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A negatividade: problemática geral

La négativité: problématique générale

The negative: an overview

Resumos

O artigo discute a categoria do Negativo no âmbito da Psicanálise, apresentando suas principais conotações e as modalidades em que se manifesta, considerando-a fundamental no princípio do trabalho da psique. Ao distinguir suas três formas principais, procura analisar a relação entre certas formas do Negativo e certas configurações do vínculo intersubjetivo. Atribui um lugar de importância às Alianças Inconscientes adquiridas na base do Negativo e a certos efeitos dessas alianças sobre a capacidade de pensar.

Negatividade; Sujeito psíquico; Grupo e instituição


Cet article a pour objectif le débat sur le Négatif en Psychanalyse.Il relève ses principales connotations et ses manifestations qui sont au principe du travail de la psyché.En distinguant trois principales formes du Négatif, cet article analyse des rapports entre certaines formes du Négatif et certaines configurations du lien intersubjectif.Il attribue une place assez importante aux Alliances Inconscientes contractées sur la base du Négatif et à certains effets de ces alliances sur la capacité de penser.

Négativité; Sujet psychique; Groupe et Institution


This paper addresses the category of Negative in the field of Psychoanalysis, presenting its main conceptions and the modalities in which it expresses itself. The Negative is viewed as fundamental to the principle of psychic work. By distinguishing its three main forms, the paper attempts to analyze the relation between certain forms of the Negative and certain configurations of the intersubjective bond. It also confers a privileged place to the Unconscious Alliances - which are acquired in the basis of the Negative, and to certain effects of these alliances on the capacity of thinking.

Negative; Psychic subject; Group and Institution


A negatividade: problemática geral

The negative: an overview

La négativité : problématique générale

René Kaës1 1 Endereço para correspondência: Université Lumière - Lyon II - France.

Université Lumière - Lyon II France

RESUMO

O artigo discute a categoria do Negativo no âmbito da Psicanálise, apresentando suas principais conotações e as modalidades em que se manifesta, considerando-a fundamental no princípio do trabalho da psique. Ao distinguir suas três formas principais, procura analisar a relação entre certas formas do Negativo e certas configurações do vínculo intersubjetivo. Atribui um lugar de importância às Alianças Inconscientes adquiridas na base do Negativo e a certos efeitos dessas alianças sobre a capacidade de pensar.

Descritores: Negatividade. Sujeito psíquico. Grupo e instituição.

ABSTRACT

This paper addresses the category of Negative in the field of Psychoanalysis, presenting its main conceptions and the modalities in which it expresses itself. The Negative is viewed as fundamental to the principle of psychic work. By distinguishing its three main forms, the paper attempts to analyze the relation between certain forms of the Negative and certain configurations of the intersubjective bond. It also confers a privileged place to the Unconscious Alliances - which are acquired in the basis of the Negative, and to certain effects of these alliances on the capacity of thinking.

Index terms: Negative. Psychic subject. Group and Institution.

RÉSUMÉ

Cet article a pour objectif le débat sur le Négatif en Psychanalyse.Il relève ses principales connotations et ses manifestations qui sont au principe du travail de la psyché.En distinguant trois principales formes du Négatif, cet article analyse des rapports entre certaines formes du Négatif et certaines configurations du lien intersubjectif.Il attribue une place assez importante aux Alliances Inconscientes contractées sur la base du Négatif et à certains effets de ces alliances sur la capacité de penser.

Mots-clés: Négativité. Sujet psychique. Groupe et Institution.

A reflexão sobre o Negativo aparece bem cedo na pesquisa de Freud. Ele aí percebe sentidos bastante diversos: o de uma inversão dos contrastes, segundo a metáfora fotográfica, como, por exemplo, quando Freud opõe a neurose à perversão. Ele qualifica também uma forma de alucinação, uma qualidade agressiva da transferência e certas reações de rejeição do processo terapêutico. Se na linguagem comum o termo tem um valor geralmente pejorativo - sempre no mau sentido - ele adquire em Freud uma consistência psíquica desprovida de julgamento de valor.

A reflexão sobre o Negativo como categoria substantiva surgiu recentemente. J. Guillaumin acentua três principais conotações: a ausência de representação ou de representabilidade; um destino nocivo do funcionamento psíquico; e, por trás de todas essas conotações, a experiência da ausência e da falha (défaut). Sobre essa negatividade se apóia a positividade que estrutura a vida psíquica.

