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A elaboração1 1 As traduções consultadas empregaram "elaborar" (espanhol), "working through" (inglês) e "perlaboration" (francês). O termo alemão para elaboração, "durcharbeitung", expressa a ideia de trabalhar por meio de algo (durch) ou percorrer uma tarefa. No Vocabulário da psicanálise, Laplanche e Pontalis (1982) propõem o neologismo "perlaboration" ("perlaboração") para traduzir "durcharbeitung". Na presente tradução, preferimos usar o termo "elaboração" (N.T.). e seus modelos2 2 O presente texto é resultado da tradução de um artigo originalmente escrito por René Roussillon, com o título La perlaboration et ses modèles. O texto original foi publicado na Revue Française de Psychanalyse (2008/3, vol. 72 - Disponível em http://www.cairn.info/resume.php?ID_ARTICLE=RFP_723_0855), e sua tradução e publicação, na Revista Psicologia USP, foi autorizada mediante e-mail da senhora Maria Vlachou, Rights Manager da Presses Universitaires de France. : Leitura principal, Congresso da IPA em Berlim, Julho de 2007* * Tradução de Marcel Henrique Bertonzzin e Thiago Abrantes (Universidade de São Paulo, Instituto de Psicologia).

The development and its models: main reading, IPA Congress in Berlin, July 2007

La perlaboration et ses modèles: lecture principale, Congrès de la IPA à Berlin, juillet 2007

La elaboración y sus modelos: lectura principal, Congreso de IPA, Berlín, julio de 2007

Resumo:

A elaboração é inerente ao trabalho psicanalítico, é sua própria forma, portanto está sempre presente, mas muda de aspecto, de implicação e de economia de acordo com as exigências deste. Explorarei três modelos de seu funcionamento em função do que está em primeiro plano no trabalho psicanalítico. No primeiro modelo, o que está em questão no trabalho é ajudar a tomada de consciência de um complexo representacional reprimido; o segundo relaciona-se com o trabalho psíquico referente a tornar consciente moções pulsionais ou experiências psíquicas que não puderam ser representadas, de modo que o tempo da análise torna-se o primeiro tempo a posteriori (après-coup); o terceiro é o modelo no qual a representação e a simbolização de uma experiência subjetiva, assim como suas implicações pulsionais, foram realizadas, fazendo o analisando se apropriar subjetivamente destas para poder integrá-las.

Palavras-chave:
elaboração; resistência do Eu; resistência do Id; resistência do Super-eu; subjetivação

Abstract:

Working through is an integral part of the psychoanalytic process, one could even say its epitome. It is therefore always present in the work of an analysis, but depending on the various phases and constraints that arise in that process, changes are brought to its form, to the issues involved in it and to its economic dimension. I will explore three forms (or models) of how working through functions in relation to the dominant feature of any given analytical process. In the first of these, the issue that has to be worked over involves insight into repressed representational complex; in the second form, work has to be done on bringing into consciousness drive-related impulses or mental experiences that have not been able to be represented until then, so the analysis itself would be the first occasion on which retroactive [après-coup] processing could be initiated; and in the third form, when representation and some kind of symbolization of the subjective experience and the drive-related issues that are part of it have been accomplished, the analysand has to appropriate these issues subjectively and integrate them.

Keywords:
elaboration; resistence of the Ego; resistence of the Id; resistence of the Superego; subjectivation

Résumé:

La perlaboration est inhérente au travail psychanalytique, elle en est la forme même, et est donc toujours présente dans celui-ci, mais change de forme, d'enjeux et d'économie selon leur moments et exigences. J'explorerais trois formes, trois modèles de son fonctionnement en fonction de ce qui est au premier plan du travail psychanalytique. Une première forme où l'enjeu du travail est celui d'aider à la prise de conscience d'un complexe représentationnel refoilé ; une seconde forme où le travail psychique concerne le " devenir conscient " de motions pulsionnelles ou d'expériences psychiques qui n'ont pu être antérieurement représentées et dont le temps de l'analyse est le premier temps d'après-coup ; et enfin une troisième forme où ont été effectuées la repésentation et une certaine forme de symboliser l'exprérience subjective et ses enjeux pulsionnels, en faisent l'analysant l'approprier subjectivement et l'intégrer.

Mots-clés:
perlaboration; résistance du Moi; résistance du Ça; résistance du Surmoi; subjectivation

Resumen:

La elaboración es inherente al trabajo psicoanalítico, es su propia forma y está siempre presente, sin embargo, cambia de forma, de implicación y de economía según las exigencias de dicho trabajo. Voy a examinar tres modelos de su funcionamiento en función de lo que está en primer plan para el trabajo psicoanalítico. En el primer modelo, está en cuestión la toma de conciencia de un complejo representacional reprimido; en el segundo, cuando el trabajo psíquico consiste en "hacer consciente" las pulsiones o experiencias mentales que hasta aquel momento no han sido posibles de ser representadas, de manera que el tiempo de análisis es la primera ocasión a posteriori (après-coup); y en el tercer modelo, cuando se han alcanzado la representación y simbolización de una experiencia subjetiva y de las cuestiones relacionadas con la pulsión, entonces el analizando tiene que apropiarse subjetivamente de éstos e integrarlos.

Palabras clave:
elaboración; resistencia del yo; resistencia del ello; resistencia del superyó; subjetivación

Introdução e colocação do problema

"Elaboração" é um conceito essencial da prática psicanalítica, embora apareça somente duas vezes de maneira substancial na obra freudiana: em 1914, no célebre artigo "Repetir, recordar e elaborar" e em 1926, em "Inibições, sintomas e angústia".

