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Entre os sonhos e a interpretação: aparelho psíquico/aparelho simbólico

Between dreams and interpretation: psychic apparatus/symbolic apparatus

Resumos

Este texto interroga a idéia de "aparelho psíquico" nos limites da primeira tópica freudiana. Considerando que, no capítulo VII da Interpretação dos Sonhos, Freud define a realidade psicológica como uma forma especial de existência e o sonho como uma forma especial de pensamento, interroga-se que relação há entre essas formas, a forma de existir e a forma de pensar. Há equivalência entre elas? Ou há uma relação de fundamentação de uma pela outra? Tais perguntas levam o autor a analisar a questão da interpretação para chegar, com Freud, a uma compreensão do "aparelho psíquico" como "aparelho simbólico", aberto à intersubjetividade e às formações culturais como a literatura e as artes.

Sonho; Interpretação; Símbolo; Aparelho psíquico; Psicanálise


This paper presents and discusses the idea of the "psychic apparatus" within the limits of Freudian First Topography. Considering that in chapter VII of Interpretation of Dreams, Freud defines the psychological reality as a special form of existence and the dream as a special form of thought, the relation between these forms is questioned. Then the author analyzes the question of interpretation to reach, along with Freud, a comprehension of the "psychic apparatus" as a symbolic apparatus opened to intersubjectivity and to cultural formations, such as literature and art.

Dream; Interpretation; Symbol; Psychic apparatus; Psychoanalysis


ENTRE OS SONHOS E A INTERPRETAÇÃO: APARELHO PSÍQUICO/APARELHO SIMBÓLICO1 1 Agradeço ao Dr. Plínio Augusto do Amaral Neto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo que se dispôs, generosamente, a ler e a discutir comigo a primeira versão deste texto.

João A. Frayze-Pereira

Instituto de Psicologia - USP

Este texto interroga a idéia de "aparelho psíquico" nos limites da primeira tópica freudiana. Considerando que, no capítulo VII da Interpretação dos Sonhos, Freud define a realidade psicológica como uma forma especial de existência e o sonho como uma forma especial de pensamento, interroga-se que relação há entre essas formas, a forma de existir e a forma de pensar. Há equivalência entre elas? Ou há uma relação de fundamentação de uma pela outra? Tais perguntas levam o autor a analisar a questão da interpretação para chegar, com Freud, a uma compreensão do "aparelho psíquico" como "aparelho simbólico", aberto à intersubjetividade e às formações culturais como a literatura e as artes.

Descritores: Sonho. Interpretação. Símbolo. Aparelho psíquico. Psicanálise.

Na Interpretação dos Sonhos, logo no início da parte E do capítulo VII, Freud (1900) fala das dificuldades em expor toda a complexa problemática da "psicologia dos processos oníricos"; fala das dificuldades em apresentar o que é simultâneo através da sucessão, em apresentar o sincrônico através do diacrônico. Escreve:

Os elementos que são de fato simultâneos nesse todo complexo só podem ser representados sucessivamente em minha descrição deles, ao mesmo tempo que ao expor cada argumento, tenho de evitar precipitar as razões em que ele se fundamenta: dominar essas dificuldades está além de minhas forças. Em tudo isso, estou pagando o tributo por não ter podido, em minha descrição da psicologia do sonho, seguir o desenvolvimento histórico de minhas concepções. (p.534).

Tal dificuldade, entretanto, sugere um modo de ler. Trata-se de uma "leitura a contra-pelo", que vai de uma idéia condicionada às condicionantes, facilitando o acesso à articulação interna do texto. Nesse sentido, ao invés de começar pelo princípio da parte E e caminhar linearmente para a parte F, decidimos fazer esse exercício de leitura, começando pelo final da parte F cujo título é "O inconsciente e a consciência – realidade". E pretendemos, aqui, expressar o resultado dessa tentativa que acabou interrogando o sentido do termo "aparelho psíquico" (e, por extensão, do termo "realidade psíquica") nos limites da Primeira Tópica.

Com efeito, ao final do capítulo, Freud escreve:

... se olharmos para os desejos inconscientes, reduzidos à sua expressão mais fundamental e verdadeira, teremos de concluir, sem dúvida, que a realidade psíquica é uma forma especial de existência que não deve ser confundida com a realidade material. (1900, p.560).

Tal como está, a frase data de 1919; em 1914, a palavra material foi antecedida pela palavra fatual e, em 1909, apareceu com uma forma que revela a preocupação em dar um estatuto para o psíquico como realidade. E na primeira edição não aparece. De qualquer maneira, toda essa conclusão da parte F que é simultaneamente a idéia com a qual Freud conclui o cap.VII e, conseqüentemente, toda a obra, afirma a singularidade existencial do psíquico, portanto, como realidade que se opõe à realidade material. E é uma idéia em franca oposição àquela que Freud apresenta no início do Projeto de 1895. Escreve Freud na abertura do Projeto:

... a intenção é prover uma Psicologia que seja ciência natural, isto é, representar os processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de partículas materiais especificáveis, tornando esses processos claros e livres de contradição (...) os neurônios devem ser encarados como as partículas materiais. (p.347).

A comparação entre a idéia-conclusiva da Interpretação dos Sonhos e a idéia que abre o Projeto (várias vezes evocado nesse cap.VII) parece-nos estabelecer a diferença entre as duas obras, estabelecendo antes uma descontinuidade do que uma continuidade entre os textos. No entanto, a idéia que conclui o cap.VII permite a seguinte pergunta: que forma especial de existência é essa? Indo pelas margens, verifica-se que, em 1925, Freud acrescenta uma nota, dizendo o seguinte:

No fundo os sonhos nada mais são do que uma forma particular de pensamento, possibilitada pelas condições do sono. É o trabalho do sonho que cria essa forma, e só ele é a essência do sonho - a explicação de sua natureza peculiar. (1900, p.466).

Ou seja, a realidade psicológica é uma forma especial de existência e o sonho é uma forma especial de pensamento. E essas são duas idéias inteiramente distintas: a primeira privilegia a existência, a segunda, o pensamento. No entanto, que relação há entre essas formas: entre a forma de existir (identificada à realidade psicológica) e a forma de pensamento (identificada ao sonho)? Há uma relação de equivalência entre elas? Ou há uma relação de fundamentação de uma pela outra? Mas, não são essas perguntas muito mais filosóficas do que psicanalíticas? E, nesse sentido, para além do texto de Freud?

