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Visão de mundo e projeto de busca espiritual: o ethos de praticantes do yoga e Vedanta

Worldview and spiritual search project: the ethos of practitioners of yoga and Vedanta

RESUMO

Descrevo neste artigo o ethos de brasileiros que estudam Vedanta na Índia. Para compreender suas experiências, investigo a cosmovisão vedantina, cujas práticas, especialmente as de meditação e yoga, são recorrentes e acompanham o estudo de textos sagrados hindus, sendo então incorporadas a seus estilos de vida. Minha análise baseia-se na articulação entre a realização de estudos na Índia e as significativas transformações que ocorrem não apenas em seus estilos de vida, mas em suas visões de mundo. O objetivo é destacar a existência e o significado de algumas dessas transformações, que chegam a causar uma “mudança de paradigmas” (uma categoria “nativa”) - algo tão intenso que pode os levar a reavaliar seus mais profundos sentimentos. Examino então essas transformações como consequência de seus projetos de busca espiritual.

PALAVRAS-CHAVE:
Ethos; Vedanta; projeto; visão de mundo; busca espiritual

ABSTRACT

I describe in this article the ethos of Brazilians studying Vedanta in India. To understand their experiences, I look into the Vedanta worldview, whose recurrent practices, especially meditation and yoga, accompanied by the study of sacred Hindu texts, are eventually embodied to their lifestyles. My analysis is based on the link between their ongoing studies in India and the significant transformations that occur not only in their lifestyle but also in their worldview. The purpose is to highlight the existence and meaning of some of these transformations, which might even cause a “paradigm shift” (a “native” category) - something so intense that it could lead them to reevaluate their deepest feelings. I, then, examine these transformations as consequences of their spiritual search projects.

KEYWORDS:
Ethos; Vedanta; project; worldview; spiritual search

INTRODUÇÃO

Este trabalho fez parte de uma pesquisa de doutorado em ciências sociais (PPCIS/ UERJ) sobre a busca de espiritualidade na Índia por parte de estudantes de Vedanta. Desde o doutorado, continuo analisando os sentidos que os interlocutores atribuem a transformações em seus estilos de vida e visões de mundo, em uma pesquisa de pós-doutorado em antropologia social no Museu Nacional (PPGAS/UFRJ).

A pesquisa, em seu maior escopo, se fundamenta nas percepções de um grupo de brasileiros, estudantes de Vedanta, que se reúne semanalmente no Rio de Janeiro para estudar a Bhagavad Gita e as Upanishads, e que viajou à Índia em busca de espiritualidade1 1 Confira: Bastos (2016a; 2016b; 2016c; 2017a; 2017b; 2018; 2019a; 2019b; 2020; 2021; 2022a; 2022b; 2022c). . Devido a esse projeto de busca espiritual, a maior parte dos interlocutores se denomina “buscador” (uma categoria “nativa”). Uma parte dos entrevistados, que privilegiei descrever neste texto, permaneceu na Índia por períodos que compreendem desde alguns meses a mais de três anos morando em ashrams2 2 A palavra mais indicada para designar esse tipo de construção religiosa seria “mosteiro”, mas, para a maior parte dos entrevistados, essa palavra se relaciona com a instituição católica, então preferi usar monastério, que é o termo ao qual se referem. , escolas do tipo “monastérios”, com o objetivo de estudar Vedanta. Este artigo faz um recorte do universo dos pesquisados, já que a maior parte do grupo não chegou a viver na Índia de fato, mas realizou algumas peregrinações3 3 Em outros textos aprofundei a questão da relação entre turismo e peregrinação (ver: Bastos 2017a; 2021). ao país. Com isso, retrato aqui a visão de interlocutores que viveram na Índia com o objetivo de aprofundar seus estudos de Vedanta. Ao analisar seus relatos, podemos ter uma noção de quem são, quais as motivações para realizarem tais deslocamentos e quais significados atribuem a essas vivências.

Comecei a me aproximar do grupo pesquisado realizando entrevistas com participantes do curso de Vedanta proporcionado pelo Swami Dayananda Saraswati4 4 Swami Dayananda foi, por mais de cinco décadas, um importante guru da tradição do Advaita Vedanta. , na Índia. Após essas entrevistas iniciais, comecei a frequentar o curso de Vedanta conduzido pela professora Gloria Arieira, no Rio de Janeiro. Hoje, com aproximadamente dez anos de convívio com o grupo, volto a analisar essas primeiras entrevistas junto a interlocutores que estavam estudando Vedanta na Índia, com o intuito de observar a trajetória de três interlocutores que privilegio aqui - Tadeu, Hugo e Sarah. Essas entrevistas marcam o momento em que me senti sendo “iniciada” ao Vedanta e podendo compreender melhor essa tradição de ensinamento.

Ao longo do desenvolvimento da pesquisa, fui percebendo que compreender o Vedanta era de fundamental importância para entender como percebiam o mundo, pois era o que dava base para compreender todo o conjunto de crenças e valores do universo dos interlocutores. Enquanto ouvia suas narrativas, observei o quanto seus relatos permeavam questões de fundamental importância para a pesquisa, pois me proporcionaram compreender o Vedanta como um conjunto de conhecimentos que deve ser apreendido de uma forma singular, não apenas com o intelecto, mas deve estar totalmente assimilado enquanto prática diária em seus estilos de vida. Apesar de a maior parte dos alunos de Vedanta o considerarem uma “tradição de ensinamento” do “conhecimento sobre a natureza livre de limitação do Eu”, foi baseada na aprendizagem a respeito do karma yoga5 5 Apesar de, atualmente, a palavra ioga com a vogal i no início ser utilizada em português, preferi utilizar esta palavra iniciando com y, como é escrita em sânscrito ou inglês (ou nos vernáculos atuais da Índia), sendo, desta forma, fiel aos informantes que preferem se referir a esta palavra dentro do contexto de seus significados em sua língua original. , ensinado na Bhagavad Gita, que optei por denominar o ensino e prática do Vedanta como filosofia de vida, por considerar este conhecimento incorporado6 6 A palavra incorporação, aqui, tem o mesmo sentido de embodiment. Entendo que a transmissão da tradição oral, como diz Schechner (2013), seja uma memória que fique incorporada. ao ethos do estudante.

Clifford Geertz cunhou o termo ethos definindo-o como “o tom, o caráter e a qualidade da sua vida” incluindo o estilo de vida e as disposições morais e estéticas dos interlocutores, ao lado do conceito de visão de mundo, entendido por ele como “o quadro que fazem do que são as coisas na sua simples atualidade, suas ideias mais abrangentes sobre ordem” (Geertz, 1989GEERTZ, Clifford. 1989. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, LTC Editora.: 66-67). Compreendendo que o termo religião não deve ser universalmente definido, como propõe Talal Asad, pois essa definição é o produto histórico de processos discursivos, e entendendo a importância de pesquisar então os processos através dos quais os significados são construídos (Asad, 1993ASAD, Talal. 1993 “The construction of religion as an anthropological category”. In: ASAD, Talal. Genealogies of religion. London, Johns Hopkins University Press, pp. 27-54.), busco, baseando-me nos conceitos de ethos e visão de mundo de Geertz, analisar o significado das crenças e práticas espirituais dos vedantinos. Dessa perspectiva, procuro investigar a incorporação do Vedanta à cosmovisão dos interlocutores. Entendo a incorporação do conhecimento vedantino como representante de um

tipo de vida idealmente adaptado ao estado de coisas atual que a visão de mundo descreve, enquanto essa visão de mundo torna-se emocionalmente convincente por ser apresentada como uma imagem de um estado de coisas verdadeiro, especialmente bem-arrumado para acomodar tal tipo de vida (Geertz, 1989GEERTZ, Clifford. 1989. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, LTC Editora.: 67).

É de acordo com a noção do estilo de vida adaptado ou incorporado a suas visões de mundo que procuro investigar a cosmovisão vedantina, cujas práticas espirituais, especialmente as de meditação e yoga, são recorrentes e paralelas ao estudo de textos sagrados hindus.

