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A alienação eternizada: uma abordagem estrutural de um caso clínico

The eternalized alienation: a structural approach of a clinical case

Resumos

Este trabalho é uma aplicação de uma estratégia clínica baseada no conceito de alienação, tal como definido por Jacques Lacan, para o atendimento de uma criança considerada psicótica e sua mãe. Tal estratégia, proposta por Jussara Falek Brauer, prescreve um atendimento individual, com uma sessão semanal, para a criança e para a mãe. Considera a estrutura familiar e pretende lidar com as determinações estruturais sobre a constituição do Sujeito. Dois momentos são especialmente focados - quando o trabalho é iniciado e outro posterior - que exemplificam a mudança de posicionamento dessa criança, em função do processo terapêutico em curso. Os conceitos teóricos que embasam esta abordagem - a Alienação, a Topologia Lacaniana da Constituição do Sujeito, o Significante, o Inconsciente, a Castração, o Fetiche, a Perversão, a Separação - são apresentados e relacionados ao material clínico. Algumas hipóteses são apresentadas a respeito da estrutura psíquica da mãe, considerando a evolução observada e as mudanças de posicionamento dessas pessoas, que levam ao estabelecimento de uma hipótese diagnóstica para a filha.

Alienação; Relações mãe-criança; Psicose infantil; Fetichismo; Angústia de castração


This work is an application of a clinic strategy based on the alienation concept - as defined by Jacques Lacan - to handle a supposed psychotic child and her mother. This strategy, proposed by Jussara Falek Brauer, prescribes individual assistance through weekly sessions with daughter and mother. It considers the family structure and intends to deal with the structural determinations on the Subject constitution. Two moments are especially focused - when the work begins and a later one - that exemplify the changing in the positioning of the child as a result from the therapeutic process in course. The theoretical concepts that support this approach - Alienation, The Lacanian Topology about the Subject Constitution, Significant, Unconscious, Castration, Fetish, Perversion, Separation - are presented and related to the clinical material. Some hypotheses are presented about the mother’s psychic structure, withdrawn from the changing of positions and the evolution observed in both mother and daughter. These lead to the establishment of a diagnostic hypothesis for the daughter.

Alienation; Mother child relation; Childhood psychosis; Fetichism; Castration anxiety


A ALIENAÇÃO ETERNIZADA: UMA ABORDAGEM ESTRUTURAL DE UM CASO CLÍNICO

Maria Cristina Ricotta Bruder1 1 Endereço para correspondência: Instituto de Psicologia. Av. Prof. Mello Moraes, 1721, São Paulo, SP - CEP 05508-900. Consultório: Rua Artur de Azevedo, 475 - Pinheiros - CEP 05405-010. E-mail: mcricotta@hotmail.com

Instituto de Psicologia - USP

Este trabalho é uma aplicação de uma estratégia clínica baseada no conceito de alienação, tal como definido por Jacques Lacan, para o atendimento de uma criança considerada psicótica e sua mãe. Tal estratégia, proposta por Jussara Falek Brauer, prescreve um atendimento individual, com uma sessão semanal, para a criança e para a mãe. Considera a estrutura familiar e pretende lidar com as determinações estruturais sobre a constituição do Sujeito. Dois momentos são especialmente focados - quando o trabalho é iniciado e outro posterior - que exemplificam a mudança de posicionamento dessa criança, em função do processo terapêutico em curso. Os conceitos teóricos que embasam esta abordagem - a Alienação, a Topologia Lacaniana da Constituição do Sujeito, o Significante, o Inconsciente, a Castração, o Fetiche, a Perversão, a Separação - são apresentados e relacionados ao material clínico. Algumas hipóteses são apresentadas a respeito da estrutura psíquica da mãe, considerando a evolução observada e as mudanças de posicionamento dessas pessoas, que levam ao estabelecimento de uma hipótese diagnóstica para a filha.

Descritores: Alienação. Relações mãe-criança. Psicose infantil. Fetichismo. Angústia de castração.

Este trabalho pretende desenvolver algumas considerações teóricas a respeito do conceito de alienação, tal como proposto por Jacques Lacan, aplicado a um caso clínico: o atendimento de M. e sua mãe, dona C. Destacamos um momento inicial e outro, mais recente, para mostrar a evolução do caso.

M. foi trazida já com um diagnóstico psiquiátrico: portava uma história clínica que incluía internação hospitalar, medicação com neurolépticos, e havia apresentado surtos de alucinações e delírios, constituindo, para o referencial médico, um caso de psicose classicamente reconhecível. Mas, apareceu-nos, de saída, como uma criança que falava "sozinha" de modo quase incompreensível, excessivamente ligada à mãe, a qual procurava incansavelmente por um atendimento que respondesse à sua questão: "o que tem minha filha?" Essa questão foi ouvida por nós como um enigma, passível de outra leitura, menos imediata, não restrita ao aspecto fenomenológico, e que enviasse a uma apreensão da estrutura subjacente, ainda que essa leitura pudesse demorar muito tempo para ser feita e o diagnóstico só aparecesse mais tarde, no decorrer do trabalho.

