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Dona Carolina

DONA CAROLINA

Herma Brigitte Drachenberg

Faculdade de Ciências e Letras da

Universidade Estadual Paulista, Assis

Em 1962, morando em Rio Claro, insatisfeita com alguns aspectos da profissão que escolhi - ser professora - pois não dava conta de um de seus problemas (a disciplina), decidi continuar estudando para obter mais domínio sobre este setor. Em Rio Claro havia, na época, um curso de Pedagogia e lá tentei minha sorte, inscrevendo-me no vestibular. Não éramos muitos candidatos. Naqueles tempos ainda havia exames orais e, quando chegou a minha vez, estava lá uma jovem senhora sentada à mesa, convidando-me, com um sorriso, a sentar. O que ficou na memória deste primeiro contato foi a única pergunta que Dona Carolina, minha examinadora, me fez: "O que é uma cadeira?". Confesso que achei a pergunta muito curiosa e respondi com a maior tranqüilidade "É um objeto para a gente se sentar". Ela retrucou: "Mas a gente pode se sentar na escada, num tambor, num toco de madeira, na mesa...". É, percebi que ela tinha razão e tentei aperfeiçoar minha resposta: "Um objeto com quatro pernas, com uma superfície cuja finalidade era a de sentar ...". Mas Dona Carolina sempre conseguia me mostrar que minha resposta ainda não estava completa: não consegui dizer-lhe o que seria o conceito "cadeira" e saí de lá achando que não tinha respondido e com pouca esperança de entrar na faculdade... Mas, apesar de minhas respostas tão desajeitadas, consegui ser uma das 14 ou 15 candidatas que foram aprovadas.

Iniciou-se o curso. Dona Carolina era nossa professora de Psicologia. Após algumas aulas gostosas, mas das quais não me lembro muitos detalhes, Dona Carolina deu uma bibliografia em inglês, e indicou um capítulo de uma das obras (o livro de Keller e Schoenfeld) para lermos para a aula seguinte. Bem me lembro de nossa ansiedade! Nenhuma de nós sabia ler inglês o suficiente ... No dia da aula, depois de algumas perguntas, Dona Carolina verifica que ninguém havia lido. Com muita calma e sem nenhuma repreensão, disse-nos que as aulas só continuariam após termos lido o capítulo indicado. Que frustração, que ansiedade e, principalmente, que vergonha!!! Lembro que isso ocorreu umas duas ou três vezes. Depois, não me recordo como, conseguimos solucionar o problema, cada um de nós traduzindo um pouco, começando assim um bonito trabalho de equipe.

Outro evento que ficou muito marcado para mim ocorreu no final do segundo ano, quando Dona Carolina me convidou para participar da correção dos exames do primeiro vestibular para o curso de Psicologia, que estava sendo implantado na Universidade de Brasília. Um curso planejado e estruturado por ela. Lembro das emoções da viagem: embarque para São Paulo, a noite passada numa pensão horrível para no dia seguinte enfrentar minha primeira viagem de avião... Luiz de Oliveira também estava lá, ajudando a cuidar de mim. A essa altura já éramos um grupo, o qual incluía também vários alunos da Universidade de São Paulo. Era tanta novidade, tão diferente da vida que eu estava acostumada a viver, que acho que eu nem sabia direito o que estava acontecendo comigo. Só lembro que tinha a preocupação de não decepcionar Dona Carolina, que (até hoje não sei por que razão!), depositara tanta confiança em mim ...

Em meados do terceiro ano veio outro convite de Dona Carolina, que já não dava aulas em Rio Claro para nós, pois estava trabalhando em Brasília. A proposta era fazer uma transferência para o curso de Brasília e lá colaborar, como monitor, na implantação de um Laboratório de Psicologia Experimental, fazendo paralelamente a adaptação de nosso curso de Pedagogia para o curso de Psicologia. Éramos três alunos a quem essa oportunidade fora oferecida, todos de Rio Claro: eu, Luiz de Oliveira e Edda Schlechter (hoje Quirino Simões). Fomos! E lá, trabalhamos junto à equipe de Dona Carolina, tanto na montagem do laboratório como na implantação do primeiro curso individualizado em Análise Experimental do Comportamento. Foi um tempo meio mágico para mim, um ano e meio tão, mas tão diferente de minha vida até então! É difícil avaliar com justeza a influência desse período na minha vida, mas certamente foi inteiramente positiva.