ENTENDENDO O VEDANTA

Inicialmente é importante observar o que os interlocutores entendem como Vedanta7 7 Os seguintes princípios do Vedanta (uma tradição altamente complexa com muitas linhas e diversas interpretações) foram resumidos por Goldberg (2010: 10-11) da seguinte forma:a realidade última é tanto imanente quanto transcendente; Deus pode ser concebido tanto em termos pessoais quanto não pessoais; também pode ser concebido como o absoluto sem forma ou em diversas formas e manifestações; ao divino foi dado muitos nomes, descrições e atributos; atma é Brahman, consciência, porém nossa unidade com o divino, que é ofuscada pela ignorância, faz com que nos identifiquemos com o ego; os indivíduos podem ser despertados para sua natureza divina através de inúmeros caminhos e práticas, a espiritualidade é um processo de desenvolvimento, que se movimenta através de uma série progressiva de estágios; realizar completamente a verdadeira natureza do Eu acarreta um fim ao sofrimento e início de um estado de liberação ou iluminação, chamado moksha. Esses princípios são ainda acompanhados pelos conceitos védicos de karma (toda ação tem uma reação) e do companheiro do karma, a reencarnação. . Os Vedas, textos sagrados hindus8 8 Não são somente os Vedas que são considerados textos sagrados, há também textos posteriores, que foram escritos durante muitos séculos, que também podem ser considerados sagrados para alguns, como o Kamasutra, o Ramayana, o Mahabarata e os Puranas, que são textos que contam os épicos e promovem a noção do Trimurti. No entanto, o grupo estudado concorda que sagrados realmente são os quatro Vedas e, por extensão, a Gita, considerada o “quinto Veda”. , constituem a base da filosofia e cultura indianas. De modo geral, podemos dizer que a literatura mais antiga dos Vedas, escrita em sânscrito védico (relacionado ao persa antigo), inclui desde preces para prosperidade e longevidade até uma explicação para as origens do universo. As Upanishads (parte final dos Vedas) refletem sobre o mistério da morte e enfatizam a singularidade do universo.

Os Vedas constituem-se de quatro livros (ou volumes) que são divididos em duas partes. Segundo um interlocutor: “uma das partes é a que lida com toda a ritualística, ritual para conceber um filho, para nascimento, pós-nascimento, casamento, para obter fama, influência; tem ritual para tudo, para fazer chover, para todas as buscas humanas”, que é a parte que não é considerada Vedanta. Os interlocutores consideram a primeira parte religiosa, pois trata de rituais e ações que devem ser realizadas, como cantos e rituais diários e específicos. E a segunda parte, chamada Vedanta9 9 Veda-anta (anta - fim, parte final) são as Upanishads. , é a parte dos Vedas que entendem como filosófica; trata do conhecimento do Eu, do Absoluto ou consciência, livre de limitação. Apesar de estarem vinculadas, pois estão dentro do mesmo livro, o tema principal de cada parte é diferente. A primeira parte dos Vedas trata basicamente de “ações a serem realizadas” e, quando a pessoa as realiza, conquista um resultado. A segunda parte, Vedanta, trata de algo a conhecer, e a pessoa não tem que realizar nenhuma ação; o que for necessário fazer não está diretamente ligado ao conhecimento, mas ao preparo da mente para adquiri-lo, o que significa que, para alcançar o Eu livre de limitação, a pessoa não necessita realizar nenhum tipo de ação, mas apenas reconhecer-se como consciência, pois esta já é sua natureza.

Uma diferença básica entre Veda e Vedanta baseia-se na noção de samsara10 10 Samsara é a vida de altos e baixos, de ação e conquistas, alegrias e tristezas, satisfações e depressões: ação para repetir o que se gosta, ação para evitar o que não se gosta. O samsara é entendido como a oscilação constante, assim como a mente está em constante oscilação. . Os Vedas descrevem, na primeira parte, sobre como lidar com o samsara: existem várias práticas que a pessoa pode fazer se está agitada, como meditação, respirações, praticar posturas, cantar mantras, etc. O que significa que eles entendem que a primeira

parte não ofereça solução definitiva. Na segunda parte dos Vedas, em contrapartida, o assunto é o conhecimento do Eu que é livre do samsara. Portanto, o Vedanta tem como objetivo principal conhecer aquele que está além do samsara. Ao definir o objetivo específico de ter clareza do ilimitado e livre de desejos em sua vida, é dito que a pessoa passa a não ser afetada por outros desejos. Dessa perspectiva, a questão principal do Vedanta, e o projeto de vida dos estudantes, torna-se ter clareza desse objetivo na vida; todo o resto não importaria, como dizem, desde que tenham esse objetivo claro; quer dizer, o resto ganharia a devida proporção em termos de valor e importância.

O entrevistado Tadeu, de 43 anos, que mora em Pune (Índia) há cinco anos estudando Vedanta, explica que esse ensinamento preconiza a inexistência da dualidade, o que significa, em suas palavras, “que só existe uma coisa de forma absoluta, e isso é consciência. E tu não és separado da consciência, não és distante da consciência, não és uma entidade diferente da consciência”. Portanto, a não dualidade, representada pela palavra advaita em sânscrito, tem o significado de união, de que nada está separado e tudo estaria, então, unido na forma de consciência. Tadeu afirma que

o que o Vedanta faz é resolver uma equação o tempo inteiro. O que é uma equação? Uma equação é aquilo que apesar da aparente diferença, os dois lados são iguais. O que o Vedanta faz é isso: eu, o sujeito, é igual a consciência. O indivíduo, jiva, é igual à atma. Essa é a equação que Vedanta resolve. Que tu és atma, é uma equação. Porque existe jiva, o indivíduo, existe um sinal no meio de igual e do outro lado atma. A visão do Vedanta é resolver essa equação.

A vedantina Sarah, de 36 anos, que mora no ashram do Swami Dayananda, em Rishikesh (Índia), há mais de três anos, explica que todo o ensinamento se baseia na explicação de textos. Portanto, esse conhecimento está baseado tanto na tradição oral quanto na relação mestre/discípulo, já que escutar é o ato primordial desse estilo tradicional de aprendizado:

Você tem que escutar o professor, o ensinamento que é passado, ele vai trabalhar através de textos, o questionamento vai ser exatamente isso, sobre o mundo, sobre a consciência e sobre o Eu. Ele vai estar trabalhando essas questões de uma forma profunda nos textos, então sempre com um texto. E esse escutar, no momento que você escuta por um tempo, você tem uma base, uma noção, uma breve compreensão do Vedanta. E daí você precisa, porque conhecimento com dúvida não é conhecimento, então esse conhecimento que você tem no primeiro momento tem várias dúvidas. Como assim, eu sou tudo, eu sou consciência? Como assim consciência? Eu tenho todas as limitações, está claro para mim que esse corpo e mente tem vários defeitos e vários problemas, então como isso é possível, Eu ser consciência, Eu ser atemporal? Porque eu vi o meu nascimento, eu escutei um nome, eu sou uma pessoa, eu vou ter um fim, a única certeza que eu sei é que eu vou morrer, então como que eu posso ser atemporal? Então tudo isso são questões que vão surgindo e que você tem que clarificar, então tem esse momento de você questionar, e estudar.

Um aspecto que ela comenta é a respeito da incorporação do Vedanta: no momento em que ele é mais necessário, “ele desaparece”, e é nesse momento que ela diz ser importante trazê-lo para seu cotidiano. A princípio isso exigiria um esforço do praticante, mas, após um tempo, passaria a ser “natural”, que é entendido como o momento em que a compreensão acontece.

Max Müller (2007)MAX MÜLLER, Friedrich. 2007. India: What Can It Teach Us? A Course of Lectures Delivered Before the University of Cambridge. New York, Funk & Wagnalls Publishers. indica que, se toda a escrita dos Vedas fosse perdida, poderíamos recuperá-la integralmente da memória de estudantes, cujo aprendizado é transmitido oralmente por seu guru; isso significa que o aprendizado é conduzido de forma estritamente disciplinada. Essa disciplina é o que faz o Vedanta se diferenciar da filosofia, na medida em que o indivíduo tem que trazer o conhecimento para sua vida.