Ora, cabe aqui abrir um parêntese. Admitimos com Garcia-Roza (1993, p.202) que é difícil a um leitor permanecer constrangido dentro dos limites do texto de um autor como Freud, não porque autor e texto sejam limitados e obriguem o leitor a enriquecê-los com outros nomes e outros textos. Ao contrário, sobretudo no caso de Freud, há uma potência dos próprios escritos que nos leva muito além deles próprios, para um tempo que não é o de seus contemporâneos, mas o de seus pósteros. Nesse sentido, a riqueza de um texto de Freud está não só na sua potencialidade de suscitar diferentes leituras, mas também na sua disposição para responder às diferentes questões do nosso tempo que lhe são enviadas. E nisso está a sua contemporaneidade. Portanto, é possível a um leitor ser fiel a Freud sem deixar de ser contemporâneo, permanecer ao mesmo tempo no campo freudiano e além dele.

Assim, retomando, se considerarmos com Freud que o inconsciente é a verdadeira realidade psíquica (1900, p.554), a oposição entre vida consciente e vida onírica é reduzida às suas justas proporções. Isto é, porque o pensamento inconsciente é tão ativo durante o dia quanto à noite, os sonhos podem dar prosseguimento às atividades diurnas, de modo que, sendo o sonho uma formação entre outras formações psicopatológicas, sua análise permite a descoberta de que o inconsciente (isto é, o psíquico) é encontrado como uma função de dois sistemas separados: Inconsciente propriamente dito (inadmissível à Consciência) e o Pré-Consciente. E, diz Freud, porque suas excitações, depois de observarem certas regras e depois de passarem por alguma censura, chegam à Consciência. De modo que, situando-se o sistema Pré-Consciente como uma tela entre o sistema Inconsciente e a Consciência, cabe ao Pré-Consciente não apenas barrar o acesso à Consciência, mas, também, controlar o acesso ao poder da motilidade voluntária. Para isso tem a seu dispor uma energia de catexia móvel, parte da qual nos é familiar sob a forma de atenção (1900, p.556).

Diante dessas relações entre Pré-Consciente, Inconsciente e Consciência, que compõem o "aparelho psíquico", cabe à Conciência a função de um órgão sensorial capaz de discriminar qualidades psíquicas. A excitação aflui para a Consciência de duas direções: do sistema perceptivo e do interior do próprio aparelho, na forma de excitações de prazer e desprazer.

A semelhança da Consciência com o sistema perceptivo reside em que ambos são excitados por qualidades, mas incapazes de conservar traços das alterações produzidas pelas excitações, em oposição aos sistemas Pré-Consciente e Inconsciente que são sistemas mnêmicos.

Nessa medida, quando Freud afirma que o "inconsciente é o psíquico verdadeiramente real" está operando uma subversão simultaneamente epistemológica e ontológica, porque durante séculos o psíquico foi identificado à Consciência. Todo o pensamento moderno, de Descartes a Hegel, tem na Consciência uma referência central. Com Freud a Cons-ciência perde esse estatuto. Passa a representar uma pequena parte da totalidade psíquica, além de deixar de ser a sede da verdade. A verdade passa a ser concebida na relação com o desejo (portanto, com o Inconsciente) e a Consciência passa a ser o lugar da ilusão (Garcia-Roza, 1993, p.219-20).

Mas, se por um lado, toda a Consciência foi alguma vez Inconsciente, por outro lado, não temos acesso ao Inconsciente a não ser pela via da Consciência. Mais do que isso, o Inconsciente permaneceria inteiramente ignorado não fossem os efeitos produzidos por ele no nível da Consciência, expressos nos discursos, nas ações, nos sintomas, nos sonhos. Ou seja, a Psicanálise não pode prescindir da Consciência.

Diversamente do Behaviorismo de Watson, Freud não nega a existência da Consciência e também não a recusa metodologicamente. Ocorre que a Consciência, descentrada do lugar privilegiado que lhe era outorgado pela Psicologia, também tem reduzida a sua importância exclusiva como instrumento e lugar da verdade. Mais do que isso, como observou Merleau-Ponty (1960, p.258), "seria um erro falar aqui de Consciência, porquanto isso é restabelecer a dicotomia entre a alma e o corpo, no momento em que o freudismo a está contestando, e transformando assim tanto a nossa idéia do corpo como a nossa idéia de espírito". Se os "fatos psíquicos têm sentido", como demonstra Freud, nenhum comportamento humano pode ser o simples resultado de um mecanismo corporal. Isto quer dizer que não há, na conduta humana "um centro espiritual e uma periferia de automatismo, e que todos os nossos gestos participam à sua maneira dessa única atividade de explicitação e de significação que somos nós mesmos". Em Freud, o modo de explicação causal é problematizado. Há que se considerar que "pelo menos tanto quanto explica a conduta adulta por uma fatalidade herdada da infância, Freud mostra na infância uma vida adulta prematura ...; pelo menos tanto quanto explica o psicológico pelo corpo, Freud mostra o significado psicológico do corpo, a sua lógica secreta ou latente. Logo, já não é possível falar do sexo enquanto aparelho localizável ou do corpo enquanto massa de matéria, como de uma causa última." Ou seja, nem causa, nem meio; nem efeito, nem fim; nem matéria, nem forma – nenhuma das noções que a Filosofia elaborou é suficiente para "pensar as relações do corpo com a vida total, sua influência sobre a vida pessoal ou a influência da vida pessoal sobre ele". Como nas mais sofisticadas elaborações filosóficas contemporâneas, já em Freud o corpo aparece como uma realidade enigmática, quer dizer, "parte do mundo, por certo, mas estranhamente oferecida, como seu habitat, a um desejo absoluto de aproximar-se do outro e de unir-se a ele também em seu corpo, animado e animante, figura natural do espírito". Em suma, concluindo com Merleau-Ponty (1960, p.259), "com a Psicanálise o espírito introduz-se no corpo, assim como, inversamente, o corpo introduz-se no espírito." E, nesse ponto, acrescenta Merleau-Ponty, cumpre confessar que "ainda há muito que fazer para tirar da experiência psicanalítica tudo quanto ela contém ...". É um proveito que leva a Psicanálise a dialogar com a Filosofia e a Literatura Contemporâneas, pois não há dúvida de que Freud apurou cada vez melhor, na maturidade de sua obra, "a função espiritual do corpo e a encarnação do espírito." (Merleau-Ponty, 1960, p.260). Em outras palavras, Freud subverte a Consciência dos pontos de vista ontológico (ela não é o real verdadeiro) e epistemológico (não é a sede da verdade). E tal como se formula também na Interpretação dos Sonhos (Freud, 1900), a Psicanálise subverte a metafísica clássica (Merleau-Ponty, 1966, p.145-72).