Encontrava Dona Carolina nos corredores ou na sala do café, e às vezes trocávamos algumas palavras e ela perguntava se estava tudo em ordem. Apesar da enorme carga de responsabilidade que estava em suas costas, ela sempre estava presente se havia algum problema que não conseguíamos resolver. Quando, no início de 1965, a bolsa de monitoria atrasou e eu não tinha recursos para me manter, surgiu a proposta de darmos" aulas" para os filhos de alguns professores que moravam na Colina: não eram bem aulas e sim momentos de lazer, planejar e executar brincadeiras educativas com as crianças; a justificativa era que os pais trabalhavam o dia todo e esse tipo de atividade era importante para as crianças. Novo desafio para mim: eu tinha sobrinhos e adorava brincar com eles, mas aqui era uma tarefa, uma atividade remunerada. Será que o produto estaria à altura? Mas conseguimos sobreviver até que a bolsa saiu de novo e as crianças voltaram às aulas. Entre estas crianças estavam o filho de Dona Carolina, de uns cinco ou seis anos de idade, e os dois filhos do Prof. Rodolpho Azzi, entre cinco e oito anos de idade. Dona Carolina sempre tinha uma palavrinha de incentivo ou um sorriso quando a encontrávamos, apesar de todos os problemas que estava atravessando.

Em fins de 1965, com a questão política que a Universidade estava passando, a equipe de Dona Carolina voltou para São Paulo e nós, logicamente, voltamos também. Tínhamos concluído o bacharelado em Psicologia. E agora? Procurei realizar a licenciatura na USP, pois sem ela nem sequer poderia lecionar no secundário, mas me foram exigidas mais disciplinas, inclusive um ano de Psicologia Experimental, porque no meu currículo ela não constava com esse nome! Fiquei bastante perdida e nem sei direito como as coisas aconteceram, mas de repente eu estava ajudando Dona Carolina em demonstrações das aulas práticas de laboratório num curso da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, para o qual ela tinha sido convidada por Maria do Carmo Guedes. Terminado o curso, Maria do Carmo me convidou a continuar ajudando na implantação do laboratório, com a perspectiva de um contrato regular no ano seguinte: mais uma porta aberta para mim por Dona Carolina! Mas restava o problema de sobreviver naquele semestre. Maria do Carmo me ofereceu pousada, mas e o resto? Novamente foi Dona Carolina quem me apareceu com uma proposta: com uma verba do Instituto Brasileiro de Educação, Cultura e Ciência eu deveria elaborar, com o professor Mário Guidi, que tinha um vasto conhecimento técnico e fora o responsável pela instalação do equipamento e funcionamento do laboratório em Brasília, um "Manual de Laboratório" (como a obra veio a chamar-se depois de publicada) que servisse de orientação para os cursos de Psicologia Experimental que estavam sendo implantados em várias universidades do país. O IBECC já estava, sob a supervisão do Prof. Guidi, produzindo, em larga escala, caixas de condicionamento operante para esse fim. Nunca vou esquecer essa mão estendida por Dona Carolina, sendo que ela sabia muito bem que eu não tinha muita habilidade para escrever. Era mais um desafio que ela estava me propondo e eu tinha que dar tudo de mim para dar conta do recado. Não foi fácil, mas depois de muitas revisões e reformulações o Manual saíu, e talvez ainda esteja sendo usado até hoje.

Sempre me pergunto como é que a Dona Carolina conseguia desafiar a gente, confiar numa capacidade em que a gente mesmo muitas vezes não confiava. Ela nem deixava subir a dúvida, e a gente, sem alternativa, acabava pensando: "Bem, se ela acha que eu sou capaz talvez eu até seja ...", e se jogava de cabeça na coisa, dando tudo o que podia.

No ano seguinte obtive um contrato regular na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, tornando-se assim viável minha vida em São Paulo. E a PUC também me ofereceu a possibilidade de fazer a licenciatura sem grandes adaptações, concluindo assim minha formação básica. Iniciei então a pós-graduação em Psicologia Experimental na USP e continuei meus estudos sob a orientação da Dra. Carolina. Precisei escolher um tema para meu projeto de pesquisa de mestrado; e qual foi? "Formação de conceitos"... Será que o efeito daquele exame oral do vestibular foi tão marcante?