A entrevistada Sarah explica que a presença do professor é fundamental, e que ele tem um papel essencial, pois não existe estudo do Vedanta sozinho, ou seja, apesar de reconhecer que a leitura de livros sobre o conhecimento é algo que contribui para o processo de aprendizado, ela não é incentivada sem a explicação de um mestre. Para Sarah, a maior transformação em sua vida foi manter a relação com o mestre nesse estudo tradicional:

você e o mestre, o mestre canta o mantra, você repete o mantra, você tem que decorar, você tem que estudar o sânscrito, acordar cedo, fazer trabalho voluntário para o professor, toda essa disciplina, toda essa bagagem cultural não tinha no Brasil, então aqui isso foi realmente um aprendizado.

A ideia de receber o ensinamento de um mestre é altamente valorizada nessa tradição. Nas palavras de Sri Swami Tapovanji Maharaj (2001MAHARAJ, Sri Swami Tapovanji. 2001. Wandering in the Himalayas. Mumbai, Central Chinmaya Mission Trust.), um aspirante espiritual progride mais facilmente na companhia de pessoas que já realizaram a verdade ou estão constantemente tentando realizá-la11 11 Essa é também a definição de satsanga (sat - bom, sábio, sanga - estar junto). . Segundo Weber (1958WEBER, Max. 1958. The Religion of India. The Sociology of Hinduism and Buddhism. Glencoe, Free Press.: 156), os laços de devoção que vinculam um sagrado professor e conselheiro espiritual, o guru, a seus estudantes, eram, na Índia antiga, “tão extraordinariamente fortes” que essas relações serviram de base para quase todas as organizações religiosas.

O ensinamento que recebemos na infância, explica Sarah, é sobre “aquela divisão”: a pessoa e o objeto. Ela esclarece que a pessoa “vai criando conceitos” e que, dessa forma, o papel do professor é estar reavaliando esses conceitos, de forma a mostrar o que na verdade seria o Eu. Tadeu descreve como chegou à conclusão do que é satyam, existência: “a gente está conversando, eu sou o sujeito e a Cecilia é o objeto com quem estou me relacionando, portanto, dualidade. Sempre que existir sujeito e um objeto, a dualidade existe”. O que significa que não se pode negar a dualidade, ou seja, entendê-la como inexistente, mas ao mesmo tempo não se pode dizer que ela é real. Ele indica que tudo aquilo que, para existir, toma emprestado sua substância de alguma outra coisa, não se pode considerar real de forma absoluta. Ele dá um exemplo:

eu estou usando essa blusa, ela tem um peso, uma forma, uma cor, então não posso dizer que ela é inexistente, no entanto, se eu questiono a realidade dela, o que eu vou saber? Isso aqui é real? Ela tem uma existência independente?

A resposta é não, pois a blusa é feita de tecido, e se removermos o tecido, a blusa não existe. Nesse caso, considera-se a existência dela “dependente”, mithya12 12 Segundo Tadeu, “mithya é tudo aquilo que para existir toma sua existência emprestada de alguma outra coisa”. .

Em contraposição, Tadeu indica que atma é satyam, e que satyam é tudo aquilo cuja existência independe de uma substância para existir. Em suas palavras: “satyam é autoevidente, e essa revelação é a essência una de todas as coisas, é aquilo que empresta sua substância para a existência dos demais, mas os demais dependem da existência dela”. Como exemplo, ele cita que “tu és atma, mas atma não és tu, porque a tua existência depende da substância de atma, mas atma vive independente de ti, e essa seria a não dualidade”.

Durante minha vivência no curso de Vedanta, aprendi que Brahman está presente na forma de consciência. Nós, os indivíduos, temos consciência, que se chama atma, que na verdade é Brahman. Brahman quer dizer “o Todo, o Absoluto”, e atma quer dizer Eu. O Advaita Vedanta ensina que Brahman (consciência) é igual à atma.

Tadeu indica que o Vedanta é “impessoal e imparcial”, e que as pessoas vivem os princípios do conhecimento, independente de seus estilos de vida. Em suas palavras: “é como tu te relacionas contigo mesmo, com esse mundo completamente distinto, diverso dos teus desejos, ambições e fantasias; tu vives de uma maneira mais objetiva, prática; tu não impões características nas pessoas que elas não têm; tu sabes o que é fantasia e o que é realidade”. Ao que tudo indica, o estudo do Vedanta se transformou em um projeto que o leva a construir uma visão particular do mundo.

Do ponto de vista “nativo”, o Vedanta não é entendido como filosofia, apesar de fazer os mesmos questionamentos que a filosofia (quem sou eu? O que é o mundo? E o que é Deus?), já que são os principais aspectos discutidos em ambos. O que parece diferenciar o Vedanta é a aplicabilidade do ensinamento ao dia a dia e, acima de tudo, o fato de o ensinamento se tornar uma verdade essencial para os adeptos. A professora Gloria enfatiza que Vedanta consiste em um conjunto de textos e discussões sobre o autoconhecimento e tópicos relacionados. No entanto, ressalto que essa questão é alvo de controvérsias. Pelo que entendi, Vedanta não seria uma religião, e poderia ser visto mais como uma filosofia do que religião - mas com uma diferença13 13 A palavra filosofia deve ser entendida aqui em seu sentido etimológico: “estudo dos problemas fundamentais”, e poderia dizer que é a palavra em nossa língua que mais se aproxima do que os entrevistados entendem por Vedanta. . A filosofia a que se refere, como sugiro, aponta para o processo de desenvolvimento da espiritualidade entendido como projeto - uma visão de mundo que produz novos sentidos e valores na vida dos indivíduos14 14 Ver: Carneiro (2003). . As experiências e práticas desses indivíduos, com base no estudo do autoconhecimento, geram uma mudança, uma transformação que passa a dar sentido a suas vidas.

Gilberto Velho (2013VELHO, Gilberto. 2013. “Um antropólogo na cidade: ensaios de antropologia urbana”. In: VIANNA, H.; KUSCHNIR, K.; CASTRO, C. (orgs.). Rio de Janeiro, Zahar.: 106) explica que nas sociedades onde o desenvolvimento de ideologias individualistas15 15 O individualismo como ideologia é entendido por Roberto DaMatta como “uma instituição central e normativa”, um valor central nas civilizações ocidentais, nas quais esse indivíduo, dotado de uma independência e autonomia sem paralelo, é postulado “como sendo maior (e mais inclusivo) do que a sociedade da qual ele é parte” (DaMatta, 2000: 10). é mais acentuado, as pessoas, ao possuírem múltiplos papéis, inventam projetos, que são tentativas sempre conscientes de “dar um sentido ou uma coerência a essa experiência fragmentadora”. Esses complexos projetos são elaborados dentro de um “campo de possibilidades”, localizado histórica e culturalmente, levando em conta a própria noção de indivíduo como os “temas, prioridades e paradigmas culturais existentes” (2013: 21). Em vista disso, o autor observa que o projeto existe como negociação da realidade, como “meio de comunicação, como maneira de expressar, articular interesses, objetivos, sentimentos, aspirações para o mundo”; é dessa perspectiva que entendo o projeto, assim cunhado por Velho, como algo dinâmico e sempre reelaborado, já que ele reorganiza a memória do ator ao proporcionar novos significados e sentidos.

Dessa forma, proponho pensar a trajetória dos interlocutores aqui descrita como tornando-se sujeita a constantes revisões e reinterpretações, já que suas experiências e práticas, com base no estudo do autoconhecimento, suscitam uma transformação que passa a dar sentido a suas vidas. Entendo, portanto, os projetos dos interlocutores observados como elaborados e construídos em função do ethos vedantino, de suas experiências socioculturais, códigos, vivências e das interações aqui interpretadas.

