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Singular e universal em Alain Badiou e a hipótese da cientificidade da psicanálise

Singulier et universel chez Alain Badiou et l’hypothèse de la scientificité de la psychanalyse

El singular y lo universal en Alain Badiou y la hipótesis de la cientificidad del psicoanálisis

Resumo

Este trabalho apresenta a hipótese da cientificidade da psicanálise a partir de uma reflexão sobre as concepções de singular e de universal do filósofo contemporâneo Alain Badiou. Sem pretensão de esgotar tais conceitos e, antes, propondo uma abertura ao debate, faremos apontamentos em duas direções. Na primeira, apresentaremos o conceito de singular e o fragmento de um caso clínico ilustrativo. Nesse âmbito, refletiremos sobre as “orientações no pensamento” propostas pelo filósofo e sobre os possíveis lugares de Freud e da psicanálise nesta categorização. Na direção do conceito de universal, apresentaremos as teses de Badiou e o modo como o filósofo evita a ontoteologia presente, por exemplo, nas ciências modernas. Finalizaremos com uma proposta de como a psicanálise apropria-se dos conceitos de singular e de universal para se diferenciar das outras ciências.

Palavras-chave:
singular; universal; ciência; psicanálise

Résumé

Ce travail a pour but de présenter l’hypothèse de la scientificité de la psychanalyse à partir d’une réflexion sur les conceptions de singulier et d’universel du philosophe contemporain Alain Badiou. Sans vouloir épuiser les thèmes proposés et en suggérant plutôt une ouverture du débat, nous formulerons des remarques en deux directions. Dans la première, seront présentés le concept de singulier et un fragment d’un cas clinique illustratif. Ensuite, nous réfléchirons sur les « orientations dans la pensée » proposées par le philosophe et sur les possibles lieux occupés par Freud et par la psychanalyse dans cette catégorisation. Dans la direction du concept d’universel, seront présentés les thèses de Badiou et la manière par laquelle le philosophe évite l’onto-théologie présente, par exemples dans les sciences modernes. Nous terminerons par une proposition de comment la psychanalyse s’approprie des concepts de singulier et d’universel pour se distinguer d’autres sciences.

Mots-clés:
singulier; universel; science; psychanalyse

Resumen

Este trabajo presenta la hipótesis de la cientificidad del psicoanálisis a partir de una reflexión sobre las concepciones de singular y de universal del filósofo contemporáneo Alain Badiou. Sin la intención de agotar los temas propuestos y, antes, proponiendo una apertura al debate, realizaremos notas en dos direcciones. En la primera, son presentados el concepto de singular y un fragmento de un caso clínico ilustrativo. Enseguida, reflexionaremos sobre las “orientaciones en el pensamiento” propuestas por el filósofo y sobre los posibles lugares de Freud y del psicoanálisis en aquella categorización. En la dirección del concepto de universal, se presentan las tesis de Badiou y el modo cómo el filósofo evita la ontoteología presente, por ejemplo, en las ciencias modernas. Finalizamos con una propuesta de cómo el psicoanálisis se adueña de los conceptos de singular y de universal para diferenciarse de otras ciencias.

Palabras clave:
singular; universal; ciencia; psicoanálisis

Abstract

This paper presents the psychoanalysis scientificity hypothesis from an analysis of the singular and universal concepts by the contemporaneous philosopher Alain Badiou. Without intending to exhaust the proposed themes and even proposing to begin a debate, we shall make indications in two directions. The singular concept and a fragment of an illustrative clinical case are presented in the first direction. Then we analyze the “orientations in thinking” proposed by the philosopher and the possible places of Freud and the psychoanalysis in such categorization. Badiou’s theses and the manner as the philosopher avoids the present ontotheology (for example, in the Modern Science) are presented in the direction of the universal concept. We conclude with a proposal on how the psychoanalysis employs the singular and universal concepts to differentiate itself from other types of science.

Keywords:
singular; universal; science; psychoanalysis

Alain Badiou escreve uma filosofia fortemente calcada na lógica e na matemática, que se estende à política, à psicanálise e à estética. Ele propõe sua ontologia (leia-se: lógica matemática) em duas obras fundamentais: O ser e o evento, de 1988, e Lógicas dos mundos, de 2006. Trata-se de obras densas e difíceis, impressionantes tanto por sua linguagem fluente e assertiva, quanto por sua capacidade de dialogar concisamente com proposições que vão desde as bases históricas da filosofia e da matemática ocidentais até seus avanços mais contemporâneos. Badiou não só dialoga com os filósofos e matemáticos de todas as épocas, como também propõe algo inédito a eles. Se Heidegger (1996aHeidegger, M. (1996a). A constituição onto-teo-lógica da metafísica. In Conferências e escritos filosóficos (Os Pensadores, pp. 185-200). São Paulo, SP: Nova Cultural.) preconizava que déssemos um “passo de volta” (p. 196), Badiou (1991Badiou, A. (1991). Manifesto pela filosofia. Rio de Janeiro, RJ: Aoutra.) nos convida a dar “um passo a mais” (p. 5), e o faz com vigor e cálculo.

Na construção de nossa hipótese sobre a cientificidade da psicanálise perguntamo-nos, primeiramente, o que são as ciências, e, em segundo, se seria possível formularmos a existência de algo comum ao modo de praticá-las, bem como aos modos de investigação dos pesquisadores. Haveria um universal das ciências? Como ficam as singularidades nos procedimentos científicos? E ainda: pode-se aplicar a uma ciência que trabalhe com o homem (qualquer que seja tal ciência) os mesmos princípios e procedimentos generalizantes, preditivos e interventores das ciências que lidam com o que não é humano?

O que subjaz a essas perguntas é evidentemente uma problematização das concepções de universal e de singular que sustentam as práticas científicas modernas. Acreditamos que seja necessária uma reflexão sobre essa temática a fim de evitarmos o que consideramos enganos de certa tradição (que se estende até a contemporaneidade), sustentada sobre os traços distintivos de uma metafísica que chamaríamos, com Martin Heidegger (1889-1976), de ontoteológica. Ontoteológica é toda orientação geral de pensamento que fale das coisas situadas além (meta) das realidades mundanas (physis) e que, esquecendo a diferença fundamental entre ser e ente, toma um ente (um homem, um objeto não humano, uma ideia, um procedimento ou outra coisa qualquer) pelo ser, e o toma como realizador do Absoluto, da plenitude do Ser, enfim, como Deus. Os traços que sustentariam essa ontoteologia metafísica seriam a entificação do ser e a subjetivação do ente, traduzidos com precisão pelo filósofo nos seguintes termos:

A compreensão do ser (logos num sentido bem amplo) que previamente ilumina e orienta todo o comportamento para o ente não é nem um captar o ser como tal [pois isto seria entificar o ser] nem um reduzir ao conceito o assim captado [o que seria subjetivar o ente]. (Heidegger, 1996aHeidegger, M. (1996a). A constituição onto-teo-lógica da metafísica. In Conferências e escritos filosóficos (Os Pensadores, pp. 185-200). São Paulo, SP: Nova Cultural., p. 118, grifos nossos)

O conceito de singular

Para chegarmos ao conceito de singular, começaremos pela elaboração que Badiou (1996Badiou, A. (1996). O Ser e o evento. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.) faz sobre o problema do Um, do múltiplo e do vazio no livro O ser e o evento, no qual formaliza sua ontologia entendida como a própria matemática, sendo esta apresentada por ele como a “ciência do ser-enquanto-ser” (p. 13).

Para Badiou (1996Badiou, A. (1996). O Ser e o evento. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.), tudo que se apresenta é múltiplo. O Um, ele jamais se apresenta. Assim como o ser. Para dar consistência ao múltiplo, ser e um são reciprocáveis, mas não são o mesmo. Então, o que é contado por um se não há Um? Como só há multiplicidades, o que se conta são os múltiplos. Desse modo, todo elemento é um múltiplo e todo múltiplo é um múltiplo de múltiplos. Apenas para fazermos uma imagem: um corpo contém muitos sistemas e cada um deles vários órgãos; cada órgão tem uma multiplicidade de células e cada uma delas uma multiplicidade de átomos de elementos químicos, que também são decomponíveis em léptons e quarks, e assim sucessivamente. Para além deste exemplo, podemos pensar que cada elemento de uma “cadeia” é um múltiplo de múltiplos - como se percebe facilmente -, que pode se desdobrar em várias direções. Isto significa que pode ser incluído e pode ser produtor de outras “cadeias”, formando então redes de multiplicidades que poderão ser contadas de diversas formas.