Como pano de fundo para essa abordagem, temos que fazer constar a fundamentação de Lacan, que, nas Duas notas sobre a criança2 1 Endereço para correspondência: Instituto de Psicologia. Av. Prof. Mello Moraes, 1721, São Paulo, SP - CEP 05508-900. Consultório: Rua Artur de Azevedo, 475 - Pinheiros - CEP 05405-010. E-mail: mcricotta@hotmail.com , coloca a criança como sintoma da família, ou da mãe, e estabelece que quando o sintoma que chega a dominar tem a ver com a subjetividade da mãe é diretamente como correlativo de um fantasma que a criança está implicada.

Esta discussão em torno da alienação situa-se no ponto inaugural de toda essa problemática, na medida em que pudemos perceber o modo com que certas mulheres se desorganizam com a maternidade, estabelecendo uma determinada relação com a criança que, se nos casos favoráveis, passa por ser um momento estruturante, fundante de uma subjetividade, em casos como o de M. revelam algo de petrificado, a serviço de problemas maternos, como se a alienação se eternizasse.

Primeiramente, farei um resumo do caso, que foi iniciado em abril de 1993.

Logo na primeira entrevista, mãe e filha vieram juntas e o pai não compareceu, a despeito da convocação que, explicitamente, solicitava seu comparecimento.

Notamos, de saída, como elas pareciam ser muito ligadas; como o pai era deixado de fora, e como, basicamente, M. era uma espécie de "causa" para sua mãe, que peregrinava há anos por hospitais, postos de saúde, clínicas, em busca de um médico/psiquiatra/psicólogo que lhe dissesse o que tinha sua filha, qual era sua doença, como seria curada.

Soubemos que ela foi uma criança normal até os oito anos, mas começou a chamar a atenção da professora por escrever fora da linha e falar sozinha. Foi piorando, e apresentou fortes dores de cabeça - tratadas inicialmente como sinusite - que "foram continuando e atrapalhando mais a cabeça" (sic): falava coisas que pareciam sem sentido, tinha medos, visões (via muito preto, vultos), babava muito, cismava que a mãe ia matá-la. Levada a um hospital para consulta psiquiátrica, foi internada, permanecendo assim por oito meses; continua (até o presente momento) em tratamento ambulatorial, estando bastante medicada. Segundo a mãe, ela havia melhorado bastante, mas a "falação não pára, ela não segura o pensamento."

O pai compareceu a algumas sessões, dando-nos a impressão de estar menos implicado no problema e, até, de não ter acesso a ele: suas opiniões não eram consideradas pela esposa, e ele, por seu lado, se omitia nessa busca de tratamento - do que a esposa "reclamava," embora tenha dito, em outro momento, que o tratamento da filha era assunto dela. A mãe desqualificava a figura do marido, dizendo sempre como ele "é nervoso," "homem antigo," e "ele bebe".

Partimos da hipótese de uma colagem entre a mãe e a filha, que estaria alienada no desejo materno; em outras palavras, M. estaria ocupando o lugar de objeto no fantasma materno.

Oferecemos uma escuta analítica a ambas, individualmente, com uma sessão semanal (conforme estratégia proposta por Jussara Falek Brauer em seu projeto), supondo que a questão materna que estava alienada na filha pudesse ser reenviada a quem teria mesmo que arcar com ela: a mãe. A alienação ocorria, nesse ponto, em dois sentidos: a mãe em relação à filha, e vice-versa. Voltarei a esse ponto mais tarde.

M. me acompanhava sem dificuldade até a sala e permanecia comigo sem problemas; mas nosso contato era constituído de raros "flashes" em que ela se ligava e parecia me ver, e falar comigo. Na maior parte do tempo, falava sozinha, ria, cantarolava, cochichava com voz fina e voz grossa alternadas, saía pulando, e tinha um olhar vago, que parecia parado, fixo num ponto "além." Falava comigo, mas muito rápido, sendo difícil entender tudo que dizia; porém, percebemos logo a sincronia entre o discurso da mãe e o dela, e que algumas palavras que dizia repetidamente eram significantes, que deviam pontuar o discurso da mãe (outro aspecto da estratégia proposta por Jussara Falek Brauer). Cito alguns exemplos: "mulher," "namoro," "menino."

Dona C., a mãe, comparecia pontualmente, e seu discurso, frio e controlado, era circular, pleno de descrições extremamente "visuais," que favoreciam uma aderência imaginária, que não permitia facilmente o corte.