PROJETO E TRAJETÓRIAS VEDANTINAS

Conversando com os interlocutores, percebi que aprender sua filosofia era o que estava por trás do que observo como busca espiritual: os caminhos e trajetórias dessas pessoas que as levaram à Índia e a encontrar o Vedanta (ainda que inconsciente para alguns). Isso fica claro no seguinte relato de Sarah:

Na verdade, eu sempre gostei muito de filosofia, então todas essas perguntas, o que eu estou fazendo aqui, qual a razão de eu estar no mundo, qual o meu papel na vida, qual meu papel em relação à sociedade, e assim tudo, não só esses questionamentos, mas o que é essa sociedade hoje, essa sociedade que você vive e não tem exatamente um rumo. Se você olha bem objetivamente para o mundo, está todo mundo correndo, feito louco, malhando, ainda mais no Brasil que tudo é corpo, e buscando algo que, na verdade, ninguém sabe o que é exatamente. Então uma direção, um rumo, uma meta, eu nunca consegui encontrar no Brasil. Lógico, teve o pessoal do yoga que eu tive um certo relacionamento, mas então isso não estava claro para mim. Então para você estar vivendo sem rumo, parece uma jornada de olho fechado, assim, andando sem direção. Para mim, não fazia o menor sentido. Então eu sempre questionei desde pequena, desde os onze anos eu questionava, qual que é a razão de viver? [...] Na faculdade quando eu entrei, eu tinha dezoito anos, daí foi a filosofia junto com o yoga que eu encontrei, e daí foi a solução. A solução assim para tudo. Realmente eu descobri que, na verdade, a sociedade que a gente chama aqui de samsara, que é uma sociedade que está dormente, que realmente não percebeu que essa felicidade, que a todo momento eles estão buscando em coisas materiais, não vai chegar à meta que é a felicidade absoluta, que é o que eles estão buscando. E aí isso ficou claro para mim e foi quando eu comecei a estudar mais e encontrei o Vedanta.

A busca pelo sentido da vida a fez questionar a sociedade, a qual passou a enxergar como um ser “dormente”, mas também a fez encontrar sua verdade - a filosofia que, junto ao yoga, acabou se tornando sua filosofia de vida. Questionei o que a impulsionava a seguir esse caminho e ela indicou que era o entendimento de quem, de fato, era:

O Vedanta fala, então não sou corpo e não sou mente, ou sou corpo e sou mente, mas sou mais. Então o que de fato é esse Eu? O que é esse mundo? Qual a razão de estar nesse mundo? Então, essa questão filosófica mesmo era o que eu queria ter muito claro. Então, assim, está claro qual é o papel, porque essa vida. E também o Absoluto, você fala, o Eu é nada mais do que o Absoluto. Então se eu sou o Absoluto e esse Absoluto é Um, por que eu vejo toda essa dualidade? Vários problemas, então tudo isso eu queria ter claro, entender claramente o que é esse Eu. Atemporal, que é o Eu. E se é o Eu, eu tenho que saber por que sou Eu, então essa compreensão, essa clareza é o que eu buscava.

Ela explica que encontrou respostas no Vedanta pois, ao escutar esse ensinamento, percebeu que suas dúvidas tinham se esclarecido; esse conhecimento era lógico e fazia sentido para ela. Ou seja, ela reconheceu que suas perguntas tinham sido respondidas “de uma forma adequada, racional e coerente”. Ao se dedicar ao estudo do Vedanta, muitos questionamentos foram surgindo e, com o tempo, isso passou a ser seu projeto, levando-a a mudar não só de país, mas de vida16 16 Aprofundo o debate sobre a relação entre projeto e busca pelo sentido da vida em: Bastos (2018). . Sarah descreve, em resumo, sua trajetória pessoal:

Eu sempre me senti um ET no Brasil 17 17 Este depoimento remete ao conceito de identidades “nômades” ou “expatriadas”. D’Andrea (2006: 99) considera os “nômades globais” como “pessoas deslocadas” com “mentes deslocadas”, que tendem a rejeitar suas terras natais tanto espacialmente quanto afetivamente, por meio de um etnocentrismo reverso. Deleuze e Guattari (1987), por sua vez, entendem o nomadismo como referindo-se a um estilo de pensamento crítico que busca expor e superar a lógica sedentária do Estado, da ciência e da civilização. , sempre diferente dos outros, nunca me senti, é estranho, mas nunca me senti em casa, estando em casa. Então, quando eu cheguei aqui [na Índia], todo mundo me falava do choque, “choque cultural”, que quando você chega... E não senti nenhum choque, fiquei chocada que não tive choque. E para mim foi um encontro maravilhoso, adorei tudo, e me senti pela primeira vez... Sabe quando você fala, “nossa, estou em casa”, cheguei em casa?

Sarah conta que após a conclusão do curso de Vedanta, de três anos na Índia, voltou ao Brasil com a intenção de ensinar. Ela ministrou cursos e workshops sobre Vedanta, mantras, puja, sânscrito e meditação, em São Paulo e Campinas. E depois, no momento de nossa entrevista, estava de volta à Índia por mais alguns anos para continuar aprofundando seus estudos de Vedanta. Sua trajetória remete à questão do choque cultural invertido, que é quando, após permanecer na Índia por um longo período (como no caso de Sarah), o “voltar” a sua vida cotidiana, ou apenas pensar como ela será ao voltar da Índia, traz um sentimento de desespero ou até de medo por parte de alguns, como sugere Pekka Mustonen (2006MUSTONEN, Pekka. 2006. Postmodern tourism - alternative approaches. Tampere, Esa Print Tampere.). Ao entrevistar um viajante na Índia, Mustonen argumenta que, para ele, a mudança de vida foi tão extraordinária que voltar para casa seria difícil, se não impossível; ou seja, voltar para casa da liminoid sagrada seria um processo mais longo do que, por exemplo, para um turista permanecendo uma ou duas semanas de férias. Neste caso, é possível, afirma o autor, que sua “iluminação” possa ter mudado permanentemente suas motivações e valores.

É no sentido descrito por Roy Wagner (2010WAGNER, Roy. 2010. A invenção da cultura. São Paulo, Cosac Naify.: 57) de que tornar o estranho familiar sempre torna o familiar um pouco estranho (e quanto mais familiar se torna o estranho, ainda mais estranho parecerá o familiar) que entendo o voltar para casa sendo considerado por muitos um desafio, talvez pelo simples fato de suas transformações terem sido expressivas, tendo um significado de deslocamento sociocultural. É também o momento de confrontar questões que se transformam internamente e que terão que mudar em suas vidas, ao menos em termos de perspectiva, quer dizer, voltar teria o significado de perceber objetos, situações e até cosmovisões que passam a ganhar novos sentidos.

Sarah considera o ato de ensinar constituindo parte fundamental do processo de incorporação, já que é nesse momento que a pessoa se dá conta de questões que precisam ser aprofundadas. Segundo ela, ensinar é fundamental porque

é onde você vê as tuas partes que você precisa trabalhar mais, os defeitos de compreensão que você tem. E também quando você está falando alguma coisa, fala de atitudes, de valores, e se você falar e não seguir aquilo, fica aquele peso na consciência.

Ela diz que ensinar faz com que esteja bem “centrada naquilo, fazendo realmente um esforço para estar seguindo exatamente o que está falando”. Estudar um texto, então, implica em uma atitude bem diferente de ensinar o mesmo texto, já que, ao ensiná-lo, ele ficaria solidificado ou incorporado.

Procuro abordar, então, o cotidiano dos interlocutores para compreender a rotina de um vedantino. Sarah descreve: “É uma vida simples, não tenho um casarão, tenho um quarto, moro no ashram. E não é que eu compre tudo o que eu quero, coma tudo o que eu quero, não. Então, para essa vida simples, e a vida na Índia, você precisa pouco”. Para ela, seu trabalho (dar aula no Brasil) é a única coisa que gosta e consegue fazer “de coração” e, ao ensinar, ela consegue dinheiro suficiente para viver o tipo de vida que deseja. Sua vida, do meu ponto de vista, é quase a de um renunciante, no sentido tradicional do termo, alguém que abandonou a vida secular a fim de se dedicar completamente ao conhecimento. Entendo que vida de ashram é uma vida de renúncia, pois a pessoa está “fora da sociedade”. No caso de Sarah, ela vive para aprender e ensina para sobreviver.

