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A experiência enigmática na psicose: os fenômenos elementares à luz da teoria do significante

L’expérience énigmatique dans la psychose: les phénomènes élémentaires à la lumière de la théorie du signifiant

La experiencia enigmática en la psicosis: los fenómenos elementales a la luz de la teoria del significante

Resumo

O conhecimento dos fenômenos elementares é uma ferramenta valiosa no diagnóstico e tratamento da psicose. Lacan reexamina essa noção psiquiátrica com base nos estudos de Benveniste e Jakobson sobre os shifters. Conforme será demonstrado, o resultado desse diálogo foi a formulação da experiência enigmática na psicose, na qual aparece a possibilidade original de uma enunciação sem enunciador. Apesar de exceder os limites do que é aceitável como válido pela linguística, a consequência da investigação lacaniana é situar de forma defintiva a causalidade da psicose no campo da linguagem e não no registro biológico. Além disso, a compreensão dos dois tempos lógicos da experiência enigmática permite isolar um princípio, do qual se deduz uma reorganização dos fenômenos elementares em dois tipos: xenopáticos e de autorreferência.

Palavras-chave:
psicose; psicanálise; Lacan; linguística; fenômenos elementares

Résumé

La connaissance des phénomènes élémentaires est un important outil tant pour le diagnostic que pour le traitement de la psychose. Lacan analyse cette notion psychiatrique à partir des études de Benveniste et Jakobson à propos des shifters. Tel qu’il sera démontré, le résultat de ce dialogue a été la formulation de l’expérience énigmatique dans la psychose, où il surgit la possibilité originelle d’une énonciation sans énonciateur. Malgré l’extrapolation des limites de l’acceptable du point de vue de la linguistique, la conséquence de l’investigation lacanienne a été la possibilité de situer d’une manière définitive la causalité de la psychose dans champ du langage, et non pas dans le registre biologique. Par ailleurs, la compréhension des deux temps logiques de l’expérience énigmatique lui a permis d’isoler un principe, a partit duquel se déduit une réorganisation des phénomènes élémentaires selon deux types: xénopathiques et d’autoréférence.

Mots-clés:
psychose; psychanalyse; Lacan; linguistique; phenomenes elementaires

Resumen

El conocimiento de los fenómenos elementales es una valiosa herramienta en el diagnóstico y tratamiento de la psicosis. Lacan reexamina esta noción psiquiátrica basado en los estudios de Benveniste y Jakobson sobre los shifters. Como se demostrará, el resultado de este diálogo fue la formulación de la experiencia enigmática en la psicosis, donde aparece la posibilidad única de una enunciación sin enunciador. A pesar de superar los límites de lo que es aceptable como válido por la lingüística, la consecuencia de la investigación lacaniana es poner definitivamente la causalidad de la psicosis en el campo del lenguaje, y no en el registro biológico. Además, la comprensión de los dos tiempos lógicos de la experiencia enigmática permitió aislar un principio de que lo se puede deducir una reorganización de los fenómenos elementales en 2 tipos: xenopaticos y de autorreferencia.

Palabras clave:
psicosis; psicoanálisis; Lacan; lingüística; fenómenos elementales

Abstract

The knowledge of the elementary phenomena is a valuable tool for diagnosis and treatment of psychosis. Lacan reexamines this psychiatric notion based on Benveniste`s and Jakobson`s studies on the shifters. As will be shown, the result of this dialogue was the formulation of the enigmatic experience on psychosis, where appears the unique possibility of an enunciation without enunciator. Despite exceeding the limits of what is acceptable as valid by linguistics, the consequence of Lacan’s research is situate in a definitive way the causality of psychosis in the field of language, and not in the biological register. In addition, understanding the two logical times of the enigmatic experience allows to isolate a principle from which is deduced a reorganization of the elementary phenomena into 2 types: xenopathic and self-reference.

Keywords:
psychosis; psychoanalysis; Lacan; linguistics; elementary phenomena

Introdução

A noção de fenômenos elementares floresceu no solo da Psiquiatria Organicista no final do século XIX, portanto no interior de uma tradição clínica cujos pressupostos epistemológicos Lacan combatia frontalmente. A divergência, que incide basicamente sobre a suposição de que a psicose seria uma doença mental cuja etiologia é biológica, jamais impediu, contudo, que Lacan reconhecesse o valor das pesquisas empreendidas por aquela corrente. Ressalte-se aqui em especial o reconhecimento de Lacan ao legado deixado pelo seu mestre em Psiquiatria, Gaëtan Gatian de Clérambault, de quem herdará o interesse pela investigação dos chamados fenômenos elementares.

O artigo visa inicialmente circunscrever a importância dos fenômenos elementares para a Psicanálise ainda hoje, destacando sua importância para o diagnóstico da psicose. A seguir, pretende-se demonstrar de que modo a aliança de Lacan com a linguística estrutural, especialmente com os estudos sobre a enunciação e o shifter, levados a cabo por Jakobson e Benveniste, permitiram uma leitura inédita daquela noção clássica de Psiquiatria. A consequência foi que a interpretação de Lacan trouxe maior rigor e sistematicidade à antiga noção, ultrapassando o patamar meramente descritivo ao deduzi-la de um princípio significante. O resultado dessa operação de leitura foi o entendimento do fenômeno elementar como experiência enigmática.

A experiência enigmática atesta por um caminho novo a tese lacaniana de que a psicose seria não uma doença mental cuja causa é orgânica, mas um modo muito especial de relação do sujeito com a linguagem. Sendo assim, o registro mais adequado de tratamento do problema da psicose seria o campo da fala e da linguagem, e de modo algum o registro da objetividade factual.

A importância dos fenômenos elementares para a psicanálise

A categoria dos fenômenos elementares foi desenvolvida pela psiquiatria clássica no final do século XIX e começo do século XX. Formulada originalmente no interior da tradição clínica organicista, a noção de fenômenos elementares receberá dessa corrente sua marca de batismo, a qual se conservará, em parte, nos desenvolvimentos posteriores. Segundo a psiquiatria organicista, as doenças mentais seriam causadas por fatores biológicos, de tal forma que a presença de condições orgânicas especiais traria como consequência o aparecimento de fenômenos psíquicos sui generis. A peculiaridade desses fenômenos é que introduzem uma ruptura na continuidade do vivido, suspendendo tanto a coerência lógica quanto a compreensão da experiência como totalidade significativa (Lustoza, 2006Lustoza, R. Z. (2006). O problema da causalidade psíquica na psicanálise (Tese de doutorado). Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.).