Com o desenrolar do atendimento, fomos montando, como num mosaico, a história de vida dessa mãe e de toda a família. Chamou-nos muito a atenção a importância que assumia para ela a questão da loucura. Vindo de uma família numerosa que morava em Minas, na roça, ela relatou os antecedentes familiares de loucura (uma tia louca, uma irmã que se suicidou e que "talvez tivesse problemas mentais, mas aquele povo antigo de Minas não cuidava"), mostrando que esse tema sempre a interessou muito: visitava o hospício da cidade, aos domingos, quando era recém-casada. Verbalizou que a loucura de sua família é a bebida: quase todos bebem; e cedo comunicou que sua mãe era doente, e "não se podia confiar, de manhã ela estava boa, e de tarde já estava de cama, doente."

O significante "doente," portanto, apareceu cedo, ao lado do "ajudar, cuidar:" ela tinha que ajudar a fazer o serviço da casa e cuidar dos irmãos menores, já que a mãe estava sempre doente; tinha que ajudar a controlar a irmã, para que não bebesse. Atualmente, ela se orgulha de ajudar todos os que precisam dela, sendo muito prestativa, e de sua saúde, vangloriando-se de conseguir trabalhar muito (faz faxina) sem se cansar; denega totalmente qualquer problema de saúde, e agora, ao sentir alguns sintomas de menopausa, acha de pode estar grávida, e se recusa a ir ao médico (só tem tempo de arrumar médico para as filhas), mesmo quando não se sente bem, o que, aliás, não gosta de admitir.

Vimos, até aqui, a "doença" e o "ajudar, cuidar," atuados em M. A questão da sexualidade apareceu por várias vias, entre as quais eu poderia destacar que sua curiosidade sexual sempre foi reprimida (apanhou muito quando quis saber sobre a gravidez da irmã, casou-se "sem saber nada"); teve muita dificuldade para lidar com a filha mais velha, quando adolescente - ela saía à noite para ir a bailes...- ao passo que M. era pequena e já tinha um namorado. M. era a mais inteligente dos seus filhos, e certamente iria andar pela cidade toda se não fosse doente; até hoje, Dona C. tem dificuldade para resolver o que quer fazer para ganhar mais: queixa-se de ter pouco dinheiro, mas não consegue trabalhar "porque tem que cuidar de M.," e não assume um serviço que poderia ser rendoso "porque tem que andar na rua"- "na rua vejo homens bonitos."

Outro ponto importante na história da mãe é o "apanhar"- o pai dava-lhe grandes surras quando ela não fazia o que era esperado, mas parece que ela sabia o que provocava essas surras, e não tentava fugir, ou seja, seu relato sugere uma história que evoca um certo gozo no apanhar - ela reclama disso, mas refere que ele também lhe trazia queijo, porque sabia que ela gostava, e conversava com ela. Para dizer tudo, "quanto mais ele batia, mais eu queria bem."

Finalmente, apareceu mais recentemente um outro aspecto ao qual demos grande importância: a questão da negritude. O pai de Dona C. era negro, a mãe, branca; o avô materno, mulato ("era roxinho"), mas se opôs ao casamento da filha com um negro: preferia vê-la morta; a mãe, que sempre estava doente, não conseguia cuidar dos cabelos das filhas, duros, como "bombril", já que os dela eram lisos. O marido de Dona C. é negro, filho, como ela, de mãe branca e pai negro; as filhas são negras, e o filho é branco.

Este filho se casou com uma moça branca, e a filha mais velha está noiva de um rapaz branco. Esta filha não aceita bem sua cor, não gosta do cabelo, não cuida (isto é, não alisa). Uma das maiores preocupações de Dona C. é seu cabelo: ela trabalha ou pelo menos faz um "biquinho" só para comprar os produtos para alisar e amaciar o cabelo. E seu grande sonho - que demorou mais de um ano para aparecer - é montar um salão de cabeleireira, especializado em negras.

Creio ter resumido os principais pontos pelos quais Dona C, configurou sua questão, que estamos elucidando, e que assumiria fantasmaticamente o aspecto de uma grande preocupação em cuidar dessa filha, que é doente, para lidar com a sua loucura, a qual passa pela realização sexual. A relação extremamente complicada com sua mãe, que não ofereceu um modelo de identificação atraente, e que, concretamente, parece que teve dificuldade para cuidar das filhas, repete-se na dificuldade com que ela cuida desta filha. "Cuidar da filha doente," em resumo, representa uma proteção. E sobredeterminada: condensa questões da sexualidade, da loucura, da mãe.