Fazemos a conta para evitar o vazio, a inconsistência, ou para reestabelecermos uma multiplicidade consistente (uma situação). Como observa Badiou (1996Badiou, A. (1996). O Ser e o evento. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.), a fixação do vazio enquanto representação do inapresentável seria o Caos e a destruição de toda doação do ser. Uma diferença importante com relação a Heidegger (1997Heidegger, M. (1997). Ser e tempo (Parte I). Petrópolis, RJ: Vozes.): no parágrafo 40 do livro Ser e tempo, o filósofo situa a angústia como um modo privilegiado do ente humano assumir um lugar no mundo e, assim, assumir seu poder-ser-mais-próprio. Já para o filósofo francês, a angústia é, antes, uma defesa contra o vazio: “O que Heidegger chama o cuidado do ser, e que é o êxtase do ente, pode também ser chamado: a angústia situacional do vazio, a necessidade de se defender dele” (Badiou, 1996Badiou, A. (1996). O Ser e o evento. Rio de Janeiro, RJ: Zahar., p. 82).

O vazio que tanto se evita não é global nem local. Ele não é um termo do conjunto, não é um múltiplo ou multiplicidade consistente, mas trata-se de algo que está subtraído ao resultado da conta. Ele também não é o todo; pelo contrário, ele é o nada do todo: “Tudo o que podemos afirmar é isto: toda situação implica o nada de seu todo” (Badiou, 1996Badiou, A. (1996). O Ser e o evento. Rio de Janeiro, RJ: Zahar., p. 52). Então, ele é uma parte do todo. Conforme a Meditação Oito de O ser e o evento, o vazio, não sendo uma parte que valha por um, é, enfim, um submúltiplo. Ajuda a compor multiplicidades consistentes que são, por sua vez, contadas por um. Desse modo, cada múltiplo traz em si um submúltiplo, um componente “vazio”. Se, por exemplo, pensarmos em um paciente melancólico que reclama literalmente de estar sentindo um “vazio” em sua vida, que isto o paralisa ao extremo, resta-nos a possibilidade de trabalhar com ele na direção de fazer o vazio, por assim dizer, tornar-se operacional. Evitar a fixação no vazio e evitar a inércia que o faz (o paciente) permanecer ali. Tarefa nunca simples.

O vazio errante pode surgir a qualquer hora em qualquer situação. “Situação” é toda multiplicidade consistente apresentada, ou seja, “multiplicidade composta de vários uns, eles próprios contados pela ação da estrutura” (Badiou, 1996Badiou, A. (1996). O Ser e o evento. Rio de Janeiro, RJ: Zahar., p. 394), que é o que prescreve para a apresentação o próprio regime da conta-por-um.

Para impedir a fixação do vazio, apenas a estrutura (a apresentação de uma multiplicidade, a conta-por-um) não é suficiente. Há que se criar uma metaestrutura. Aqui acrescenta-se o conceito de “estado da situação”. Um estado da situação é “aquilo pelo que a estrutura de uma situação - de uma situação estruturada qualquer - é contada por um” (Badiou, 1996Badiou, A. (1996). O Ser e o evento. Rio de Janeiro, RJ: Zahar., p. 83). Dito de outro modo, para afugentar o perigo do vazio e seu excesso errante (“perigo” porque a apresentação do vazio seria uma catástrofe; “excesso” porque, na situação matemática, o vazio é o nome do ser; “errante” porque ele não é localizável), isso que escapa à conta de uma situação (a própria conta) deverá também ser contado. Toda estrutura deve ser duplicada em uma metaestrutura que impeça a fixação do vazio: “Digo apenas isto: do fato de o Caos não ser a forma da doação do ser resulta a obrigação de pensar que há uma reduplicação da conta-por-um” (Badiou, 1996Badiou, A. (1996). O Ser e o evento. Rio de Janeiro, RJ: Zahar., p. 82). Assim, toda situação é duas vezes estruturada. Há sempre apresentação e representação, simultaneamente.

O conceito de singular aparece quando Badiou (1996Badiou, A. (1996). O Ser e o evento. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.) estabelece os nomes de como os elementos de um grupo podem ser reconhecidos quanto à estrutura e à metaestrutura. Pertencimento e inclusão são a chave de todo o raciocínio cujos referentes são termos e situações:

Chamarei normal um termo que é ao mesmo tempo apresentado [pertencente a uma situação] e representado [incluído na situação]. Chamarei excrescente um termo que é representado mas não apresentado. Chamarei singular um termo que é apresentado [pertencente à situação] mas não representado [não incluído nela]. (Badiou, 1996Badiou, A. (1996). O Ser e o evento. Rio de Janeiro, RJ: Zahar., p. 86, grifos do autor)

Um exemplo tirado de nossa prática clínica: o hábito sempre surpreendente de uma mulher que guinchava como um morcego apresentava-se aos ouvidos de seus familiares (e aos dela próprios) como algo absurdamente estranho, irritante, até assustador. Enfim, como “uma loucura”. E, como para a comodidade do pensamento (leia-se “preguiça do pensamento”), é aceitável tomar o todo por uma de suas partes, nossa paciente (essa mulher não-toda) foi tomada como toda louca.

Que pode haver de singular nisso? Certamente não é o próprio guinchar da mulher, pois até figuras do imaginário popular poderiam fazê-lo. No máximo tínhamos ali uma estranha particularidade que, associada a outras - não tão estranhas, embora hoje incomuns, tais como sua recusa a deixar que os namorados tivessem com ela maiores intimidades e o medo que ela sentia de ver-se nua num espelho -, seria facilmente traduzível por uma terceira, uma do campo do “saber”, que assim se enunciaria: “é uma histérica”.

Seu tratamento não nos levou especificamente a um sinthoma (entendendo-se aqui por sinthoma um modo único e próprio de alguém tensionar seu gozo e seu desejo inconscientes), mas permitiu-nos chegar ao encontro de algumas verdades por meio de fatos e conexões antes inconscientes para ela. É esse percurso que queremos aqui usar como ilustração/exemplo do conceito de singular em Badiou.

Resumamos: aquela mulher de vinte e poucos anos teve uma infância difícil, em uma zona rural pobre e infestada de animais incômodos de todo tipo. Que naquela infância sua mãe gemesse de modo peculiar quando fazia sexo com o marido, e que, para escapar ao que os gemidos sugeriam e lhe causavam de terror, a menina tenha por deslocamento começado a prestar atenção aos morcegos que voavam sobre seu quarto na madrugada, no vão entre o telhado e o “forro do teto” (algo que servia como uma laje). Isso foi o que ela recalcou e que, mais tarde, já no divã, sua análise recolocou em cena.

Os guinchos dos morcegos, os gemidos da mãe e o medo experimentado naquelas madrugadas, tudo isto estava incluído em seu psiquismo - seu aparelho de linguagem, como se pode inferir dos trabalhos de Freud1 1 Dizemos “aparelho de linguagem” porque consideramos com Garcia-Roza (2001) que desde seu início, Freud propunha que os neurônios aonde se dão as percepções conscientes, dão lugar a uma inscrição - os signos de percepção - inacessível à consciência e que constitui com tais signos, o próprio aparelho psíquico: “O importante é que a partir de então, o que vai se oferecer como conteúdo do aparelho psíquico são signos (Zeichen), signos que serão inscritos (Niederschriften) e retranscritos (Umschriften), portanto, algo cuja proximidade com a escrita é indicada pelo próprio Freud na escolha dos termos empregados” (p. 204). -, mas não se apresentava à consciência. Estavam ali como excessos que seriam inexistentes para a consciência (não se apresentavam). Eles estavam representados no estado (da situação), isto é, em sua consciência, como sendo uma excrescência classificada como “loucura”. Estavam incluídos como um excesso que parecia estranho, esquisito; como uma parte dela mesma que existiria à margem do restante “são” dela própria (“eu acho esquisito agir assim”, ela se queixava). Com a análise, esse excesso incluído como parte a ser descartada, inapresentável no campo da racionalidade, passou a se apresentar como enigma a ser trabalhado, desdobrado. Em uma inversão de posição, ele passou de excrescência (inclusão que não pertence ao campo do saber) a uma singularidade (passou a pertencer ao campo da consciência, apesar de não se deixar incluir pelo saber da consciência). De parte descartável tornou-se enigma a ser desdobrado.