Tais fenômenos seriam considerados como elementos por constituírem as unidades mais simples e básicas que compõem o processo psicopatológico. Portanto, o solo no qual floresce a noção é o de uma semiologia atomística, inti­mamente ligada a uma determinada concepção dentro do organicismo, o mecanicismo. Este buscaria o fundamento da doença na hipótese da ocorrência de uma lesão pontual (Simanke, 2002Simanke, R. T. (2002). Metapsicologia lacaniana: os anos de formação. Curitiba, PR: UFPR., p. 35).

Tais fenômenos disruptivos seriam uma espécie de corpo estranho, ao qual, posteriormente, a mente reagiria tentando produzir uma resposta que pudesse dar conta dessa emergência originariamente desprovida de sentido. Partindo dessa hipótese, os organicistas se empenharam em separar os fenômenos elementares que formariam uma espécie de núcleo primitivo da psicose, dos fenômenos considerados acessórios ou secundários, os quais se acrescentariam a posteriori (Álvarez, 2009Álvarez, J. M. (2009). Estudios sobre la psicosis. Buenos Aires, Argentina: Grama.). Tal orientação, a partir qual se distingue o que é essencial e o que é derivado no processo psicótico, abrirá todo um campo específico de pesquisas em psicopatologia, que inclusive ultrapassa os limites estritos do organicismo1 1 Isso significa que tais pesquisas não necessariamente seguirão a orientação atomística original do mecanicismo. As perspectivas psicogenéticas, por exemplo, ressaltarão a ideia da doença como fenômeno total, em vez de elementar (Simanke, 2002); porém mantendo a ideia de uma separação entre processos primários e secundários. .

A categoria dos fenômenos elementares, cuja definição e alcance não eram consensuais entre os antigos clínicos, receberá por parte de Lacan um tratamento renovado, sendo alçada ao estatuto de peça-chave para o diagnóstico de psicose2 2 (Lacan, 1981/2002) afirma explicitamente ter recolhido o termo fenômenos elementares na obra de Clérambault, o qual lhe transmitiu o interesse por essa questão, presente pelo menos desde a tese de doutoramento: “Se vocês lerem, por exemplo, o trabalho que fiz sobre a psicose paranoica, verão que enfatizo nele o que chamo, tomando emprestado o termo a meu mestre Clérambault, os fenômenos elementares” (p. 28, grifo nosso). . Sua utilidade prática está ligada ao fato de constituir um sinal patognomônico da psicose (Álvarez, 2009Álvarez, J. M. (2009). Estudios sobre la psicosis. Buenos Aires, Argentina: Grama.).

Trata-se de fenômenos cuja matriz mínima revela e contém a estrutura geral da psicose. Por serem consubstanciais a ela, isto é, patognomônicos, sua discreta presença nos indica a presença da estrutura psicótica, cujo desencadeamento clínico pode ou não haver-se produzido. (Álvarez, 2009Álvarez, J. M. (2009). Estudios sobre la psicosis. Buenos Aires, Argentina: Grama., p. 111, grifo nosso)

Em medicina, uma manifestação é um sinal patognomônico quando pode ser encontrada sempre e apenas nos casos de pacientes acometidos pela doença (Aguiar, 2004Aguiar, A. A. (2004). A psiquiatria no divã: entre as ciências da vida e a medicalização da existência. Rio de Janeiro, RJ: Relume Dumará.). No caso do fenômeno elementar, deve ser possível encontrá-lo, a uma só vez, em qualquer caso de psicose, bem como exclusivamente em casos de psicose (e não na neurose ou na perversão).

Vale aqui uma recomendação de prudência, pois não necessariamente um paciente psicótico irá apresentar fenômenos elementares o tempo todo. Há casos em que o diagnóstico acaba sendo proferido pelo clínico muito tardiamente, como mostra o exemplo dado por Darian (Leader, 2011Leader, D. (2011). Além da depressão: novas maneiras de entender o luto e a melancolia (F. Santos, trad.). Rio de Janeiro, RJ: BestSeller.). Trata-se de um paciente, bem-sucedido em sua carreira no campo jurídico, cuja vida não havia sido significativamente perturbada por sintomas ou inibições manifestos, até o momento em que ele passa a padecer de uma crise de angústia intensa. Depois de um bom tempo de tratamento, o sujeito consegue localizar o que condicionava a sua apreensão e decide então encerrar sua análise. Nas últimas sessões, entretanto, surpreende o analista com a crença delirante de que todas as pessoas cujo prenome era igual ao dele compartilhavam um mesmo ancestral comum. Como diz o autor a propósito do caso, “o trabalho a longo prazo com um sujeito psicótico sempre mostra que há muitas coisas que não são reveladas de imediato, se é que o são” (p. 22).

A lição que pode ser extraída de casos como esse é que o diagnóstico de psicose não pode ser feito de uma única vez, sendo necessário que o clínico acompanhe o discurso do paciente às vezes por um longo tempo para ter maior segurança no julgamento diagnóstico. Enquanto isso não puder ser feito, haverá uma suspensão do juízo diagnóstico.

Outro ponto a ser esclarecido é que a verificação pelo analista do fenômeno elementar nem sempre é simples, pois depende de uma avaliação da posição subjetiva do paciente. O diagnóstico não pode ser pontual, devendo-se sempre buscar localizar o sujeito em face do fenômeno. Ora, se a pesquisa do fenômeno elementar não pode ser separada da busca da posição do sujeito, será somente pela via da escuta que o analista determinará se um determinado material é ou não um fenômeno elementar. No caso da neurose, a posição subjetiva é a da crença no fenômeno; crença essa que sempre pode ser posta em questão. Já a psicose é a única estrutura na qual se encontram experiências que são vividas pelo sujeito no campo do enigma/certeza (tal ponto será objeto de considerações mais detalhadas ao longo do artigo).

