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[Apresentação] Testemunho e Cura

O século XX foi marcado pelo horror de guerras e de genocídios, por governos autoritários e totalitários, e por tentativas deliberadas e sistemáticas de se apagar o horror que acontecera, munindo-se de um aparato burocrático para distorcer os fatos do passado e reescrever a História. O século XXI, até o momento, com suas guerras e conflitos internos sangrentos, não parece indicar ainda uma mudança significativa de rumos em relação ao século anterior no que diz respeito a pôr fim aos ciclos de violência.

Nesse contexto, passou a ser de grande importância a reflexão sobre o testemunho, que é visto tanto como uma forma das pessoas que viveram de perto os traumas políticos e as catástrofes coletivas lidarem melhor com seu passado, quanto como uma forma de se buscar preservar a memória do que aconteceu e, assim, lutar para que eventos semelhantes não se repitam.

O compartilhamento desse tipo de experiência tem grande complexidade, tendo em vista que ela está relacionada ao horror, à violência pura, a algo muito difícil de ser colocado em palavras. Os esforços feitos para expressar o traumático por meio da linguagem são, na maior parte das vezes, bastante dolorosos e, frequentemente, permanecem insuficientes para representar o que aconteceu.

É possível afirmar, porém, que a melhor forma de uma pessoa lidar com um trauma político ou uma catástrofe coletiva é falando sobre o passado de horror? Haveria um componente terapêutico no testemunho? Assim, qual seria o estatuto da cura psicanalítica no caso de pacientes em que o percurso individual foi marcado por catástrofes e traumas? Por que meios a contribuição da Psicanálise pode favorecer o tratamento de sobreviventes de campos de concentração ou de extermínio, daqueles que sofreram tortura, e de indivíduos que vivem submergidos na sombra da violência, sem correr o risco de generalizações totalizantes? Quais elementos da memória presentes na literatura e nas artes podem contribuir para o trabalho elaborador dos pacientes e (também é preciso notar) de seus analistas? Que posicionamento ético é exigido dos psicanalistas pelas catástrofes coletivas e políticas na sua clínica cotidiana?

O objetivo do dossiê "Testemunho e Cura" é o de propor uma reflexão consequente com os destinos que a modalidade do testemunho vem adquirindo em nossa cultura nos últimos anos, sobretudo considerando os trabalhos -concluídos recentemente - da Comissão Nacional da Verdade. É, também, o de estabelecer uma discussão sobre o devir da clínica psicanalítica no tratamento de vítimas das violências traumáticas e das catástrofes coletivas. Além da discussão sobre a especificidade clínica dessa modalidade de vivências, este dossiê também introduz o debate transdisciplinar, que pode se perfilar como um instrumento de reflexão imprescindível para uma práxis psicanalítica mais adequada aos desafios que lhe são impostos pela contemporaneidade.

Embora a cura psicanalítica seja concebida como uma cura pela palavra, ela pode também ser concebida como, segundo a expressão de Janine (Altounian, 2000Altounian, J. (2000). La survivance. Paris: Dunod.), "salvação pelas palavras"; palavras estas apagadas pela impostura das "urgências cotidianas" que terminam por perpetuar, por décadas a fio, certo "não querer saber" acerca das atrocidades do passado e do presente. Os trabalhos que ora apresentaremos podem servir de pistas para essas questões ofuscadas pela cultura, mas desde sempre presentes em nossa clínica cotidiana.

No primeiro trabalho, assinado por Paulo Endo, o leitor encontrará uma reflexão acerca das vicissitudes do sonho e do sonhar, lá onde se apresentam como resto diurno as experiências catastróficas, como repetição do insuportável. O autor recorre à significativa contribuição de Charlotte (Beradt, 2004Beradt, C. (2004). Revêr sous Le IIIe. Reich (P. Saint-German, trad.). Paris: Petite Bibiothèque Payot. (Trabalho original publicado em 1966)), deduzindo que é como se "os sonhos alertassem que lá longe há experiência a descoberto, que convocam a linguagem e o desejo de falar", de compartilhar. É nessa perspectiva que Paulo Endo aborda a questão dos desaparecimentos forçados, desde a única perspectiva que resta, ou seja, daqueles que ficam, inseridos na ótica da (im)possível convivência com a impunidade, o qual impõe a necessidade premente do "dever da memória social". Densa e pertinente abertura que nos convida à leitura e a prosseguir com os trabalhos seguintes.

Jô Gondar e Diego Frichs Antonello refletem sobre o lugar da testemunha como um lugar terceiro que, na clínica do traumático, o analista pode ter a disponibilidade de sustentar, o qual o converte como alguém capaz de testemunhar pelo testemunho. Os autores nomeiam esse espaço terceiro como "espaço potencial": admitindo que toda narrativa testemunhal envolve um paradoxo e as condições de possibilidade do espaço potencial é o reconhecimento desse paradoxo. Analisando detidamente o comentário que Pier Paolo Pasollini realiza da Divina Comédia , de Dante, intitulado "A sobrevivência dos vagalumes" (Didi-Huberman, 2011Didi-Huberman, G. (2011). Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: Ed. UFMG.), os autores postulam que o lugar sustentado e suportado pelo analista é poroso o suficiente para possibilitar a elaboração do traumático ou, segundo suas palavras, que as "memórias traumáticas (ultraclaras)" possam ser "obscurecidas".