Que em determinada sessão tenhamos chegado ao apaziguamento de sua ansiedade como efeito secundário de uma série de intervenções ao longo de seu processo analítico e, depois, a novos desdobramentos, isso por si só não explica como a excrescência se tornou singularidade. Para levarmos adiante a hipótese da cientificidade da psicanálise, teremos de perguntar sobre como se deu este acontecimento. Qual múltiplo possibilitou termos produzido uma verdade naquela sessão?

Adotaremos de novo a nomenclatura de Badiou (1996Badiou, A. (1996). O Ser e o evento. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.). O múltiplo que possibilitou aquela análise é um múltiplo antinatural e totalmente anormal. Apesar de se apresentar na situação, portanto pertencente como elemento no campo, ele não se deixa incluir como parte, ou seja, não se deixa apreender pelo saber daquela situação, preservando-se como enigma a ser desdobrado, construído. É o que o filósofo nomeia como “sítio eventural” (Badiou, 1996Badiou, A. (1996). O Ser e o evento. Rio de Janeiro, RJ: Zahar., p. XXX). Acreditamos ser a partir dele que “nascem” as ciências. Sobre este conceito discorreremos em outra oportunidade. Adiantaremos apenas que um sítio é um múltiplo cujos elementos não se apresentam numa situação, mas que, assim mesmo, e também por isto, é fundador de algo inédito. É necessário para o psicanalista e para o praticante da psicanálise revisitar este lugar a cada novo paciente e a cada nova instância de um processo analítico, ou estará encerrada sua função.

Seis anos depois da publicação de O ser e o evento, ao escrever sobre a verdade e o inominável em “Por uma nova teoria do sujeito” (Badiou, 1994Badiou, A. (1994). Para uma teoria do sujeito: conferências brasileiras. Rio de Janeiro, RJ: Relume-Dumará.), o filósofo deduz o conceito de singular a partir de um exemplo clínico, perguntando o que a análise de uma mulher, dita histérica, põe em jogo. Sua resposta é uma consideração de que a “histeria” é um tipo clínico de uma estrutura psíquica (a chamada estrutura neurótica), e de que o “tipo” não seria, não é, nem de longe, uma singularidade. O discurso daquela mulher poderia caracterizá-la como histérica, mas sendo ela também um conjunto, ou seja, uma multiplicidade, ela traz outros componentes indicadores de outras coisas que ela é e que demandam uma escuta situada além do que essa classificação nos oferece. É justamente quando os componentes do saber a respeito dela (todos os que remetam à palavra-chave “histérica”) “subtraem o conjunto [esta mulher] ao predicado de histeria, que uma verdade e não um saber, emerge em sua singularidade” (Badiou, 1994Badiou, A. (1994). Para uma teoria do sujeito: conferências brasileiras. Rio de Janeiro, RJ: Relume-Dumará., p. 67).

Acrescentemos: uma prática clínica, mesmo sendo psicanalítica, que se oriente exclusivamente por uma consideração estrutural, não fará mais que ratificar a estrutura, perdendo aquela presença, aquela “realização sui generis” de que fala Lalande (n.d.Lalande, A. (n.d.). Vocabulário técnico e crítico da filosofia (Vols. 1-2.). Porto, Portugal: Rés.): “Para passar da última espécie (species infima) à noção singular, o que se acrescenta é um princípio de individuação, que já não é uma característica ou uma soma de características, mas uma presença, uma realização sui generis” (p. 655). Isto porque a tendência de nosso pensamento é o Um. Essa tendência obedece ao que Heidegger (1996Heidegger, M. (1996b). Sobre a essência do fundamento. In Conferências e escritos filosóficos (Os Pensadores, pp. 109-148). São Paulo, SP: Nova Cultural .) denunciou como sendo a ontoteologia metafísica, já citada. Muitas mentalidades são formadas tendo como Um o nome e a ideia de Ciência, ou o de Deus, ou o de Poder. Não é fácil encontrarmos, pelo menos na nossa civilização, um pensamento que não se oriente pelo Um. Para nós, é mais cômodo estabelecermos ligações precipitadas (mesmo que muito frágeis) entre elementos imediatos, do que encararmos o vazio de uma escansão entre duas multiplicidades ou entre dois significantes. Apostarmos no pensamento sem-Um para falarmos do ser, como propõe Badiou (1999Badiou, A. (1999). Breve tratado de ontologia transitória. Lisboa, Portugal: Instituto Piaget.), é sustentar “que aquilo que do ser é pensável existe na forma do múltiplo radical, do múltiplo que não está sob o poder do Uno… múltiplo sem-Uno” (p. 30).

As orientações no pensamento e o lugar de Freud

Em nossa reflexão sobre o que são as ciências e como se incluiria aí a psicanálise, o que estamos propondo inicialmente é que se retire da “ideia de Ciência” hegemônica aquilo que subjaz e adjaz a ela, ou seja, aquela orientação de pensamento que a toma por Um. Parafraseando Badiou (1996Badiou, A. (1996). O Ser e o evento. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.), sustentamos que aquilo que do ser científico é pensável existe na forma de um múltiplo que não está sob o poder do Um. Temos que pensar, e também no que diz respeito ao ser científico, sob o modo de um múltiplo-sem-Uno.

Ao ligarmos nosso pensamento ao ser estamos inconscientes da orientação de pensamento que nos conduz: “é quando decidimos o que existe que ligamos o nosso pensamento ao ser. Só que, então, estamos inconscientes de o ser, sob o imperativo de uma orientação” (Badiou, 1999Badiou, A. (1999). Breve tratado de ontologia transitória. Lisboa, Portugal: Instituto Piaget., p. 56). Muitos pesquisadores (ou, talvez, nossa civilização) se orientam pelo Um sem perceber. Primeiramente, porque eles não estão conscientes de que foram formados - desde suas graduações acadêmicas e até muito antes delas - no espírito de uma cultura em tudo orientada e ratificada pelo Um. Em segundo lugar porque, não se dando conta da orientação de pensamento que receberam, esses pesquisadores continuam a transmiti-la para as novas gerações inadvertidamente. E, assim, a metaestrutura que os educa garante, sobremaneira, o apagamento do vazio que permitiria a emergência de novas verdades no lugar das veridicidades (os saberes do establishment de qualquer procedimento humano) sempre postas e recompostas pelo estado.

Mas não se trata apenas de transmissão social não percebida ou, simplesmente, refletida (o que já é muito) de uma orientação. Deve-se considerar o teorema do ponto de excesso (Badiou, 1996Badiou, A. (1996). O Ser e o evento. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.), segundo o qual sempre há submúltiplos que, embora incluídos numa situação, não são nela enumeráveis como termos da situação. Há um excesso “irremediável” de submúltiplos (componentes desses múltiplos) que não pertencem à situação (não são apresentados nela) e, assim, tais termos ou submúltiplos não existem. Eles são um excesso do qual estamos inconscientes e que vagueia errante no pensamento. Freud (1917/2014Freud, S. (2014). Conferências introdutórias à psicanálise. Teoria geral das neuroses. A fixação no trauma, o inconsciente. In Obras completas (Vol. 13, pp. 297-310). São Paulo, SP: Companhia das Letras . (Trabalho originalmente publicado em 1917), p. 310) já nos advertia de que o eu não é senhor de sua própria casa. As orientações no pensamento se estabelecem no ponto real desse excesso errante (Badiou, 1991Badiou, A. (1991). Manifesto pela filosofia. Rio de Janeiro, RJ: Aoutra.).