O valor semiológico do fenômeno elementar foi atualizado pela discussão em torno das psicoses ordinárias, que seriam tipos nos quais estariam ausentes os signos ruidosos e extraordinários, classicamente associados à declaração daquela estrutura - a saber, as alucinações e os delírios. Ora, a pesquisa dos fenômenos elementares, ao investigar os sinais mais precoces da psicose, acaba justamente abarcando um conjunto de manifestações que são muito mais sutis e silenciosas, as quais podem estar presentes no quadro clínico mesmo na ausência de desencadeamento. O conhecimento de tais fenômenos seria fundamental no diagnóstico da psicose ordinária, ao permitir circunscrever a presença da psicose em casos nos quais tal estrutura ainda não se evidenciou claramente.

A detecção precoce tem suma importância para a Psicanálise, pois é importante avaliar os riscos do tratamento para um paciente cuja psicose não está ainda patente. Lembremos aqui da famosa advertência de (Lacan, 1981/2002Lacan, J. (2002). O seminário livro 3: as psicoses, 1955-1956 (A. Menezes, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1981)), conforme a qual o dispositivo da associação livre pode provocar o desencadeamento numa psicose que até então estivera estabilizada: “acontece recebermos pré-psicóticos em análise, e sabemos em que isso dá - isso dá em psicóticos” (p. 285). O que significa, senão uma contraindicação absoluta ao tratamento, ao menos um alerta de prudência redobrada ao se aceitar um paciente pré-psicótico.

O interesse de Lacan em isolar as experiências nucleares não se deve exclusivamente ao problema da detecção precoce da estrutura, mas também à sua hipótese de que o fenômeno elementar oferece, por sua simplicidade, uma visão límpida e cristalina das linhas de força em jogo no complexo quadro da psicose; linhas estas que desenham uma estrutura pertencente ao campo do simbólico. Elas formam, assim, uma espécie de mapa, que por reduzir um território a seus pontos principais, fornece um panorama privilegiado do conjunto. Daí ser possível a Lacan fazer um uso ampliado da noção de fenômeno elementar, já que qualquer outro fenômeno posterior e secundário, como o delírio, deve ser uma repetição em nível ampliado do que já emerge primariamente no fenômeno elementar:

O importante do fenômeno elementar não é, portanto, ser um núcleo inicial, um ponto parasitário, como Clérambault se exprimia, no interior da personalidade, em torno do qual o sujeito faria uma construção, uma reação fibrosa destinada a enquistá-lo envolvendo-o, e ao mesmo tempo integrá-lo, isto é, explicá-lo, como dizem frequentemente. O delírio não é deduzido, ele reproduz a sua própria força constituinte, é, ele também, um fenômeno elementar. (p. 28)

Em relação à circunscrição dos “fenômenos elementares”, o conjunto do que se considera incluído nessa categoria varia de autor para autor dentro da Psiquiatria; alguns, por exemplo, incluem as alucinações como fenômenos elementares, ao passo que outros as excluem3 3 “Talvez por tratar-se de um terreno híbrido e relativamente silencioso, as considerações feitas pelos especialistas sobre este tipo de fenômenos não deixam de mostrar certas discrepâncias, chegando inclusive a incorrer em contradições. Há quem considere a alucinação e o fenômeno elementar como homólogos; também há autores que limitam a presença desse fenômeno ao desencadeamento da loucura; e não faltam tampouco aqueles que acreditam poder prescindir integralmente dele” (Álvarez, 2009, p. 111). . Num sentido mais estrito, proposto por (Álvarez, 2009Álvarez, J. M. (2009). Estudios sobre la psicosis. Buenos Aires, Argentina: Grama.), tais fenômenos não possuiriam, inicialmente, conteúdo alucinatório. Tal definição é interessante quando se visa delimitar signos precoces da psicose, ou seja, manifestações que aparecem de forma silenciosa e que não se fazem notar ao olhar leigo. Tais sinais podem estar presentes na vida do paciente sem que este jamais chegue a experimentar um desencadeamento. Preocupado com a questão do diagnóstico da psicose ordinária, Álvarez evita colocar entre os fenômenos elementares as alucinações e os delírios, porque os entende como signos tardios que caracterizam uma psicose já declarada.

Contudo, é evidente que tal separação tem algo de artificial. Por isso, pode-se tentar dar um sentido mais amplo aos fenômenos elementares; esta é a versão que aparece no Seminário 3 (Lacan, 1981/2002Lacan, J. (2002). O seminário livro 3: as psicoses, 1955-1956 (A. Menezes, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1981)), no qual o autor propõe uma ampliação da noção, sendo possível estender à alucinação o mesmo raciocínio que ele aplica ao delírio ou a qualquer processo secundário: todos reproduzem de forma ampliada a força presente no fenômeno elementar. Nesse sentido estendido, os fenômenos elementares abarcariam todo o conjunto das experiências enigmáticas. A nosso ver, tanto o sentido amplo quanto o restrito podem ser úteis, dependendo do problema que se quer examinar.

Como ponto de partida, apresentaremos o ponto de vista de (Álvarez, 2009Álvarez, J. M. (2009). Estudios sobre la psicosis. Buenos Aires, Argentina: Grama.), segundo o qual os fenômenos elementares poderiam ser divididos em dois grandes tipos.

  1. Os xenopáticos dizem respeito a uma perda de controle pelo sujeito do seu pensamento, do seu corpo ou da sua vontade, que passam a estar sob o poder automático de uma influência estranha e alheia a si próprio. Correspondem, em linhas gerais, aos fenômenos de automatismo mental e corporal tal como descritos por (Clérambault, 1920/2006Clérambault, G. G. (2006). Automatismo mental e cisão do eu. In Harari, A., Clínica lacaniana da psicose: de Clérambault à inconsistência do outro (V. Ribeiro, trad., pp. 53-66). Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa Livraria. (Trabalho original publicado em 1920)); fenômenos nos quais “o doente que se sente influenciado não pertence mais a si mesmo” (p. 57), pois “a representação do eu físico é atingida” (p. 57). Poderíamos dar como exemplos: interferência de pensamento, detenção do fluxo de ideias, convicção de que os órgãos do corpo estão se transformando, aceleração de pensamento etc.