Segundo Dumont (1992DUMONT, Louis. 1992. Homo Hierarchicus: o sistema de castas e suas implicações. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo.), o renunciante é considerado um indivíduo “fora-do-mundo”, isto é, alguém que “transcendeu a sociedade”. O autor lembra que o renunciante - algo importante para o nosso propósito - transformou a renúncia em um ato interno: a renúncia passa a estar “dentro” da pessoa e não na ação de praticar austeridades. Esse tipo de renúncia envolve, no caso dos interlocutores desta pesquisa, a tentativa constante de se levar uma “vida de yoga”18 18 Viver uma vida de yoga significa desenvolver certas qualidades “entendidas como espirituais, que se tornam bastante valorizadas, tais como ser simples, ter calma e, acima de tudo, discernimento, no sentido de saber qual atitude estaria de acordo com o dharma (fazer sempre o que é correto ou adequado em cada situação, ou o que seria o dever de cada um). Yoga, para o grupo, significa unir-se, integrar a mente com as ações: o que se pensa deve estar integrado ao que se fala e a como se age. Viver uma vida de yoga é tentar realizar este exercício a cada momento” (Bastos, 2018). (categoria “nativa”).

Outros informantes explicam que a vida em um ashram é difícil, requer acordar cedo, estudar o dia inteiro e dormir tarde. De acordo com o entrevistado Hugo, de 33 anos, que morou no ashram do Swami Dayananda estudando Vedanta no curso de três anos, o cotidiano de um ashram é bastante intenso: tem várias aulas durante o dia, e todas as aulas requerem a atenção total do aluno, por serem assuntos que “mexem muito com você, são questões existenciais”. Tadeu acrescenta:

É um estilo de vida totalmente diferente. É uma vida bonita, super disciplinada, pelo menos na nossa tradição. Tu acordas às quatro e meia da manhã todo dia, vai para o templo às cinco da manhã, aí tem meditação, tem aula, Upanishads, sânscrito, canto védico, cultura védica, aí tu lês sobre literatura. É uma vida super organizada, disciplinada, reclusa, porque tu sais da aula, tu ficas quase que naturalmente contemplativo, porque tu és exposto a um corpo de conhecimento até então totalmente desconhecido, no entanto relevante, bonito e profundo; a pessoa fica... E aí gradualmente ela entra no ritmo, porque é puxado, os dias de quatro e meia ou cinco da manhã até nove e meia, dez da noite, é puxado, mas ela entra naquilo e o tempo passa, quando ela se dá conta ela sai dali, interage com outras pessoas, ela começa a ver o mundo de outra maneira, interagir com as pessoas de outra maneira, o que antes era importante acaba sendo irrelevante.

Percebe-se que a vida em um ashram é reclusa, e pode ser entendida como estar na liminaridade, em um tempo no qual a vida da pessoa está em suspenso e, quando deixa o ashram, ela volta a viver sua vida “normal”, mas de certa forma transformada19 19 Ver: Turner (1974). . Tadeu relata algumas transformações: “as mudanças que o acesso ao conhecimento causou na minha personalidade, na maneira de ver o mundo, são enormes, grandiosas, foi uma metanoia, uma mudança fundamental na maneira de viver”. O conhecimento lhe proporcionou mais liberdade e tranquilidade devido à compreensão de como “o todo” funciona, o que significa que a “ânsia” de querer mudar o mundo para que este se adapte às suas ambições, desejos e fantasias quase que “desapareceu”. A transformação por que passou é evidente, uma mudança não apenas de estilo de vida - de dormir e acordar cedo, de se tornar vegetariano, de aprender outra língua (o sânscrito), de praticar exercícios espirituais como meditação e yoga, de viver sob a autoridade de um guru 20 20 Ver: Vallverdu (1999: 68). , entre outros - mas de visão de mundo.

O seguinte relato de Hugo descreve uma mudança significativa.

Vedanta é isso, estar falando sobre a verdade do indivíduo, em relação à verdade do todo (...) E para isso você também trata de assuntos que lidam com valores: como você lida com o mundo? Qual a sua forma de se relacionar com o mundo? Onde você vê a felicidade? Onde você projeta a felicidade? Onde você busca a satisfação e autorreconhecimento? Todos os conceitos que sempre foram conceitos aceitos ou naturalmente vistos como verdadeiros são aos poucos questionados, e você vê de alguma outra forma, você começa a ver um outro ângulo que não era visto, então você começa a questionar toda a sua vida, tudo que você sempre achou que era verdade, toda a sua forma de lidar com o mundo começa a ser questionada. Quais são seus objetivos? Qual a sua intenção em relação ao mundo? E tudo isso começa a ser questionado e existe um total redirecionamento em todas as áreas da sua vida. E realmente é uma mudança de paradigmas, você realmente está lidando com algo que é uma verdade, mas que no nível relativo transforma totalmente a sua vida.

Peter Berger (1972BERGER, Peter. 1972. Perspectivas sociológicas: uma visão humanística. Petrópolis, Vozes.) lembra que é a sociedade em que vivemos que fornece nossos valores, lógica e o acervo de informação (ou desinformação) que constitui nosso conhecimento, e que são raras as pessoas que estão em condições de reavaliar o que lhes foi imposto, “e mesmo essas apenas em relação a fragmentos dessa cosmovisão”, ou seja, elas não sentem necessidade de reavaliação “porque a cosmovisão em que foram socializadas lhes parece óbvia”; uma vez que essa cosmovisão também será considerada assim por quase todos os membros de sua própria sociedade, ela ratifica-se, valida-se - a “prova” disto estaria na experiência reiterada de outros que também a tomam como algo natural, assentado (1972: 132).

Ao nos afastarmos de nossas rotinas corriqueiras, existe a possibilidade de confrontar a condição humana sem “mistificações consoladoras”, o que não significa que apenas o marginal ou o rebelde possam ser “autênticos”, já que Berger (1972BERGER, Peter. 1972. Perspectivas sociológicas: uma visão humanística. Petrópolis, Vozes.: 166) indica que liberdade pressupõe certa “liberação de consciência” ou, ainda, que nenhuma possibilidade de liberdade poderia se concretizar se nós continuamos a pressupor que o “mundo aprovado” da sociedade seria o único existente.

Para o entrevistado Hugo, o fato de a pessoa questionar “toda a sua vida” faz com que “tudo” seja questionado, desde como ela vê sua vida até como lida com o fato de que tudo o que era “verdade” não é mais, enfim, existiria uma “mudança de paradigmas”, uma mudança que leva à reavaliação até de seus sentimentos, como inveja e ciúme.

Então, se eu busco saber que eu sou livre de limitações, não faz sentido ser egoísta, não faz sentido ser desonesto, então todas essas possibilidades começam a ser questionadas: a possibilidade de comportamento, de atitudes e sentimentos, a inveja, o ciúme, todos esses sentimentos que são naturais do ser humano, que vêm naturalmente, na verdade têm natureza oposta à natureza essencial; eles vêm naturalmente porque fazem parte das possibilidades de manifestação na mente, para cada indivíduo, mas todos esses sentimentos têm uma natureza oposta ao que é essa liberdade, liberdade de limitação.

Hugo indica que, ao se tornar consciente desse conhecimento, a pessoa “cresce” espiritualmente e passa a adotar um novo estilo de vida, que é mais adequado ao ensinamento recebido e ao seu papel na sociedade (seu dharma).

Para mim, esse crescimento gradativo é visível, essa escolha por crescer, essa escolha por fazer o que é adequado a cada momento, e buscar estar em harmonia é algo muito importante. É claro que é algo que é aos poucos, existem tendências que estão enraizadas muito fundo nos padrões de vida, de comportamento, e então essas tendências vêm à tona e a gente tem que olhar para elas. A gente vai trabalhando e aos poucos a gente vai aprendendo e se lapidando. Não tem mágica, é um processo árduo, não digo doloroso, mas é um processo que envolve muita dedicação e muito “abrir mão”, você tem que abrir mão de muita coisa que, na verdade, depois de um tempo e aos poucos, passa a ser fácil em alguns pontos e, em outros pontos, continua sendo difícil.

Chegar ao ponto de manifestar ou agir de acordo com o dharma não quer dizer que a pessoa não tenha pensamentos ou tendências que são “contrárias” ao dharma, mas que ela tenta manifestar apenas o que é o dharma. Dessa perspectiva, a pessoa conseguiria resolver mentalmente essas tendências, por mais difícil que seja, antes de manifestá-las. “Ao menos no plano físico”, diz Hugo, “você manifesta o que é o dharma, pelo menos existe essa intenção e, quando ela é forte, começa a prevalecer; esse tipo de padrão de atitudes e comportamentos começa a prevalecer”. Ele explica ser um processo que terá a duração de uma vida.