Em O ser e o evento, Badiou (1996Badiou, A. (1996). O Ser e o evento. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.) define uma orientação no pensamento como a pré-decisão latente que terá como referente (embora não identificado) a errância do excesso quantitativo que há entre a situação e o estado da situação. É que existe um descompasso, uma não relação - que Badiou (1996Badiou, A. (1996). O Ser e o evento. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.) chama de “des-relação” - entre cada situação e seu estado. Des-relação formalizada matematicamente na teoria dos conjuntos pelo citado teorema do ponto de excesso, segundo o qual “é formalmente impossível, seja qual for a situação, que tudo que está incluído (todo subconjunto) pertença à situação” (Badiou, 1996Badiou, A. (1996). O Ser e o evento. Rio de Janeiro, RJ: Zahar., p. 85, grifo do autor). Tal condição obriga o pensamento a enfrentar e tentar resolver o excesso de ser aonde ele não é mais exatamente dizível. Um pensamento é definido, então, como o desejo de pôr fim ao exorbitante excesso do estado.

Existem, de acordo com o filósofo, três orientações no pensamento: uma delas é a transcendente, a qual busca “diferenciar um infinito gigantesco que prescreva uma disposição hierárquica onde nada poderia mais divagar” (Badiou, 1996Badiou, A. (1996). O Ser e o evento. Rio de Janeiro, RJ: Zahar., p. 226). Nesse caso, haveria um múltiplo representativo que, fixando um ponto de parada da errância do pensamento, daria um fecho às multiplicidades. Tal múltiplo seria o Um, e o pensamento transcendente orienta-se para o Um e pelo Um, de um modo afeiçoado a experiências, por exemplo, teológicas. O ser-múltiplo oferecido pela matemática a essa orientação de pensamento é o da doutrina dos cardinais, os quais “aproximam o ser virtual que as teologias requerem” (Badiou, 1996Badiou, A. (1996). O Ser e o evento. Rio de Janeiro, RJ: Zahar., p. 227).

A segunda é a orientação construtivista, que tem esse nome porque corresponde à doutrina dos conjuntos construtíveis de Gödel, que “subordina o juízo de existência a protocolos linguagísticos finitos e controláveis” (Badiou, 1999Badiou, A. (1999). Breve tratado de ontologia transitória. Lisboa, Portugal: Instituto Piaget., p. 54). Aqui, o estado da situação não conta todas as partes do conjunto. A metaestrutura só contará em seu campo as representações “razoáveis”, deixando fora da conta os indiscerníveis. Nessa orientação, o estado só reconhece como parte o que os próprios recursos da situação permitem distinguir. Poderíamos propor que ela seria, por excelência, a orientação de pensamento das ciências positivistas.

A terceira é a orientação genérica, que “privilegia as zonas indefinidas, os múltiplos subtraídos a alguma recolha predicativa, os pontos de excesso e as atribuições subtrativas” (Badiou, 1999Badiou, A. (1999). Breve tratado de ontologia transitória. Lisboa, Portugal: Instituto Piaget., p. 54). Com ela, identifica-se que a errância do excesso quantitativo é o real do ser: “A errância do excesso é, para o pensamento genérico, o real do ser, o ser do ser” (Badiou, 1991Badiou, A. (1991). Manifesto pela filosofia. Rio de Janeiro, RJ: Aoutra., p. 45). Para esta orientação, o essencial da situação em que opera o estado são os indiscerníveis: “Considera-se que o que é representativo de uma situação, não é o que lhe pertence distintamente, mas o que está evasivamente incluído nela” (Badiou, 1996Badiou, A. (1996). O Ser e o evento. Rio de Janeiro, RJ: Zahar., p. 226).

Há uma quarta via, não nomeada como uma orientação, discernível, por exemplo, em Marx e em Freud: “é transversal às outras três. De fato, ela sustenta que a verdade do impasse ontológico não se deixa apreender nem pensar na imanência à própria ontologia ou à metaontologia especulativa” (Badiou, 1996Badiou, A. (1996). O Ser e o evento. Rio de Janeiro, RJ: Zahar., p. 227). Tem-se, aqui, um procedimento de verdade inapresentado, um resto deixado pela matemática e que recebe do filósofo o nome de sujeito.

Se queremos acessar uma singularidade na clínica psicanalítica, devemos nos cuidar para que não cedamos à inércia do nosso próprio pensamento, quase sempre transcendente e/ou construtivista. Pois é mais fácil pensarmos a partir de Um geral e/ou de protocolos estabelecidos do que nos abrirmos para as singularidades. E é mais fácil, por extensão, “elevarmos nosso pensamento” a algum Supremo que nos desobrigue da tarefa de pensar e de agir com o que é singular.

Ao nos esforçarmos em praticar a psicanálise como uma ciência do singular, o que nada mais é do que uma congruência à proposta original de Freud, nos esforçamos para não ficarmos submetidos às orientações construtivista e transcendente de sentido metafísico. Se dissermos que um paciente nosso é isto ou aquilo, se nos referirmos à sua estrutura clínica (neurótico, perverso ou psicótico) ou à sua modalidade de estrutura (histérico, fóbico, obsessivo, melancólico, paranoico ou esquizofrênico), o “isto/aquilo” é na melhor das hipóteses um jeito de falarmos sobre uma particularidade sua, um dos modos daquele paciente se apresentar e, assim, aparecer para nós como sendo algo. Mas ainda é pouco em termos de alcançarmos sua marca distintiva tendo como referência aquilo que lhe é singular. Uma das metas de uma psicanálise é explorar, com o analisante, o exercício incomensurável de se operacionalizar como sujeito: “Um grupo-sujeito é infinito” (Badiou, 1999Badiou, A. (1999). Breve tratado de ontologia transitória. Lisboa, Portugal: Instituto Piaget., p. 173). Infinito em sua multiplicidade, no que ele comporta de submúltiplos.

Consideramos que o fracasso (parcial) da luta de Freud pelo reconhecimento da cientificidade de sua criação2 2 Kyrillos Neto & Moreira (2010) nos lembram como a não aceitação da psicanálise pela comunidade científica universitária decepcionou Freud, o que, segundo Poli (2008), o fez criar a Associação Psicanalítica Internacional (IPA, sigla no inglês). O próprio Freud (1925/2011) escreve em sua autobiografia: “Não poucas vezes escutei a desdenhosa afirmação de que não se pode levar a sério uma ciência cujos principais conceitos são tão imprecisos como os da libido e do instinto na psicanálise” (p. 122). deve-se ao fato de que o seu momento histórico foi o do cientificismo lógico-experimental e da afirmação e crescimento das ciências naturais tomadas como o único modelo válido de ciências (claro, para os ideólogos daquele tipo de ciência). Agora, passados mais de um século de sua eclosão, a verdade da psicanálise como ciência pode ser reexaminada com distanciamento reflexivo. Não precisamos abdicar de sua cientificidade, da mesma forma que Freud (1926/1980) não abdicou3 3 Ele a defendeu como ciência em toda a sua obra. Por exemplo, ao escrever um verbete sobre sua criação para a Enciclopédia Britânica, Freud (1926/1980) a nomeia como “ciência dos processos mentais inconscientes” (p. 302). . A psicanálise é uma ciência que não se deixa reduzir aos parâmetros das ciências hermenêuticas nem aos parâmetros impostos pelas ciências naturais (construtivista e/ou transcendente). Quanto à hermenêutica, as psicanálises freudiana e lacaniana não se reduzem a elas embora trabalhem também com interpretações - ainda que não caiba qualquer interpretação na clínica psicanalítica4 4 “Para que uma interpretação seja justa, ela tem de ser específica, pois não se trata de fazer surgir qualquer significante, mas sim o significante recalcado” (Associação Mundial de Psicanálise, 1996, p. 351). .