Esse conceito é essencial e talvez mesmo identitário para a prática psicanalítica, já que se trata, sem dúvida, do conceito que melhor diferencia, segundo o próprio Freud, a prática psicanalítica das práticas psicoterápicas baseadas na sugestão. E, mesmo que tenha sido introduzido em 1914 num contexto onde se articulava uma concepção da psicanálise centrada na recuperação de memórias esquecidas e pudesse, portanto, ser relacionado a uma concepção da prática um pouco em desuso, o termo atravessou o tempo, os diferentes modelos e concepções da prática psicanalítica.

Sem dúvida, não é por acaso que ele foi aprofundado num congresso da IPA; isso deve ser visto como um sinal de que se trata de um conceito da prática no qual os psicanalistas de diferentes linhas podem ainda se reconhecer, sendo, portanto, um dos conceitos basais, "transversal" às diferentes concepções do trabalho psicanalítico.

Mais precisamente, se os psicanalistas de diferentes linhas podem reconhecer um aspecto importante de suas práticas no que o conceito procura delimitar e que, à primeira vista, parece possuir uma definição simples, talvez essa simplicidade mascare uma complexidade e uma diversidade de nível de funcionamento que uma reflexão como essa procura desenvolver.

De fato, desejo dedicar minha apresentação à exploração dessa diversidade e, portanto, à descrição dos diferentes registros de funcionamento da elaboração em função do tipo de trabalho psicanalítico exigido por diferentes modalidades de situações transferenciais e de funcionamento psíquico.

Minha hipótese central é a seguinte: sob diferentes formas e com implicações igualmente diferentes, a elaboração acompanha todos os momentos e tipos de prática psicanalítica, porém conforme modelos e figuras bastante distintas.

Tentando dizer isso com a ajuda de uma formulação simplificada, mas de início bastante indicativa, e utilizando o que a língua de Freud tem de universal para os psicanalistas, retomo que, em 1914, quando introduz o conceito de elaboração, este está em relação direta com a questão da resistência. Entretanto, em 1926, ele distingue cinco tipos de resistência classificados e definidos em três grandes categorias: a resistência do Eu (subdividida em três), a resistência do Id e a resistência do Super-eu.

Proponho, então, distinguir, seguindo a indicação de Freud, os modelos de trabalho da elaboração segundo aquilo que diz respeito principalmente a:

  • resistências do Eu (resistência do recalcado, resistência da transferência e resistência ligada aos benefícios secundários da doença);

  • resistências do Id (compulsão à repetição, compulsão à simbolização etc.);

  • resistências do Super-eu (sentimento inconsciente de culpa, necessidade de punição e alienação da subjetividade).

Essas três formas de resistência obrigam formas distintas de trabalho psicanalítico e, se cada uma delas for acompanhada da necessidade de um trabalho de elaboração, este não toma os mesmos contornos nem as mesmas questões3 3 No sentido de manejo clínico (N.T.). (enjeux).

A elaboração em 1914: o primeiro modelo - a resistência do Eu

Antes de nos engajar na complexidade que o conceito de elaboração nos traz, é preciso retomar o problema tal como foi situado por Freud em 1914, e como ele se apresentava ao psicanalista dessa época.

O conceito é citado por Freud no interior de uma reflexão a respeito de certa concepção do tratamento baseada no trabalho de rememoração do passado reprimido e nas resistências que o paciente apresenta a essa rememoração. Ele se opõe, portanto, a uma concepção de psicoterapia baseada na hipnose e na sugestão, as quais se desenrolam sem resistência e, portanto, sem a necessidade de elaboração; é a rejeição da sugestão e da hipnose que a impõe. Nos dois casos, trata-se de permitir que o que foi recalcado possa se "descarregar" - o que significa, nesse contexto, não é inútil lembrar, "desenrolar-se completamente" (Freud, 1914/2005Freud, S. (2005). Remémoration, repetition, perlaboration. In Oeuvres complètes (Vol. 13). Paris, France: PUF. (Trabalho originalmente publicado em 1914)), "realizar-se" psiquicamente, isto é, integrar-se. A diferença está no meio utilizado e mais ainda na relação entre o meio utilizado e a qualidade da convicção obtida.

Na prática psicanalítica, a convicção é baseada na aliança com os processos secundários, sendo que é justamente essa aliança que será levada em consideração pela elaboração. É porque o Eu do sujeito é "respeitado" pela técnica psicanalítica que é preciso elaborar o trajeto em direção às lembranças reprimidas exatamente no local onde a hipnose e/ou a sugestão curto-circuitam esse trabalho ao se contentarem, de maneira inversa, com um efeito de convicção fundado na força, quase alucinatória, do retorno da impressão primitiva.

A rememoração é então oposta a um modo de retorno da experiência anterior e do passado caracterizado pela compulsão de repetição (formulada por Freud desde 1914) e suas formas de processamento: o agir e a atualização transferencial do passado recalcado.

Entre essa forma de retorno do passado e a verdadeira rememoração, se interpõe uma resistência, a "resistência de transferência" (1926/1968Freud, S. (1968). Inhibition, symptôme et angoisse. Paris, France: PUF. (Trabalho originalmente publicado em 1926)), a resistência ligada ao próprio agieren transferencial, à forma atual e atuante do retorno.