Mas, se o Inconsciente é a verdadeira realidade psíquica que engloba o trabalho do sonho, qual a sua origem como realidade? Se o Inconsciente é realidade psíquica, é o próprio psíquico que funda a forma especial de pensamento que é o sonho? E com essas perguntas voltamos à questão inicial: que forma especial de existência é essa, a realidade psíquica, que se identifica ao inconsciente?

Considerando essas questões, encontramos em um parágrafo, acrescentado por Freud em 1919 (mesma data em que foi acrescentada, na sua forma final, a idéia que conclui o cap.VII), a apresentação de uma noção significativa:

o sonhar é, em seu conjunto, um exemplo de regressão à condição mais primitiva do sonhador, uma revivescência de sua infância, das moções pulsionais que a dominaram e dos métodos de expressão de que ele dispunha nessa época. Por trás dessa infância do indivíduo é-nos prometida uma imagem da infância filogenética - uma imagem do desenvolvimento da raça humana, do qual o desenvolvimento do indivíduo é, de fato, uma recapitulação abreviada, influenciada pelas circunstâncias fortuitas da vida. Podemos calcular quão apropriada é a asserção de Nietzsche de que, nos sonhos, "acha-se em ação alguma primitiva relíquia da humanidade que agora já mal podemos alcançar por via direta"; e podemos esperar que a análise dos sonhos nos conduza a um conhecimento da herança arcaica do homem, daquilo que lhe é psiquicamente inato. Os sonhos e as neuroses parecem ter preservado mais antigüidades anímicas do que imaginaríamos possível, de modo que a psicanálise pode reclamar para si um lugar de destaque entre as ciências que se interessam pela reconstrução dos mais antigos e obscuros períodos dos primórdios da raça humana. (1900, p.502).

A referência a Nietzsche é explícita, o que é raro na obra de Freud. Pelo que se tem notícia, havia uma admiração de Freud pela obra de Nie-tzsche que no tempo da Interpretação dos Sonhos já era bem conhecida na cultura de língua alemã. Assim, a evocação de Nietzsche, nesse momento, destaca o filósofo dos inúmeros autores anotados no capítulo I da Interpretação, quando Freud resenha criticamente o conhecimento existente sobre os sonhos.

A citação feita por Freud é de memória, é livre, revelando desenvoltura na relação com o pensamento do filósofo. Trata-se de uma passagem do 13º aforismo da obra Humano, Demasiado Humano, obra do segundo período da Filosofia de Nietzsche (período justamente em que o filósofo considera o Positivismo de Comte) no qual declara: "No sonho continua a agir em nós aquela parte arcaica da humanidade, pois ele é o fundamento sobre o qual a razão superior se desenvolveu, e ainda se desenvolve em cada homem". E o que Freud coloca a seguir no desenvolvimento dessa idéia está perfeitamente de acordo com o pensamento nietzscheano sobre a questão. Nietzsche, logo depois, escreve: "o sonho nos transporta a longínquos estados de civilização e nos dá um meio de melhor compreendê-los." (Assoun, 1989, p.68, 71-2).

Ou seja, o discurso do filósofo sobre o sonho retoma uma temática romântica sobre a questão. E não seria o caso de entrar agora por essa via, mas é preciso lembrar que a idéia de gênese contida nessa evocação feita por Freud de Nietzsche (a idéia da "primitiva relíquia da humanidade") não se coloca na vertente biológica, no campo da Natureza. A propósito, Freud (1900) diz o seguinte, esclarecendo "a natureza genética" dos sonhos:

As coisas que estão hoje simbolicamente ligadas provavelmente já estiveram unidas em épocas pré-históricas pela identidade conceitual e lingüística. A relação simbólica parece ser uma relíquia e um marco de identidade anterior. (p.333).

Portanto, a gênese a que Freud está se referindo é "simbólica" e a "forma especial de pensamento" a que se refere o sonho é de natureza simbólica, bem como a "forma especial de existência" que define a realidade psicológica (que é o inconsciente) também é uma "forma simbólica". E é por ser "forma simbólica" que "a realidade psíquica não deve ser confundida com a realidade material".

Parece-nos ser essa equação a que dá à Interpretação dos Sonhos o seu caráter fundante da Psicanálise. Não é uma obra fundamental porque trata dos sonhos. Mas porque funda o psíquico no simbólico - e não o contrário. Se o inconsciente só pode manifestar-se por parábolas, isto é, indiretamente, é porque ele é uma realidade essencialmente simbólica e como tal está também pelo que não está. Quer dizer, como forma simbólica, é uma existência cujo ser é sempre um excesso e uma falta, presença-ausente, diríamos, com base na Filosofia Fenomenológica de Merleau-Ponty (1942). E parece-nos que esse modo de compreensão é compatível com a maneira de Freud entender a realidade do aparelho psíquico, isto é, como não localizável em elementos orgânicos, mas entre eles. Nesse sentido, a metáfora do aparelho anímico como aparelho ótico vem a calhar. Freud escreve:

Não obstante, considero conveniente e justificável continuar a fazer uso da imagem figurada dos dois sistemas. Podemos evitar qualquer possível método de figuração lembrando que as representações, os pensamentos e as estruturas psíquicas em geral nunca devem ser encarados como localizados em elementos orgânicos do sistema nervoso, mas antes, por assim dizer, entre eles, onde as resistências e facilitações [Bahnungen] fornecem os correlatos correspondentes. Tudo o que pode ser objeto de nossa percepção interna é virtual, tal como a imagem produzida num telescópio pela passagem dos raios luminosos. Mas temos justificativas para presumir a existência dos sistemas (que de modo algum são entidades psíquicas e nunca podem ser acessíveis à nossa percepção psíquica), semelhantes à das lentes do telescópio, que projetam a imagem. E, a continuarmos com esta analogia, podemos comparar a censura entre dois sistemas com a refração que ocorre quando o raio de luz passa para um novo meio. (1900, p.553).