A postulação do inconsciente por S. Freud foi um acontecimento singular - no sentido do “évenement” de Badiou (1996Badiou, A. (1996). O Ser e o evento. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.) -, cujo impacto na cultura ocidental se faz sentir até hoje. A nosso ver, Freud fez um furo no saber da medicina e das outras ciências de sua época. Ele demonstrou que há elementos indiscerníveis na experiência de cada um (nomeados por ele como sistema inconsciente), os quais podem pressionar e se materializar como distorção da consciência, sob a forma de sonhos, chistes, lapsos, sublimações e, em casos graves, de forma patológica (sintomas, sofrimento psíquico, “transtornos mentais” como dizem os naturalistas).

O trabalho de Freud gerou diversas fidelizações. Temos as escolas lacaniana, kleiniana, winnicottiana, laplanchiana e outras (cada qual, muitas vezes, divididas em subconjuntos). Também essa diversidade é um sinal de que a psicanálise é da ordem de uma multiplicidade genérica. Pois o que é próprio do genérico é que ele nasce de um evento singular - no caso da psicanálise, estão aí implicados todo o trabalho e a intuição de Freud -, e tem como resultado um múltiplo5 5 “Aqui, a categoria central é a multiplicidade genérica. Ela vem fundar o platonismo do múltiplo, permitindo pensar uma verdade ao mesmo tempo como resultado múltiplo de um procedimento singular, e como furo, ou subtração, no campo do nomeável” (Badiou, 1991, p. 64). : sua teoria, as escolas, a extensão da psicanálise a outros campos da cultura (principalmente ocidental), assim como as verdades postuladas a cada análise de cada novo par analista-analisando. Isso nos leva até a afirmar que existem psicanálises, e não apenas A psicanálise. Certamente, pelo menos aos olhos dos autores deste texto, algumas são mais fiéis a Freud e não deixam de estudá-lo e reestudá-lo (Lacan nunca deixou de ser assumidamente freudiano).

As teses de Badiou sobre o universal

À matemática, que desde O ser e o evento já era definida por Badiou (1996Badiou, A. (1996). O Ser e o evento. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.) como ciência do ser-enquanto-ser, o filósofo convoca, posteriormente, a lógica, entendendo esta como sendo a “teoria matemática dos universos possíveis ou teoria geral da coesão do ser-aí, ou ainda, teoria da consistência relacional do aparecer” (Badiou, 1999Badiou, A. (1999). Breve tratado de ontologia transitória. Lisboa, Portugal: Instituto Piaget., p. 189).

Em 2004, Badiou (2008bBadiou, A. (2008b). Oito teses sobre o universal. Ethica, 15(2), 41-50. Recuperado de https://bit.ly/2kw1zKp
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) publica “Oito teses sobre o universal”, texto no qual desenvolve as seguintes formulações: um universal tem como elemento próprio o pensamento; ele é inobjetivo, incalculável, singular, subtraído a predicados identitários e originado de um evento/acontecimento (événement). Um universal se desdobra de um acontecimento a uma fidelidade; é unívoco como ato, é aberto/inacabado, pode ser definido também como a decisão de um indecidível, e é a construção fiel de um subconjunto de uma situação, não determinado por qualquer predicado situacional.

Dizer que um universal tem como elemento próprio o pensamento significa primeiramente aceitá-lo na mais simples definição gramatical: um universal é uma declaração sobre um universo - ou seja, ele não é o próprio universo. Por ser inobjetivo, um universal tem como próprio um pensamento, e não um objeto: “O universal é essencialmente inobjetivo” (Badiou, 2008bBadiou, A. (2008b). Oito teses sobre o universal. Ethica, 15(2), 41-50. Recuperado de https://bit.ly/2kw1zKp
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, p. 41).

Contudo, diz Badiou (2008bBadiou, A. (2008b). Oito teses sobre o universal. Ethica, 15(2), 41-50. Recuperado de https://bit.ly/2kw1zKp
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), um universal é uma declaração que, diante de todas as outras já expostas e subsumidas à lógica hegemônica, decide em favor de uma verdade que subverte aquela lógica e seus saberes constituídos - as veridicidades, ou o saber estabelecido que, a princípio, para se estabelecer como tal, teve que recusar a verdade indiscernível do universal que estaria na sua origem. Este efeito subversivo advém em consequência da subtração dessa declaração a todos os predicados identitários que estabelecem e garantem a coesão de um mundo em dado momento. “Todo universal se apresenta, não como regulamentação do particular ou das diferenças, mas como singularidade subtraída aos predicados identitários” (Badiou, 2008bBadiou, A. (2008b). Oito teses sobre o universal. Ethica, 15(2), 41-50. Recuperado de https://bit.ly/2kw1zKp
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, p. 43).

Um universal - ou uma declaração que se apresente como concernindo a todo um universo - é um ato lógico e unívoco (Badiou, 2008bBadiou, A. (2008b). Oito teses sobre o universal. Ethica, 15(2), 41-50. Recuperado de https://bit.ly/2kw1zKp
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) que, por sua singularidade, resulta no questionamento e na subversão de tudo aquilo que, à sua volta, estava estabelecido como veridicidade. Mas esse ato lógico depende de uma fidelidade, de um sujeito-pensamento que, decidindo por uma verdade, cria uma rede de consequências a partir dela. É isso que Freud fez na medida em que se dava conta do inconsciente, escrevendo e publicando copiosamente seus “insights”, criando a Sociedade das Quartas-feiras, fundando a IPA etc. Esse sujeito-pensamento é o que sustenta a declaração sobre um universo: “o sujeito é a cada vez convocado como pensamento num ponto do procedimento em que o universal se constitui” (Badiou, 2008bBadiou, A. (2008b). Oito teses sobre o universal. Ethica, 15(2), 41-50. Recuperado de https://bit.ly/2kw1zKp
https://bit.ly/2kw1zKp...
, p. 41).

Uma declaração verdadeira sobre um universo vai de um enunciado eventural/acontecimental a uma consequência que é uma fidelização. Fidelizar é subjetivar um acontecimento, o qual decide sobre uma zona de indecidibilidade. Ele é o que faz furo no saber enciclopédico ou estabelecido (as veridicidades citadas anteriormente), provocando a subversão por meio de um enunciado, do valor antes atribuído ao real da situação sobre o qual algo foi decidido.

A declaração que decide pelo processo de uma verdade, ou pelo processo de um universal, não depende do saber adquirido; a verdade “é intransitiva ao saber e até mesmo . . . é essencialmente não sabida. O que é um dos sentidos possíveis do seu caráter inconsciente” (Badiou, 2008bBadiou, A. (2008b). Oito teses sobre o universal. Ethica, 15(2), 41-50. Recuperado de https://bit.ly/2kw1zKp
https://bit.ly/2kw1zKp...
, p. 42). Assim como inconscientes e independentes do que um sujeito supõe saber sobre si mesmo e sobre os outros são alguns processos psíquicos revelados por uma psicanálise.

Universalidade e singularidade se unem definidas como “o ato que, encadeando um sujeito-pensamento, revela-se capaz de abrir um procedimento de modificação radical da lógica e, portanto, do que aparece enquanto aparece” (Badiou, 2008bBadiou, A. (2008b). Oito teses sobre o universal. Ethica, 15(2), 41-50. Recuperado de https://bit.ly/2kw1zKp
https://bit.ly/2kw1zKp...
, p. 49). O ato inaugural de Freud quanto ao inconsciente encontraria melhor definição?