É essa resistência que se trata de elaborar: o analista propõe uma interpretação (mais tarde, Freud irá dizer mais justamente uma "construção", quer dizer, um termo que insiste mais sobre a ideia de uma hipótese), que se comporta como um "pensamento em espera" em direção aos conteúdos recalcados, mas também como uma atração para estes.

Então, o trabalho se desenrola "fragmento por fragmento", "peça por peça", diz Freud (1914/2005Freud, S. (2005). Remémoration, repetition, perlaboration. In Oeuvres complètes (Vol. 13). Paris, France: PUF. (Trabalho originalmente publicado em 1914)), ou seja, progressivamente traça um caminho a partir dos pensamentos em espera na direção das "emoções reprimidas" (Freud, 1914/2005Freud, S. (2005). Remémoration, repetition, perlaboration. In Oeuvres complètes (Vol. 13). Paris, France: PUF. (Trabalho originalmente publicado em 1914)) e às cenas e lembranças que as "apresentam" e "narram". O trabalho impõe ao analista o que Freud (1914/2005Freud, S. (2005). Remémoration, repetition, perlaboration. In Oeuvres complètes (Vol. 13). Paris, France: PUF. (Trabalho originalmente publicado em 1914)) nomeia "prova de paciência". Confrontamo-nos, então, com a "resistência do recalque" conforme a formulação de 1926.

Essa lentidão do trabalho psicanalítico se opõe a uma concepção do retorno do passado baseado no modelo anterior da ab-reação imediata, modelo ilustrado pela resolução instantânea, como no célebre filme de Hitchcock, Marnie, confissões de uma ladra (1964). Essa lentidão baseia-se não só numa concepção do funcionamento dos processos secundários fundada sobre as pequenas quantidades ("peça por peça", diz Freud), mas também sobre a aceitação de um trabalho de luto da aspiração à "identidade de percepção", tal como se manifesta na atualização transferencial e nas formas de agir transferencial que ela implica (e às resistências ligadas aos "benefícios secundários da doença", segundo as formulações de 1914 e 1926). Tal identidade de percepção deve ser suplantada pela passagem e aceitação de uma simples "identidade de pensamento", quer dizer, um equivalente representativo e simbólico da cena primitiva.

No entanto, como "ninguém pode ser morto estando ausente, nem estando simplesmente representado", este trabalho apresenta outra questão essencial. A resistência, ao atualizar o passado, ao torná-lo presente e vivo, é tão importante quanto sua liberação progressiva; é a "antimonia da resistência", segundo a fórmula de Donnet (1967Donnet, J. L. (1967). L'antinomie de la résistance. L'inconscient, 4, 55-83.).

A elaboração da resistência obriga um verdadeiro trabalho psíquico que preenche subjetivamente a análise e confere valor ao que está em jogo nela. É exatamente porque há uma resistência que atualiza o recalque no tratamento, tornando-o tangível, que o que está em jogo nele e nos conteúdos recalcados podem ser percebidos e reconhecidos em análise. É justamente porque é necessário trabalho (e, para isso, tempo, paciência e esforços) que o resultado da análise vai possibilitar um tipo de convicção baseado na apropriação subjetiva do conteúdo da análise: a energia despendida é testemunha disso.

Porém, tal trabalho supõe um certo modo de funcionamento psíquico do analisando e do analista; supõe que a repressão se refira a lembranças ou conteúdos representativos que já foram conscientes e secundariamente recalcados; supõe que o trabalho seja de uma "tomada de consciência" e, então, para dizer rapidamente, que seja organizada uma neurose de transferência que se apresente como uma formação intermediária entre a neurose histórica e a situação psicanalítica.

A resistência aparece então essencialmente como sendo do pré-consciente, do Eu pré-consciente, a única evocada em 1914. O trabalho do analista pode ser pensado como sua capacidade de "adivinhar", a partir das associações do paciente, quais representações inconscientes organizam as cadeias associativas de reconstruir quais cenas históricas se escondem atrás delas e, depois, comunicar ao analisando quais delas são ativadas na e pela transferência.

A situação e a concepção do que está em jogo na elaboração vão mudar quando Freud começa a pensar que "as resistências inconscientes" podem "se opor à liberação das resistências" e que a análise se vê diante das resistências do Super-eu inconsciente (e de suas deformações eventuais), ou às formas do que Freud chama, em 1926, "as resistências do Id", isto é, as resistências ligadas à transformação insuficiente das moções pulsionais do Id.

A elaboração das resistências vai então tomar outras formas, e a teoria do trabalho analítico ficará mais complexa. Além do trabalho sobre as resistências do Eu, trabalho psicanalítico que qualificamos como "clássico", formas de trabalho psicanalítico de uma outra natureza deverão se desenvolver, as quais a psicanálise contemporânea está ainda trabalhando com empenho.

Esquematicamente, devemos definir três grandes modelos para o trabalho psíquico engajado durante o tratamento, os quais correspondem aos três tipos de resistência demonstradas por Freud. Tais modelos são encontrados em todo tratamento psicanalítico, mesmo que possam estar presentes em uma proporção variável em um determinado momento, e que determinado modelo possa então ser determinante.

O primeiro é o modelo implícito no texto de 1914 - o qual acabamos de apresentar -, mas não é mais o único, embora conserve uma pertinência "regional" nos estados neuróticos. Corresponde a um objetivo de "tomada de consciência" de um complexo representativo recalcado. Como vimos, o que inicialmente está em jogo na elaboração é preparar um terreno para possibilitar, "abrindo um caminho", o retorno do recalcado devido a um emaranhado associativo sobre as formações pré-conscientes que são seus derivados. Depois, quando esse retorno produz manifestações suficientes e sinais de maturação, a elaboração permite um trabalho de exploração "fragmento por fragmento" das razões e do que estava em jogo no recalque anterior, trabalho do qual espera-se que permita estabilizar sua aceitação mediante a elaboração de suas formas de expressão.