Porém, Dona C. não veio procurar uma análise porque havia feito uma questão: tudo estando alienado em M., é a M. que ela traz. Isso exemplifica bem a implicação total de M. no fantasma da mãe. Por outro lado, vimos ao longo desse atendimento o quanto M. se aliena na mãe: ela não sabe de si, remete à mãe todo o saber sobre si, permite que a mãe decida tudo, já que está encantada com a mulher.

A Alienação

Penso que, nesse ponto, é preciso referir teoricamente a questão da alienação, tal como Lacan (1988b) a propõe no Seminário 11, para poder articular nossa hipótese.

Encontramos, assim, na topologia lacaniana, numa exposição que visa formular como se constitui o sujeito, uma repartição que opõe o Sujeito e o Outro, com relação à entrada do inconsciente. O Outro é o lugar onde se situa a cadeia do significante. O sujeito se caracteriza por uma dependência significante ao lugar do Outro.

Em outras palavras, reafirma aqui o fato de o sujeito estar submetido à primazia do significante.

Esta é uma contingência especificamente humana: o homem é um ser falante, um ser de cultura, e está mergulhado nessa cultura, antes mesmo de seu nascimento; ele sofre determinações desse sistema simbólico, e terá que encontrar seu lugar (na família, na sociedade), ingressar num sistema que tem uma história que o antecede - como? Será a partir da relação com o Outro, no caso, a mãe, que vai falar com ele, emprestando-lhe os significantes que o constituirão.

Se a estrutura do significante se funda numa função de corte, e a relação do sujeito ao Outro se origina inteiramente num processo de hiância, o significante, ao se produzir no campo do Outro, faz surgir o sujeito de sua significação; mas, ao mesmo tempo, o reduz a ser apenas isso - um significante - petrificando-o no mesmo instante em que o chama a funcionar como sujeito. Isso é a afânise, momento de fechamento do inconsciente.

A afânise, desaparecimento do sujeito, tem uma qualidade - a de ser letal.

Isso nos leva ao "vel" - algo escondido, que vamos tentar "desvelar"- da primeira operação essencial em que se funda o sujeito: a alienação - que condena o sujeito a só aparecer, ou, de um lado, como sentido, produzido pelo significante, ou, do outro lado, como afânise. Como o sentido emerge no campo do Outro, é de sua natureza ser eclipsado numa grande parte de seu campo pelo desaparecimento do ser, induzido pela função mesma do significante.

Isso poderia ser figurado por meio de dois círculos que se interpenetram formando uma lúnula: o ser (o sujeito) de um lado, o sentido (o Outro), do outro; a lúnula, a intersecção, seria o não-senso (o inconsciente).

Se imaginarmos que o Sujeito e o Outro são "dois que formam um," sua separação, a esse tempo, revelaria que, se um fosse preservado, inteiro, o outro necessariamente seria mutilado; seria criado o desejo (pelo surgimento de um sujeito "faltante"); e se o sujeito, hipoteticamente, encontrasse o objeto perdido - já que a separação colocaria em relação um sujeito "faltante" a um objeto perdido-, estaria pleno, mas também encontraria a morte. É esse o fator letal: o sujeito poder se dissolver no Outro, desaparecer enquanto sujeito. É letal a entrada do ser humano na via de uma escravidão, se permanecer alienado no Outro; é letal para a sobrevivência do sujeito, para o desvendar do seu desejo.

Podemos articular esse postulado teórico com nossa observação clínica, da qual extraímos a hipótese da colagem entre M. e sua mãe, supondo que ambas permanecem nesse estado de alienação recíproca (no sentido de que a filha se remete à mãe como Outro, alienando-se nela, e, inversamente, a mãe também se coloca em M. desaparecendo como sujeito, vivendo "por procuração," através de M.; ela traz suas questões não simbolizadas, "em bruto," alienadas na filha).

Fica muito claro, sob esse recorte, o fator letal que "escorrega" entre M. e sua mãe; por exemplo, a mãe abdica de boa parte do tempo que poderia investir em trabalhar, para ganhar mais (apenas para citar algo que ela já verbalizou), nessa busca de tratamento, no controle, e mesmo no modo como vasculha a intimidade da filha; e M., presa no desejo de sua mãe, não pode mobilizar seus recursos para se desenvolver, para o aprendizado, etc. Em afânise, nada aparece de M. enquanto sujeito, ser desejante.

Mas não podemos esquecer que essa operação - a alienação - é estruturante, fundante (funda o sujeito), porque cria um vazio, um buraco (na intersecção entre o sujeito e o Outro), e é isto que faz surgir a falta, a castração. O desejo da mãe vai marcar o filho - mas essa marca é da ordem do significante, e introduz a criança no mundo humano. É, propriamente falando, a função materna: função de desejo, de marcar a criança com o desejo. Mas, nesse momento que focalizamos, é uma situação de impasse, é altamente destrutiva: M. vem louca, encarnando o significante que nem ela nem a mãe simbolizam.