Importa assinalar que Clérambault se debruçou muito mais intensamente sobre a descrição do automa­tismo mental que do corporal. Ele classificou os fenômenos de automatismo mental de várias formas, uma delas segundo sua evolução no tempo. As formas iniciais do automatismo mental não são sensoriais; as formas intermediárias já ganham conteúdo sensorial, mas não possuem ainda caráter alucinatório; as formas tardias já são alucinatórias, geralmente auditivas e verbo-motoras (Barros & Campos Filho, 2002Barros, J. S. & Campos Filho, R. (2002). Síndrome do automatismo mental: uma exposição doutrinária de de Clérambault. Revista USP, (54), 151-163. doi: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i54p151-163
http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-903...
, p. 158). Apenas as formas inicial e intermediária são denominadas por ele de Síndrome do pequeno automa­tismo mental.

Essa precisão é importante, sobretudo quando se considera que na psicose ordinária podem estar ausentes alucinações ou delírios, mas devem poder ser encontrados outros fenômenos psicóticos mais sutis. A apresentação da Síndrome do pequeno automatismo mental vem ao encontro da necessidade de uma descrição clínica mais delicada e minuciosa dos fenômenos como forma de diagnóstico.

  1. Os fenômenos de autorreferência dizem respeito a experiências nas quais o sujeito se sente diretamente aludido ou designado por fatos ou pessoas, cuja significação se torna pessoalmente endereçada a ele. São exemplos: a intuição (na qual o paciente tem acesso à revelação súbita de uma verdade plena) e a percepção delirante (na qual o paciente lê nos objetos do mundo signos destinados a ele). A diferença básica entre os dois tipos de fenômenos elementares é que, enquanto os xenopáticos testemunham a fragmentação da identidade egóica, os de autorreferência demonstram a manutenção da integridade do Eu (Álvarez, 2009Álvarez, J. M. (2009). Estudios sobre la psicosis. Buenos Aires, Argentina: Grama.).

Posição do problema: a natureza estrutural do patognomônico

No Seminário 3, (Lacan, 1981/2002Lacan, J. (2002). O seminário livro 3: as psicoses, 1955-1956 (A. Menezes, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1981)) examina as noções da psiquiatria clássica à luz de categorias da linguística estrutural, da qual resulta uma nova inteligibilidade dos fenômenos elementares, no qual estes passam a ser pensados conforme um princípio significante. Trata-se da emergência de uma experiência enigmática, passível de ser traduzida como emergência de um significante vazio de significação. Assim, tanto os fenômenos xenopá­ticos quanto os de autorreferência têm como base comum constituírem uma experiência enigmática, o que significa situá-la como uma fratura no campo do sentido. O termo experiência enigmática acabará sobressaindo ao de fenômenos elementares por já estar articulado aos aportes do estruturalismo do ensino de Lacan.

Se o fenômeno elementar foi convocado a suportar tal peso na teoria lacaniana da psicose, é por se tratar de um fenômeno que só pode ser circunscrito quando se relaciona a um sujeito. O que importa aqui é situar um tipo particular de relação do sujeito às próprias produções, as quais este está justamente impossibilitado de reconhecer como suas produções, as quais se tornam, por essa razão, enigmáticas. Ou seja, o acento será posto sobre a psicose como um modo especial da relação do sujeito com o significante, na qual o aparelho da linguagem pode se tornar exterior ao sujeito.

(Lacan, 1981/2002Lacan, J. (2002). O seminário livro 3: as psicoses, 1955-1956 (A. Menezes, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1981)) recorre à descrição das alucinações psicomotoras verbais, feita pelo psiquiatra Jules Séglas, para destacar a singularidade da experiência psicótica. Trata-se de um tipo especial de alucinação, em que o sujeito diz uma frase, declara tê-la escutado, mas a seguir é capaz de afirmar que a frase lhe chegou de fora, como se não fosse ele mesmo que a houvesse pronunciado:

ele [Séglas] notou que as alucinações verbais se produziam em pessoas em quem se podia perceber, com sinais muito evidentes em certos casos, e em outros observando-as um pouco mais atentamente, que elas próprias estavam articulando, sabendo ou não, ou não querendo sabê-lo, as palavras que eles acusavam as suas vozes de as terem pronunciado. (p. 33)

Este fato espantoso nos leva a perguntar: como pode alguém dizer algo e não estar em condições de reconhecer o dizer como seu? Como alguém pode emitir significantes e não ser capaz de incluir a si próprio em sua atividade significativa? Tais problemas levam Lacan a abordar a questão da psicose como um problema de uma intencionalidade que não se engancha à cadeia significante, como se faltasse um broche que faz o elo entre intenção subjetiva e sequência significante objetiva. Como se estivesse ausente o efeito, típico na neurose, em que o sujeito é basteado, alfinetado e capturado pelo discurso. Entramos aí no coração do problema da experiência enigmática: torna-se impossível para o sujeito situar-se na cadeia significante. Dito de outra forma, temos aí um significante que não representa o sujeito.

Conforme (Miller, 1995Miller, J. A. (1995). A invenção do delírio. Opção lacaniana online, 5, 1-25. Recuperado de http://www.opcaolacaniana.com.br/antigos/pdf/artigos/JAMDelir.pdf
http://www.opcaolacaniana.com.br/antigos...
), “o fenômeno elementar representa algo, porém não se sabe muito bem o quê. Digamos que representa não se sabe o quê para alguém, para o sujeito” (p. 8). Em vez da fórmula lacaniana padrão, em que o significante representa o sujeito para outro significante, o significante passa a representar não se sabe o quê para um sujeito, ou seja, ele representa algo para alguém. Temos um S1 isolado, sem que o psicótico possa recorrer imediatamente a um S2 que o tornaria legível.

Por que não traduzir dessa forma a foraclusão do Nome-do-pai, a forclusão deste S2 que para o neurótico permite-lhe decifrar tudo sem perplexidade? Isto que no neurótico, o chamado normal, surge tão naturalmente, se me permitem, para o psicótico implica em um grande trabalho, pois deve fazer uma elaboração de saber não tão natural. (p. 21)

Ao se dar conta da possibilidade, aberta pela estrutura psicótica, de o significante não representar o sujeito, (Lacan, 1981/2002Lacan, J. (2002). O seminário livro 3: as psicoses, 1955-1956 (A. Menezes, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1981)) se faz uma série de importantes perguntas:

Onde, no significante, está a pessoa? Como um discurso se sustenta de pé? Até que ponto um discurso que parece pessoal pode, somente no plano do significante, portar muitos traços de impersonalização para que o sujeito não o reconheça como seu? (p. 304)

Note-se aqui claramente a preocupação em isolar o ponto no qual o sujeito se ata à cadeia significante, em que ele dá sustentação vital àquilo que é dito. Munido dessas perguntas, Lacan recorrerá às contribuições da linguística estrutural, encontrando uma primeira orientação no trabalho de Benveniste sobre os pronomes pessoais, o qual será objeto de discussão no Seminário 3 (Lacan, 1981/2002Lacan, J. (2002). O seminário livro 3: as psicoses, 1955-1956 (A. Menezes, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1981)).