Mas o recalque anterior, ou propriamente dito, pode ser também o efeito de um "recalque originário" (Freud, 1926/1968Freud, S. (1968). Inhibition, symptôme et angoisse. Paris, France: PUF. (Trabalho originalmente publicado em 1926)). É o aprofundamento do tratamento que, às vezes de maneira crucial, como nas situações transferenciais nas quais os problemas narcísicos-identitários são suficientemente centrais, obriga a elaboração do recalque originário, conduzindo-nos a diferenciar um segundo modelo.

O trabalho do "tornar consciente" e a resistência do Id: o segundo modelo da elaboração - o jogo

Este pode ser deduzido a partir dos textos freudianos de 1923 a 1926, nos quais conjecturas clínicas são descritas sobre o material inconsciente que, em vez de ter sido representado e posteriormente recalcado, jamais ascendeu à consciência. Sua forma não sofreu a transformação e representação simbólica anterior, as quais permitiriam "tornar-se consciente" (Freud, 1923/1991Freud, S. (1991). Le Moi et le Ça. In Oeuvres complètes (Vol. 16). Paris: PUF. (Trabalho originalmente publicado em 1923), 1926/1968Freud, S. (1968). Inhibition, symptôme et angoisse. Paris, France: PUF. (Trabalho originalmente publicado em 1926)). Veremos adiante as implicações do terceiro modelo fundado no trabalho, não apenas de simbolização, como no segundo modelo, mas no trabalho de apropriação subjetiva.

Nesse momento, proponho examinarmos o que caracteriza o trabalho de elaboração no segundo modelo, fundado no trabalho de transformação necessária ao "tornar consciente", em outras palavras, a elaboração da resistência do Id.

Essa elaboração refere-se às conjunturas históricas de natureza ou efeito traumático nas quais os respectivos conteúdos inconscientes foram contrainvestidos de início antes de qualquer apropriação e representação consciente suficientes. As situações e modos de relações traumáticas pela intensidade do desprazer, dado o terror ou agonia que elas implicam, impedem que o sujeito faça o trabalho de metabolização da experiência subjetiva efetuada nelas. A defesa primária age de modo quase automático a partir do surgimento do terror, pavor ou da ameaça de aniquilação que a experiência traumática comporta, antes mesmo que o sujeito tenha podido viver e representar suficientemente aquilo que lhe ocorreu (Freud, 1920/1996Freud, S. (1996). Au-delà du principe du plaisir. In Oeuvres complètes (Vol. 16). Paris, France: PUF. (Trabalho originalmente publicado em 1920); Winnicott, 1974Winnicott, D. W. (1974). Fear of breakdown. International Review of Psycho-analysis, 1, 103-107.). Ela (a defesa primária) priva da subjetividade os dados perceptivos e sensoriais a partir dos quais o Eu-sujeito poderia construir um sentido aceitável daquilo que experimentou.

Mas podemos também pensar, de modo complementar, que na Europa e nos países de língua inglesa alguns psicanalistas contemporâneos, como Loewald (1980Loewald, H. (1980). Papers on psychoanalysis. New Haven, CT: Yale UP.), tendem a seguir essa linha - o que seria, aliás, a tendência atual de vários psicanalistas de maneira mais geral e fora de todo contexto traumático particular. A "matéria psíquica original", segundo o dizer de Freud (1900/1967Freud, S. (1967). L'interprétation des rêves. Paris, France: PUF. (Trabalho originalmente publicado em 1900), 1920/1996Freud, S. (1996). Au-delà du principe du plaisir. In Oeuvres complètes (Vol. 16). Paris, France: PUF. (Trabalho originalmente publicado em 1920), 1923/1991Freud, S. (1991). Le Moi et le Ça. In Oeuvres complètes (Vol. 16). Paris: PUF. (Trabalho originalmente publicado em 1923)), que se produz na fronteira entre o Id e o Eu quando o Id deve "tornar-se" Eu, é por essência hipercomplexa (Loewald, 1980Loewald, H. (1980). Papers on psychoanalysis. New Haven, CT: Yale UP.). Ela combina, na realidade, percepções múltiplas, sensações diversas, moções pulsionais variadas e potencialmente conflitantes; combina a parte de si na experiência subjetiva e o engajamento pulsional bem como a parte do outro e suas respostas ao engajamento do sujeito.

Ela produz, então, na origem, formas tão intrincadas e condensadas que não podem ser integradas de pronto e se apresentam frequentemente como enigmáticas e confusas. Para serem integradas, elas devem ser progressivamente descondensadas e transformadas com a ajuda de um vaivém dentro/fora de um jogo de transferência e transposições sucessivas.

A vida frequentemente oferece ao sujeito as possibilidades de jogo necessárias a essas transferências e transposições, mas às vezes é somente na situação específica da análise que isso poderá ocorrer (Faimberg, 1998/2009Faimberg, H. (2009). Après-coup et construction. Revue Française de Psychanalyse (special Congress issue), 5, 473-486. (Trabalho originalmente publicado em 1998)), o que não foi submetido a esse trabalho de descondensação, de transposição e de transformação. Esse trabalho de metaforização que caracteriza a representação simbólica não pode, portanto, aceder à consciência; não pode "tornar-se consciente" (Freud, 1926/1968Freud, S. (1968). Inhibition, symptôme et angoisse. Paris, France: PUF. (Trabalho originalmente publicado em 1926)). Ele é, portanto, "recalcado originariamente", segundo os termos de Freud, (1915/1988Freud, S. (1988). L'inconscient. In Oeuvres complètes (Vol. 13). Paris, France: PUF. (Trabalho originalmente publicado em 1915), 1926/1968Freud, S. (1968). Inhibition, symptôme et angoisse. Paris, France: PUF. (Trabalho originalmente publicado em 1926)) e anterior a qualquer subjetivação real.