Nessa fase inicial do atendimento, mãe e filha pareciam fusionadas, simbióticas, o que permitia à mãe vivenciar uma completude imaginária - evitando, assim, lidar com a castração, sentindo-se fálica. M., por seu lado, "aceitou" viver o papel de falo, encarná-lo perante sua mãe (é, assim, a mais inteligente, a filha preferida).

Essa situação, que perdurou durante alguns anos, começou a se modificar com este atendimento. Não vamos nos deter agora nas questões relacionadas com o gozo que devia estar mantendo essa relação; a renúncia a esse mesmo gozo, por parte da mãe; a sua permissão para a entrada em cena do pai. O que precisamos articular agora é a separação entre as duas.

A separação, uma segunda operação na constituição do sujeito, é tão essencial de ser definida como a alienação.

O que se passa é que o sujeito encontra uma falta no Outro, ao que ele responde com a falta antecedente de seu próprio desaparecimento - ou, como podemos também descrever, uma falta recobre a outra. Quando Lacan diz que "É uma falta engendrada pelo tempo precedente que serve para responder à falta suscitada pelo tempo seguinte," estabelece a torção no retorno da relação do sujeito ao Outro.

No esquema que figuramos anteriormente, com os dois círculos interseccionados, a lúnula representa a hiância, a borda, que sedia a dialética do desejo: a junção do desejo do sujeito com o desejo do Outro.

Se a afânise é o desaparecimento do desejo, um momento de fechamento do inconsciente - o sujeito é chamado ao Outro, petrifica-se - podemos, ao postular a separação, como acima, vislumbrar a hiância como o momento de abertura do inconsciente, onde se dá o corte nos significantes - o sujeito vê a si mesmo aparecer no campo do Outro, seu desejo é o desejo do Outro - e, finalmente, o Outro lá retorna... Não basta que esteja estabelecido o significante da falta no Outro, o falo, para o estabelecimento do sujeito - esse processo precisa se completar, com a separação plena, possibilitada pela instalação de outro significante: o nome-do-pai.

A criança humana, ao nascer, não tem como se ver inteira; é o olhar da mãe que vai lhe dar uma imagem antecipada de uma unidade que não corresponde ao que ela vivencia, ou seja, o corpo espedaçado. O Outro (mãe) permite à criança entrar numa função especular e "saber" que é o que a mãe lhe diz. Alienada nessa relação imaginária, a criança vai formar seu eu à semelhança do outro. Isto começa a mudar quando a criança percebe a falta no Outro - ou seja, quando se instala o significante falo.

O mesmo objeto do desejo da mãe é o desejo da criança: e o Outro responde, recobre a falta com a falta antecedente: instala-se a metáfora paterna (chamada "metáfora" por se constituir de condensação de dois significantes:

Ou seja, um significante que substitui o significante desejo da mãe.

Isso pode ser ilustrado no material clínico.

A partir de determinado momento - tendo já sido levantada a história de vida da mãe, com todo o trabalho de pontuação em seu discurso, também baseado no que falava M. - começou a haver alguma mudança, tanto através do surgimento, no discurso da mãe, de referências a outra M., como se ela estivesse "vendo" a filha de outro modo, como por mudanças de atitude da mãe, basicamente mobilizadas na transferência.

Assim, depois de, literalmente, trocar de lugar com a filha - mostrando-se confusa, relatando ter tido uma visão, indo para o horário da filha... - ela atua, no real de uma sessão, criando uma sessão a três (quase invadindo a sessão da filha). Nesse dia, pela primeira vez, M. havia dito uma frase muito enigmática, mas bem encadeada: em vez do "a mulher," que ela repetia todas as sessões, diz o seguinte: "A mulher. Tinha um homem. A menina. mmm. O homem falou por que não deixa ela dormir primeiro?"

Percebemos que alguma coisa estava se passando, que vinha atuado, no comportamento da mãe, e verbalizado pela filha. Houve uma repetição, na transferência, de uma (possível) cena "a três" - ela com o marido e M., ela com seus pais? - que ainda não podia aparecer no discurso, e sim, no real da sessão.

Mas, a partir daí, dona C. começou a falar de questões pessoais, independentemente de M.; e falou de melhoras da filha: esta começa a ir sozinha ao banheiro, por exemplo (antes, a mãe precisava ir junto para ajudar).

Esse "ir sozinha ao banheiro" repetiu-se aqui: M. interrompe a sessão para ir ao banheiro, e eu vejo, da porta da sala, a mãe ir atrás, parando para perguntar se a filha precisa de ajuda... e ao voltar, M. me avisa, quase gritando: "Eu não sou tonta não, Cristina!"