Nesse artigo de introdução, proponho dois objetivos. Eu gostaria de acrescentar alguns detalhes no debate sobre o Negativo distinguindo suas três formas principais. Minhas proposições serão ilustradas através de exemplos clínicos. Esses detalhes conceituais me pareceram úteis para a análise das relações entre certas formas do Negativo e certas configurações do vínculo intersubjetivo. Eu fui levado a atribuir nesta análise um lugar muito importante às alianças inconscientes adquiridas na base do Negativo e em certos efeitos dessas alianças sobre a capacidade de pensar.

As três modalidades do Negativo

As três modalidades do Negativo estão no princípio do trabalho da psique: uma negatividade de obrigação, que corresponde à necessidade da psique de produzir o Negativo a fim de efetuar seu trabalho de ligação; uma negatividade relativa, que situa o Negativo em relação a um possível; uma negatividade radical, que coincide com a categoria do impossível, em outras palavras, daquilo que não é ou não está (n'est pas) no espaço psíquico.

A negatividade de obrigação

Por negatividade de obrigação, eu compreendo aquilo que acentua a necessidade, para o aparelho psíquico, de efetuar as operações de rejeição (rejet), negação (négation), recusa (déni), desmentido/retratação (désaveu), renúncia (renoncement) e apagamento/supressão (effacement), a fim de preservar um interesse maior da organização psíquica, do próprio sujeito ou dos sujeitos aos quais ele está ligado em um conjunto por um interesse maior.

Gostaria de esclarecer essa proposição através de um exemplo cuja apresentação nos engaja em uma reflexão sobre o estatuto do Negativo na fundação de uma instituição, a instituição da psicanálise. Trata-se da negatividade de obrigação na manutenção do vínculo entre Freud e Fliess no momento da operação das fossasnasais de Emma Eckstein.

O pacto denegativo entre Freud e Fliess a propósito de Emma Eckstein

Os trabalhos desses últimos anos nos fizeram conhecer melhor a força de desconhecimento que autentica o pacto denegativo firmado por Freud e Fliess, sem que eles soubessem, a respeito de Emma Eckstein.

Resumindo os fatos: Freud mantém em análise uma paciente, Emma Eckstein (provavelmente a mesma Irma do sonho da injeção feita à Irma), mas ele divide com seu amigo, Fliess, o interesse pela histeria dessa paciente e pela teoria da bissexualidade. Eles debatem muito sobre isso em seus "congressos", até que Emma se torna a paciente de ambos. No decorrer de um de seus encontros, o fato de que Emma deve operar as fossas nasais lhes é imposto, pois, segundo a teoria de Fliess, essas fossas nasais seriam o assento orgânico de sua neurose. O nariz, órgão proeminente e com cavidades, é o representante orgânico perfeito da bissexualidade. Freud persuade Emma sobre o interesse da operação, que é realizada em Berlim por Fliess na presença de Freud. Entretanto, durante a operação, Fliess "esquecerá" algumas dezenas de centímetros de gaze nas fossas nasais de sua paciente. Obviamente o nariz de Emma incha e supura. Freud avisa seu amigo, que se recusa a reconhecer seu erro cirúrgico. Essa recusa vai colocar Freud em uma situação delicada, a de ter que avalizar a vontade de Fliess, de não reconhecer seu erro, caso quisesse conservar sua amizade.

Para conservar esse vínculo, Freud deverá fazer uma "operação" psíquica muito grave sobre seu próprio pensamento: sacrificar o que ele recentemente havia conseguido ligar, a articulação entre o traumatismo e o fantasia, precisamente o que ele acabara de escrever a Fliess. Freud desculpa Fliess ("Pelo sangue, você não é absolutamente culpado") e para lhe desculpar faz com que a histeria de Emma seja a responsável pelo sangue que ela verteu. Temos, nesse caso, todos os elementos que levam a firmar um pacto, aquilo que chamei de um pacto denegativo.

Não há dúvidas que para esses dois homens, Emma é a figura do feminino que eles querem explorar, do furo/buraco (trou) que eles querem tapar e reduzir dando-lhe um conteúdo de gaze e de sangue. Seu pacto é, ao mesmo tempo, a denegação de seu desejo, a recusa (déni) de seu vínculo homossexual fundado sobre o apagamento/supressão (effacement) do furo/buraco (trou) da feminilidade mas , também, para Freud, a recusa em admitir sua própria descoberta da fantasia de sedução. Nós podemos imaginar contra o quê um pacto assim protege e preserva. A representação insustentável, se ele atribui a causa do problema à histeria de Emma, é menos para lhe impor a responsabilidade do que para salvar o que deve ser recalcado de seu vínculo com Fliess e de seu próprio pensamento.