Mas, se dizemos que um universal é uma declaração sobre um universo, devemos perguntar: que é isto, um universo? Em Badiou (1999Badiou, A. (1999). Breve tratado de ontologia transitória. Lisboa, Portugal: Instituto Piaget.), ele é um topos logicamente pensável. Topos é um conceito matemático pertencente e incluído numa teoria (teoria dos topoi) que, ao lado da teoria dos conjuntos de Cantor e Cohen, é apontada por Badiou (1999Badiou, A. (1999). Breve tratado de ontologia transitória. Lisboa, Portugal: Instituto Piaget.) como o “evento silencioso” que alterou fundamentalmente o estilo de apresentação da lógica contemporânea. A teoria dos topoi e a dos conjuntos tornam-se importantes porque representam, para Badiou (1999Badiou, A. (1999). Breve tratado de ontologia transitória. Lisboa, Portugal: Instituto Piaget.), a melhor alternativa à virada linguagística da filosofia do século XX, promovida principalmente por Heidegger e Wittgenstein: “Podemos arrancar a Lógica ao seu estatuto gramatical, separá-la daquilo que hoje chamamos ‘a virada linguagística’ da filosofia contemporânea” (Badiou, 1999Badiou, A. (1999). Breve tratado de ontologia transitória. Lisboa, Portugal: Instituto Piaget., p. 183). Tal virada quase teria encerrado a filosofia propriamente dita, já que, com Heidegger e seu “passo de volta”, ela teria significado uma guinada da filosofia mais para o poético do que para a tarefa de pensar.

Que a psicanálise possa se servir, em continuidade ao trabalho de J. Lacan, da teoria topológica e/ou da teoria dos conjuntos para assim demonstrar sua cientificidade, esta é a tarefa que está em aberto e em curso por muitos dos que a praticam, com destaque para Amster (2010Amster, P. (2010). Apuntes matemáticos para leer a Lacan: topología. Buenos Aires, Argentina: Letra Viva.); Darmon (1994Darmon, M. (1994). Ensaios sobre a topologia lacaniana. Porto Alegre, RS: Artes Médicas.); Granon-Lafont (1990Granon-Lafont, J. (1990). A topologia de Jacques Lacan. Rio de Janeiro, RJ: Zahar .); e Mazzuca, Schejtman e Zlotnik (2000Mazzuca, R.; Schejtman, F., & Zlotnik, M. (2000). Las dos clínicas de Lacan: introducción a la clínica de los nudos. Buenos Aires, Argentina: Tres Haches.).

O transcendental: universalidade sem ontoteologia

Em Lógicas dos mundos, de 2006, Badiou (2008aBadiou, A. (2008a) Lógicas de los mundos. El ser y el acontecimiento 2. Buenos Aires, Argentina: Manantial.) nos apresenta um conceito de universal que evita o pensamento ontoteológico. Trata-se do “transcendental”, conceito operatório que permitiria dar sentido a graus de diferença de intensidade entre um ente e outro ente de um mesmo mundo:

O que é medido ou avaliado pela organização transcendental de um mundo é, de fato, o grau de intensidade da diferença de aparição, nesse mundo, de dois entes, e não uma intensidade de aparição considerada ‘em si’6 6 No original: “lo que es medido o evaluado por la organización transcendental de um mundo es, de hecho, el grado de intensidade de la diferencia de aparición, en esse mundo, de dos entes, y no uma intensidade de aparición considerada ‘en si’”. . (p. 145, tradução nossa)

Com ele não se recorre a qualquer ente “em si”, incluindo, nesta categoria, algum ente Supremo, causa sui que, em Heidegger (1996Heidegger, M. (1996b). Sobre a essência do fundamento. In Conferências e escritos filosóficos (Os Pensadores, pp. 109-148). São Paulo, SP: Nova Cultural .), seria Deus e o princípio de toda ontoteologia. Badiou (2013Badiou, A. (2013, 16 janvier). L’immanence des vérités. Séminaire d’Alain Badiou (2012-2013). Recuperado de http://bit.ly/2kzQ6JP
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) demonstra, no seminário “A imanência das verdades”, que pensar com o “transcendental” é uma estratégia que não precisa incluir um transcendente separado, o qual ele identifica a Deus:

Do ponto de vista da estratégia conceitual, trata-se para nós de mostrar que podem existir verdades universais sem termos de recorrer a uma transcendência separada; é isso o que significa “a imanência de verdades”. Queremos preservar o acesso de um pensamento à universalidade sem, para tanto, ter de convocar um outro mundo, o que equivale a resgatar a categoria mesma de absoluto, de sua longa cumplicidade com a teologia... A transcendência separada aqui visada é aquela da existência de Deus7 7 No original: “Du point de vue de la stratégie conceptuelle, il s’agit pour nous de montrer qu’il peut exister des vérités universelles sans avoir recours à unetranscendance séparée; c’est cela que signifie « l’immanence des vérités ». Nous voulons préserver l’accès de la pensée à l’universalité sans pour autant avoir à convoquer un autre monde, ce qui revient à délivrer la catégorie même d’absolu de sa longue complicité avec la théologie... La transcendance séparée ici visée, c’est celle de l’existence de Dieu”. . (tradução nossa)

Um múltiplo pensado assim é um, que não é o Um teológico. É um sinônimo de átomo de aparecer que é real: “O Um - o átomo - é o ponto de estofo - point de capiton - do aparecer no ser. Trata-se de um postulado... que se enuncia muito simplesmente: todo átomo de aparecer é real”8 8 No original: “lo Uno - el átomo - es el punto de almohadillado - point de capiton - del aparecer en el ser. Se trata de un postulado . . . que si enuncia muy simplesmente: todo átomo de aparecer es real”. (Badiou, 2008aBadiou, A. (2008a) Lógicas de los mundos. El ser y el acontecimiento 2. Buenos Aires, Argentina: Manantial., p. 247, tradução nossa). Preferiríamos, talvez, escrever “lo Uno” sem o primeiro caractere de “Uno” maiúsculo, o qual, por sua própria imagem, poderia remeter o leitor a algo de absoluto, de grandioso e, afinal, de teológico.

Assim, vemos que em Badiou - neste aspecto em consonância com Heidegger -, o acesso do pensamento a uma universalidade está desvinculado de Deus ou da identificação do ser a Deus. Um universal, ou um pensamento sobre um universo, não precisa recorrer a Deus, seja diretamente, seja pela escamoteada identificação deste a qualquer outro elemento ao qual se dê a suposta onipresença, onisciência e onipotência usualmente a ele conferida (é o que se poderia fazer - e muitas vezes se faz - com a Ciência, por exemplo). Teríamos, para esses filósofos, de nos haver com os elementos de nosso mundo sem recorrer a um Todo transcendente que viesse salvar ou que funcionasse como garante de qualquer projeto humano.

Reinterpretando o paradoxo do filósofo e matemático Bertrand Russel, transmitido a Frege em 1902, concernente à impossibilidade da existência do conjunto de todos os conjuntos9 9 “Suponhamos que existe {x:x??x}, isto é, existe o conjunto de todos os conjuntos que não são elemento de si próprios. Seja S tal conjunto. Ou bem que S??S ou S??S. Ora vejamos que em ambos os casos incorremos numa contradição. Se S??S , pela forma como S está definido (qualquer seu elemento verifica a propriedade de não ser elemento dele próprio) concluímos que S??S, o que é absurdo. Se S??S, novamente pela definição de S, então S não verifica a propriedade de não ser elemento de si próprio, ou seja, S é elemento de si próprio, i.e. S??S . Absurdo” (Ferreira, 1998). , e ampliando o alcance do que nele relaciona “O Todo” e a inconsistência de “O Universo”, Badiou (2008aBadiou, A. (2008a) Lógicas de los mundos. El ser y el acontecimiento 2. Buenos Aires, Argentina: Manantial.) escreve: “não é verdade que a um conceito bem definido lhe corresponda necessariamente o conjunto dos objetos que caem sob esse conceito”10 10 No original: “no es verdade que a un concepto bien definido le corresponda necessariamente el conjunto de los objetos que caen bajo esse concepto”. (p. 177, tradução nossa). De forma similar, no tocante ao tema de nossa pesquisa sobre a cientificidade da psicanálise e como sua premissa necessária- já que, a princípio, temos de resolver o problema de o que são as ciências -, proporíamos não ser verdade que sob o conceito hoje hegemônico de “A Ciência” corresponda necessariamente tudo o que poderíamos considerar como sendo ciência. Esse conceito, baseado na epistemologia anglo-saxã e criado pelos que a praticam conforme os métodos hipotético-dedutivos e lógico-experimentais, não contempla outras ciências que se fazem de modo diferente, seja por desconhecê-las, seja por ignorar seus fundamentos ou, simplesmente, por preferir desconsiderá-las. Cabe a essas ciências, assim como estamos tentando fazer quanto à psicanálise, demonstrarem sua cientificidade e, assim, proporem uma modificação do conceito hegemônico.