Caterina Koltai, em "Entre psicanálise e história: o testemunho", assinala que o testemunho deve ser concebido como um "ato de linguagem, uma palavra que requer a presença psíquica do outro como ser singular a representante do conjunto". A partir de duas precisões sobre o testemunho, uma histórica e a outra enquanto "analista cidadã", a autora postula uma "ética da leitura" dos testemunhos da Shoah, supondo "imaginar o incompreensível" e "acreditar no inacreditável". Interrogando-se acerca da continuidade do humano, apesar de tudo, Koltai entende que é o componente da amizade entre aqueles submetidos ao mesmo destino de vida e de morte que sustenta e constitui o humano, que também pode encontrar seu lugar na situação analítica (Prado de Oliveira, 2012Prado de Oliveira, L. R. (2012). O sentido da amizade em Ferenczi: uma contribuição à clínica psicanalítica. Rio de Janeiro, RJ: Uapê.). Reflexão que remete à discussão sobre a posição do analista no atendimento de pacientes que exigem dele uma proximidade maior que as neuroses de transferência.

Transpondo a discussão para o campo da Literatura, Maria Nadeje Pereira Barbosa e Daniel Kupermann buscaram analisar as relações entre sublimação e traumatismo a partir do estudo da produção testemunhal, literária, poética e autobiográfica do escritor turinês e ex-deportado Primo Levi. Postulou-se que a escritura da Levi, ao mesmo tempo em que expressa capacidade de sublimação e a possibilidade de sobrevivência psíquica, também configura um hiato como marca da insuficiência do trabalho sublimatório. Conclui-se o trabalho depreendendo, a partir da leitura de O que resta de Auschwitz , de (Agamben, 2008Agamben, G. (2008). O que resta de Auschwitz. São Paulo, SP: Boitempo.), que o projeto de destruição perpetrado pelos nazistas sobre os judeus não se insere na ordem apenas do "indizível", mas também do "inaudível" que, no contexto da vida e da obra de Primo Levi, encontraria seus efeitos numa cultura que não estava disposta a lhe dar ouvidos.

O ensaio de Tania Rivera aborda o testemunho como "posição discursiva" e explora seus avatares no processo de transformação do traumático em fantasia. Segundo a autora, o testemunho, enquanto trabalho de memória, incluindo sua transmissão e os efeitos que lhes são subjacentes, encontra na ficcionalização um "procedimento" que lhe é inerente. A autora analisa as condições de possibilidade de metabolização do trauma a partir da narração, onde a fantasia revelaria sua potência criadora. A memória, como mecanismo de funcionamento do testemunho, o converte em literatura, entendido, por sua vez, como correlato da transmissão, ou seja, como apropriação coletiva do Real. Para plasmar essas instigantes questões, a autora propõe um diálogo com determinados trabalhos de Rodrigo Braga, artista brasileiro, em sua exposição Mais Força que Necessário , realizada na Bélgica em 2010.

Por último, a contribuição de Márcio Seligmann-Silva - autor de obras de referência sobre a questão do testemunho desde as mais variadas perspectivas -, acerca do fenômeno dos antimonumentos como forma de fazer trabalhar a memória e resistir contra o esquecimento (Seligmann-Silva & Nestrovski, 2000Seligmann-Silva, M., & Nestrovski, A. (Orgs.). (2000). Catástrofe e representação. São Paulo, SP: Escuta.). Para empreender tal tarefa, o autor toma como ponto de partida a análise da antiga "arte da memória" em Simônides de Ceos para sublinhar que a memória não é somente um "bem", dado que nela também se insere uma "carga espectral" que muitas vezes queremos esquecer. É precisamente devido à dificuldade de elaborar o luto decorrente do passado doloroso, mas também do desejo ativo em recordá-lo, que surgem os antimonumentos, apesar da dor. O autor apresenta e discute detalhadamente as obras dos principais representantes dos antimonumentos como os alemães Jochen Gerz, Horst Hoheisel e Andreas Knitz, o argentino Marcelo Brodsky e a brasileira Fulvia Molina.

Ao final desse percurso, acreditamos que o leitor de Psicologia USP sairá enriquecido pelo acompanhamento dos trabalhos que compõem este dossiê, em particular, pelo entendimento de que as condições de possibilidade para o trabalho analítico com pacientes que foram vítimas de catástrofes coletivas e de traumas políticos encontram na vertente transdisciplinar uma via de grande pertinência, valor e atualidade.

Referências

  • Agamben, G. (2008). O que resta de Auschwitz. São Paulo, SP: Boitempo.
  • Altounian, J. (2000). La survivance. Paris: Dunod.
  • Beradt, C. (2004). Revêr sous Le IIIe. Reich (P. Saint-German, trad.). Paris: Petite Bibiothèque Payot. (Trabalho original publicado em 1966)
  • Didi-Huberman, G. (2011). Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: Ed. UFMG.
  • Prado de Oliveira, L. R. (2012). O sentido da amizade em Ferenczi: uma contribuição à clínica psicanalítica. Rio de Janeiro, RJ: Uapê.
  • Seligmann-Silva, M., & Nestrovski, A. (Orgs.). (2000). Catástrofe e representação. São Paulo, SP: Escuta.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016
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