O tratamento do problema da experiência enigmática no Seminário 3: Lacan com Benveniste

Sem querer aqui resumir toda a riqueza da contribuição da linguística benvenisteana para Lacan, destacaremos em particular o problema, explorado no Seminário 3 (1981/2002Lacan, J. (2002). O seminário livro 3: as psicoses, 1955-1956 (A. Menezes, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1981)), de situar o que distingue um discurso pessoal de um discurso impessoal no que concerne à questão do autorreconhecimento do sujeito através da enunciação. Lembremos que, por definição, a enunciação pressupõe a autopercepção do sujeito como uma instância agente e transparente a si mesma no interior do campo do significante. O que se tem em mira é justamente pensar o intrigante fato de que, na psicose, o sujeito possa não ser representado pelo significante no momento mesmo em que realiza o ato de enunciação, gerando a estranha experiência de uma enunciação desvinculada de seu enunciador. Será no interior da reflexão de Lacan acerca deste estranho fenômeno que encontraremos a referência à Benveniste.

Neste seu terceiro seminário, dedicado ao estudo das psicoses, encontramos apenas seis referências de Lacan a Benveniste. No entanto, tal escassez não reflete sua importância; ao contrário, Benveniste é um interlocutor privilegiado para Lacan, na medida em que é convocado como uma espécie de aliado no projeto que abarca o próprio título do seminário: seria possível demonstrar a pertinência da psicanálise na compreensão e no tratamento da psicose justamente na medida em que a psicose pudesse ser reduzida inteiramente a um problema pertencente ao registro da linguagem. É neste sentido que Lacan encontra em Benveniste a possibilidade de ilustrar algo que ele mesmo busca circunscrever: através da categoria linguística dos shifters (traduzido como embreadores, ou dêiticos, em português) podemos encontrar um exemplo da imbricação existente entre subjetividade e linguagem.

Benveniste não estava distante de Roman Jakobson que, desde 1950, já apresentava as categorias verbais presentes no enunciado, que se caracterizam exclusiva­mente pela referência ao contexto de enunciação. Conforme (Jakobson, 1957/1963Jakobson, R. (1963). Les embrayeurs, les catégories verbales et le verbe russe. In Essais de linguistique générale (vol. I, pp. 177-196). Paris, France: Les Éditions de Minuit. (Trabalho original publicado em 1957)), a noção de dêiticos (shifters) formaria uma categoria à parte na língua natural em virtude de sua função específica: são os elementos da língua que fazem diretamente referência a um significado pragmático associado a uma situação discursiva concreta. (Benveniste, 1956/1997Benveniste, E. (1997). Estructura de las relaciones de pessoa en el verbo. In Problemas de lingüística general (Tomo I, pp. 161-171). Ciudad de México, México: Siglo Veintiuno. (Trabalho original publicado em 1946)), em um célebre artigo em homenagem a este gênio, assinala o quanto os shifters constituem uma classe gramatical que atravessa alguns dos pronomes pessoais, os advérbios de tempo e espaço, assim como as flexões verbais de tempo e pessoa.

Dentro do universo dos shifters, aqueles que mais diretamente interessam ao nosso problema seriam os pronomes pessoais em 1a ou 2a pessoas. Os pronomes pessoais eu e tu são signos desprovidos de conteúdo referencial empírico, pois não se relacionam a um objeto sensível, que se manteria substancialmente idêntico ao longo do tempo: assim, eu pode mudar de sentido caso seja dito por Lacan ou por Freud, por exemplo. Esses dois pronomes pessoais, diferente dos outros pronomes, não possuem referência material, pois não indicam, nem uma coisa da qual possamos predicar qualidades, nem as qualidades de uma coisa (Benveniste, 1956/1966Benveniste, E. (1966). De la subjectivité dans la langue. In Problèmes de linguistique générale (Tomo I, pp. 258-266). Paris, France: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1958), p. 252). Tais termos ganham significação somente dentro de uma realidade discursiva, incluindo inevitavelmente uma referência ao sujeito falante, posto que eu é aquele que fala e tu é aquele com quem se fala. “Qual é, pois, a realidade a que se referem Eu/Tu? Tão somente uma realidade de discurso, que é coisa muito singular... . Eu significa ‘a pessoa que enuncia a presente instância de discurso que contém eu’” (Benveniste, 1956/1997Benveniste, E. (1997). La naturaleza de los pronombres. In Problemas de lingüística general (Tomo I, pp. 172-179). Ciudad de México, México: Siglo Veintiuno. (Trabalho original publicado em 1956), p. 173). Como os pronomes eu/tu não se referem à noção de uma substância invariável, seu vazio de referência apenas poderá ser preenchido a partir do ato de fala, ou seja, de sua situação pelas coordenadas de um discurso:

O emprego [desses pronomes] tem, pois, por condição a situação de discurso, e nenhuma outra. Se cada locutor, para expressar o sentimento que tem de sua subjetividade irredutível, dispusesse de um indicativo distintivo ... haveria praticamente tantas línguas como indivíduos e a comunicação seria estritamente impossível. A linguagem previne tal risco instituindo um signo único, porém móvel, Eu, que pode ser assumido por cada locutor, com a condição de só remeter a cada vez à instância do seu próprio discurso. (p. 175)

Nesse ponto, é possível compreender porque Benveniste afirmará que os pronomes pessoais não têm todos o mesmo status. Enquanto eu/tu podem funcionar como shifters, o mesmo não é válido para a terceira pessoa (ele), a qual Benveniste justamente considera como uma não pessoa. Isso porque a figura da terceira pessoa concerne a um objeto do qual falamos e não à pessoa que fala ou à pessoa com quem se fala (1956/1966Benveniste, E. (1966). De la subjectivité dans la langue. In Problèmes de linguistique générale (Tomo I, pp. 258-266). Paris, France: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1958), p. 256). A não pessoa designa assim a classe dos pronomes que não possuem uma natureza reflexiva; característica esta presente justamente nos shifters.