Ou seja, os lugares psíquicos correspondem aos vazios entre os sistemas psíquicos, o que recoloca a questão da localização espacial-material do aparelho psíquico. A esse respeito, Freud se manifesta mais longamente:

Desprezarei por completo o fato de que o aparelho anímico em que estamos aqui interessados é-nos também conhecido sob a forma de uma preparação anatômica, e evitarei cuidadosamente a tentação de determinar essa localização psíquica como se fosse anatômica. Permanecerei no campo psicológico, e proponho simplesmente seguir a sugestão de visualizarmos o instrumento que executa nossas funções anímicas como semelhante a um microscópio composto, um aparelho fotográfico ou algo desse tipo. Com base nisso, a localização psíquica corresponderá a um ponto no interior do aparelho em que se produz um dos estágios preliminares da imagem. No microscópio e no telescópio, como sabemos, estes ocorrem, em parte, em pontos ideais, em regiões em que não se situa nenhum componente tangível do aparelho. (1900, p.491).

E considerando essa questão, ao mesmo tempo filosófica e científica, Freud conclui:

Médico e filósofo só podem unir-se quando ambos reconhecerem que a expressão "processos psíquicos inconscientes" é "a expressão apropriada e justificada de um fato solidamente estabelecido". Só resta ao médico encolher os ombros quando lhe asseguram que a "consciência é uma característica indispensável do psíquico", e talvez, se ainda sentir respeito suficiente pelos enunciados dos filósofos, ele possa presumir que eles não estavam tratando da mesma coisa ou trabalhando na mesma ciência. E que até mesmo uma única observação criteriosa da vida anímica de um neurótico, ou uma única análise de um sonho, terá que deixá-lo com a inabalável convicção de que os processos de pensamento mais complexos e mais racionais, aos quais decerto não se pode negar o nome de processos psíquicos, podem ocorrer sem excitar a consciência do sujeito. (1900, p.553).

E, em nota de rodapé, Freud faz o elogio a Du Prel que afirma ser a "alma mais ampla que a consciência". A alma, como o Inconsciente, inclui a Consciência, segundo essa visão romântica.

A propósito, cabe aqui observar que Freud emprega alternadamente (não só no tópico F, mas em todo o cap.VII) os termos "aparelho psíquico" e "aparelho anímico".

Segundo Garcia Roza (1993), a alternância dos termos é por si só expressiva de uma indecisão quanto à adequação do termo "psicológico". Escreve:

... é curioso que um autor que desde os primeiros trabalhos afirma sua fé na ciência, prefira o termo anímico, tão contaminado metafisicamente, ao termo psicológico, muito mais ao gosto da ciência da época (...) Privilegiar o termo alma seria um indício da recusa da cientificidade e um retorno à metafísica? (...) Certamente não era a intenção de Freud, mas parece evidente seu propósito de marcar diferença entre a natureza de sua construção teórica e o que era feito pela Psicologia em sua época (Psicologia como Ciência Experimental em oposição à Metafísica da alma). (p.153).

Lembremos que se Freud se deparava com uma ciência experimental, uma Psicologia Positiva, também se confrontava com a tradição romântica, uma Filosofia da Natureza, de funda penetração na mentalidade da época que, como fenômeno histórico de longa duração, principia num tempo muito anterior a Freud e nos chega até hoje. Por volta de 1900, há uma mitologia romântica completamente consolidada, constituída por três pólos - a alma, o inconsciente e a poesia (Béguin, 1946). Freud teve acesso às fontes dessa mitologia, aliás como todo homem erudito de seu tempo. Em suas referências, encontramos Schubert, Scherner, Goethe, Schiller, Nietzsche entre outros. É claro que a vinculação à ciência estava presente, mas é a dupla vinculação de Freud com o seu tempo que lhe permite, por exemplo, reunir numa mesma frase os nomes de Goe-the e Helmholz (1900, p.555) Ou, então, empregar a palavra alma para designar uma realidade mais ampla que o psíquico.

Com efeito, o aparelho anímico não faz referência a neurônios ou a quaisquer outras entidades materiais. Seus referentes são idéias, representações, pensamentos, desejos, sonhos, linguagem. Quer dizer, à materialidade do aparelho, conforme o Projeto de 1895, contrapõe-se a não-materialidade do aparelho tal como surge na Interpretação.

Isso não significa que o aparelho prescinda de um suporte sensível-material, mas do ponto de vista teórico-conceitual, passamos de um modelo mecânico para um modelo lógico (ou, como se poderá verificar no item E, onto-lógico). O que importa no modelo apresentado nesse capítulo VII não é a localização espacial dos sistemas, mas a estrutura topológica do aparelho, isto é, a posição que os sistemas ocupam em suas relações recíprocas. Trata-se, entretanto, de uma tópica temporal que a noção de recalque e as relações entre os processos primário e secundário permitem elaborar (Garcia-Roza, 1993, p.169). Derrida (1995) comenta esta questão do aparelho psíquico concebido como aparelho ótico, relacionando-o à essa lógica temporal, dizendo o seguinte:

... esta ilustração justifica-se pela diferença entre o sistema e o psíquico: o sistema psíquico não é psíquico e só se trata dele nesta descrição. Depois é o andamento do aparelho que interessa a Freud, o seu funcionamento e a ordem das suas operações, o tempo regrado do seu movimento tal qual é tomado e descoberto nas peças do mecanismo: "Rigorosamente não temos necessidade de supor uma organização realmente espacial dos sistemas psíquicos. Basta-nos que uma consecução ordenada seja estabelecida com constância de maneira que, por ocasião de certos acontecimentos psíquicos, os sistemas sejam percorridos pela excitação segundo uma consecução temporal determinada". Finalmente estes aparelhos de óptica captam a luz; no exemplo fotográfico registram-no. Freud quer já explicar o negativo ou a escritura da luz e eis a diferenciação (Differenzierung) que introduz. Atenuará as "imperfeições" da analogia e talvez as "desculpará". Sobretudo acentuará a exigência, à primeira vista contraditória, que preocupa Freud desde o Esquisse, e que só será satisfeita pela máquina de escrever, pelo "bloco mágico": "Somos então. levados a introduzir uma primeira diferenciação na extremidade sensível [do aparelho]. Das nossas percepções, permanece no nosso aparelho psíquico um traço (Spur) que podemos chamar "traço mnésico" (Erinnerungspur). A função que se relaciona com este traço mnésico é por nós denominada "memória". Se levarmos a sério o projeto de ligar os acontecimentos psíquicos a sistemas, o traço mnésico só pode consistir em modificações permanentes dos elementos do sistema. Ora, já o mostrei por outro lado, surgem dificuldades pelo fato de um único e mesmo sistema reter fielmente as modificações dos seus elementos ao mesmo tempo que oferece uma nova receptividade à modificação, sem jamais perder a sua capacidade de recepção. (p.534). Serão portanto necessários dois sistemas numa só máquina. Este duplo sistema concedendo a nudez da superfície e a profundidade da retenção, só de longe e com muitas "imperfeições" podia ser representado por uma máquina óptica. "Seguindo a análise do sonho, entrevemos um pouco a estrutura desse instrumento, o mais maravilhoso e o mais misterioso de todos, só um pouco, mas é um começo ..." É o que podemos ler nas últimas páginas da Traumdeutung. (p.206-7).

