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Nacional estrangeiro: história social e cultural do modernismo artístico em São Paulo

RESENHAS

Mariana Françozo; Luiz Gustavo Freitas Rossi

Doutorandos em Ciências Sociais – Unicamp

Miceli, Sergio. Nacional estrangeiro: história social e cultural do modernismo artístico em São Paulo, São Paulo, Companhia das Letras, 2003, 304 pp.

O mais recente livro publicado pelo sociólogo Sergio Miceli vem preencher uma lacuna importante nos estudos sobre o modernismo paulista, uma vez que abre uma série de perspectivas para a compreensão das relações entre os artistas e os mecenas nas décadas de 1920 e 1930. Visto no conjunto de seus trabalhos, Nacional estrangeiro: história social e cultural do modernismo em São Paulo vem adensar uma recorrente preocupação do autor em deslindar as relações entre os intelectuais e as elites dirigentes no Brasil. Em Intelectuais e classe dirigente no Brasil (2001), o interesse central do sociólogo é entender o papel político dos intelectuais e sua inserção no aparelho burocrático do Estado brasileiro entre 1920 e 1945. Já em Imagens negociadas (1996), Miceli mergulha na produção retratista de Candido Portinari para por meio dela compreender os investimentos simbólicos de uma elite ansiosa de prestígio e reconhecimento social. Agora, com Nacional estrangeiro, temos um esforço de recuperação do processo de construção identitária e de aprendizagem estética de artistas e mecenas, em que se privilegia, como o próprio autor nos informa, "de um lado, o relacionamento contraditório com mecenas e colecionadores locais orientados por padrões de gosto extremamente convencional e, de outro, o processo de aprendizagem e absorção criativa das linguagens artísticas de vanguarda" (p. 15).

Artistas como Tarsila do Amaral, Lasar Segall e Anita Malfatti têm suas respectivas obras analisadas do ponto de vista de suas condições de produção, numa abordagem que busca revelar não só o papel e o lugar social de nossas elites no desenvolvimento das artes pictórias, mas também mostrar como as escolhas estéticas que as orientaram muito dizem sobre a vida social destes artistas na São Paulo do início do século XX. Sua análise – se assim pudéssemos resumir – trata fundamentalmente de imprimir um olhar sociológico à produção estética, entendida como resultado de uma complexa rede de relações sociais na qual estilos, formas e temas são negociados ao sabor dos descompassos entre esse "círculo endinheirado e requintado" e os esforços dos próprios modernistas no sentido de criar espaços de circulação para suas obras.

O livro se divide em duas partes. Primeiramente, o autor analisa os principais mecenas e financiadores do crescente mercado paulista de arte para, num segundo momento, resgatar parte expressiva da produção daqueles jovens artistas que naquele momento lançavam suas carreiras e alcançavam significativo reconhecimento, a ponto de muitos deles se tornarem retratistas de figuras ilustres e de prestígio na vida pública.

Dois pontos parecem significativos do conjunto de argumentos do autor. O primeiro, como ressaltado há pouco: o de revelar e qualificar o papel fundamental da elite paulistana – "convencionalista" – no financiamento desses talentosos jovens. A contragosto dos artistas e de uma série de interpretações caudatárias do movimento modernista, Sergio Miceli mostra como muitas vezes a viabilização de seus projetos artísticos passava necessariamente por concessões e negociações com esse mecenato.

Seja através de bolsas proporcionadas pelo governo brasileiro ou mesmo pelas oportunidades abertas por figuras endinheiradas como Olívia Guedes Penteado e Paulo Prado, mais sensíveis às linguagens das vanguardas artísticas européias, esses aspirantes das artes não deixaram de travar relações íntimas com as elites e, em grande medida, de depender delas. Como o autor afirma, "ao invés de situar os artistas como se nada tivessem que ver com as condições de suas possibilidades de existência social" (p. 15), em Nacional estrangeiro vemos expostas as redes de sociabilidade que uniam esses dois grupos e que possibilitaram não só a produção artística modernista como também o crescimento do mercado de arte do país.