É interessante notarmos o quanto Benveniste, inúmeras vezes, reveste o fato da enunciação, representado nos shifters, com a mesma estrutura que aquela do Cogito, um cogito enunciativo, no qual em vez do eu penso, logo sou, teríamos um enuncio, logo sou, ou, nas palavras de (Benveniste, 1958/1966Benveniste, E. (1966). De la subjectivité dans la langue. In Problèmes de linguistique générale (Tomo I, pp. 258-266). Paris, France: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1958)): a enunciação dêitica eu corresponde à “coincidência do acontecimento descrito com a instância de discurso que a descreve” (p. 262). E, por isso, os shifters são figuras cuja única função é dar forma à subjetividade falante, instalando a “subjetividade na língua” e criando a própria “categoria da pessoa” (p. 263). Nesse sentido, podemos perceber que, mesmo quando se tratam de shifters temporais (ontem, amanhã, hoje etc.) ou de shifters espaciais (aqui, lá etc.), não se trata nunca do tempo ou do espaço métricos da objetividade da medição da ciência, mas de um espaço e de um tempo unicamente referidos ao sujeito em primeira pessoa. Os shifters são os signos vazios através dos quais se expressa uma subjetividade irredutível no interior de um endereçamento da palavra ao Outro.

Lacan concorda com a maioria dos pressupostos de Benveniste no que concerne aos elementos envolvidos na enunciação, mas também está bastante advertido do que implica a transposição de uma teoria da enunciação para o campo psicanalítico. Por isso, a possibilidade de utilizar a referência à teoria benvenisteana da enunciação não é realizada por Lacan da maneira como um linguista esperaria.

Em todas as suas referências à Benveniste, Lacan nos dá a impressão de bem conhecer a particularidade morfo-gramatical dos shifters. Lacan vai se interessar particularmente por uma estranha exceção interna à teoria dos shifters, que é quando ocorre a possibilidade de um uso impessoal da 2ª pessoa (tu/você): “pode-se usar a 2ª pessoa fora da alocução e fazê-la entrar numa variedade de impessoal” (Benveniste, 1946/1997Benveniste, E. (1997). La naturaleza de los pronombres. In Problemas de lingüística general (Tomo I, pp. 172-179). Ciudad de México, México: Siglo Veintiuno. (Trabalho original publicado em 1956), p. 167). O exemplo dado pelo próprio linguista desse uso impessoal da 2a pessoa será citado na íntegra por (Lacan, 1981/2002Lacan, J. (2002). O seminário livro 3: as psicoses, 1955-1956 (A. Menezes, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1981)), como se lê na seguinte passagem do Seminário 3:

Quando se diz no uso mais corriqueiro - Não se pode passear sem que você seja abordado, não se trata na realidade de nenhum tu, de nenhum você. O você assume quase o valor da partícula de indeterminação do sujeito, é o seu correspondente. (p. 311, grifo nosso)

Ou seja, o você aqui empregado não diz respeito à pessoa com quem se fala, mas à qualquer pessoa. Tanto é que a frase em destaque poderia ser tranquilamente substituída por: sem que se seja abordado, funcionando o “se” como índice de indeterminação do sujeito. Você aqui visa genericamente qualquer um: “a função da 2ª pessoa nessa ocasião é justamente visar o que é de ninguém, o que se despersonaliza” (p. 311).

Apesar de ter recolhido a distinção entre os usos pessoal/impessoal do pronome tu da leitura de Benveniste, Lacan está decidido a fazer um uso original dos ensinamentos da linguística. Quando se toma, por exemplo, uma fala fundadora como tu és meu mestre, é evidente se tratar aqui de um uso pessoalizado do pronome. Só que a justificativa correta sob o ponto de vista linguístico - a saber, o fato de o tu em questão referir-se à pessoa com quem se fala e não a uma pessoa genérica - não será exatamente a razão alegada por Lacan. A justificativa psicanalítica reside em que, ao escutar alguém dizer a ele tu és meu mestre, o sujeito torna-se outro, diferente daquilo que ele é, por se esforçar em corresponder ao que se espera que ele seja. O sujeito assume o encargo de uma missão que o engaja a ir além de si mesmo, implicando-se numa operação de identificação que o transforma radicalmente. É nesse ponto que reside a operação de pessoalização. Ou, para exprimi-lo em termos lacanianos mais precisos, é aí que se localiza a operação de basteamento ou o ponto de subjetivação da cadeia.

A performatividade em jogo no uso pessoalizado do pronome é, sem sombra de dúvida, o que está em jogo para Lacan:

O tu é no significante o que chamo de uma maneira de anzolear o outro, de anzoleá-lo no discurso, de enganchar-lhe a significação. Ele não se confunde de modo algum com o alocutário, a saber, aquele com quem se fala. (p. 336, grifo nosso)

Está clara aqui uma crítica à definição, demasiadamente estreita, do tu personalizado na linguística. A ênfase no caráter transformador e operativo do tu na fala plena fica evidenciada na passagem seguinte: “esse tu que em si mesmo não é tanto o que designa o outro quanto o que nos permite operar sobre ele” (p. 337). Ou seja, o pronome pessoal possui um caráter operativo e não simplesmente descritivo: ele realiza mudanças e produz efeitos.

Mas, se na neurose é preciso que algo no sujeito venha corresponder ao mandato que lhe é outorgado pelo Outro, o que se passa na psicose? Em exemplo citado por Lacan (p. 344), um rapaz, cuja psicose até certo momento não havia se declarado, é surpreendido um dia pela notícia de que a esposa esperava um filho. Mal lhe anunciaram você vai ser pai, o rapaz começa a ter alucinações, nas quais uma aparição lhe diz: Você é São Tomás. O ponto fundamental é que o mandato proveniente do Outro não pode ser acolhido, o sujeito é convocado a um lugar pelo qual não pode responder de forma simbólica. Não há, inicialmente, operação de subjetivação, razão pela qual o significante permanece impessoal, indeterminado e sem valor de representação do sujeito.

A aproximação de Lacan com os estudos de Benveniste e com o uso impessoal do pronome tu pode parecer nesse contexto um pouco forçada, mas a nosso ver pode ser mais bem esclarecida como uma solução insatisfatória para um problema verdadeiro: o de como isolar, na psicose, o significante, podendo se autonomizar em relação ao sujeito e tornar-se exterior a ele.