O recalque originário então "atrai" os recalques ou clivagens secundárias, que são as únicas manifestações perceptíveis de sua ação.

Na análise, portanto, além do trabalho relativo ao recalcamento secundário que evocamos a respeito do texto de 1914, se desenha outro trabalho, que diz respeito à transformação da "matéria psíquica primária" numa forma que a possibilita tornar-se consciente e ser integrada ao Eu. A vetorização desse trabalho foi formulada por Freud em 1932Freud, S. (2010). Nouvelles suites des leçons d'introduction à la psychanalyse. Oeuvres complètes (Vol. 19). Paris, France: PUF. (Trabalho originalmente publicado em 1932), numa fórmula que se tornou célebre: "Wo es war soll ich werden".

O modelo de elaboração então envolvia um trabalho correspondente ao que deve ser fornecido ao analisando e ao analista para operar as transformações necessárias de modo que o material inconsciente primitivo, o jamais-tornado-consciente, mas subjacente aos recalques secundários e sempre capaz de sê-lo novamente, seja suscetível de tornar-se consciente.

Esse trabalho consiste primeiramente no auxílio ao descondensamento da matéria psíquica primária para torná-la representável ainda "fragmento por fragmento", "detalhe por detalhe", ou seja, metabolizar a resistência própria à matéria psíquica inconsciente, à sua natureza (Freud, 1923/1991Freud, S. (1991). Le Moi et le Ça. In Oeuvres complètes (Vol. 16). Paris: PUF. (Trabalho originalmente publicado em 1923)) e às moções pulsionais que ela abriga e às quais dá forma.

Entretanto, para que isso ocorra, é necessário primeiramente que se transfiram, na situação psicanalítica, as questões específicas à resistência do Id. Aí também existe uma "antinomia da resistência" que aqueles que se confrontam com as "situações limites da psicanálise", segundo o termo que propus para descrevê-las (Roussillon, 1991Roussillon, R. (1991). Paradoxes et situations limites de la psychanalyse. Paris, France: PUF.), conhecem bem. "Situações limites" que devemos saber identificar e compreender como formas da resistência do Id por meio de formas transferenciais de reações terapêuticas negativas, de transferências delirantes (Little, 1981Little, M. (1981). Transference neurosis and transference psychosis: Towards basic unity. New York, NY: Free Association Books.) ou passionais, mas também por formas menos manifestas ou eloquentes mais marcadas pela inércia, tal como aquelas da melancolia fria e do masoquismo de funcionamento.

Quando a transferência permite, cabe descolar progressivamente os fragmentos e componentes da experiência ativada pela forma de uma "identidade de percepção" que caracterizam sua forma perceptiva primeira e que podem ir até as manifestações alucinatórias, para que a matéria originária da experiência subjetiva presente (engagée) na transferência possa se reconhecer como "representação psíquica", necessariamente parcial, e que ela possa então se inscrever no registro da identidade de pensamento.

Portanto, trata-se de permitir que isso que se "apresenta" à superfície psíquica possa se reconhecer como (re)presentação de uma parte, um traço (pan) do passado e não mais como atual. Isso implica um trabalho de metabolização das moções pulsionais e das experiências traumáticas, um trabalho de transformação da experiência subjetiva primeira em uma forma representativa suscetível de "tornar-se consciente". Esse trabalho passa sempre por um trabalho de (re)construção que implica o analista, podendo comprometê-lo. Voltaremos ainda sobre esse ponto essencial.

O Eu, como Freud destaca em 1923, só pode trabalhar de fato a partir de "representações"; ele deve transformar tudo em representação psíquica e, particularmente, em representação verbal, tanto as percepções e sensações como as moções pulsionais e os afetos, ou seja, todos os componentes da matéria psíquica original. É o primeiro trabalho de tomada qualitativa da experiência subjetiva.

Posteriormente, ele deve explorar os diferentes aspectos psíquicos, suas diferentes facetas, para familiarizar o pensamento com sua "inquietante" estranheza originária e assim torná-la progressivamente integrável.

Tal trabalho de elaboração pode ser circunscrito a partir do modelo do jogo infantil (Winnicott, 1971Winnicott, D. W. (1971). Playing and reality. London, England: Tavistock.). Ele tem a mesma função que este na infância: dominar as situações difíceis e potencialmente traumáticas para permitir sua simbolização e preparar, assim, a apropriação subjetiva ou a subjetivação. Alocar e transferir as sensações, percepções, pulsões nos "objeux"4 4 Neologismo criado a partir das palavras objet (objeto), je (eu) e jeux (jogo) (N.T.). animáveis e então difratá-los para explorar suas características próprias e torná-los mais facilmente apreensíveis ao revelar todas suas diferentes facetas. Exatamente por isso ele passa pela repetição necessária à exploração "fragmento por fragmento", "peça por peça" ainda de modo similar ao jogo infantil. Elaboração e repetição aqui caminham juntas, e cabe ao psicanalista diferenciar essa repetição inevitável e profícua relativa àquilo que propus chamarmos de "compulsão à simbolização" (Roussillon, 1984Roussillon, R. (1984). Construction de la scène primitive et co-construction du processus analytique, à propos de l'interprétation. Bulletin de la Societé Psychanalytique de Paris, 5, 27-44., 1991Roussillon, R. (1991). Paradoxes et situations limites de la psychanalyse. Paris, France: PUF., 1995Roussillon, R. (1995). La métapsychologie des processus. Revue Française de Psychanalyse, 5, 1351-1523.) das formas de repetição marcadas pelo retorno do traumático em si.