Badiou (1972Badiou, A. (1972). Sobre o conceito de modelo. Lisboa, Portugal: Estampa.), em sua primeira obra filosófica datada de 1969, O conceito de modelo, já escrevia de modo a evitar um conceito de ciência que fosse ontoteológico, no sentido de se pretender universalizador para todas as ciências: “Mostramos que falar de ciência era um sintoma de ideologia. Verdadeiramente falar de ideologia no singular o é também. Ciência e ideologia são plurais” (p. 13). É este pluralismo das ciências que também defendemos. Contudo, evitando o relativismo.

O pluralismo de Badiou (1972Badiou, A. (1972). Sobre o conceito de modelo. Lisboa, Portugal: Estampa.) não é nem um relativismo - que talvez resultasse numa posição cética -, nem uma referência a elementos vagos - que talvez refletisse ou conduzisse a uma posição metafísica no sentido denunciado pela filosofia de Heidegger (1996Heidegger, M. (1996b). Sobre a essência do fundamento. In Conferências e escritos filosóficos (Os Pensadores, pp. 109-148). São Paulo, SP: Nova Cultural .). Pois em sua filosofia, cada elemento tomado em consideração sobre qualquer mundo - por exemplo, uma música que nos cause uma experiência de encontro com a arte, ou uma investigação científica qualquer - tem de ser compreendido e/ou referido ao que lhe é próprio enquanto múltiplo e ao que nele há de relacional, posto que faz parte de conjuntos. “Relacional”, não “relativista”.

Por uma afirmação da cientificidade da psicanálise

Se o universo particular das ciências modernas hipotético-dedutivas e lógico-experimentais, hoje predominante, toma como referência as predicações que aquelas ciências definem para estabelecer a universalidade do campo científico, poderíamos propor, em consonância agora com a psicanálise, uma concepção de ciência cujo “para todos” apresenta-se em exceção às classificações e hierarquizações sábias que todo e qualquer campo científico cria, individualmente, para se organizar.

Pensamos em uma concepção de ciência que não se proporia como o Um transcendente de todas elas, mas uma concepção em que as ciências só se universalizariam em um hipotético futuro do pretérito, após a comprovação, passo a passo, daquilo que nos infindáveis campos em que cada uma delas localmente se operacionaliza as teria lançado, singularmente, a um “para todos”. Uma concepção de ciência que, em vez de partir do universal para o particular, faz o caminho inverso, projetando-se do local em direção ao universal - o que implica se operacionalizar como um saber opaco no que se refere à própria capacidade de se apreender como tal. Cada uma das ciências teria assim, como meta, um saber sobre si mesma a ser construído, elucidado, e que se apresentaria não como uma predicação totalizante (transcendente), mas como o inapreensível elemento genérico (imanente) que definiria aquele território.

Com a psicanálise estamos no campo do “objeto a” e do sinthoma, signos do que em cada um indica seu modo próprio e inconsciente de gozar e de desejar. Isto que, aos olhos da psicanálise, é o que faz cada falasser radicalmente diferente, é algo que pode se produzir através de um procedimento de verdade científico (psicanalítico), cuja concepção de universo não é pautada pelo Todo unificado sobre o qual se apoiam as ciências naturais. Estas buscam congregar todos os homens para além de sua animalidade de nascer, crescer, reproduzir-se e morrer num Único princípio identitário dos modos de idear e sentir. Citando, mais que parafraseando França Neto (2009França Neto, O. (2009, dezembro). Por uma nova concepção de universal. Revista Latino-americana de psicopatologia fundamental, 12(4), 650-661. Recuperado de https://bit.ly/2m3XGgd
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), diremos que para a psicanálise o universal não está na identidade, mas naquilo que, em diagonal, provoca uma brecha e subverte seu enclausuramento, desfazendo assim a totalização da situação e fazendo circular o desejo.

Na psicanálise não se trata de tomar alguém como comparável a outros em qualquer dimensão - o que, se fosse levado a sério (em série), o faria, por um lado, perder-se ainda mais nos jogos do imaginário e de suas representações, e, por outro, o faria perder-se no culto de sua individualidade e na defesa intransigente de suas próprias particularidades. Nada disso. A psicanálise é uma ciência que trata de colocar o sujeito em posição de descobrir a que ele tem permanecido fiel sem o perceber, e que, provavelmente, não tem sido algo tranquilo, nem para ele nem para os que estão à sua volta. A amplitude das consequências políticas dessa descoberta, no que se refere à polis, será, como sempre foi, de inteira responsabilidade das escolhas de cada sujeito.

Se, como temos proposto, a psicanálise é uma ciência do singular, é bom que expliquemos. Singular aqui é entendido como o instante de uma análise em que surge para o par analista-analisando o sinthoma do segundo - o modo único que ele tem (e cada um tem) de tensionar em seu corpo, em seu aparelho psíquico, a verdade sobre seu gozo e seu desejo. Singular é essa passagem para a condição de existente disso que não existia para o estado da consciência, e que, com relação a ela, preserva-se opaco ao seu saber, constituindo um sujeito como fidelidade a esse traço, nomeado por sinthoma, e que lá está para ser explorado. Não estava ali, mas já estava “lá”, num vazio inconsciente que deixava aparecer apenas os nomes vários do sofrimento (angústia, melancolia, fobias, delírios, anorexia, automutilações etc.).

Do outro lado, o da universalidade, diremos que a psicanálise obedece a uma lógica subtrativa em relação ao saber estabelecido, e não construtivista ou transcendente, como ocorre nas ciências hipotético-dedutivas e lógico-experimentais, nas quais constrói-se, tijolo por tijolo, um conhecimento “sólido” e generalizável de um saber que já existia de antemão, faltando apenas ser descoberto. O universal da psicanálise é, por um lado, o que faz furo no saber que o analisando tem sobre si, e, por outro lado, o que faz furo no saber que as ciências transcendente-metafísicas e/ou construtivistas fazem sobre a natureza quando tomam o homem como um objeto natural. Discutindo uma nova metodologia para a psicanálise e refletindo sobre o debate de Badiou e Milner referente a ciência e universalidade, França Neto (2015França Neto, O. (2015). Uma metodologia para a psicanálise. Psicologia clínica, 27(1), 195-211. Recuperado de http://bit.ly/2lLJg3X
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) observa que “se fôssemos aventar uma cientificidade à psicanálise, deveríamos pensar em uma universalidade que, ao invés de se referenciar em um ‘para todos’ que se apresenta como exterior à caverna, se apresentaria como furo no campo do universal todificado” (p. 207).

Ao menos na ciência iniciada por Freud, declarar um universal - o que, como vimos, significa declarar um pensamento sobre um universo - é diferente de declarar que ele é universalizável, se entendermos como “universalizável” o estabelecimento de uma singularidade identitária. Como observa Badiou (2009Badiou, A. (2009). São Paulo: a fundação do universalismo. São Paulo, SP: Boitempo.) ao escrever sobre o apóstolo Paulo, se podemos dizer que toda singularidade, enquanto forma da verdade se apresentar, é imediatamente universalizável, ela, no entanto, se caracteriza por romper com a singularidade identitária: “um processo de verdade não pode mais se ancorar no identitário. Pois se é certo que toda verdade surge como singular, sua singularidade é imediatamente universalizável. A singularidade universalizável necessariamente entra em ruptura com a singularidade identitária” (p. 18). Declarar um universal é diferente de generalizar, de situar um “mundo” na dialética entre o geral e o particular; esse procedimento, recusado pelo filósofo, é como concebe o positivista: “pensar é colocar em questão a dialética entre o local (sujeito) e o global (procedimento), e não entre o geral e o particular como no positivismo de Hegel” (Badiou, 2008bBadiou, A. (2008b). Oito teses sobre o universal. Ethica, 15(2), 41-50. Recuperado de https://bit.ly/2kw1zKp
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, p. 41). Para Badiou a questão está antes, entre o local e o global, ou entre um sujeito e um procedimento de verdade.