Uma pista interpretativa para a compreensão do ethos vedantino encontra-se no conceito de tecnologias de si, cunhado por Foucault (2004FOUCAULT, Michel. 2004. “Tecnologias de si, 1982”. Verve, v. 6: 321-360.: 323-324), que as entende como a efetuação de certas operações em seus próprios corpos, almas, pensamentos, conduta e modos de ser para transformá-los com a intenção de alcançar certo estado de felicidade, pureza, sabedoria, perfeição ou imortalidade, o que implicaria treinamento e transformação dos indivíduos para a aquisição de certas habilidades e atitudes. Compreendo, com isso, que além da visível transformação em seus corpos, o que se transforma na adoção de um estilo de vida vedantino seja certa visão de mundo ou maneira de pensar: uma percepção e entendimento da “suficiência” em si mesmo, seja no quesito autonomia meditativa, seja filosófica ou teologicamente através do entendimento do self como consciência.

TRANSFORMAÇÕES DE COSMOVISÃO E ESTILO DE VIDA

Uma das mudanças apontadas por todos os adeptos do Vedanta é a tendência a se tornar vegetariano. De acordo com Hugo, algumas culturas estão mais adaptadas aos valores que seriam “intrínsecos” ou “universais” ao ser humano. Ele cita o exemplo do vegetarianismo, que seria algo “natural” para os hindus, pelo fato de grande parte ser vegetariano, já que as escrituras, afirma ele, têm como mandamento não comer carne. Existem algumas controvérsias no sentido de algumas castas poderem comer carne mas, para Hugo, o mandamento das escrituras diz que não se deve comer carne; e isso, como sugere, “seria um valor pela não violência que muda a estrutura da sociedade, que muda toda a forma de se ver o mundo”.

A sacralidade da vaca e sua proibição absoluta de matá-la, segundo Weber (1958WEBER, Max. 1958. The Religion of India. The Sociology of Hinduism and Buddhism. Glencoe, Free Press.: 27), pode ser considerada entre os “princípios substantivos” do hinduísmo ao fazer parte do dharma universal hindu. Weber acrescenta que quem não aceita isso como efetivo não seria um hindu. Essa questão parece relevante quando percebemos que ela faz parte de uma “ideologia” hindu e, dessa forma, nos deparamos com um “universo vegetariano”, denomina Dumont (1992DUMONT, Louis. 1992. Homo Hierarchicus: o sistema de castas e suas implicações. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo.: 321), no qual “o fato de comer carne é para os homens um sinal de impureza, de inferioridade, e parece excluir os atributos da divindade”. O vegetarianismo “se impôs à sociedade hindu a partir das seitas de renunciantes”, pois “se integrava muito bem nas ideias sobre o puro e o impuro” e é nesse sentido que Dumont (1992DUMONT, Louis. 1992. Homo Hierarchicus: o sistema de castas e suas implicações. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo.: 205) afirma que “comer carne, para o hindu vegetariano, é comer cadáver”. Sendo assim, o autor explica que o vegetarianismo era “funcional” e se tornou um “traço bramânico fundamental” e, com isso, foi uma ideologia que acabou se impondo a “toda a população hindu como forma superior da alimentação e constitui, na Índia contemporânea, uma das normas essenciais relativas à alimentação e ao estatuto” (Dumont, 1992DUMONT, Louis. 1992. Homo Hierarchicus: o sistema de castas e suas implicações. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo.: 202).

Alguns entrevistados indicam que a relação entre os homens e os animais muda com a experiência de viver na Índia e se tornar vegetariano. Tadeu, ao descrever Rishikesh, o pacífico local onde mora, propõe que a relação de paz entre os homens e os animais seria o que expande “o círculo de vivência humana”.

Rishikesh é um lugar bonito, tem muito animal na rua, muita vaca, muito touro, macaco, cabra. É fantástica essa possibilidade de a pessoa andar na rua e encontrar animais. Ela gradualmente, quase que inconscientemente, expande o círculo de vivência humana. Nós vivemos em uma sociedade onde o animal, ou ele vive selvagem no meio do campo e não visto pela maioria das pessoas ou se a pessoa quer ver um animal, vai ao zoológico, então existe essa distância homem-animal, o que faz com que muitos homens comam os animais. Essa possibilidade de vê-los e estar cotidianamente observando, tu vês o ciclo, não é? Tu vês a vaca, o boi, o terneirinho, aí se dá conta que o que tu estás comendo um dia foi um bebê também. Então ela auxilia um processo de percepção da realidade completamente diferente, onde não existe muita diferença entre o ser humano e o animal. E a pessoa acaba se dando conta que existem muitas características que são comuns. A procriação é comum, o medo é comum [...], a necessidade de alimentação, a necessidade de descanso, a anatomia é parecida, a fisiologia é parecida. Como que eu sei? Porque eles fazem testes no porco, se funcionar no porco funciona no homem. Por quê? Porque a anatomia e a fisiologia são muito parecidas. Então isso vai mudando a maneira como a gente se relaciona com o mundo ao nosso redor, auxilia dramaticamente.

Questiono sobre a razão pela qual a pessoa se “tornar vegetariana” estaria de acordo com os ensinamentos do Vedanta e, segundo Tadeu, “o real conhecimento sobre o assunto faz com que a pessoa não tome certas decisões”, o que significa que, se ela tem um valor, ahimsa, não violência, que ele traduz como “viver causando o menor distúrbio possível no meio ambiente”, a pessoa se torna vegetariana, porque entende que, “dentro dessa cadeia alimentar, ela estará causando menos distúrbio comendo o que vem da natureza”. Ele acrescenta que “a natureza da vaca não é crescer para se tornar bife, não é?”

Ahimsa também se relaciona ao sacrifício “interior”, explica Dumont (1992DUMONT, Louis. 1992. Homo Hierarchicus: o sistema de castas e suas implicações. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo.: 204):

O termo ahimsa, e um certo constrangimento diante da morte de um ser vivo, já aparece no Veda, onde pode tratar-se apenas da ambivalência do ato sacrificial. Mais claras são algumas passagens da Chandogya Upanishad: “o homem sábio não causa nenhum mal às criaturas, exceto no caso de ritos sagrados...”. A ahimsa e quatro outras qualidades são a recompensa do sacrifício interior, que tende a substituir o sacrifício védico no nível do pensamento de quem está em vias de se tornar um renunciante.

Hugo explica o conceito de ahimsa relacionado ao que chama de “troca” no ciclo da vida e não uma escolha baseada “na saúde ou na dieta”, mas em uma “apreciação” do que seria “correto”, aquilo que se deve fazer. Essa apreciação proporcionou uma mudança em sua cosmovisão ao fazer com que ele adotasse um novo ethos, nova estrutura do que deve ou não fazer, que está baseada, como propõe, “em um entendimento de que um ser vivo, um animal, algo que tem valor pela própria vida, que tem um estímulo de fugir pela vida, ele está sofrendo uma violência”. A relativização aparece em sua narrativa quando diz também existir violência em cortar plantas, mas “existe uma ordem que a gente pode apreciar que mostra que somos feitos para esse tipo de alimento; o nosso corpo precisa de alimento; então é uma troca, ao mesmo tempo em que a gente se alimenta de vegetais, legumes, frutas, o nosso corpo vai servir de alimento para eles”, que é entendido como um ciclo que não apresenta um sentido de “destruição”.

O que os entrevistados descrevem sobre o ensinamento do Vedanta é bastante complexo e abrange vários conceitos e valores. Assim como o ato de “tornar-se vegetariano”, existem diversas mudanças de atitudes - como a não reação (que deve ser entendida como agir de forma consciente e não impulsivamente) e a apreciação da ordem cósmica21 21 Como explicado em Bastos (2019a). , por exemplo - e de visão de mundo. No entanto, não cabe no escopo deste artigo descrevê-las integralmente; o importante aqui foi destacar a existência e o significado de algumas dessas transformações. Ainda que se entenda que qualquer cosmologia seja total, Viveiros de Castro supõe que não seja possível pensar tudo o que existe, “daí não se segue que toda cosmologia pensa tudo o que há sob a categoria da totalidade, isto é, que ponha um Todo como o ‘correlato objetivo’ de sua própria exaustividade virtual” (Viveiros de Castro, 2001VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2001. “GUT feelings about Amazonia: potential affinity and the construction of sociality”. In: RIVAL, L. & WHITEHEAD, N. (orgs.). Beyond the visible and the material: the amerindianization of society in the work of Peter Rivière. Oxford, Oxford University Press, pp. 19-43.: 22 apud Duarte, 2017DUARTE, Luiz Fernando. 2017. “O valor dos valores: Louis Dumont na antropologia contemporânea”. Sociologia & Antropologia, v. 7, n. 3: 735-772. https://doi.org/10.1590/2238-38752017v734
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).