Faz-se necessário agora retornar e insistir sobre o fato de que esse tipo de trabalho de elaboração se efetua frequentemente a dois: o analista sendo muito mais implicado e, portanto, potencialmente mais comprometido do que no primeiro modelo mencionado. O trabalho se efetua a dois e com o analista, o que pode colocar a tônica nos aspectos intersubjetivos da cura (Renik, 2004Renik, O. (2004). Intersubjectivity in psychoanalysis. International Journal of Psychoanalysis, 85, 1053-1056.), sobre o copensar (Widlöcher, 1995Widlöcher, D. (1995). Report read to the 55th Congress of French-speaking psychoanalysts. Revue Française de Psychanalyse, 59, 1719-1783.) e sobre a construção (Roussilon, 1984Roussillon, R. (1984). Construction de la scène primitive et co-construction du processus analytique, à propos de l'interprétation. Bulletin de la Societé Psychanalytique de Paris, 5, 27-44.), pois a representação psíquica não é dada; ela deve ser construída, ela é o fruto do trabalho da análise. Esse trabalho a dois, no qual "duas áreas de jogo sobrepõem-se" (Winnicott, 1971Winnicott, D. W. (1971). Playing and reality. London, England: Tavistock.) é então ocasião de um compartilhamento da experiência e de uma recarga libidinal que são indispensáveis para que as experiências em sofrimento de simbolização do paciente possam se ligar e se integrar à trama do Eu pré-consciente. É um trabalho que propus descrever como "lado a lado", mesmo se a situação permanece assimétrica, na medida em que cada um se apoia no outro e no trabalho do outro de sua parte. É a respeito disso que a máxima de Winnicott: "A análise se desenvolve lá onde se superpõem duas áreas de jogo" toma sua pertinência máxima; é por isso também que propus o neologismo de "entre-eu/entre-jogo"5 5 Entreje(u), entre-eu/entre-jogo, construção utilizada que faz sentido em francês na medida que je (eu) e jeu (jogo) são palavras homófonas (N.T.). para descrevê-la.

A ideia de um trabalho de construção "lado a lado" contém assim a ideia de uma forma de trabalho em paralelo e "em dobro" sobre o qual durante vários anos, com C. e S. Botella, mas por um caminho diferente do deles, eu chamo a atenção. A elaboração se efetua então no campo estruturado por duas cenas distintas, aquela do analisante e aquela do analista. Distintas mas ligadas entre si e implicando uma exigência de trabalho de ligação. Ela se efetua entre essas duas cenas, no trabalho de ligação e de articulação delas. A análise se apoia sobre a empatia com aquilo que se passa com o paciente, mas não chega a tomar forma definida para tentar sentir e reconstruir ao encenar/representar as experiências presentes na "constelação" (Freud, 1938) transferencial. É, portanto, um trabalho de "simbolização a dois" que deve ser feito. Aquilo que não pode ser simbolizado historicamente pelos primeiros objetos do paciente deve encontrar uma segunda chance de sê-lo no trabalho psicanalítico (Faimberg, 1998/2009Faimberg, H. (2009). Après-coup et construction. Revue Française de Psychanalyse (special Congress issue), 5, 473-486. (Trabalho originalmente publicado em 1998)).

Dado tudo isso, como destaquei, o analista se encontra implicado em seu trabalho, ele não pode evitar completamente seu comprometimento, o que abre a questão da elaboração da sedução e da sugestão inevitável na e pela análise e a questão de sua ligação transferencial com as seduções sexuais e narcísicas relativas aos objetos significativos do paciente. Somos então conduzidos à questão da "resistência do Super-eu" que lhe é herdeira, e em particular àquela do "Super-eu severo e cruel" (Freud, 1923/1991Freud, S. (1991). Le Moi et le Ça. In Oeuvres complètes (Vol. 16). Paris: PUF. (Trabalho originalmente publicado em 1923)), na qual a análise deve ser cuidadosamente dialetizada com a resistência do Id. "A sombra do objeto (e do analista) cai sobre a análise" (Roussilon, 2000Roussillon, R. (2000). La capacité d'être seul en présence de l'analyste et l'appropriation subjective. In J. Cournut & J. Schaeffer, (Eds.), Pratiques de la psychanalyse (pp. 37-49). Paris, France: PUF., p.).

Podemos, portanto, abrir nossa reflexão sobre a terceira forma de resistência bem como o terceiro modelo do trabalho da elaboração.

Elaboração e resistência do Super-eu: o terceiro modelo - o que está em jogo nele?

Quando Freud se debruça, em 1923, sobre a questão da reação terapêutica negativa, ressalta que ela encontra a questão de saber a quem podem ser atribuídos os resultados de uma análise. Ele frisa assim que uma questão central é mobilizada pelo trabalho psicanalítico: as condições da apropriação subjetiva desse trabalho pelo analisando. O que faz ressurgir, também, a questão da ameaça de sedução e de sugestão na e pela análise, assim como o fantasma da hipnose com o qual já tínhamos cruzado no texto de 1914. Não é por acaso que Freud retorna em diferentes textos da época (e nas suas correspondências com Ferenczi) a respeito da questão da transmissão inconsciente de pensamento.