Examinemos agora algumas conseqüências desse pacto para cada um dos protagonistas. Emma é a aposta (l’ enjeu) e o objeto sacrificado desse pacto. Em Freud, o recalcado retorna no sonho da injeção feita à Irma , sonho que inaugura sua obra sobre a Interpretação dos Sonhos e abre o acesso ao Inconsciente através do sonho. Quanto a Fliess, ele sustentará a querela com Freud e o acusará de roubo de suas idéias ao ponto em que o resultado de toda essa história levará ao rompimento do vínculo entre eles.

Esse pacto denegativo tem também uma conseqüência para a fundação da psicanálise. Instituir a psicanálise é colocar no centro do seu debate a primeira mentira, o próton pseudos, que se refere ao desejo insustentável. É também colocar a questão da posição do sujeito em sua relação com aquilo que o representa: para Freud, tratar-se-á tanto de Fliess quanto de Emma. Fundar a psicanálise será para Freud retirar-se da recusa (déni) comum que exige a manutenção de seu vínculo homossexual com Fliess. É primeiramente denunciá-la. Sair da psique partilhada para advir a individuação criadora exige a ruptura do pacto denegativo cujo objeto é o que representam o corpo e o sangue de Emma, entre Freud e Fliess.

A negatividade relativa

A negatividade relativa se constitui sobre a base daquilo que permaneceu em sofrimento na constituição de continentes e conteúdos psíquicos. Ela sustenta um campo do possível. Na negatividade relativa, a positividade se manifesta como perspectiva organizadora de um projeto ou de uma origem: alguma coisa foi e não é mais; ou não foi e poderia ser; ou ainda, aquilo que tendo sido não o foi suficientemente, por excesso ou por falta (défaut), mas poderia ser de outro modo. A negatividade relativa sustenta o espaço potencial da realidade psíquica. Tomemos aqui uma ilustração clínica.

No início dos anos setenta, Madeleine, então com 16 anos de idade, foi-me apresentada em consulta, por seu pai, em razão de dificuldades escolares e das relações perturbadas que Madeleine mantinha com seus próximos já há alguns anos. Segundo o relato de seu pai, os problemas de Madeleine estão ligados à pré-história e à sua história difícil.

Madeleine é concebida depois da morte súbita em tenra idade do primeiro filho do casal, um garoto. Menos de um ano mais tarde ela nasce, prematuramente, aos sete meses de gestação, em condições particularmente difíceis para ela e para sua mãe que acabara de perder seu pai. A criança ficará bastante tempo na clínica para ser tratada de seus problemas respiratórios. Ela foi um bebê inteligente, seu pai tem prazer em destacar, mas sempre doentia, muito pouco sociável e muito freqüentemente em conflito com aqueles que a alimentavam e a faziam dormir. De fato, diferentes pessoas dispensavam seus cuidados com Madeleine, porque a família se mudava freqüentemente e, sobretudo, porque pouco depois do nascimento de um segundo menino, quando Madeleine tinha quatro anos, seus pais se separaram.

O pai tinha a guarda de sua filha, suas relações eram muito boas, mas Madeleine sofria com a separação de seu irmão e com as relações sempre muito difíceis com sua mãe. O pai destaca discretamente que Madeleine se sente freqüentemente perseguida pelas outras crianças e que ela tem uma tendência a desconfiar de todas as novas relações. Madeleine confirma o que seu pai diz e se mostra bastante passiva e fechada durante a entrevista. Antes de começar as sessões, eu me proponho a recebê-la individualmente para singularizar o que ela poderia pedir por sua própria conta.

Ela aceita. No início pouco cooperativa, Madeleine me dirá que sempre se sentiu abandonada por sua mãe, "desde a noite dos tempos" ("depuis la nuit des temps"), desde a origem. Ela está convencida de que não foi verdadeiramente desejada e que o irmão morto foi o irmão substituto no amor de sua mãe, e que ela jamais pôde amenizar para seu pai a morte desse irmão.

