessa situação, a professora,

dava castigo, e falava ‘não pode tirar cola não! Cada um tem que fazer o seu dever, sem precisar de cola’. Era uma professora muito boa D. Neneca.... Ela botava de castigo, bater de palmatória era difícil, mas eu nunca levei. Só levei o castigo que foi ficar ajoelhada no milho.... É ruim e doía até....”

Essas aparentes contradições, entre uma severidade por parte dos professores, que hoje pode soar excessiva, e os adjetivos empregados pelos pesquisados para classificar esses docentes, só ganham inteligibilidade com a idéia de que o passado é reconstruído no momento presente. É do lugar e com a visão de um adulto que os depoentes falam. O aparecimento desse tipo de rememoração pode ser analisado segundo as considerações de Halbwachs (1990) sobre o modo como o trabalho de lembrar é sempre ativo, constituindo uma reconstrução do sujeito, a partir do momento presente, mas subsidiada por dados retomados do passado:

a lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente e, além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora se manifestou já bem alterada. (p. 71)

Nessa perspectiva, Halbwachs (1990) aponta a permanente reelaboração como uma das características do trabalho da memória, que o leva a afirmar a impossibilidade de se retomar uma lembrança “pura” ou o passado do modo como “realmente aconteceu”. O depoimento de D. Ilza, por exemplo, deixa muito clara essa reavaliação do passado feita com um olhar lançado do presente. Ao ser interrogada sobre como era a escola em que estudou, ela descreve a aglomeração de alunos em diferentes níveis escolares na mesma sala e, em seguida, comenta essa situação se colocando no lugar da professora.

Era uma escola com todas as séries juntas. Tinha primeira, segunda e terceira série. Só não tinha a quarta série. Era tudo junto, tudo misturado, meninos e meninas, uma beleza... A professora, coitada, tinha que cuidar de todo mundo, de todos aqueles peraltas, porque a gente não era fácil não! (D. Ilza)

A impossibilidade de se separar passado e presente no fluxo narrativo de quem rememora também aparece no sentido inverso, quando o presente é julgado à luz do passado. Ou seja, as reflexões sobre acontecimentos presentes estão inevitavelmente inscritas em um passado, em uma história de vida que subsidia as elaborações de cada um. Embora inicialmente isso não fosse uma questão de investigação, sua recorrência espontânea em praticamente todos os depoimentos e, principalmente, o modo como essas avaliações eram articuladas no fluxo narrativo, permitiu a abertura de outro conjunto de indagações. Essas comparações feitas pelos depoentes emergiam em determinados momentos e, na maioria das vezes, diziam respeito a questões específicas. Agrupadas de uma maneira mais ampla, exprimem uma perplexidade ou até mesmo um desconforto dos sujeitos diante da quebra de certos padrões de costumes, vigentes em um momento e que foram sendo solapados pelas transformações, seja nas relações entre adultos e crianças ou pelo próprio funcionamento da escola.

De uma maneira abrangente, pode-se remeter esse descontentamento expresso pelos sujeitos pesquisados a uma gama de alterações nas relações sociais que foram acontecendo de maneira gradual desde meados do século XX na sociedade Ocidental. Tais alterações, analisadas por Lipovetsky (1994, p. 31) diriam respeito a uma ruptura com certos padrões de comportamento, apoiados em um conjunto de obrigações morais, que situavam em um primeiro plano os ideais dos deveres para com os outros, promovendo um conjunto de virtudes públicas e privadas que deveriam ser cultivadas pelas pessoas, em detrimento da satisfação individual. Ora, reside justamente aí, nesse impasse entre certas atitudes das gerações atuais, consideradas impróprias pelos depoentes, e o padrão de comportamento que vigorava “na sua época”, o maior número de comparações entre o passado e o presente. Uma parcela significativa dos entrevistados (12 de um total de 20) mencionou explicita e espontaneamente seu repúdio aos comportamentos exibidos pelos jovens de hoje. E os demais, embora não tenham apontado essas questões de maneira explícita em suas falas, constroem narrativas permeadas por um saudosismo, que impregna até mesmo a lembrança da severidade dos professores, o que também pode ser entendido como uma valorização dessas atitudes mais impositivas. Neste último sentido, aparecem depoimentos como o do Sr. Carlos N., por exemplo, que logo no início trata da professora extremamente severa, com certa admiração, e logo em seguida ao ser interrogado sobre o que estudava, fala pouco dos conteúdos das matérias e mais da coerência entre o que era exigido pela escola em termos de comportamento e pela família:

A professora era braba, eu gostava dela pra caramba. Era boa, me ensinou mesmo! Professora igual aquela nunca mais vai aparecer nesse Brasil. [Quais eram as matérias?] Tudo, tinha até fração. Sei lá como é que é... Ela (a professora) é que não era brincadeira não! Tudo o que aprendia na escola ia aprender em casa. Se você não apanhava na escola, quando não estava indo tudo bem, apanhava em casa. (Sr. Carlos N.)

Outros depoentes criticaram explicitamente os comportamentos das crianças e jovens de hoje, apontando, sobretudo o que foi denominado de “falta de respeito”, seja em relação aos professores, seja em relação aos “mais velhos”. Entre outros, os depoimentos de D. Alaíde, que em dois momentos distintos indica essa questão, e a fala do Sr. Rubens enfatizam a perda do “respeito pelos outros”.

