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Carolina Bori, Presença no Nordeste

CAROLINA BORI, PRESENÇA NO NORDESTE

Gizelda Santana Moraes

Depto. de Psicologia da Universidade Federal de Sergipe

Meu primeiro contato com Carolina Martuscelli Bori ocorreu no contexto de uma Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, lá pelos idos de 1965. Recém-graduada em Filosofia pela Universidade da Bahia, voltara ao meu estado natal, Sergipe, sendo logo convidada para lecionar Didática Geral e Psicologia Social em duas das faculdades que posteriormente integraram o núcleo da Universidade Federal de Sergipe. Precisava aprender muito mais, se queria dedicar-me ao ensino e à pesquisa, por isso me esforçava para participar de congressos e encontros científicos e buscava um centro de pós-graduação onde pudesse aprofundar meus conhecimentos. Uma amiga minha, ex-aluna da doutora Carolina, se ofereceu para me apresentar a ela em um dos intervalos de conferências. Com a minha timidez e um pouco de complexo nordestino, esperava ser tratada com a suposta frieza de uma cientista, então convidada para conduzir o ensino de Psicologia na recém-criada Universidade de Brasília.

Esse primeiro contato foi uma surpresa. Ouvindo-me atenciosamente, e mesmo não sendo eu portadora de qualquer recomendação, Carolina manifestou de imediato a sua boa vontade em me incluir entre seus orientandos de Brasília. Lembro-me de seu entusiasmo com a implantação de um centro de excelência e pesquisa em Ciência do Comportamento, apesar das nuvens já se anunciarem negras sobre os céus da capital do país. E, de fato, as intenções não se concretizaram. Enquanto me preparava para as mudanças, aconteceu o desmantelamento do belo projeto de tantos cientistas e intelectuais, terminando por me encontrar eu também entre os frustrados.

Voltando para a USP, Carolina me comunica que ali se iniciaria uma pós-graduação em Psicologia Social e Experimental. Em julho de 66, procurei-a novamente. Encontrei de sua parte a mesma disposição em receber entre seus alunos uma candidata nordestina.

Fui para São Paulo no ano seguinte, ao ser anunciado o início do curso, na expectativa de ser contemplada com uma bolsa, solicitada à CAPES com o devido termo de aceitação assinado pela doutora Carolina. Fiquei encantada com as bibliotecas da USP, o acervo de livros de Psicologia, o número e a atualização das revistas científicas, os laboratórios de pesquisa, os estudos sobre as variáveis determinantes da aprendizagem e do comportamento social, um mundo novo de teorias, métodos e técnicas. Nas primeiras disciplinas ministradas sob a responsabilidade da professora, familiarizava-me com os modelos das pesquisas de Análise do Comportamento e outros, oriundos das ciências físicas e matemáticas, como a Teoria de Campo de Kurt Lewin, por exemplo. Tomava mais consciência de que a Psicologia não repousava apenas em inferências subjetivas e em observações empíricas, mas também na utilização de testes de hipóteses a partir dos quais seus fundamentos teóricos eram confirmados, ampliados ou modificados.

Em pleno curso, chegou-me a resposta da CAPES negando-me a bolsa. Possivelmente teria voltado a Sergipe com a cabeça vazia não fora novamente o apoio da professora, sugerindo-me a apresentação de um plano de pesquisa à FAPESP, rapidamente aprovado. Entretanto, inesperadamente, em agosto do mesmo ano, recebi a notícia da concessão de uma bolsa solicitada, no ano anterior, ao governo francês. Apreciei o respeito de minha orientadora, sem qualquer interferência com relação à minha decisão de ficar ou partir para a Europa. Porém, não tenho dúvida, os poucos meses que passei em São Paulo foram decisivos para que o meu plano inicial de pesquisa, elaborado à luz da orientação de Carolina, fosse aceito para um doutorado na Universidade de Lyon. Além disso, a segurança que me deram esses estudos concorreu para que minha pesquisa fosse realizada, defendida publicamente e aprovada no menor tempo possível. Ao voltar, ouvindo-me apresentar o resumo da tese, Carolina pediu-me para ler o texto integral e o encaminhou à Editora Herder para publicação em livro que ela prefaciaria. Cheguei a ver as primeiras provas gráficas mas, vendida aquela editora e transformada na Editora Pedagógica Universitária, o aval, exigido de outros professores do Departamento de Psicologia Escolar da USP foi certamente negado, pois recebi de volta os originais com a desculpa de que o texto era demasiadamente técnico.

Lembro-me agora, antes de viajar para a França, indo passar uns dias com minha família em Aracaju, sugeri ao diretor da Faculdade Católica de Filosofia de Sergipe que convidasse Carolina Bori a fazer ali um ciclo de palestras sobre Psicologia. Ela aceitou o convite e, estando o aeroporto de Aracaju interditado, teve que viajar de Kombi, a partir de Salvador, por estradas de barro esburacadas para cumprir o seu programa. Chegavam assim a Sergipe, em setembro de 67, pela sua palavra, as novas abordagens da psicologia científica.

Creio que jamais se negou a dar sua contribuição e o seu apoio de pesquisadora ou de membro da diretoria da SBPC para uma instituição ou evento no Nordeste. Na década de 70, enquanto eu exercia a chefia do Departamento de Psicologia ou integrava a Coordenação do Mestrado em Educação da Universidade Federal da Bahia, a ela recorremos diversas vezes para ministrar cursos, indicar e motivar docentes que suprissem nossas deficiências de professores, participar de bancas examinadoras. A paraibana Anamélia Araújo de Carvalho, tendo concluído na USP o seu doutorado, veio instalar o Laboratório de Psicologia Experimental da UFBA, nele permanecendo com sua dedicação e seriedade. Nos anos 80, estando eu de volta à Universidade de Sergipe, indicou professores visitantes e motivou outros a prestarem concurso para o nosso Departamento de Psicologia, participou das discussões para a criação do Programa Geral de Pós-Graduação, nos ajudou na implantação da Secretaria Regional da SBPC e na realização da 1a. Reunião Regional da SBPC, em João Pessoa.

Não é necessário lembrar tudo. Outros terão histórias a contar sobre a importância de Carolina Bori na formação de algumas gerações de pesquisadores sérios que atuaram ou atuam no Nordeste na área das Ciências do Comportamento, sua contribuição para que as distâncias do conhecimento científico fossem diminuídas entre as regiões brasileiras, estreitadas as relações entre os estudiosos. A dimensão científica e profissional de Carolina Bori merece todo respeito, mas destaco a sua dimensão humana, sua maneira de dar a mesma atenção a todos que a ela se dirigem - um estudante, o funcionário menos graduado de uma instituição, um cientista de alto prestígio nacional ou internacional, estrangeiros, sulistas, nortistas ou nordestinos. Modos aristocráticos? Conheci poucos aristocratas e nem sempre os vi proceder assim. Diria melhor, uma maneira quase religiosa, só encontrada entre aqueles que têm o máximo de respeito pela pessoa, considerando cada uma delas como parte de uma criação divina. Por isso me aborreci quando, uma vez, ouvi alguém tachá-la, pejorativamente, de behaviorista, como se fora anti-humanista, só porque não descarta a possibilidade de compreender o comportamento humano a partir do comportamento animal ou porque, compreendendo o dinamismo da ciência, não assume posições radicais. Embora não rejeite os paradigmas das pesquisas de base, nunca deixou de alertar seus orientandos sobre a necessidade de pesquisas de relevância para a solução dos problemas sociais de nosso país.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 1998
  • Data do Fascículo
    1998
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