Duarte (2017DUARTE, Luiz Fernando. 2017. “O valor dos valores: Louis Dumont na antropologia contemporânea”. Sociologia & Antropologia, v. 7, n. 3: 735-772. https://doi.org/10.1590/2238-38752017v734
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: 745) observa, na teoria dumontinana, que um valor nunca é homogêneo e linearmente dominante, mas que sua primazia se dá a partir de “desafios de combinação com outros valores” e, mesmo sendo aquele um valor dominante, ele lembra que o dinamismo seria inerente à vida social. Concebo, dessa perspectiva, a categoria valor, principalmente em relação a ahimsa, em referência à dimensão ética das experiencias dos interlocutores, na qual predomina a junção entre pensamento e ação, de forma que um valor ou uma “ideia valor” seja “uma representação de definida relevância comportamental, comprometida com a intervenção no mundo interpessoal” tratando-se assim da maneira pela qual “as pessoas buscam viver de maneira correta” (Duarte, 2017DUARTE, Luiz Fernando. 2017. “O valor dos valores: Louis Dumont na antropologia contemporânea”. Sociologia & Antropologia, v. 7, n. 3: 735-772. https://doi.org/10.1590/2238-38752017v734
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: 747). Essa dimensão parece consistir em um domínio apropriado pelos interlocutores e a partir do qual constituem-se como seres conscientes tanto da preeminência da ética em suas cosmovisões quanto dos projetos que se definem a medida em que incorporam esses valores.

Penso que o que os interlocutores se propõem adotar, como ethos, é a construção de um novo hábito através da repetição da disciplina, de práticas espirituais como yoga e meditação e de observação de suas próprias atitudes como forma de autoconhecimento. Através da padronização do comportamento e do treinamento sistemático, o indivíduo se torna psicologicamente motivado a vivenciar um novo estilo de vida, o qual Valantasis (2002VALANTASIS, Richard. 2002. “A Theory of the Social Function of Asceticism”. In: WIMBUSH, V.; VALANTASIS, R. (orgs.). Asceticism. Oxford University Press, pp. 544-552.: 548) chama de “performance”22 22 Flood (2004: 215) entende performance como envolvendo um tipo particular de competência ou conhecimento cultural que flui através das gerações. , que consiste em técnicas aprendidas e repetidos comportamentos e atividades, cuja reprodução faz com que o indivíduo as domine até que se tornem algo “natural” para ele; ao mesmo tempo, a performance inclui um elemento de intencionalidade, indica Valantasis, em que os hábitos são mais que meras repetições ou imitações de comportamento, mas deslocam a atenção de si para uma maior arena de referência.

Considero, portanto, que o conjunto de práticas e atitudes vedantinas constitui um habitus no sentido que Bourdieu deu ao termo para explicar um “sistema de disposições duráveis e transponíveis” que informam o comportamento diário; tendências a pensar e agir de certa maneira “natural” e evidente e que funciona como uma matriz de percepções, apreciações e ações (Bourdieu, 1983BOURDIEU, Pierre. 1983. Sociologia. São Paulo, Ática. Coleção Grandes Cientistas Sociais, v. 39, pp. 82-121.). O ideal a ser buscado, de viver uma “vida de yoga” segundo as premissas do Vedanta, tem o comando dos sentidos e emoções como meio para a finalidade de aquisição do autoconhecimento - de conhecer suas reações às emoções - visando assim um comando de si. Observo, com isso, que esse ideal envolve viver como alguém que percebe e entende certa lógica das emoções - como a matriz de percepções, apreciações e ações de Bourdieu - e busca “lapidar” o self de modo a não reagir às situações que são desencadeadas pelos impulsos.

A noção de auto cultivo (ou cultivo interno), bildung23 23 A ideologia da Bildung (formação) enfatizava, segundo Duarte (2006: 19), a capacidade de autodesenvolvimento dos sujeitos, “com a ampliação de seus horizontes” consistindo numa ênfase no “renascimento” do sujeito exposto a uma conversão e “na disposição em fazer a experiência humana culminar na elaboração e atualização de sujeitos cultivados, interiormente expandidos, capazes de levar às últimas consequências o potencial de realização contido in nuce em todo ser humano” (Duarte, 2006: 25). , expressão do movimento romântico, baseia-se nos ideais de reforma e lapidação do indivíduo, de forma que se expresse seu self divino, visto pelo ideal de perfectibilidade. Percebo essa busca por dominar os impulsos (“contrários ao dharma”) como certa capacidade de aperfeiçoamento, elaboração e atualização interior, no sentido de cultivo reflexivo do self. Entendo que esse processo leva a subjetivas ressignificações de suas trajetórias e projetos, e que, mesmo implicando certamente numa forma de individualização e numa dimensão totalizante, encontra-se permeado por um ethos de busca, tanto de uma sociedade justa e ética quanto de um self consciente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao analisar as mudanças de ethos e visão de mundo dos vedantinos, percebo que entrar em contato com o grupo e aprender Vedanta fez com que eu experimentasse uma transformação em minha própria maneira de olhar o mundo. Durante esse meu “encontro com o outro”, busquei, “além de olhar, ver; além de ouvir, escutar; além dos fatos, sentido” (Maluf, 1999MALUF, Sônia. 1999. “Antropologia, narrativas e a busca de sentido”. Horizontes Antropológicos, v. 5, n. 12: 69-82. https://doi.org/10.1590/S0104-71831999000300005
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: 70). Ao me comprometer em analisar o significado do ethos vedantino, participei, junto com eles, de um processo de busca espiritual que me levou a, algumas vezes, ter que deixar meu “eu” acadêmico de lado a fim de, através dessa imersão, poder encontrar uma “abertura” ao universo “nativo”.

Observei que um de objetivos principais dos interlocutores em ir até a Índia e estudar Vedanta era se tornar alguém que não se deixa levar por um padrão de reação, que tenta segurar os impulsos e desejos em sua mente, aceitando o que a ordem cósmica traz a ele. “Dominar a mente”, para os interlocutores, é não se associar a pensamentos de julgamentos ou “projeções” a fim de enxergar claramente o Eu que é livre, ou além, da mente, e que é a base do pensamento. Não se associando à mente, há a permanência no Eu. É desse modo que os vedantinos almejam alcançar a paz, que é entendida como a sua própria natureza.

Interpretei essa técnica de domínio da mente através do conceito de tecnologias do self de Foucault (2004FOUCAULT, Michel. 2004. “Tecnologias de si, 1982”. Verve, v. 6: 321-360.: 323-4), no qual o desempenho de certas intervenções em seus próprios corpos, pensamentos, alma, condutas e modos de ser com o intuito de modificá-los para obter certo estado de felicidade, sabedoria, pureza, perfeição ou imortalidade implica treinamento e transformação dos sujeitos que conquistam certas atitudes e habilidades. Além da aparente modificação de seus corpos através dessas práticas, o que observei se alterar na adoção de um ethos vedantino foi sua visão de mundo e maneira de pensar, relacionadas a uma percepção da “suficiência” em si mesmo, tanto no âmbito da autonomia meditativa, quanto filosófica ou teologicamente através do entendimento do self como consciência.

A situação de morar na Índia, e ainda por cima em um ashram, foi descrita como liminar, o que os levou a se reavaliar e conscientizar de suas capacidades e qualidades.