Que quer dizer isso? Será que ela "sabe" que sua mãe e ela estão se separando, e que isso é difícil? A partir desse momento, M. vai explorar se fica perto ou se se afasta da mãe, falando de amigos de "antes de ficar doente," de enfermeiras do hospital na época da internação, do que quer fazer, enfim.

Aqui, começa a separação entre M. e dona C.

M., que parecia psicótica, contentando-se do desejo do Outro (a mãe), começa a estruturar outro tipo de relação, a mostrar-se desejante; estabelece uma transferência comigo, cada vez mais clara e aberta, onde mostra que, quando eu falo, isso soa como Lei, a que ela se submete, portanto, mostra que ela pode se submeter ao corte. E a mãe, que, apesar de toda a questão com esta filha, tinha algum espaço para uma vida própria, parece que entra em análise.

Há outro aspecto que merece ser destacado, nesse ponto: a questão do olhar. Assim, todo o material de M. a respeito dessa "cena a três," que se repetiu em seu discurso muitas vezes, remetia sempre à cena primária, dando fortes indícios de que ela teria realmente visto os pais numa relação sexual; ela passou a falar mais de seu antigo namorado, o E., do que fazia com ele, etc; e, principalmente, passou a me olhar de um modo diferente, fixando o olhar, sustentando o olhar.

Quanto à mãe, sempre negou que M. pudesse ter visto qualquer cena desse tipo; denega também a importância desse namoro com o E. ("era brincadeira de criança," "sempre tinha alguém olhando"); e em sua análise enveredou pela via da curiosidade sexual, mostrando que, até em sonho, não pode ver.

Ou seja, a erotização dessa fenda, tanto para M. como para a mãe, não deixa dúvidas.

Parece que a mãe está renunciando à colagem com a filha - traz o relato de que ela está cada vez melhor, e nós mesmos o observamos, no jogo, no discurso - mas ainda hesita, como se lhe fosse muito penoso admitir a perda do falo. Em outras palavras, é como a repetição da castração.

Se M. atuava, no real, o falo necessário para satisfazer o desejo da mãe, com a reconstrução de sua história ela poderia liberar a filha, ou, não mais precisar dela como sintoma. Fica claro que M. quer sair desse lugar de objeto: quem vacila é a mãe. Parece que está difícil renunciar ao gozo que esta situação lhe traz. Dona C. se queixa da doença da filha, mas tem um gozo nisso, no fato de sofrer com a doença, cuidar, ajudar, como já vimos.

Há uma pergunta sempre no ar: essa mãe sempre fez muitas perguntas, as mais cândidas e inocentes, como se ela não soubesse de nada. Mas o que ela recusa saber?

A essa altura, penso que temos elementos para estabelecer uma hipótese a respeito da estrutura dessa mãe, como tendo uma estrutura perversa, e que sendo, portanto, impossibilitada de aceitar a castração (o não ter o falo), renega-o3 3 O conceito de "renegação" para nomear o processo que, na estrutura perversa, produz o fetiche, em lugar do de "recusa," foi dado por Durval Chechinato, na aula de 29/9/95, no curso de especialização "Atendimento Individual na Estrutura Familiar," realizado no IPUSP, sob a coordenação de Jussara Falek Brauer. (renega que percebeu a diferença sexual), e vai estabelecer com esta filha esse tipo de relação, em que uma colagem a provê do falo - M. seria, assim, seu fetiche.

O fetiche poderia ser a resposta à questão colocada acima, ou seja, aquilo de que dona C. não quer saber - a castração. Como refere Clavreul (1990), "A recusa do perverso deve-se à ausência como causa do desejo e, em seguida, igualmente à ausência de saber como causa da pulsão escotofílica4 3 O conceito de "renegação" para nomear o processo que, na estrutura perversa, produz o fetiche, em lugar do de "recusa," foi dado por Durval Chechinato, na aula de 29/9/95, no curso de especialização "Atendimento Individual na Estrutura Familiar," realizado no IPUSP, sob a coordenação de Jussara Falek Brauer. "- ou seja, na estrutura perversa, "a criança não se reconhece como aquele que não sabia e desejava saber (...) Seu Saber é uma espécie de saber rígido, implacável, inapto para ser revisado diante do desmentido dos fatos..." Esse Saber, que não deixa espaço ao campo da ilusão, perigosamente próximo da psicose por ser um saber absoluto, é contornado pela reconstituição, alhures, do campo da ilusão: justamente, o fetiche.