A solução do problema: “Eu venho do salsicheiro”

A apresentação do caso clínico a seguir foi relatada no âmbito do Seminário 3 (Lacan, 1981/2002Lacan, J. (2002). O seminário livro 3: as psicoses, 1955-1956 (A. Menezes, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1981)), tendo sido reescrito em “De uma questão preliminar a todo trata­mento possível da psicose” (Lacan, 1966/1998Lacan, J. (1998). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In Escritos, 1957-1958 (V. Ribeiro, trad., pp. 537-590). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1966)). Há um texto de Éric (Laurent, 1995Laurent, E. (1995). Versões da clínica psicanalítica (V. Ribeiro, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 121) que marca com precisão as notáveis diferenças da narrativa do caso entre um trabalho e outro, as quais se devem em grande parte à influência da leitura de Jakobson por Lacan. Por essa razão, será aqui privilegiada a abordagem constante na “Questão preliminar”.

Numa apresentação de doentes no hospital Sainte-Anne, Lacan entrevista uma paciente paranoica. Separada do marido, voltara a morar com a mãe, com a qual convivia numa espécie de delírio a dois. Ambas sentem como particularmente intrusiva a interferência ocasional de uma vizinha, de vida sexual aparentemente intensa. Um dia, ao cruzar no corredor com o amante casado da tal vizinha, a paciente escuta-o dizer o xingamento alucinado: Porca! Lacan lhe pergunta se ela teria dito algo àquele homem imediatamente antes, ao que ela admite que sim: Eu venho do salsicheiro.

O equívoco que se deve aqui evitar é analisar esse caso sob a ótica da projeção, na qual o sujeito, identificado inicialmente a uma porca, afastaria em seguida essa interpretação de seu próprio ser, atribuindo tal julgamento ao outro. Isso porque a projeção supõe o reconhecimento prévio daquilo que o sujeito posteriormente se esforçará por desconhecer: ora, o que está em jogo na psicose é exatamente a inexistência desse reconhecimento prévio.

Por isso Lacan, pouco inclinado a identificar na frase um mecanismo projetivo, prossegue perguntando à paciente: a quem visava a frase “eu venho do salsicheiro”? A resposta é: a paciente não sabe quem é esse “eu”. Apesar de a paciente saber que foi ela quem proferiu tais palavras, estas não podem ser reconhecidas como referidas a si mesma.

Para o nosso objetivo atual, basta a doente haver reconhecido que a frase era alusiva, sem que no entanto pudesse mostrar nada além de perplexidade quanto a apreender a quem dos copresentes ou do ausente se referia a alusão, pois assim se evidencia que o [Eu], como sujeito da frase em estilo direto, deixara em suspenso, de conformidade com sua chamada função de shifter na linguística, a designação do sujeito falante. (Lacan, 1966/1998Lacan, J. (1998). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In Escritos, 1957-1958 (V. Ribeiro, trad., pp. 537-590). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1966), p. 541, grifo nosso)

A frase é alusiva, já que a paciente admite fazer alusão a suíno. Mas quem é o porco? A paciente? O amante da vizinha? Alguém ausente? O sujeito nada sabe - mas não no mesmo sentido que o não saber recalcado.

Conforme o trabalho muito esclarecedor de Silvia (Tendlarz, 2009Tendlarz, S. (2009). Psicosis: lo clásico y lo nuevo. Buenos Aires, Argentina: Grama.), a frase eu venho do salsicheiro assume um valor indeterminado, pois, na medida em que o sujeito não se faz representar pelo significante, não poderá realizar uma distribuição das vozes.

Há uma indeterminação quando aparece o eu, que é um pronome pessoal, quando aparece o shifter - notem que já não é somente como pronome, mas sim também como shifter - frente à pergunta: quem é o eu? ... . Falta o ordenador central, o Nome-do-pai, e isso produz certa vacilação subjetiva. Algo fica em suspenso, a frase está interrompida subjetivamente, ainda que possa estar correta no nível gramatical, o que não impede que esteja interrompida. Se o sujeito não pode produzir uma distribuição das vozes e dar uma atribuição, a frase está interrompida. (Tendlarz, 2009Tendlarz, S. (2009). Psicosis: lo clásico y lo nuevo. Buenos Aires, Argentina: Grama., p. 106, grifo nosso)

Importa aqui a definição do vazio enigmático como uma cadeia interrompida, traduzida como um S1 solitário, um S1 que não se conecta a um S2. Portanto, há um primeiro momento lógico de perplexidade, que se caracteriza pela indeterminação, no qual a distribuição das vozes não pode ser feita.

Porém, a suspensão da significação se encerra após uma pausa, quando aparece a alucinação verbal: Porca! (Lacan, 1966/1998Lacan, J. (1998). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In Escritos, 1957-1958 (V. Ribeiro, trad., pp. 537-590). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1966), p. 541). A alucinação permitirá uma distribuição das vozes, em que a paciente tem certeza que o vizinho insultou a ela.

Como se sai dessa oscilação atributiva, dessa perplexidade inicial? No lugar em que aparece a oscilação atributiva, a voz alucinatória permite localizar e fazer com que o sujeito possa distribuir a voz. Diante da voz “eu venho do…” e da perplexidade frente às perguntas “quem disse isso? quem é esse eu?” a resposta é “o outro me chamou de porca”. Isso é uma localização, uma distribuição das vozes. (Tendlarz, 2009Tendlarz, S. (2009). Psicosis: lo clásico y lo nuevo. Buenos Aires, Argentina: Grama., p. 108)

A alucinação permite por fim a indeterminação pela emergência de uma certeza. A certeza se desdobra em três 3 níveis: certeza da realidade do fenômeno; certeza da existência de uma significação; certeza de seu endereçamento ao sujeito.

Há uma famosa passagem de “Questão preliminar” na qual (Lacan, 1966/1998Lacan, J. (1998). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In Escritos, 1957-1958 (V. Ribeiro, trad., pp. 537-590). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1966)) articula o primeiro tempo lógico da indeterminação ao segundo tempo lógico da determinação da certeza: “trata-se, na verdade, de um efeito do significante, na medida em que seu grau de certeza (segundo grau: significação de significação) adquire um peso proporcional ao vazio enigmático que se apresenta inicialmente no lugar da própria significação” (p. 545). O vazio enigmático (primeiro grau: ausência da significação) converte-se em certeza de significação (segundo grau: significação da significação).