Naquele tempo havia muito respeito. Hoje em dia, os meninos não respeitam mais o professor, não respeitam mais ninguém. Mas naquele tempo havia muito respeito. Todo mundo respeitava muito as pessoas.... Eu acho que a educação era melhor que a de hoje. Hoje, os meninos são todos sem educação. Já vão para o colégio sem educação. Não têm um pingo de educação. Naquele tempo antigo era muito bom. (D. Alaíde)

Eu tenho saudade, muita saudade daquele tempo, entendeu? Era muito bom. Não existia o que existe hoje, entendeu? Hoje os alunos naquela divergência, naquela briga... Naquela época não tinha isso não. Quando existia era logo suspenso. A gente às vezes ia até expulso. Naquela época existia isso, mesmo. Os professores tinham liberdade, os pais davam liberdade aos professores, entendeu? Justamente o professor falava, gritava, dava reguada... Chegava em casa, não reclamava não, por que ia apanhar em casa. Era assim minha filha, era. (Sr. Rubens)

Assim, observa-se que a maioria das falas revela a permanência de um conjunto de valores que continuou internalizado (mas não intacto), malgrado as alterações nas relações sociais. É sobre esse aspecto que a noção de socialização primária proposta por Berger e Luckmann (1976) mostra-se fundamental para compreender a persistência de uma determinada postura diante do que é observado no presente. Isso porque, a socialização primária consistiria no processo inicial de apreensão do mundo exterior por parte da criança, abrangendo muito mais que um aprendizado cognoscitivo, por estar permeada por um alto grau de emoção. É a partir dos primeiros vínculos afetivos que a socialização primária ocorreria, permitindo que o sujeito internalize não apenas papéis e atitudes, mas principalmente valores. Há, naturalmente, nesse processo de subjetivação, uma reorganização interna das informações recebidas, o que significa que esse mundo que cerca o sujeito, esses outros significativos, não são internalizados de uma maneira unívoca.

Entretanto, Berger e Luckmann (1976) enfatizam a manutenção, ao longo da vida, de grande parte dos conteúdos que fazem parte da socialização primária, o que não ocorreria com o que foi interiorizado nas socializações secundárias. É exatamente por isso que se pode observar tanto uma releitura e uma reavaliação do passado, feita pelos depoentes, quanto uma resistência a alterações, sobretudo no campo dos valores que, pode-se supor, foram internalizados nas etapas iniciais do seu processo de socialização. Corrobora esse raciocínio, o fato de aparecerem críticas dos depoentes principalmente no que diz respeito à relação adulto/criança, ao comportamento das crianças de hoje e a um saudosismo que impregna um modo de funcionamento da escola, que incluía relações de autoridade mais acentuadas. Desse modo, é possível entender porque ocorre simultaneamente uma revisão e uma conservação do passado. Mais do que isso, esses fenômenos constituem-se partes indissociáveis do processo de rememoração.

Para finalizar

Este texto não esgota tudo o que é possível depreender dos depoimentos. As experiências narradas inscrevem-se duplamente na experiência individual e no entrecruzamento de um conjunto de transformações históricas e sociais vivenciadas pelos sujeitos. Ou, melhor dizendo, os depoimentos nos mostram no domínio do vivido, tanto uma possibilidade maior de compreensão do contexto social, na medida em que nos fornecem experiências cotidianas, quanto possibilitam uma análise do modo como cada um elaborou e nos retransmite essas experiências.

É justamente por isso, que uma contextualização na história da educação é fundamental para esclarecer certos aspectos dos depoimentos que podem parecer meramente pitorescos. Há algo maior, um liame social, que une essas falas. Há um conjunto de informações sistematizadas por pesquisas, que muitas vezes foram adquiridas a partir de documentos oficiais ou outras fontes escritas, que subtrai a dimensão cotidiana presente nas falas. É essa questão que norteia as análises efetuadas quando se tratou dos impasses enfrentados pelos sujeitos para estudarem.

Por outro lado, algumas questões, embora inexoravelmente inscritas no âmbito social, possibilitam também uma análise do modo como certos impasses foram vividos, como valores transmitidos pela escola foram apropriados, permitindo também observar a singularidade das apropriações efetuadas por cada sujeito. Dessa forma, o modo como os depoentes rememoram, o momento em que enunciam certas questões, os julgamentos que emitem e tantos outros aspectos também são de suma importância para entender o que une e dá coesão às suas memórias. Embora estas questões perpassem o texto como um todo e tenham, até mesmo, orientado a análise dos dados, tornam-se mais explicitamente presentes quando se tratou do entrecruzamento do passado com o presente no processo de rememoração. A escola rememorada, o que as narrativas com toda a sua riqueza trazem, é justamente essa indissociabilidade entre uma dimensão social inevitavelmente presente, mesmo nas experiências aparentemente mais individuais, bem como uma possibilidade de apreender que há algo de mais particular mesmo nos procedimentos cujo propósito é a uniformização de comportamentos.

Recebido em: 27/11/2008

Aceito em: 11/07/2009

Lilian Rose Margotto, Professora Doutora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo. Av. Fernando Ferrari, 845, Campus de Goiabeiras, Departamento de Psicologia. CEP 29075-015, Vitória, Espírito Santo. Endereço eletrônico: lilian_margotto@yahoo.com.br

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    Este artigo é decorrente de um projeto de pesquisa proposto pela autora e desenvolvido com o apoio do PIBIC/CNPq ao longo dos anos 2003/2004 que concedeu bolsa às alunas Vivian Gomes Vieira e Myrian Santiago.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2009

    Histórico

    • Recebido
      27 Nov 2008
    • Aceito
      11 Jul 2009
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