O irmão mais novo do qual foi separada é para ela o objeto de uma nostalgia inconsolável. Ela fala, aos poucos, de sua doença atual, que já se inscreve em uma longa história de fases depressivas e problemas de alimentação caracterizados pela alternância de episódios bulímicos e anoréxicos notadamente há alguns anos, quando entrou na puberdade.

Ela acha que a escola não é o problema de verdade, nem o breve episódio de contato com o haxixe que inquietou seu pai. O que mais a preocupa é seu funcionamento íntimo; ela reclama de não ter mais sonhos, apenas pesadelos: ela se sente freqüentemente perseguida e tem muito medo de todo encontro que possa liberar sentimentos amorosos ou simplesmente ternos, parecendo a ela que poderia se pulverizar.

Ela me diz que às vezes sua menstruação atrasa: ela não sabe se isso a alegra ou a agoniza, tudo é bastante confuso. A sexualidade lhe dá muito medo, o contato dos corpos, o contato da carne. O surgimento da genitalidade foi para ela uma verdadeira catástrofe e banaliza o inquietante estranhamento que nunca deixou de habitar seu corpo.

Um dia, chega atrasada à sessão: no início está silenciosa, depois me diz que experimenta uma sensação física desagradável que conhece bem: tem frio "de dentro" ("du dedans"). Ela me pede de modo bastante imperativo que lhe dê uma coberta que está dobrada sobre uma cadeira ao lado do divã: eu aceito, pareceu-me importante dar-lhe a coberta acentuando a urgência que ela parecia ter em obter satisfação e lhe proponho que falasse desse seu frio de dentro. Ela fica reticente, depois me diz que no dia anterior tinha ido a um hospital fazer uma visita a um parente que acabara de ser acamado; ao passar num corredor ela viu os bebês através do vidro (ela diria "glace"2 2 No original lemos : "(...)une vitre (une glace, dira-t-elle)". Em francês o termo "glace" pode ser traduzido, dependendo do contexto, como: "janela" ou "gelo" ou "sorvete" ou ainda "espelho". (N. do T.) ) em uma sala que se parecia com algum tipo de fábrica fria e hostil. Alguns bebês estavam em um tipo de bolha feita com plástico transparente (plexiglas): os pobres prematuros, ela teria pensado e, nesse momento, sentiu esse grande frio de dentro, sem sentir nenhuma outra emoção. Ela fica, então, um longo tempo em silêncio.

Eu a deixo nesse estado por algum tempo, depois eu a faço perceber que ela chegou atrasada à sua sessão, como acontece muito freqüentemente, e que hoje me fala de sua chegada prematura ao mundo e de seu frio interno quando ela viu os prematuros. Ela retoma o curso de suas associações: o domínio do tempo é para ela um problema capital. Ela adora se fazer desejada, mas não suporta o mínimo atraso da parte dos outros: "devemos responder imediatamente".3 3 No original: " répondre sur le champ". Expressão francesa cuja tradução literal seria: "responder no terreno/campo" (N. do T.) Sim, eu pontuei, foi necessário que, sem demora, eu lhe desse uma coberta para lhe aquecer do lado de fora; seria assim que ela representaria a si mesma, a doença dos bebês prematuros, a urgência de sua necessidade? Madeleine é invadida pela emoção que subitamente a tinha deixado na maternidade.

Na sessão seguinte, ela me traz alguma coisa importante: o relato de uma utopia que ela imaginou quando tinha cerca de doze anos, há quatro anos. O relato que ela fará dessa utopia será repartido em várias sessões e se constituirá em um potente motor de sua psicoterapia. Esse relato retomará uma atividade onírica e fornecerá um dos fios condutores das transferências. Eu relato essa construção me colocando sob o ponto de vista no qual pôde funcionar para ela, na situação da terapia.

Madeleine dava o nome de "hosto-île" ao seu projeto de hospital modelo. Esse nome foi forjado por Madeleine como um jogo de palavras. Ele condensa hospital (na gíria "hosto", em francês) e ilha (île). Mas é possível ouvir também como "hostile" (hostil). Ela imaginou primeiramente um barco, um barco-hospital como o que o avô materno conheceu, um médico militar que morreu na época do nascimento de Madeleine; mas ela abandona essa idéia para instalar o hospital sobre a terra firme de uma pequena ilha, totalmente isolada.