Assim, Miceli recupera parte das trajetórias de alguns desses mecenas – em sua maioria, homens ligados ao Partido Republicano Paulista (PRP) – procurando esquadrinhar os descompassos entre seus padrões de gosto e sensibilidade artística e as novas concepções estéticas desta nova geração. As coleções de Ramos de Azevedo, Adolfo Augusto Pinto, Altino Arantes e Freitas Valle tornam-se, no olhar de Miceli, um manancial de pistas para verificar o modo como esses grupos exerceram a função de barrar o surto inventivo dos modernistas. Exemplo significativo desse argumento são as telas "bem-comportadas" de Di Cavalcanti e Anita Malfatti encontradas nos acervos desses colecionadores, encomendadas ou doadas, nesse universo de trocas e conflitos simbólicos entre produtores e consumidores das artes pictórias.

Não à toa, os modernistas buscaram construir novas formas de sociabilidade, redes de circulação de trabalhos e espaços de convivência em torno de uma nova clientela emergente de imigrantes abastados. Em suas telas, muitos recuperavam imagens de suas experiências de desterrados – como fizeram, por exemplo, Lasar Segall e Anita Malfatti. Essas novas linguagens que tais artistas buscaram trazer foram bem acolhidas pela nova clientela que "reconheceu de pronto nessas obras uma imagem tocante de suas próprias experiências de vida, passando a enxergar tais artistas como seus porta-vozes em matéria de identidade social, repique étnico, calibre afetivo, orientação política e inclinação estética" (p. 93). Nesse sentido, a inflexão estética e temática que marcou esses trabalhos não só fazia parte dos anseios artísticos modernistas como também estava em direta sintonia com as aspirações da elite formada por imigrantes bem-sucedidos. A representação estética da condição social de estrangeiros fazia dessas telas a escolha preferencial desses consumidores que com elas se identificavam.

Chegamos assim ao segundo ponto a ser ressaltado. Trata-se do tipo de análise que Sergio Miceli faz de algumas séries de quadros produzidas pelos artistas modernistas do período estudado, cujas reproduções estão belissimamente organizadas em três cadernos especiais inseridos no livro.

Combinando uma observação estética minuciosa com um aguçado olhar sociológico, o autor toma as telas como verdadeiros espaços de decifração social. Por meio de análises sensíveis, mostra como as obras pictóricas podem ser entendidas também como expressão estética das situações, configurações e disposições sociais e psicológicas vividas pelo artista e seu retratado.

Uma bela amostra é a análise do quadro Nu, de Anita Malfatti, pintado nos anos 1920. Nessa tela tem-se a figura de uma mulher nua, atrás da qual há um pano verde e uma parede enfeitada por dois quadros: um, o retrato do escritor Mário de Andrade, o outro, semi-encoberto pelo corpo feminino, parece ser um auto-retrato da pintora. A análise dessa tela ganha profundidade e significação social na medida em que um conjunto de informações extrapictóricas são conjugadas com o trajeto interpretativo, de modo tal que a tela pode ser lida tanto na chave da relação platônica que Anita e Mário mantinham entre si, quanto na chave das posições de ambos no contexto modernista do início dos anos 1920.

Seguindo esse tipo de argumentação, o autor de Nacional estrangeiro esquadrinha grande parte das 162 telas reproduzidas em seu livro, mostrando como os quadros – e as obras de arte em geral – constituem fontes reveladoras e objetos de estudo iluminadores para a análise da vida social do período em que foram produzidos. A busca do detalhe, a atenção aos pequenos indícios que os quadros oferecem, não só por meio dos objetos e das pessoas retratadas, mas também das formas, suas constâncias e inconstâncias, e da "nervosidade" dos traços são material farto na análise de Miceli, que busca na totalidade das obras a síntese de uma realidade complexa vivenciada pelos modernistas, individual e coletivamente.

Trata-se, então, de um livro de fôlego e contundente. De fôlego, na medida em que pontua as múltiplas mediações entre os artistas e suas trajetórias, os "grupos" de que eles provêm e os "grupos" de que dependem e com os quais interagem. Contundente, pois revela de maneira exemplar como as obras de arte podem constituir um corpus de análise rentável no estudo da vida social.

Bibliografia

MICELI, S. 1996 Imagens negociadas, São Paulo, Companhia das Letras. 2001 Intelectuais à brasileira, São Paulo, Companhia das Letras.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Nov 2004
  • Data do Fascículo
    2004
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