Toda a questão da cor (da negritude), ao ser analisada, veio a circunscrever um objeto: o cabelo. Agora, podemos pensar no cabelo como fetiche. Dona C. não sabe cuidar do cabelo de M.: como ela toma remédio, isso afeta, segundo ela, a raiz do cabelo, e ele cai - e expressa, assim, sua característica principal, no discurso dessa mãe: é o objeto perdido. Sabemos que o sujeito surge a partir de uma falta: o cabelo, objeto perdido, faz surgir M. como sujeito que não é, não tem o cabelo desejado, não dá para cuidar (nesse sentido, é importante lembrar que a mãe de dona C. não sabia cuidar dos cabelos das filhas, duros, porque o dela era liso - é a recusa do saber, ou melhor, da ausência de saber).

Em nossa hipótese - M. como fetiche de uma mãe perversa - é como se a mãe se iludisse "fetichizando" a filha, controlando-a para que ela não se torne "a via de acesso a essa Verdade que necessariamente descobre o Outro em seu caminho" (conforme Clavreul).

O papel do pai nessa estrutura, sua anterioridade no saber, ganha, aqui, relevância. Vimos como esta mãe sistematicamente desqualifica a autoridade do pai de M., o que é coerente com nossa hipótese: o perverso tem uma clivagem no ego, de modo que tem conhecimento da Lei, mas não se submete a ela; como renega a castração, vive à margem da Lei.

Aqui, abre-se um vasto campo a ser explorado, na análise da figura paterna em relação a esta mãe. Lembramos que ela "fazia por apanhar," e deixou subentendido que gostava disso.

Costumamos pensar no menino, na cena em que descobre a ausência do pênis em sua mãe; e à questão que P. Aulagnier (Clavreul, 1990) coloca, "com que olhos a mãe vê seu filho que a olha?", acrescentaríamos, com que olhos a mãe vê o pênis que o filho exibe? - retornando à pulsão escotofílica, à questão sempre colocada do olhar.

Menciono o menino, na suposição de estar me aproximando de um outro enigma deste caso, que citei logo no início (quando M. mal falava, e entre as poucas palavras que me dizia, figuravam "a mulher" e logo "o menino"). Há também um sonho de dona C. em que "o menino" é um encosto, e o benzedor deve curar M. disso.

Recentemente, e na esteira das mudanças que vêm ocorrendo no sentido de maior autonomia da M., que mostra cada vez mais suas habilidades e, principalmente, seus desejos, tivemos outra sessão marcante, em que M. afirmava, alto e bom som, que quer um namorado. Dizia que "minha mãe tem marido, minha irmã tem namorado, não adianta, Cristina, eu quero um namorado!," relembrando o E., que se mudou, e dizendo que talvez fique com o F. mesmo. Na sessão seguinte, conta que tirou a roupa para o menino ver, na escola. É o F., ele mandou.

A mãe, pouco antes, em seu horário, falara da mesma história, mas de outra posição: transtornada, furiosa ao relembrar o que disse à diretora da escola que "não olha as crianças," ameaçando denunciá-la junto à Delegacia de Ensino, porque soube pela funcionária da cantina que as crianças, em grupo, fizeram essa brincadeira: M. tirou a blusa para o F., e outro menino "mostrou o pinto para outra menina." "Uma imundície! Essa escola é imunda!"

Parece que estamos diante de outra atuação; o menino, o tão falado menino, aí está, encarnado. A "sessão a três" agora está se desenrolando em grupo; M, que supostamente via, aqui é vista. É verdade que não assume o seu desejo: disse à mãe que tirou a roupa porque ele ameaçou bater nela, mas, para mim, disse que queria fazer isso.

Para a mãe, foi transtornante saber dessa cena, mas é revelador notar que ela deu maior destaque para o menino que mostrou o pênis do que para a cena que envolvia sua filha. Cito uma frase sua: "Falei pra ele, por que você não foi mostrar pra sua mãe? Ela é que ia gostar!," com muita raiva, e invectivando contra a falta de educação desse menino, falando que não foi assim que ela e o marido educaram os filhos, "em casa não é assim!" Aqui, poderíamos repetir aquela pergunta: com que olhos a mãe vê o pênis que o filho exibe?

Esse "menino" é significante. Até agora ele está velado. Só sabemos, por enquanto, que "o menino" provoca horror em dona C.

Essa cena deixa transparecer a dificuldade que M. e a mãe têm em assumir sua própria subjetividade, seu ser.

Mas, como sabemos por Lacan (1989) em seu estudo de Hamlet, "Édipo entra em seu declínio do mesmo modo em que o sujeito deve fazer o luto do falo. (...) O Édipo tem como conseqüência no homem e na mulher o estigma, a cicatriz do complexo de castração." Mas em que se transforma o sujeito enquanto que simbolicamente castrado? "Foi simbolicamente castrado no nível da sua posição como sujeito falante e não no nível do seu ser. O seu ser deve fazer o luto do que trouxe para o sacrifício, em holocausto à função do significante que falta." "(A castração servirá) para definir o objeto a do desejo, tal como aparece no fantasma (...): o objeto que sustenta a relação do sujeito com o que ele não é, (...) na medida em que não é o falo." "A posição do falo é sempre velada" (...) "Trata-se, para o sujeito, bem entendido, de o ter ou não. Mas a posição radical do sujeito do desejo é de não o ser. O sujeito é, se o posso dizer, um objeto negativo." "As formas nas quais aparece o sujeito ao nível da castração, da frustração e da privação, podemos chamá-las alienadas ..."