Em razão da higiene e desinfecção, para proteger os habitantes de terra firme, ela prescreveu um tipo de quarentena permanente para evitar o contágio. A quarentena é provavelmente aquilo a que o avô fôra submetido no barco-hospital, através dos relatos que ela ouviu. Mas se trata, também, do isolamento dos afetos contagiosos, assim como da ruptura do cordão pelo qual poderia passar alguma coisa que se transmitisse.

Ela descreve com precisão o espaço do "hosto-île". Os doentes chegariam pelo sub-solo do hospital e, aos poucos, na medida em que seu estado de saúde melhorasse, subiriam os sete andares, isto é, em direção aos sete patamares da vida normal e se encaminhariam para uma saída que se situaria no piso superior. A partir desse ponto, os helicópteros os levariam de volta ao continente.

Não deveria existir nenhum contato entre os andares para evitar o contágio mas, também e sobretudo, para evitar a regressão. Toda a utopia do "hosto-île" é construída segundo um percurso linear e progressivo: a regressão é aquilo contra o qual o sistema utópico luta. Pode-se apenas avançar, deve-se esquecer ou abolir o passado.

Os visitantes, que passam por um raio-x e são selecionados com grande cuidado, seriam desinfetados e as visitas seriam estritamente limitadas. A esterilização dos instrumentos e dos enfermeiros seria feita várias vezes por dia: ela me diz isso num fôlego só. Mas voltará, a propósito, a seu medo ambíguo de não menstruar: não menstruar é, ao mesmo tempo, preparar o futuro (ter filhos) e despertar o passado doloroso da perda de sua mãe.

Madeleine fará uma descrição minuciosa da arquitetura e do material, freqüentemente frio e sempre desinfetado, principalmente das bocas de ventilação: mais tarde, nas sessões, essa precisão lhe permitirá voltar aos problemas respiratórios do nascimento. A organização do "hosto-île" é fundada sobre o isolamento (representado pela ilha), a separação controlada e a defesa contra as invasões insidiosas.

Toda uma série de controles é cuidadosamente posta em ação; por exemplo, obrigam-se os trabalhadores do hospital a estarem pontualmente presentes e a não pararem de trabalhar em nenhum momento. Ao evocar este aspecto draconiano do regulamento, Madeleine fará a ligação com sua própria dificuldade com o tempo.

Um outro traço característico de sua utopia seria aquilo que ela chama de "repartição igualitária de saúde": aqueles que dispunham de um capital de saúde ainda suficientemente importante deviam reservar uma parte para aqueles que não dispunham de um fundo suficiente para enfrentar a doença. O que está em questão para Madeleine é o corpo maternal, cuja solidariedade (dependência) e, principalmente, a experiência de estabilidade, lhe fez falta ao nascer.

Essa característica de reversibilidade e de repartição igualitária é constante na utopia de Madeleine: os médicos doentes deveriam ser cuidados por antigos pacientes, curados. Todos os médicos, portanto, deveriam ter sido antigos doentes. Os médicos aprenderiam, assim, com seu próprio caso sobre a doença e a cura.

Mas quem se torna médico entre os antigos doentes? No decorrer de uma sessão ela chega a essa questão: será que eu, seu psicoterapeuta, que fui designado pelo seu pai como alguém que poderia curá-la, será que eu estivera suficientemente doente para cuidar dela? E por que sua mãe não cuidou dela dentro de seu ventre? Ela poderia, tão fraca que era, carregar o luto de todos estes mortos que a rodeavam, que lhe provocavam frio "de dentro" ("du dedans") e que, de certa maneira, isolaram-na de sua mãe que estava de luto por seu pai, no momento da chegada prematura da filha ao mundo.

A psicoterapia encontrará seu ritmo e sua mola na encenação de sua criação utópica. O trabalho se apoiará sobre os paradoxos que organizam sua utopia. Diferentemente dos equivalentes paradoxais e aniquilantes que prevalecem no romance de Orwell, para Madeleine a saúde é primeiramente a doença controlada, imunizada pelo costume adquirido do próprio veneno, supervisionada, precariamente, pois ela só pode se constituir pelo choque do encontro com a morte: é sobre este paradoxo que se constroem a vida e a saúde.