Realmente, são muitas as questões em aberto, deixadas por Freud aos seus pósteros. Por exemplo, as questões da diferença entre ficção /ciência, entre fantasia/verdade que são variantes do binômio sono/vigí-lia. Nesse sentido, não me parece casual a evocação das figuras míticas de Zeus e Cronos justamente nesse final da Interpretação dos Sonhos. É claro que as figuras foram evocadas a propósito do caso clínico relatado, mas por que exatamente esse caso, nesse lugar, nesse momento de encerramento da obra?

Talvez porque Zeus, rei dos deuses olímpicos, encarnação da luz em todas as suas modalidades, em cujo nome lê-se a raiz "brilhar", encarne uma temporalidade lúcida e bem ordenada. Zeus é a racionalidade olímpica oposta à temporalidade de Cronos que representa uma forma de inteligência sinuosa, que age obliquamente, sempre disfarçada. Tocaiar e engolir seus filhos recém-nascidos são os expedientes com que ele toma o poder e procura preservá-lo. De acordo com Cronos o tempo é um eterno presente, em oposição a Zeus que instaura a diferença temporal como tempo regular, orgânico, próprio para que nele os homens se empenhem no cultivo dos Deuses e da Terra (Deleuze, 1974, p.167-73; Torrano, 1981). Mais arcaico, de linhagem titânica, marcado por insubmissão e violência, Cronos (o tempo), assim como Mnemosine (a memória), incessantemente questiona o instituído e o fixado, mantendo tensa relação com a racionalidade olímpica, unificadora e sistematizante (Pessanha, 1994, p.33).

Ora, não nos parece exagero ver nessas figuras uma metaforização daquilo que Freud indaga no tópico E, isto é, os processos primário, secundário e a operação de recalcamento articuladora dos dois processos. Até esse tópico, todo o cap.VII enfatiza o caráter orientado, progressivo - regressivo do funcionamento do aparelho psíquico. Porém, nesse tópico dedicado ao Recalcamento, Freud considera como esse aparelho funciona em termos de forças e conflito de forças. A metáfora é adequada nesse sentido.

No entanto, a linguagem usada por Freud nesse Capítulo da Interpretação lembra a linguagem do Projeto. Como diz Garcia-Roza (1983):

... ao explicar de que maneira pensamentos que em nada se distinguem dos pensamentos que ocorrem durante a vigília são transformados em conteúdos oníricos pelo trabalho do sonho, Freud reafirma um dos princípios fundamentais exposto em 1895. (p.89).

Qual é esse princípio? "... o de que a característica principal desses processos é que toda a ênfase é aplicada no sentido de tornar a energia catexial móvel e capaz de descarga." (1895, p.635).

Quais são as implicações desse princípio? Em resumo, a energia de investimento distribui-se pelos sistemas Inconsciente, Pré-Consciente, Consciente; enquanto, o Inconsciente se esforça para se livrar dela, o Pré-Consciente procura inibir a descarga livre impondo ao Inconsciente restrições; o que determina essa tendência à livre descarga, que caracteriza o funcionamento do Inconsciente, é o desprazer que resulta do acúmulo de energia no interior do sistema. E tal desprazer aciona o aparelho psíquico que visa repetir a experiência de satisfação que anteriormente acarretou uma discriminação da excitação - o que foi sentido como prazeroso.

Ocorre que a catexia alucinatória de uma lembrança não pode produzir satisfação. Daí a necessidade de um outro sistema - Pcs/Cs- cuja função é inibir o avanço da catexia mnêmica, impedindo a reprodução alucinatória da percepção do objeto.

Assim, enquanto o sistema Inconsciente dirige sua atividade para garantir a livre descarga de excitação acumulada - o sistema Pcs/Cs procura transformar a catexia móvel em catexia quiescente. E isso é possível se esse sistema Pcs/Cs conseguir desviar a excitação do Ics, alterando o mundo externo de modo a possibilitar uma satisfação indireta e parcial, mas tolerável pelo sistema Pcs/Cs (Freud, 1900, p.544).

O modelo explicativo proposto por Freud está fundado não na busca do prazer, mas na evitação do desprazer (Garcia-Roza, 1983, p.90). E Freud chega a esse modelo através da análise dos pensamentos do sonho que, em si mesmos, nada possuem para serem impedidos de aceder à consciência. Se isto não ocorre, e se esses pensamentos foram elaborados de tal modo que se afastam das condições "anormais" de pensamento, é porque algo deve ter ocorrido com eles.

Freud apresenta várias possibilidades: ou a atenção consciente não chegou a iluminá-los, ou o curso do pensamento conduziu a uma idéia criticável e foi abandonado, podendo ser retomado à noite (Freud, 1900, p.538).

Com o conceito de energia psíquica Freud busca explicar esses movimentos de pensamento:

Cremos que, partindo de uma representação-meta, uma determinada quantidade de excitação, que denominamos "energia catexial", desloca-se pelas vias associativas selecionadas por aquela representação-meta. A cadeia de pensamentos desprezada é aquela que não recebeu essa catexia; a cadeia de pensamento "suprimida" ou "repudiada" é aquela da qual essa catexia foi retirada. Em ambos os casos, elas ficam entregues às suas próprias excitações. (1900, p.539).

Pode ocorrer que essas cadeias de pensamento sejam atraídas por outras, presentes naquele momento no Pcs, mas cuja origem se encontra no Inconsciente. Nesse caso, forma-se uma conexão entre o desejo inconsciente representado pelas representações-meta e as cadeias de pensamento suprimidas ou desprezadas pelo sistema Pcs-Cs. Nesse sentido, eles são absorvidos pelo Inconsciente.