Importa ressaltar que a certeza não acarreta uma dissipação do enigma: este persistirá, ainda que de outra forma. A certeza não implica uma superação ou um ultrapassamento da indeterminação, ao contrário, acarreta uma coexistência das duas.

A certeza não exclui o sentimento de perplexidade, longe disso, visto que a significação da significação não designa nada além de uma significação presente, mas indeterminada, o que é a própria definição do enigma com que o sujeito psicótico depara. (Soler, 2007Soler, C. (2007). O inconsciente a céu aberto da psicose. (V. Ribeiro, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 101, grifo nosso)

A certeza é, então, a continuação do enigma por outros meios. Conclui-se que a noção de experiência enigmática não aponta exclusivamente para o momento inicial de indeterminação, mas abrange também a certeza. Pode-se dizer que a experiência enigmática é um complexo de experiências, ou ainda uma experiência constituída por dois tempos lógicos.

Os dois tempos lógicos trazem nova luz à classificação dos fenômenos elementares proposta por (Álvarez, 2009Álvarez, J. M. (2009). Estudios sobre la psicosis. Buenos Aires, Argentina: Grama.). Poder-se-ia dizer que os fenômenos xenopáticos, atestados pelas diversas formas de automatismo que manifestam uma subjugação do Eu, situam-se mais próximos do polo indeterminado da significação. Já os fenômenos de autorreferência, em que há uma mensagem pessoal referida ao sujeito, situam-se mais próximos do polo da certeza.

Vale notar que a compreensão de experiência enigmática, como constituída por dois tempos lógicos, permite incluir dentro dessa chave, não somente os fenômenos elementares, como também o delírio - conforme a tese lacaniana que equipara o delírio ao fenômeno elementar.

Conclusão

O uso original que Lacan faz da teoria do shifter e da enunciação em Benveniste e Jakobson é um correlato do uso original que ele faz da teoria do signo em Saussure. Apesar de fazer apelo aos estudos da linguística, Lacan sai dos limites estritos do que seria pensável dentro daquela disciplina ao localizar na estrutura psicótica a possibilidade de uma enunciação sem enunciador. Ao se deparar com a impossibilidade de localizar o enunciador, o psicótico suplementará a dificuldade colocando a si mesmo como objeto da enunciação, ou seja, ele passa a instanciar a enunciação com seu próprio corpo.

Tal descrição coincide com os dois tempos lógicos da experiência enigmática. Há um instante primeiro de indeterminação, em que a enunciação é emitida, mas na qual ainda não é possível para o sujeito circunscrever a fonte e a origem da enunciação. Há um segundo instante, no qual o sujeito oferta seu corpo como alvo e destinatário de uma estranha enunciação, que é então tomada como certeza vinda de fora. Tais momentos lógicos, ao permitirem uma redistribuição dos fenômenos elementares, comprovam como a teoria lacaniana do significante permite uma leitura renovada de uma noção da psiquiatria clássica.

Referências

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  • 1
    Isso significa que tais pesquisas não necessariamente seguirão a orientação atomística original do mecanicismo. As perspectivas psicogenéticas, por exemplo, ressaltarão a ideia da doença como fenômeno total, em vez de elementar (Simanke, 2002Simanke, R. T. (2002). Metapsicologia lacaniana: os anos de formação. Curitiba, PR: UFPR.); porém mantendo a ideia de uma separação entre processos primários e secundários.
  • 2
    (Lacan, 1981/2002Lacan, J. (2002). O seminário livro 3: as psicoses, 1955-1956 (A. Menezes, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1981)) afirma explicitamente ter recolhido o termo fenômenos elementares na obra de Clérambault, o qual lhe transmitiu o interesse por essa questão, presente pelo menos desde a tese de doutoramento: “Se vocês lerem, por exemplo, o trabalho que fiz sobre a psicose paranoica, verão que enfatizo nele o que chamo, tomando emprestado o termo a meu mestre Clérambault, os fenômenos elementares” (p. 28, grifo nosso).
  • 3
    “Talvez por tratar-se de um terreno híbrido e relativamente silencioso, as considerações feitas pelos especialistas sobre este tipo de fenômenos não deixam de mostrar certas discrepâncias, chegando inclusive a incorrer em contradições. Há quem considere a alucinação e o fenômeno elementar como homólogos; também há autores que limitam a presença desse fenômeno ao desencadeamento da loucura; e não faltam tampouco aqueles que acreditam poder prescindir integralmente dele” (Álvarez, 2009Álvarez, J. M. (2009). Estudios sobre la psicosis. Buenos Aires, Argentina: Grama., p. 111).
  • 4
    This means that such researches would not necessarily follow the original atomistic orientation of the mechanicism. The psychogenetic perspectives, for example, would emphasize the idea of the disease as total phenomenon, rather than elementary (Simanke, 2002Simanke, R. T. (2002). Metapsicologia lacaniana: os anos de formação. Curitiba, PR: UFPR.); however, maintaining the idea of a separation between primary and secondary processes.
  • 5
    (Lacan, 1955–56/2002Lacan, J. (2002). O seminário livro 3: as psicoses, 1955-1956 (A. Menezes, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1981)) states explicitly having collected the term elementary phenomena from the work of Clérambault, who imparted to him the interest in this issue, present at least since the doctoral thesis: “If you read, for example, my work on paranoid psychosis you will see that I emphasize in it what I call, borrowing the term from my master Clérambault, the elementary phenomena” [emphasis added] (p. 28).
  • 6
    “Maybe as it is a hybrid and relatively silent ground, the considerations made by the specialists about this type of phenomena do not fail to show certain discrepancies, even incurring contradictions. There are those who consider hallucination and the elementary phenomenon as homologous; there are also authors that limit the presence of this phenomenon to the triggering of madness; and, also, there is no shortage of those who believe that this can do without it entirely” (Álvarez, 2009Álvarez, J. M. (2009). Estudios sobre la psicosis. Buenos Aires, Argentina: Grama., p. 111).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    15 Ago 2015
  • Revisado
    16 Maio 2016
  • Aceito
    03 Jun 2016
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