A psicoterapia termina na medida em que ela pode pensar a figuração que deu a sua fantasia de destruição do corpo maternal. Ela pôde então representar como retornou sua agressividade e sua culpa em relação aos mortos pré-históricos, aos mortos ancestrais, em um dispositivo de cuidado rigorosamente controlado. Essa figuração lhe permitiu pensar na relação com sua pré-história. Madeleine fez no decorrer dessas últimas sessões uma descoberta decisiva para si mesma: sua utopia foi a metaforização de seu desamparo e de seu aparelho de dominar as "coisas" que concernem mais intimamente ao cuidado (hosto) e à violência (hostile). A utopia foi uma reconstrução de um ambiente maternal dominável.

A utopia inventada por Madeleine é antes de tudo uma tentativa de resolução de uma história que não pôde ser pensada, de outro modo, a não ser pela construção, em negativo, de seu próprio espaço interno doente. Madeleine pôde exercer seu controle sobre esse espaço ao inventar um lugar do possível, mas um possível totalmente desprovido de afeto, controlado graças às figuras da inversão, na simetria do universo. É apenas pelo re-encontro da emoção e excitação perdidas que Madeleine abrirá a via para um re-investimento pulsional e para uma atribuição de sentido à sua construção utópica.

O tempo da psicoterapia lhe permitirá transformar a utopia em um testemunho daquilo que foi para ela inconcebível: pensar-se em uma história centrada e congelada nos mortos não enterrados de sua pré-história.

A negatividade radical

A negatividade radical é aquilo que, dentro do espaço psíquico, tem o estatuto daquilo que "não é" ("ce qui n'est pas"). Ela se deixa representar nas figuras do branco (blanc), do desconhecido (inconnu), do vazio (vide), da ausência (absence) ou do não-ser (non-être).

Para ilustrar e comentar a consistência da negatividade radical, gostaria de expor e comentar as três primeiras sessões de um psicodrama que conduzi com um co-psicodramatista. Esse psicodrama é centrado na elaboração de situações clínicas difíceis. Oito pessoas se inscreveram nesse psicodrama. Apenas três estavam presentes no momento em que começa a primeira sessão. Nós esperamos os retardatários durante quinze minutos antes de precisar o projeto desse tipo de psicodrama e determinar suas regras. Um pouco depois, chegam Claude (que será o único homem inscrito a ter vindo) e Veronica que tinha ido a outro endereço. Nós ficamos preocupados com este "furo/buraco" (trou) de três ausentes desde o começo do grupo e fomos confrontados com uma "situação difícil". Não sabemos nada sobre as "causas" dessa ausência massiva e não habitual. Três assentos permanecerão vazios durante as três primeiras sessões.

Os participantes se apresentam através de sua situação profissional: todos são psicoterapeutas. Depois de um tempo de silêncio, Veronica expõe as dificuldades de seu trabalho com uma menininha autista, de dois anos: a criança não fala, não se mexe, não se comunica, mete seus dedos na boca e grita; o resto do tempo ela é descrita como "inanimada". Veronica diz que "herdou" a menina depois que o médico que a consultava confiou-a, sem grande esperança, a uma psicoterapeuta que, por sua vez, ficou doente e pediu a Verônica que trabalhasse com ela. Veronica aceitou imediatamente sem discutir e se apresenta, hoje, como uma psicoterapeuta impotente, abandonada pelo médico responsável, sem apoio na instituição, portanto condenada a investir, a pensar o impensável: fazer viver o inanimado de uma menininha colocada lá, como se fosse um fardo pesado demais.

Ela descreve as sessões com a menininha, seus pais e um bebê de sete meses que lhes acompanha, dormindo em um bercinho. Nas sessões, o pai adormece regularmente, a mãe não suporta os gritos da filha mais velha e se retira com o bebê, "para que ele não seja contaminado". A mãe conta que, quando ela grita e mete seus dedos na boca, seu marido e ela seguram seus braços, o que mantém os gritos da filha. Apesar de todos os esforços de Veronica (ela fala com a criança deitando-se com ela no chão, comprou muitos brinquedos para tentar brincar...) nada acontece. Acho que estes são objetos inertes, falta de uma área de jogo. Mas os pais vêm às sessões e recentemente a criança sorriu e emitiu alguns signos frágeis, gestos desordenados entendidos por Veronica como tentativas de comunicação.

Ao escutar Veronica, penso na ferida narcísica intolerável aberta nos pais e nos terapeutas por esta criança insuficientemente boa. Digo a mim mesmo que eu e minha colega fomos pegos, nós também, em movimentos contra-transferenciais análogos em face deste grupo amputado desde a origem.