A partir desse momento tais representações passam a ser governadas pelos processos Inconscientes: isto é, deslocamentos e condensações transferem a intensidade psíquica das idéias inconscientes umas para as outras, resultando em idéias hiper-catexizadas (Freud, 1900, p.540). Tais idéias constituem pontos nodais, terminações de longas séries de pensamentos que possuem alto grau de significação psíquica. São essas idéias que, traduzidas em imagens durante o trabalho do sonho, compõem o seu conteúdo manifesto.

Mas o que Freud observa é que esses mesmos processos ocorrem na formação dos sintomas neuróticos, nos quais o conteúdo das idéias submetidas à elaboração "anormal" não desempenha qualquer papel, sendo o importante para o processo apenas os deslocamentos de energia capazes de torná-la móvel e pronta para a descarga (1900, p.541).

Freud observa, então, que há identidade entre a particularidade do trabalho do sonho e a particularidade da atividade psíquica que resulta na formação dos sistemas neuróticos. E essa identidade permite a generalização para os sonhos das conclusões referentes à histeria. Freud escreve:

... uma cadeia de pensamento normal só é submetida a esse tratamento psicológico anormal que vimos descrevendo quando um desejo inconsciente, derivado da infância e em estado de recalcamento, se transfere para ela. (1900, p.542).

Portanto, a conclusão que chegamos nesse ponto é a seguinte: o trabalho do sonho, assim como o que se poderia chamar de "trabalho do sintoma", tem sua origem no fato do recalcamento cujo mecanismo Freud vai elucidar retomando termos do Projeto: o processo "primário" e o processo "secundário".

De um ponto de vista econômico, a diferença entre esses processos corresponde à distinção entre "energia livre" e "energia ligada". A primeira procura a descarga da maneira mais rápida e direta possível, tendendo à identidade perceptiva, isto é, procurando reinvestir as representações ligadas à experiência de satisfação de forma alucinatória. A segunda, energia ligada, escoa para a descarga de forma mais controlada.

No entanto, o processo primário tendendo ao livre fluxo de energia rumo às imagens mnêmicas, invariavelmente desemboca numa frustração: se a imagem investida foi a de um objeto gratificante, nem por isso a alucinação provocará a liberação do prazer associado à experiência de satisfação correspondente. Se for de um objeto desagradável, o desprazer associado à sua recordação será liberado devido à relação entre a imagem e a experiência da dor.

Sob o princípio que regula o aparelho psíquico - busca do prazer e fuga da dor - o indivíduo aprende a inibir o fluxo da excitação rumo às imagens mnêmicas, evitando o desencadeamento do desprazer.

A esse modo do funcionamento psicológico Freud (1900) chama de processo secundário. Ele é fundamental à concepção de aparelho psíquico, nesse cap.VII, porque uma das atividades do processo secundário é impedir que o investimento inicial das imagens mnêmicas continue até atingir o ponto da alucinação. A "ficção de um aparelho psíquico primitivo" construído segundo "o esquema de um aparelho reflexo", foi explorado por Freud no Projeto (Freud, 1900, p.542). E se Freud tivesse ficado preso à noção da excitação neuronal, pela hipótese quantitativa do Projeto, jamais ele poderia dar conta da produção do desprazer adicional necessário para a repressão (Mezan, 1982, p.93-9). Porém no contexto desse cap.VII, esse obstáculo é afastado porque Freud lida com representações investidas e não com neurônios investidos. Como diz Freud (1900):

Suponhamos que incida no aparelho primitivo um estímulo perceptivo que seja fonte de uma excitação dolorosa. Sobrevêm então manifestações motoras descoordenadas, até que uma delas faz com que o aparelho se retraia da percepção e, ao mesmo tempo, da dor. Quando a percepção reaparece, o movimento é imediatamente repetido (um movimento de fuga, talvez), até que a percepção torne a desaparecer. Nesse caso, não resta nenhuma inclinação a recatexizar a percepção da fonte de dor, alucinatoriamente ou de qualquer outra maneira. Pelo contrário, haverá no aparelho primitivo uma inclinação a abandonar imediatamente a imagem mnêmica aflitiva, caso algo venha a revivê-la, pela razão mesma de que, se sua excitação transbordasse até a percepção, provocaria desprazer (ou, mais precisamente, começaria a provocá-lo). A evitação da lembrança, que não passa de uma repetição da fuga anterior frente à percepção, é também facilitada pelo fato de que a lembrança, diversamente da percepção, não possui qualidade suficiente para excitar a consciência e assim atrair para si uma nova catexia. Essa evitação da lembrança de qualquer coisa que um dia foi aflitiva, feita sem esforço e com regularidade pelo processo psíquico, fornece-nos o protótipo e o primeiro exemplo do recalcamento psíquico. (p.544).

Em suma, todo o processo se passa abaixo do nível da Consciência.

Caso o aparelho psíquico não evolua no sentido de aprender a lidar com as recordações dolorosas de outro modo (que não este do abandono da imagem aflitiva), o pensamento se veria obstruído pela presença de tais recordações desprazerosas. Esse outro modo ocorre por um tipo especial de investimento que consiste em inibir o fluxo de excitação que em circunstâncias do processo primário decorreria daquelas recordações e conduziria à produção do desprazer. E Freud (1900) destaca essa idéia como a "chave de toda teoria do recalque":

O segundo sistema só pode catexizar uma representação se estiver em condições de inibir o desenvolvimento do desprazer que provenha dela. Qualquer coisa que pudesse fugir a essa inibição seria inacessível tanto ao segundo sistema quanto ao primeiro, pois seria prontamente abandonada em obediência ao princípio do desprazer. A inibição do desprazer, contudo, não precisa ser completa: o início dele tem de ser permitido, já que é isso que informa ao segundo sistema a natureza da lembrança em questão e sua possível inadequação ao fim visado pelo processo do pensamento. (p.545).

Essa chave é engenhosa. Examinando melhor, verificamos que o processo primário não recebe essa designação apenas por ser mais primitivo, no sentido de selvagem. É o mais antigo, no sentido de que data dos primórdios da vida do bebê (Freud, 1900, p.546).

O processo secundário implanta-se gradativamente e só chega a inibir o processo primário no limiar da fase adulta. É por esse motivo que os impulsos de desejo2 1 Agradeço ao Dr. Plínio Augusto do Amaral Neto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo que se dispôs, generosamente, a ler e a discutir comigo a primeira versão deste texto. inconscientes, originados na época em que o processo secundário ainda não existia, permanecem inacessíveis ao Pré-Consciente que o abriga, cuja função se limita a indicar as vias mais adequadas para a realização dos desejos. Entre estes (que se caracterizam por sua raiz infantil) existem alguns cuja realização não provocaria prazer e sim desprazer, por entrarem em contradição com as intenções do pensamento secundário (Freud, 1900, p.547).