Pensando rigorosamente, podemos aventar que declarar a universalidade de uma teoria científica no sentido de uma generalização não serve “totalmente” sequer para o que se conclui sobre os entes não-humanos pesquisados. A própria física reconhece que suas “leis” sobre a natureza têm um alcance de universalização/generalização limitado, quando, por exemplo, na cosmologia, ela define precisamente a singularidade como uma “região do espaço-tempo onde as leis da física atualmente conhecidas entram em colapso” (Mourão, 1987Mourão, R. F. (1987). Dicionário Enciclopédico de Astronomia e Astronáutica. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira., p. 738).

Não deve ser por mera coincidência que os astrofísicos busquem nas figuras topológicas, tais como a banda de Möebius, modelos explicativos para os problemas que envolvem o espaço-tempo. Assim como Lacan (1960-1961/1992Lacan, J. (1960-1961/1992). No começo era o amor. In O Seminário, livro 8: a transferência (pp. 11-24). Rio de Janeiro, RJ: Zahar .) o fez com o inconsciente11 11 No Seminário 8, Lacan (1960-1961/1992) convoca uma “justa topologia” para tratar da transferência. É a topologia que servirá de base para a fundação de uma ética do desejo, uma “ética racional” (p. 102). . A boa problematização deve passar, ainda, pelas matemáticas. Mas as respostas, no que tange ao humano, serão construídas por cada um, num processo seu, verdadeiramente inédito, digamos, com Badiou (1996Badiou, A. (1996). O Ser e o evento. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.), eventural.

Referências

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  • Associação Mundial de Psicanálise. (1996). A interpretação não está aberta a todos os sentidos. In Harari, A. Os poderes da palavra (pp. 349-352). Rio de Janeiro,RJ: Zahar.
  • Badiou, A. (1972). Sobre o conceito de modelo. Lisboa, Portugal: Estampa.
  • Badiou, A. (1991). Manifesto pela filosofia. Rio de Janeiro, RJ: Aoutra.
  • Badiou, A. (1994). Para uma teoria do sujeito: conferências brasileiras. Rio de Janeiro, RJ: Relume-Dumará.
  • Badiou, A. (1996). O Ser e o evento. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.
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  • 1
    Dizemos “aparelho de linguagem” porque consideramos com Garcia-Roza (2001Garcia-Roza, L. A. (2001). Introdução à metapsicologia freudiana (Vol. 1). Rio de Janeiro, RJ: Zahar .) que desde seu início, Freud propunha que os neurônios aonde se dão as percepções conscientes, dão lugar a uma inscrição - os signos de percepção - inacessível à consciência e que constitui com tais signos, o próprio aparelho psíquico: “O importante é que a partir de então, o que vai se oferecer como conteúdo do aparelho psíquico são signos (Zeichen), signos que serão inscritos (Niederschriften) e retranscritos (Umschriften), portanto, algo cuja proximidade com a escrita é indicada pelo próprio Freud na escolha dos termos empregados” (p. 204).
  • 2
    Kyrillos Neto & Moreira (2010Kyrillos Neto, F., & Moreira, J. O. M. (Orgs.). (2010). Pesquisa em Psicanálise: transmissão na Universidade. Barbacena, MG: Editora UEMG.) nos lembram como a não aceitação da psicanálise pela comunidade científica universitária decepcionou Freud, o que, segundo Poli (2008Poli, M. C. (2008). Escrevendo a psicanálise em uma prática de pesquisa. Estilos da Clínica, 13(25), 154-179. Recuperado de http://bit.ly/2m0CfMT
    http://bit.ly/2m0CfMT...
    ), o fez criar a Associação Psicanalítica Internacional (IPA, sigla no inglês). O próprio Freud (1925/2011Badiou, A. (2013, 16 janvier). L’immanence des vérités. Séminaire d’Alain Badiou (2012-2013). Recuperado de http://bit.ly/2kzQ6JP
    http://bit.ly/2kzQ6JP...
    ) escreve em sua autobiografia: “Não poucas vezes escutei a desdenhosa afirmação de que não se pode levar a sério uma ciência cujos principais conceitos são tão imprecisos como os da libido e do instinto na psicanálise” (p. 122).
  • 3
    Ele a defendeu como ciência em toda a sua obra. Por exemplo, ao escrever um verbete sobre sua criação para a Enciclopédia Britânica, Freud (1926/1980Freud, S. (1980). Psicanálise (1926). In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XX, pp. 296-309). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho originalmente publicado em 1926)) a nomeia como “ciência dos processos mentais inconscientes” (p. 302).
  • 4
    “Para que uma interpretação seja justa, ela tem de ser específica, pois não se trata de fazer surgir qualquer significante, mas sim o significante recalcado” (Associação Mundial de Psicanálise, 1996Associação Mundial de Psicanálise. (1996). A interpretação não está aberta a todos os sentidos. In Harari, A. Os poderes da palavra (pp. 349-352). Rio de Janeiro,RJ: Zahar., p. 351).
  • 5
    “Aqui, a categoria central é a multiplicidade genérica. Ela vem fundar o platonismo do múltiplo, permitindo pensar uma verdade ao mesmo tempo como resultado múltiplo de um procedimento singular, e como furo, ou subtração, no campo do nomeável” (Badiou, 1991Badiou, A. (1991). Manifesto pela filosofia. Rio de Janeiro, RJ: Aoutra., p. 64).
  • 6
    No original: “lo que es medido o evaluado por la organización transcendental de um mundo es, de hecho, el grado de intensidade de la diferencia de aparición, en esse mundo, de dos entes, y no uma intensidade de aparición considerada ‘en si’”.
  • 7
    No original: “Du point de vue de la stratégie conceptuelle, il s’agit pour nous de montrer qu’il peut exister des vérités universelles sans avoir recours à unetranscendance séparée; c’est cela que signifie « l’immanence des vérités ». Nous voulons préserver l’accès de la pensée à l’universalité sans pour autant avoir à convoquer un autre monde, ce qui revient à délivrer la catégorie même d’absolu de sa longue complicité avec la théologie... La transcendance séparée ici visée, c’est celle de l’existence de Dieu”.
  • 8
    No original: “lo Uno - el átomo - es el punto de almohadillado - point de capiton - del aparecer en el ser. Se trata de un postulado . . . que si enuncia muy simplesmente: todo átomo de aparecer es real”.
  • 9
    “Suponhamos que existe {x:x??x}, isto é, existe o conjunto de todos os conjuntos que não são elemento de si próprios. Seja S tal conjunto. Ou bem que S??S ou S??S. Ora vejamos que em ambos os casos incorremos numa contradição. Se S??S , pela forma como S está definido (qualquer seu elemento verifica a propriedade de não ser elemento dele próprio) concluímos que S??S, o que é absurdo. Se S??S, novamente pela definição de S, então S não verifica a propriedade de não ser elemento de si próprio, ou seja, S é elemento de si próprio, i.e. S??S . Absurdo” (Ferreira, 1998Ferreira, F. (1998, abril). Teoria dos conjuntos: uma vista. Boletim da SPM, 38, 29-47. Recuperado de http://bit.ly/2m0CJTd
    http://bit.ly/2m0CJTd...
    ).
  • 10
    No original: “no es verdade que a un concepto bien definido le corresponda necessariamente el conjunto de los objetos que caen bajo esse concepto”.
  • 11
    No Seminário 8, Lacan (1960-1961/1992Lacan, J. (1960-1961/1992). No começo era o amor. In O Seminário, livro 8: a transferência (pp. 11-24). Rio de Janeiro, RJ: Zahar .) convoca uma “justa topologia” para tratar da transferência. É a topologia que servirá de base para a fundação de uma ética do desejo, uma “ética racional” (p. 102).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Out 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    05 Abr 2018
  • Aceito
    10 Ago 2019
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