Éliane associa com a terapia de uma criança de sete anos, um "filho da paixão", confrontado a um pai assassino e a uma mãe amante. No decorrer de uma sessão com essa criança, Éliane se surpreendeu cantarolando uma música que levou a criança a complementá-la com uma letra. Ela diz a Veronica que a família vem para escutar a música de sua voz e que as palavras estão por vir. É uma esperança.

Os participantes estão divididos entre a identificação com a impotência de Veronica ("o que ela faz, como nós o fazemos, com todos estes casos, é uma gota de água no oceano") ou, ao contrário, com a espera confiante sem a qual nada é possível ("a surpresa de um oásis e a fecundidade do deserto"). Mas ficam nisso e assinalam a dificuldade para encontrar um tema de jogo.

Depois dessa sessão, minha colega e eu falamos sobre esse furo/buraco (trou) "impensável", de nossa espera e de nossa impotência diante da ausência e daquilo que fabrica, não se sabe onde, o imprevisível. Procuramos localizar a causa (origem e determinismo), sem conseguir: onde está a falha ou a falta, do lado da pré-história do grupo?4 4 Eu fiquei surpreso com o fato de que, em um outro psicodrama, começado sem nenhum incidente em particular, a interrogação sobre a causa do desastre que qualificava a situação clínica apresentada imediatamente ocupou o espírito dos participantes. A busca da causa da origem do mal, sua decretação imediata e urgente impede o pensar a repercussão psíquica da confrontação ao inanimado e à destrutividade. Nós fomos mais uma vez surpreendidos pela ressonância entre os temas abordados a partir do caso, sua perlaboração no trabalho associativo e nas transferências, e os movimentos contra-transferenciais que nos mobilizaram, a partir dessa situação comum e partilhada.

Desde o inicío da segunda sessão, as imagens que haviam circulado no final da primeira são retomadas e dão origem a temas de jogos. Associado à gota de água no oceano, é proposto o seguinte tema: "daremos um banho no bebê, na presença de toda a família, a banheira estará furada e a água escorrerá por todos os lados". Esse tema suscita muitas angústias de morte (jogar o bebê fora com a água do banho), de esvaziamento (vidage), de não continência (non-contenance), e o tema do oásis é então evocado: nele, a água é rara e imprevista, mas ela é benéfica.

Um tema é proposto e adotado para um jogo: "uma expedição, mal preparada, no deserto". Todos os participantes se propõem a encenar um papel. À noite, no acampamento, percebe-se que a água vai fazer falta e que o próximo poço está a três dias de caminhada. O guia (Claude) deixa os participantes viverem suas questões e inquietudes, mas os tranqüiliza assim: ele não é o todo-poderoso, mas conhece a região e os conduz ao poço. Éliane interpreta uma adolescente muito inquieta, repreendendo sua mãe (Veronica) por tê-la trazido para o desconhecido, sem previsão e sem preparação. Duas outras mulheres fazem eco à inquietude do grupo: uma representa uma enfermeira devotada e a outra, uma mulher sozinha, bastante desorientada.

O guia garante o "acampamento": traça os limites, divide o trabalho de montagem das tendas e de preparação da refeição da noite. Perguntam-lhe sobre os perigos (serpentes, escorpiões), sobre o risco de se perder e de não se chegar ao oásis hipotético, sobre a distribuição controlada de água, sobre a reserva para o chá (o chá, "é sagrado", diz o guia). À noite, as mulheres alucinam cantos, passos que se aproximam, traços humanos, uma caravana ao longe.

Após o jogo, os comentários se referem à espera por uma outra presença, sobre a inquietude dos participantes e sobre o apoio que puderam obter do guia que soube transformar sua espera ansiosa em "espera confiante". Nós destacamos que, no jogo, a alucinação da caravana está, talvez, relacionada à ausência (e à espera) das três pessoas faltosas. Veronica volta-se para sua própria espera frente à menininha e sua família.