E, nesse ponto, Freud enfatiza: "é precisamente essa transformação do afeto (de prazer em desprazer) que constitui a essência daquilo a que chamamos recalcamento." (p.547).

As recordações a partir das quais os desejos evocam uma liberação de afeto jamais estiveram sob controle do Pré-Consciente. E, por esse motivo, o Pré-Consciente não pode inibir tal liberação.

O princípio do desprazer intervêm, nesse momento, fazendo com que o Pcs se afaste tanto dos desejos inconscientes quanto das idéias Pré-Conscientes para as quais aqueles transferiram sua energia, através do mecanismo da absorção pelo Inconsciente. Essas idéias são, então, abandonadas a si mesmas, isto é, recalcadas, e, diz Freud, "é assim que um reservatório de lembranças infantis subtraídas desde o princípio ao Pcs torna-se o sine qua non do recalcamento." (Freud, 1900, p.547). Nesse sentido, o processo primário torna-se a condição logicamente necessária para o processo secundário que se define, enquanto tal, na relação com o primeiro.

A partir dessas observações pode-se considerar o seguinte: se o inconsciente é feito de recalcado e este é a resposta dada a algo que se nega, portanto, o inconsciente é constituído pela negação. O Inconsciente não conhece a palavra "não", mas ele é pura negatividade, isto é, ele é a não-Consciência. Nesse sentido, ele é aquilo sem o que a Consciência não poderia existir. Ele é o outro necessário da Consciência. Por essa razão, parece-nos, o Projeto e a Interpretação dos Sonhos se distinguem, isto é, pelo privilégio dado à lógica da identidade no Projeto e à lógica da diferença na Interpretação dos Sonhos. Pela lógica da identidade, governada pelo princípio aristotélico da não-contradição, um neurônio só pode ser um neurônio, isto é, um ser que é idêntico a si mesmo. Diversa é a situação do aparelho psíquico na Interpretação dos Sonhos. Ou seja, aquilo que emerge à Consciência é o Inconsciente transformado, e o que integra o Inconsciente foi realizado por uma operação dos sistemas Pcs/Con. Essas observações estão conformes à idéia de que o sonho é uma forma particular de pensamento que resulta do trabalho do sonho.

Posto isso, é bom relembrar o que escreve Freud (1900):

Por conseguinte, retrataremos o aparelho psíquico como um instrumento composto a cujos componentes daremos o nome de "instâncias" ou (em prol de uma clareza maior) "sistemas". Pode-se prever em seguida que esses sistemas talvez mantenham entre si uma relação espacial constante, do mesmo modo que os vários sistemas de lentes de um telescópio se dispõem uns atrás dos outros. A rigor, não há necessidade da hipótese de que os sistemas psíquicos realmente se disponham numa ordem espacial. Bastaria que uma ordem fixa fosse estabelecida pelo fato de, num determinado processo psíquico, a excitação atravessar sistemas numa dada seqüência temporal. Em outros processos, a seqüência talvez seja diferente, e essa é uma possibilidade que deixaremos em aberto. Para sermos breves, doravante nos referiremos aos componentes do aparelho, como sistemas y . (p.492).

Convém ainda observar que a regressão desempenha na teoria da formação dos sintomas neuróticos um papel não menos importante que na dos sonhos. Assim, cabe distinguir três tipos de regressão: (a) regressão tópica, no sentido do quadro esquemático dos sistemas y que explicamos atrás; (b) regressão temporal, na medida em que se trata de um retorno a estruturas psíquicas mais antigas; e (c) regressão formal, onde os métodos primitivos de expressão e representação tomam o lugar dos métodos habituais. No fundo, porém, todos esses três tipos de regressão constituem um só e, em geral, ocorrem juntos, pois o que é mais antigo no tempo é mais primitivo na forma e, na tópica psíquica, fica mais perto da extremidade perceptiva. (p.501).

Em suma, o importante nesse cap.VII não é a localização espacial dos sistemas, mas a forma do aparelho como tópica temporal, isto é, a posição que os sistemas ocupam um em relação aos outros. E esta afirmação significa que o aparelho psíquico é um aparelho de memória. No entanto, como desde as suas primeiras formulações o aparelho é concebido como o que articula imagens perceptivas e representações-palavra, o modo como essa memória se constitui não pode ser pensado sem a articulação com a linguagem. Ora, no caso da Interpretação dos Sonhos, a memória é memória de algo que se expressa como um texto que, no caso dos sonhos, não é feito com palavras, mas com imagens, isto é, pictogramas.

Portanto, aquilo que faz com que o aparelho psíquico seja um aparelho é da ordem da memória e da linguagem. Mas, como a memória é memória de algo ao qual só temos acesso por sua expressão como linguagem, é sobretudo a ordem da linguagem que faz com que o aparelho psíquico seja um aparelho. Como afirma Freud (1899) em Lembranças Encobridoras: a memória é uma construção articulada por uma conflito de "forças psíquicas" (p.209) que pode resultar numa recordação "cujo valor reside no fato de representar na memória impressões e pensamentos de uma data posterior cujo conteúdo está ligado a ela por elos simbólicos ou semelhantes". Tal recordação "pode perfeitamente ser chamada de lembrança encobridora." (p.298). E, ao final do escrito, Freud radicaliza essa noção, radicalidade que interroga a noção de tempo linear e progressivo, deixando sugerida e em aberto a questão de uma temporalidade propriamente estrutural.

Com efeito, pode-se questionar se temos mesmo alguma lembrança proveniente de nossa infância: as lembranças relativas à infância talvez sejam tudo o que possuímos. Nossas lembranças infantis nos mostram nossos primeiros anos não como foram, mas tal como apareceram nos períodos posteriores em que as lembranças foram despertadas. Nesses períodos de despertar, as lembranças infantis não emergiram (...) elas foram formadas nessa época. (p.304).