Trata-se, repetindo, de não ser o falo. M. está deixando de ser o falo. Mas - ser ou não ser, eis a questão - por enquanto, o menino não se desvelou, permanece algo de alienado. A única maneira de ser é pela alienação - ela é estruturante, funda o ser. Sem enganchar-se lá, no Outro, não pode advir um ser. Mas ali o sujeito se escraviza. E, "o de que o sujeito tem que se libertar é do efeito afanísico do significante binário" - ou seja, encontrar o intervalo no discurso do Outro (mãe) para constituir o seu próprio desejo, reencontrando sua própria falta.

Para além da análise de todos os significantes que ainda restam, enigmáticos, por decifrar, permanece a dúvida, qual seja, a de saber se esta mãe abrirá mão da proteção que M. representa, e do gozo que lhe proporciona; se permitirá a entrada (simbólica) do pai (isto é, que possa permitir a incidência da função paterna, que não é coincidente com a presença real do pai) para que corte esse gozo e autorize o desejo. Só assim teremos dois sujeitos, separados, não mais escravizados em suas demandas de amor.

Bruder, M. C. R. (1999). The Eternalized Alienation: a Structural Approach of a Clinical Case. Psicologia USP, 10 (2), 189-205.

Abstract: This work is an application of a clinic strategy based on the alienation concept - as defined by Jacques Lacan - to handle a supposed psychotic child and her mother. This strategy, proposed by Jussara Falek Brauer, prescribes individual assistance through weekly sessions with daughter and mother. It considers the family structure and intends to deal with the structural determinations on the Subject constitution. Two moments are especially focused - when the work begins and a later one - that exemplify the changing in the positioning of the child as a result from the therapeutic process in course. The theoretical concepts that support this approach - Alienation, The Lacanian Topology about the Subject Constitution, Significant, Unconscious, Castration, Fetish, Perversion, Separation - are presented and related to the clinical material. Some hypotheses are presented about the mother’s psychic structure, withdrawn from the changing of positions and the evolution observed in both mother and daughter. These lead to the establishment of a diagnostic hypothesis for the daughter.

Index terms: Alienation. Mother child relation. Childhood psychosis. Fetichism. Castration anxiety.

2 Segundo Jacques Alain-Miller, esse texto consiste de duas notas manuscritas, entregues por Lacan a Jenny Aubry, em 1969, e foram publicadas por ela em um livro seu, surgido em 1983. A Revista Opção Lacaniana (Lacan, 1988a) também publicou este trabalho, bem como a Editora Manantial (Lacan, 1991).

4 Este termo encontra-se em "O casal perverso," de Clavreul (1990, p. 126), e se relaciona com o desejo de ver. Tal termo não existe em português; pode-se considerar um neologismo criado a partir do termo lacaniano "pulsão escópica."

  • Clavreul, J. (1990). O casal perverso. In P. Aulagnier-Spairani, J. Clavreul, F. Perrier, G. Rosolato, & J. P. Valabrega. O desejo e a perversăo (pp. 113-155). Campinas, SP: Papirus.
  • Lacan, J. (1988a). Duas notas sobre a criança. Revista Opçăo Lacaniana, 21, 5-6.
  • Lacan, J. (1988b). O Seminário - Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
  • Lacan, J. (1989) Hamlet, por Lacan. In J. Murtinho (Org.), Shakespeare, Duras, Wedekind, Joyce (pp. 11-120). Lisboa, Portugal: Assírio & Alvim.
  • Lacan, J. (1991) Intervenciones y textos (2a ed.). Avellaneda, Argentina: Manantial.
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    Endereço para correspondência: Instituto de Psicologia. Av. Prof. Mello Moraes, 1721, São Paulo, SP - CEP 05508-900. Consultório: Rua Artur de Azevedo, 475 - Pinheiros - CEP 05405-010. E-mail:
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    O conceito de "renegação" para nomear o processo que, na estrutura perversa, produz o fetiche, em lugar do de "recusa," foi dado por Durval Chechinato, na aula de 29/9/95, no curso de especialização "Atendimento Individual na Estrutura Familiar," realizado no IPUSP, sob a coordenação de Jussara Falek Brauer.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Set 2000
    • Data do Fascículo
      2000
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