No começo da terceira sessão, Éliane fala de uma situação difícil para ela e para um grupo de adolescentes que acompanha, em terapia, atualmente. Um deles, que já esteve no centro do grupo vai embora, sem dizer ao grupo, como estava previsto no contrato. Ele abandona o grupo como foi abandonado por seu pai, como sua mãe foi, também, abandonada. Seu "duplo" se prepara para sair do grupo, com o mesmo argumento que ele: "agora eu estou melhor, meus pais estão de acordo que eu saia do grupo". A terapeuta se sente em falta, ela não sabe guardar seus pequenos. Nós entendemos a relação desse caso, a escolha que foi feita por Eliane, na transferência: nós também reunimos um grupo amputado de três ausentes.

Um tema de jogo é proposto: um cego que para enfrentar a perda da visão, deveria investir nos outros sentidos: a audição, o tato, o olfato,... Claude representa um cego bastante submisso e resignado a suportar sua sorte. Ele recebe os cuidados de uma enfermeira representada por Veronica, que tem dentro do jogo o nome de Marilys. Éliane representa o papel do filho do cego, um adolescente de 15 anos; percebe com surpresa que ela escolheu o nome (Nicolas) de um dos adolescentes dos quais tinha falado. Nicolas invoca os progressos da cirurgia e insiste junto ao seu pai para que ele aceite um transplante. O pai se recusa. O enfermeiro anuncia que o irmão do cego, um irmão "perdido de vista" por vinte e cinco anos, virá lhe ver. Eu entro no jogo assumindo o papel do irmão e exprimo com força minha revolta frente à cegueira, minha recusa em deixar o irmão passivo diante de sua castração denegada. Um trabalho intenso é feito depois do jogo, que confrontou cada um com a impotência e a perda impensável. Minha intervenção no jogo, mobilizou os afetos de cólera reprimidos diante da impotência. Veronica invoca seu ativismo e a impossibilidade de pensar, na medida em que prevalecem as fantasias de impotência.

Acho que essa situação é um bom exemplo da negatividade radical: não podemos fazer nada contra a ausência (absence), salvo, com este dispositivo, pensá-la. Em três sessões, passamos do impensável do furo/buraco (trou) à representação da perda e do que está aquém da perda: a precariedade do continente, suas falhas. O momento inaugural deste grupo mobilizou uma fantasia de nascimento catastrófico, de ataque contra o envelope grupal, de uma inquietante incerteza sobre a capacidade de conter.

Nosso trabalho de psicodramatistas foi determinante para tornar possível a elaboração grupal e individual de casos difíceis. Fomos tocados por essa falha inicial, mas não fomos tocados sem pensar, pois pudemos conservar toda a nossa confiança no outro, em nós mesmos, e nesse dispositivo. Essa confiança nos permitiu estar em contato com o que está aquém da castração: às falhas de continência e às agonias primitivas evocadas nos casos e nas associações sobre o inerte e o esvaziamento. Tudo se passa como se os elementos impensáveis, colados uns aos outros, coagulados, representassem a si mesmo em uma cena imóvel e silenciosa, como o imaginário siderado sob o efeito do trauma.

Esse pensamento nos permitiu manter o quadro (enquadramento) e conter a angústia dos participantes, de sustentá-los no processo de elaboração sem reduzir suas questões às nossas, sem tornar idênticas suas situações singulares àquela que criava este espaço psíquico comum e partilhado, sob o signo do furo/buraco (trou) e da impotência. É nessa medida que eles puderam imaginar e encenar com aquilo que eles não tinham podido imaginar nem encenar enquanto estavam passivamente confrontados com suas situações difíceis.

Recebido em 04.03.2003

Aceito em 02.04.2003

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    Endereço para correspondência: Université Lumière - Lyon II - France.
  • 2
    No original lemos : "(...)une vitre (une glace, dira-t-elle)". Em francês o termo "glace" pode ser traduzido, dependendo do contexto, como: "janela" ou "gelo" ou "sorvete" ou ainda "espelho". (N. do T.)
  • 3
    No original: " répondre sur le champ". Expressão francesa cuja tradução literal seria: "responder no terreno/campo" (N. do T.)
  • 4
    Eu fiquei surpreso com o fato de que, em um outro psicodrama, começado sem nenhum incidente em particular, a interrogação sobre a causa do desastre que qualificava a situação clínica apresentada imediatamente ocupou o espírito dos participantes. A busca da causa da origem do mal, sua decretação imediata e urgente impede o pensar a repercussão psíquica da confrontação ao inanimado e à destrutividade.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Nov 2003
    • Data do Fascículo
      2003

    Histórico

    • Aceito
      02 Abr 2003
    • Recebido
      04 Mar 2003
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