Além disso, ele evoca, em uma nota do artigo de 1923, sempre a propósito da reação terapêutica negativa, que o sentimento inconsciente de culpa, subjacente à reação terapêutica negativa, pode resultar de uma "identificação de empréstimo", hipótese que confirma essa questão. Quando o trabalho psicanalítico se efetua a dois, em copensamento, como diz D. Widlöcher, em coconstrução, como eu propus em 1984, a questão se abre sobre as condições para que esse trabalho não contenha formas de sugestões alienantes e não provoque rejeição ou exacerbação do negativismo. A psicanálise pode então ser pensada como um "campo", tal como sugerido pelos Barangers (1996Baranger, W., & Baranger, M. (1996). Processus et non-processus dans le travail analytique. Revue Française de Psychanalyse, 60, 1223-1242.), ainda mais quando somos confrontados com situações transferenciais nas quais as problemáticas narcísicas estão em primeiro plano.

Portanto, não é suficiente representar e simbolizar a "matéria-prima" psíquica; é necessário ainda saber a quem se deve o fato de que essa simbolização se efetue e quais formas de apropriação subjetiva acompanham o trabalho de simbolização. Como Freud observa a propósito dos sonhos de complacência, em 1923, podemos "sonhar para o analista", então no lugar do Super-eu, a ser seduzido ou ao qual devemos passivamente nos submeter. Mas existem também formas deste que são alienantes e devem ser desconstruídas, opondo-se ao processo analítico e constituindo modos de resistência que provocam perturbações do funcionamento psíquico.

Pensamos, evidentemente, no Super-eu "severo e cruel" que Freud evocou em 1923, o qual desregula o funcionamento psíquico ao tratar a simples representação como ato, confusão que coloca o Eu em um impasse. Ele se torna assim uma "pura cultura de pulsão de morte" (Freud, 1923/1991Freud, S. (1991). Le Moi et le Ça. In Oeuvres complètes (Vol. 16). Paris: PUF. (Trabalho originalmente publicado em 1923)). O Super-eu pode então exigir "demais" do Eu, tirando os benefícios de seu trabalho de simbolização, ou ainda não lhe oferecer as condições necessárias para poder efetuá-lo. Em 1929Freud, S. (1965). Malaise dans la culture. Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1929), no final de Mal-estar na cultura, Freud não declara que é necessário "diminuir suas pretensões" (as do Super-eu) e lutar contra suas exigências extremas? Pensamos, evidentemente, também nos ideais impostos ao Eu pelo Super-eu.

Analisar a resistência do Super-eu, elaborar essa resistência, é então remeter à maneira como "a sombra" dos objetos parentais do paciente caiu sobre o Eu e contribuiu para a formação do Super-eu. "A sombra dos objetos" parentais pode ser também nesse caso a sombra de seu próprio Super-eu, como Freud definiu. Mas é também examinar cuidadosamente como a sombra dos ideais, das teorias, das particularidades de funcionamento do próprio analista (Brenman, 2006Brenman, E. (2006). Recovery of the lost good object. London, England: Routledge.) ameaçam cair sobre a análise e sobre o analisando (Hanly, 2009Hanly, C. (2009, June). Conference paper read before the Canadian Psychoanalytical Society.; Mitchell, 1997Mitchell, S. (1997). Influence and autonomy in psychoanalysis. Hillsdale, NJ: Analytic Press.). Lembramos que essa é uma questão central nas reflexões técnicas de Sándor Ferenczi, nas quais denunciava o que ele chamou de "hipocrisia profissional" de alguns de seus colegas. Essa questão também está no centro, na França, no artigo consagrado por Anzieu (2007Anzieu, D. (2007). Principe d'analyse transitionnelle en psychanalyse individuelle. Psychanalyse des limites (pp. 109-142). Paris, France: Dunod. (Trabalho original publicado em 1989)) aos Princípios de análise transicional em psicanálise individual", de 1989, essencial no aporte de Winnicott e na análise das intrusões psíquicas.

Inevitavelmente, no trabalho de coconstrução necessário à elaboração das resistências do Id e dos materiais arcaicos, o analista não pode deixar de desvendar alguma coisa de seu próprio funcionamento, de seus próprios ideais. Mascarar para si mesmo esse dado é correr o risco de enquistar um ponto de contratransferência e exacerbar a submissão ou a revolta do analisando diante de um Super-eu-ideal do Eu alienante. Inevitavelmente, essa contra-atitude do analista entra em conluio com as implicações transferenciais da "resistência do Super-eu" e não o permite mais elaborar sua história.

Inversamente, aceitar assumir o que há de sugestão-sedução inevitável na análise é abrir a via à elaboração da dimensão histórica da resistência do Super-eu e permitir que ele se "transicionalize" progressivamente. Um elemento crucial na apropriação subjetiva da análise permite que também o Super-eu seja apropriado subjetivamente. É o que fez Donnet dizer que era necessário transformar a formulação de Freud de 1932Freud, S. (2010). Nouvelles suites des leçons d'introduction à la psychanalyse. Oeuvres complètes (Vol. 19). Paris, France: PUF. (Trabalho originalmente publicado em 1932) para: "Wo Es, und Uber-Ich, war soll Ich werden", quer dizer, "Lá onde estavam o Id e o Super-eu, é preciso que advenha o Eu-sujeito".