No meu segundo ano na PUC comecei a trabalhar em tempo parcial na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis (hoje FCL de Assis, UNESP), onde estava sendo implantado um curso de Psicologia. Passava dois dias em Assis e os restantes em São Paulo, trabalhando na PUC e completando com muita dificuldade os créditos da pós-graduação. Novamente Dona Carolina me ajudou, validando, para completar alguns créditos que me faltavam, o trabalho de pesquisa que eu desenvolvia em Assis. Isso me permitiu reduzir o número de viagens mensais, aliviando bastante minha vida meio atribulada. Também foi ela quem ajudou-me a pleitear um contrato em tempo integral em Assis, aceitando orientar-me no período probatório relativo a esse contrato.

Em 1970, após o término do Mestrado, Dona Carolina encorajou minha inscrição no Doutorado. Assim, em 1974, conseguimos ter três doutores no curso de Psicologia de Assis, dos quais dois (eu e Nivaldo Nale) haviam sido orientados por Dona Carolina. Festejamos esse evento com um churrasco em minha casa, com a presença de Dona Carolina e até com coroas de louro que um de meus cunhados conseguiu arranjar não sei onde ...

Em retrospectiva, vejo que Dona Carolina, além de toda a ajuda que sempre me deu em momentos cruciais, foi um modelo de profissional sob um aspecto muito especial: a confiança irrestrita que depositava nas pessoas. Pelo menos comigo, esta confiança funcionava como um forte estímulo para dar conta do recado. Aprendi, com ela, que confiando nas pessoas podemos convencê-las a passarem a confiar em si próprias.

Como vejo Dona Carolina? Para mim ela sempre foi uma pessoa especial, com um conhecimento que me parecia ilimitado, pois ela sempre tinha algo a dizer que me ajudava nas mais diversas questões que lhe colocava. O assunto de minha dissertação e, posteriormente, de minha tese, era bastante específico, não diretamente ligado à sua área de pesquisa, mas ela sabia dar dicas de bibliografia, de procedimento, etc. Sempre me impressionou como Dona Carolina conseguia ler tanta coisa em seus dias tão cheios de trabalho! Pois ela não era requisitada só dentro da área da Psicologia, os setores de administração buscavam com freqüência sua ajuda e suas soluções sempre acertadas.

Dona Carolina dedicou sua vida à Psicologia no Brasil, empenhando-se especialmente no desenvolvimento da pesquisa. No início da década de 60 já tinha implantado um laboratório de Psicologia Experimental e um centro de pesquisa em Rio Claro, num simples curso de Pedagogia (trabalhos em que a ajudei durante um bom tempo). Ao implantar o curso de Psicologia na UnB, criou a possibilidade de alunos de outros cursos freqüentarem o curso de Introdução à Análise do Comportamento, possibilitando assim uma formação em Psicologia para outros profissionais. E pensar que ainda hoje temos colegas que acham desnecessário incentivar a realização de pesquisa na graduação, acham perda de tempo colocar o aluno num laboratório!!

Hoje tenho sobrinhos e outros parentes freqüentando a universidade. Quando um deles tem um professor que se interessa de forma especial por ele, ouço o comentário de seus pais: "O professor X é a Dona Carolina de Herma para meu filho ...". Todos eles sabem muito bem o que ela significou em minha vida!

Figura 1: DONA CAROLINA (Foto por Cristiano Mascaro, 1997)

Não sei explicar porque, mas apesar da enorme gratidão que tenho por ela, da admiração, respeito e imenso carinho que sinto, não consigo expressar isso facilmente, principalmente se estiver junto a ela. Parece que me sinto incapaz, como quando, angustiada, ia para as supervisões e saía atordoada, meu raciocínio lento incapaz de acompanhar sua rapidez, precisando de tempo para digerir tudo o que ela tinha dito. Embora eu sinta que ela é uma pessoa profundamente carinhosa, afetiva e muito emotiva, nunca consegui ter com Dona Carolina aquela relação solta, de amizade, talvez porque para mim ela estivesse sempre num pedestal: para mim ela sempre foi, e continua sendo, Dona Carolina, que eu admiro muito, muito, e a quem quero muito bem.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 1998
  • Data do Fascículo
    1998
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