Como observa Pontalis (1991, p.216), "nossa memória é uma ficção retroativa, retroativamente antecipatória, que pertence de pleno direito ao reino da Phantasie". E esse modo de formação é possível, retomando o fio da argumentação, porque o aparelho do qual a memória é uma das dimensões não é primordialmente psíquico, mas simbólico. É o que Derrida (1995, p.206) nos deixa concluir ao dizer que "o aparelho psíquico não é psíquico". E mais, que "a temporalização supõe a possibilidade simbólica." (p.211).

Em suma, compreendendo o aparelho psíquico na sua formação simbólica, a Interpretação dos Sonhos torna impossível imaginarmos esse aparelho como "algo que se esgota em si mesmo", como o modelo do arco reflexo permitiria supor. Porém, a partir daí, a questão a formular é: como se forma esse aparelho simbólico? Ou, em outras palavras, não sendo um aparelho "em si", em que medida não é primordialmente um aparelho "para-o-outro" através do qual ele se constitui como aparelho "para-si"? (Garcia-Roza, 1993, p.43).

Para respondermos a essa questão que é ontológica e não mais psicológica, temos que lembrar que o sonho não é apenas texto, mas texto de uma mensagem cifrada, quer dizer um enigma que pede interpretação. Aquilo a que o sonho faz apelo é a fala - fala do próprio sonhador e fala do outro, o chamado intérprete. É nesse sentido que o sonho se revela texto e, especificamente, mensagem. E é nessa medida que o sonho não se esgota em si mesmo, mas, por se dirigir ao intérprete do qual depende o seu sentido, revela-se como uma formação vocacionada à intersubjetividade. Assim, pode-se pensar que o aparelho psíquico é um aparelho cuja construção se faz na relação com outro aparelho e não com a exterioridade do mundo objetivo que o cerca.

Ora, ao reexaminar as opiniões correntes em seu tempo, Freud (1900) constata ao final de Interpretação dos Sonhos, que duas teses foram categoricamente negadas: 1. o sonho é um processo sem sentido; 2. o sonho é um processo somático. Nesse sentido, conclui que o sonho é um processo inteligível e um processo anímico que demanda interpretação. E por que demanda interpretação?

Porque o sonho (como muitas outras expressões humanas) se inscreve numa região em que um outro sentido ao mesmo tempo se revela e se oculta num sentido imediato. Justamente chama-se símbolo essa "região do duplo sentido" e chama-se interpretação a "inteligência do duplo sentido". Portanto, esclarece Ricoeur (1977, p.83) que, ao dar o nome Traumdeutung à sua obra, Freud é preciso: ele não diz ciência, de modo geral, mas interpretação, de modo preciso. "O título por si só vincula indissoluvelmente sonho e interpretação." (Pontalis, 1977, p.19). Ou seja, o termo teria sido escolhido de propósito, pois sua proximidade com o tema do sonho é cheia de sentido. Quer dizer, se o sonho designa toda a região das expressões de duplo sentido, o problema da interpretação designa, reciprocamente, toda a inteligência do sentido especialmente ordenada às expressões equívocas. Se a interpretação é a inteligência do duplo sentido, é pela interpretação que o problema do símbolo se inscreve no problema da linguagem. E como o símbolo é sempre duplo, sempre enigmático, a relação entre símbolo e interpretação é intrínseca. Portanto, o sonho é de ordem simbólica e é por isso, e não por ser um fenômeno psíquico, que ele demanda uma interpretação. E é também por isso que se pode estabelecer correspondência entre o sonho e outras formações culturais que primam pela ambigüidade - a literatura, as artes e todas as demais formas que são expressões do Sensível (Frayze-Pereira, 1984).

Em suma, demandando dupla interpretação, a que dele faz o próprio sonhador e a que realiza, num segundo momento, aquele que escuta o relato do primeiro, o sonho possui uma raiz estrutural-simbólica que se abre à intersubjetividade e dá suporte para todas as demais formações inconscientes - esquecimento, sintoma, fantasma, alucinação, lapso, composições imaginárias, jogos de linguagem ... E, como observa Pontalis (1977):

... toda formação do inconsciente - sobre o modelo do sonho - só é interpretável porque já é uma interpretação. O fantasma inconsciente não pode ser reconstruído senão porque já é uma construção, um agenciamento do inconsciente. (p.138).

Em outras palavras:

... não há símbolo sem um início de interpretação. Onde quer que um homem sonhe, profetize ou poetize, outro se ergue para interpretar. A interpretação pertence organicamente ao pensamento simbólico e ao seu duplo sentido. (Ricoeur, 1977, p.26).

Nesse sentido, fica mais claro o interesse de Freud pelo trabalho do sonho, isto é, pela série de transformações que se operam a partir das moções pulsionais e restos diurnos até o produto final: "o relato do sonho, o sonho narrado, posto em palavras." (Pontalis, 1977, p.22). Compreende-se tal interesse porque é essa vertente que a Traumdeutung inaugura: "não é uma obra de análises de sonhos, menos ainda um livro do sonho, mas uma obra que, pela mediação das leis do logos do sonho, descobre a de todo o discurso e funda a Psicanálise." (Pontalis, 1977, p.23-4). Nessa medida, pode-se dizer que foi a passagem pelo universo da "Psicologia dos processos oníricos" que tornou possível a Freud conceber o aparelho psíquico/anímico como aparelho simbólico e afirmar, finalmente, que "a interpretação dos sonhos é a via real para o conhecimento das atividades inconscientes da vida anímica." (Freud, 1900, p.550).

FRAYZE-PEREIRA, J.A. Between Dreams and Interpretation: Psychic Apparatus/Symbolic Apparatus. Psicologia USP, São Paulo, v.10, n.1, p.199-223, 1999.

Abstract: This paper presents and discusses the idea of the "psychic apparatus" within the limits of Freudian First Topography. Considering that in chapter VII of Interpretation of Dreams, Freud defines the psychological reality as a special form of existence and the dream as a special form of thought, the relation between these forms is questioned. Then the author analyzes the question of interpretation to reach, along with Freud, a comprehension of the "psychic apparatus" as a symbolic apparatus opened to intersubjectivity and to cultural formations, such as literature and art.

Index terms: Dream. Interpretation. Symbol. Psychic apparatus. Psychoanalysis.

2 "A esse tipo de corrente no interior do aparelho, partindo do desprazer e apontando para o prazer, demos o nome de desejo." (Freud, 1900, p.542).

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    Agradeço ao Dr. Plínio Augusto do Amaral Neto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo que se dispôs, generosamente, a ler e a discutir comigo a primeira versão deste texto.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Set 1999
    • Data do Fascículo
      1999
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