Em minha experiência clínica, um dos pontos centrais desse trabalho de transicionalização do Super-eu, ao lado do trabalho viabilizado pelo desenvolvimento das capacidades de jogo (que já abre a possibilidade para que os processos de simbolização se desenvolvam em encontrado-criado), passa pela capacidade dos analisandos de "dizer não" ao analista. Um "não" profundo que os permite evitar a alienação das posições de submissão ou de revolta (as quais, na maior parte do tempo, testemunham o fracasso do sujeito em dizer um "verdadeiro" não que não é um "não" de fachada, um não paradoxal de complacência).

Quando essa capacidade ao "não" não for adquirida pelo analisando, uma forma de elaboração vai então estar relacionada particularmente às formas ditas do "negativismo", ou seja, são as manifestações alternativas da necessidade do analisando de poder manter uma diferenciação suficiente do analista. Trata-se assim de evitar que a sombra do analista, de seus ideais e de suas teorias, caiam sobre o analisando a priori, com o risco de uma ressexualização das relações do sujeito com o Super-eu ameaçador.

Nessas situações clínicas, o trabalho de elaboração se superpõe a um trabalho de colocar à prova o analista e seu narcisismo, que devem "sobreviver", conforme a expressão de Winnicott, para possibilitar o trabalho de diferenciação Eu/não Eu, trabalho que se torna a implicação central da análise e da elaboração psicanalítica. Sem esse "descolamento" do analisando e do analista, o jogo de colagem-descolamento do Eu e do Super-eu, de intricação-diferenciação do Eu e do Super-eu, não pode ocorrer com liberdade suficiente, ficando preso nas formas e sujeições infantis.

Sem esse descolamento, o analista apenas substitui as influências históricas dos objetos significativos do analisando pelos seus próprios ideais e valores, e a análise se comporta como uma outra forma de "máquina de influenciar" ou "de sugerir", qualquer que seja sua boa vontade ou sua ética profissional. A influência do analista, seu poder de sugestão é inevitável, pois não dependem somente dele e das precauções que ele toma para não exercer influência sobre seus pacientes; dependem também da forma da transferência e da função que esta confere ao analista. Faz parte da questão da elaboração da "resistência do Super-eu" ser sensível aos efeitos dessa questão e das suas formas de manifestação, além de se dotar das condições de sua análise.

A sensibilidade e a atenção dada a essa questão comandam, por sua vez, a possibilidade de uma análise do que Winnicott chamou "uso do objeto", quer dizer, a capacidade do analisando de utilizar o analista e a elaboração para analisar as condições do narcisismo.

Conclusão

Nos três "modelos" expostos e nas três conjunturas transferenciais exploradas, o trabalho de elaboração está sempre presente, mas muda de natureza à medida que muda de objetivos (enjeu)6 6 O autor joga com as palavras enjeu (questão) e entre-jeu (entre-jogo) (N.T.). no "entre-jogo" (interplay) do encontro analítico. A elaboração é essencial ao trabalho psicanalítico; ela busca o tempo necessário para que os processos psíquicos possam ser reconhecidos, dominados, explorados e apropriados. Mas, sobretudo, ela assegura as condições para que o trabalho psicanalítico não seja tomado na única dimensão pré-consciente da psique, mas que enfrente os reais objetivos inconscientes, nos quais as formas de resistência escondem e revelam ao mesmo tempo, resultando numa convicção verdadeira.

É por isso que o conceito de elaboração permanece central na técnica psicanalítica: é seu conceito de base, pelo qual esta tem uma chance de não ser uma nova forma nem uma maneira sofisticada de sugestão - meta essencial da psicanálise contemporânea.

Referências

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  • Winnicott, D. W. (1974). Fear of breakdown. International Review of Psycho-analysis, 1, 103-107.
  • 1
    As traduções consultadas empregaram "elaborar" (espanhol), "working through" (inglês) e "perlaboration" (francês). O termo alemão para elaboração, "durcharbeitung", expressa a ideia de trabalhar por meio de algo (durch) ou percorrer uma tarefa. No Vocabulário da psicanálise, Laplanche e Pontalis (1982) propõem o neologismo "perlaboration" ("perlaboração") para traduzir "durcharbeitung". Na presente tradução, preferimos usar o termo "elaboração" (N.T.).
  • 2
    O presente texto é resultado da tradução de um artigo originalmente escrito por René Roussillon, com o título La perlaboration et ses modèles. O texto original foi publicado na Revue Française de Psychanalyse (2008/3, vol. 72 - Disponível em http://www.cairn.info/resume.php?ID_ARTICLE=RFP_723_0855), e sua tradução e publicação, na Revista Psicologia USP, foi autorizada mediante e-mail da senhora Maria Vlachou, Rights Manager da Presses Universitaires de France.
  • *
    Tradução de Marcel Henrique Bertonzzin e Thiago Abrantes (Universidade de São Paulo, Instituto de Psicologia).
  • 3
    No sentido de manejo clínico (N.T.).
  • 4
    Neologismo criado a partir das palavras objet (objeto), je (eu) e jeux (jogo) (N.T.).
  • 5
    Entreje(u), entre-eu/entre-jogo, construção utilizada que faz sentido em francês na medida que je (eu) e jeu (jogo) são palavras homófonas (N.T.).
  • 6
    O autor joga com as palavras enjeu (questão) e entre-jeu (entre-jogo) (N.T.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    11 Jun 2015
  • Aceito
    12 Jun 2015
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