Alguns ressaltam a limitação física e o caos por que passaram, o que provocou uma sensação de “relevância”, tanto em relação ao que possuíam quanto ao propósito da vida, o que, por conseguinte, os fez amadurecer. A vivencia naquele ambiente envolveu, para muitos, um tempo “extraordinário”, no qual a “falsidade” do mundo cotidiano pôde ser deixada para trás em busca de um espaço mais verdadeiro e criativo. Para alguns, uma experiência única que os levou a encontrar respostas para questões fundamentais sobre o sentido da vida, que dificilmente seriam obtidas de outra forma - como a busca pelo questionamento de formas estabelecidas de conhecimento e pela incorporação de novos valores.

Entendo que os valores vedantinos não sejam linearmente dominantes, mas sim dinâmicos, enfrentando desafios de combinação com outros valores, apesar do nítido englobamento que, mesmo claramente prevalecente, não chega a dispor de todo o campo social para si. É nesse sentido que percebo a experiência de estar na Índia como complexa e cheia de contradições, favorecendo a vivência de um processo de transformação do self, que envolve tanto a dimensão ética de suas experiencias quanto o domínio em que suas consciências são culturalmente construídas.

As análises sobre práticas alimentares (ou“tornar-se vegetariano”) apontam para a dimensão corporal das transformações da vida espiritual. Observo que quanto mais ensinados forem seus corpos - quanto mais assimilados estiverem o conhecimento e as práticas - menos dependente da linguagem serão (Asad, 1997ASAD, Talal. 1997. “Remarks on the anthropology of the body”. In: COAKLEY, S. (org.). Religion and the body. Cambridge, Cambridge University Press, pp. 42-52.). É nesse sentido que entendo as transformações dos vedantinos envolvendo um processo de deslocamento de referenciais culturais anteriores (que não parecem mais mobilizar seu “imaginário social”) em direção a novos referenciais, que passam a estar incorporados na forma de uma relação mútua entre sentido e aprendizado, tais como os “sistemas de disposições” de Bourdieu. Considero, portanto, que essa relativização de conceitos, ao transformar visões de mundo e maneiras de viver, efetua, pelo menos para alguns, uma mudança de paradigmas. Compreendo, com isso, que além da visível alteração em seus corpos, o que se transforma na adoção de um estilo de vida vedantino seja seu ethos e cosmovisão, além da aquisição de certa autonomia identitária e de negociação de significados.

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  • WEBER, Max. 1958. The Religion of India. The Sociology of Hinduism and Buddhism. Glencoe, Free Press.
  • 1
    Confira: Bastos (2016aBASTOS, Cecilia. 2016a. Em busca de espiritualidade na Índia: os significados de uma moderna peregrinação. Curitiba, Editora Prismas.; 2016bBASTOS, Cecilia. 2016b. “Uma espiritualidade ‘hindu’ no Ocidente: a influência do Vedanta no contexto Nova Era”. Ciências Sociais e Religião, v. 18, n. 24: 33-53. https://doi. org/10.22456/1982-2650.63649
    https://doi.org/https://doi. org/10.2245...
    ; 2016cBASTOS, Cecilia. 2016c. “A construção social de uma ideia de Índia”. Novos Olhares, v. 5, n. 2: 98-111. https://doi.org/10.11606/issn.2238-7714.no.2016.122834
    https://doi.org/https://doi.org/10.11606...
    ; 2017aBASTOS, Cecilia. 2017a. “Perspectivas antropológicas sobre o turismo religioso: atravessando as fronteiras do turismo e da peregrinação”. Debates do NER, v. 18, n. 31: 307-330.; 2017bBASTOS, Cecilia. 2017b. “A busca espiritual de viajantes à Índia: filosofia e prática de um estilo de vida”. Revista Brasileira de História das Religiões, v. 9, n. 27: 229-255. https://doi.org/10.4025/rbhranpuh.v9i27.32456
    https://doi.org/https://doi.org/10.4025/...
    ; 2018BASTOS, Cecilia. 2018. “Em busca do sentido da vida: a perspectivas de estudantes de Vedanta sobre uma ‘vida de yoga’”. Religião e Sociedade, v. 38, n. 3: 218-238. https://doi.org/10.1590/0100-85872018v38n3cap10
    https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
    ; 2019aBASTOS, Cecilia. 2019a. “Meditação e yoga nas camadas médias do Rio de Janeiro: análise do campo nos estudos da Bhagavad Gita”. Religare, v. 16, n. 2: 659-691. https://doi.org/10.22478/ufpb.1982-6605.2019v16n2.46356
    https://doi.org/https://doi.org/10.22478...
    ; 2019bBASTOS, Cecilia. 2019b. “Devoção e yoga nas camadas médias do Rio de Janeiro: análise do campo nos estudos da Bhagavad Gita”. Revista Anthropológicas, v. 30, n. 1: 281-306. https://doi.org/10.51359/2525-5223.2019.241370
    https://doi.org/https://doi.org/10.51359...
    ; 2020BASTOS, Cecilia. 2020. “Corpo, emoção e saúde mental de praticantes de yoga e meditação”. 32ª Reunião Brasileira de Antropologia. UERJ: Rio de Janeiro. Disponível em: https://bit.ly/359cywY
    https://bit.ly/359cywY...
    ; 2021BASTOS, Cecilia. 2021. “Em busca de autoconhecimento e amadurecimento: narrativas de peregrinações à Índia”. Ilha Revista de Antropologia, v. 23, n. 2: 130-148. https://doi.org/10.5007/2175-8034.2021.e71422
    https://doi.org/https://doi.org/10.5007/...
    ; 2022aBASTOS, Cecilia. 2022a. Espiritualidade, subjetividade e individualidade na vivência de praticantes de yoga e meditação. In: CARNEIRO, Sandra; TONIOL, Rodrigo; BRITO, Caroline (orgs.). Religião e Espiritualidade: Desafios e Atravessamentos Conceituais. Rio de Janeiro, Editora Mórula [no prelo].; 2022bBASTOS, Cecilia. 2022b. Yoga, Emotion and Behaviour: Becoming Conscious of Habitual Social Roles. Journal of Contemporary Religion [no prelo].; 2022cBASTOS, Cecilia. 2022c. Individualism in Spirituality? A Close Look at Vedanta Students and Yoga Practitioners in Rio de Janeiro. International Journal of Latin American Religions: 1-16. https://doi.org/10.1007/s41603-022-00176-4
    https://doi.org/https://doi.org/10.1007/...
    ).
  • 2
    A palavra mais indicada para designar esse tipo de construção religiosa seria “mosteiro”, mas, para a maior parte dos entrevistados, essa palavra se relaciona com a instituição católica, então preferi usar monastério, que é o termo ao qual se referem.
  • 3
    Em outros textos aprofundei a questão da relação entre turismo e peregrinação (ver: Bastos 2017aBASTOS, Cecilia. 2017a. “Perspectivas antropológicas sobre o turismo religioso: atravessando as fronteiras do turismo e da peregrinação”. Debates do NER, v. 18, n. 31: 307-330.; 2021BASTOS, Cecilia. 2021. “Em busca de autoconhecimento e amadurecimento: narrativas de peregrinações à Índia”. Ilha Revista de Antropologia, v. 23, n. 2: 130-148. https://doi.org/10.5007/2175-8034.2021.e71422
    https://doi.org/https://doi.org/10.5007/...
    ).
  • 4
    Swami Dayananda foi, por mais de cinco décadas, um importante guru da tradição do Advaita Vedanta.
  • 5
    Apesar de, atualmente, a palavra ioga com a vogal i no início ser utilizada em português, preferi utilizar esta palavra iniciando com y, como é escrita em sânscrito ou inglês (ou nos vernáculos atuais da Índia), sendo, desta forma, fiel aos informantes que preferem se referir a esta palavra dentro do contexto de seus significados em sua língua original.
  • 6
    A palavra incorporação, aqui, tem o mesmo sentido de embodiment. Entendo que a transmissão da tradição oral, como diz Schechner (2013)SCHECHNER, Richard. 2013. “Pontos de contato revisitados”. In: DAWSEY, J. et al (orgs.). Antropologia e Performance. São Paulo, Terceiro Nome., seja uma memória que fique incorporada.
  • 7
    Os seguintes princípios do Vedanta (uma tradição altamente complexa com muitas linhas e diversas interpretações) foram resumidos por Goldberg (2010GOLDBERG, Philip. 2010. American Veda: from Emerson and the Beatles to yoga and meditation how Indian spirituality changed the West. New York, Harmony Books.: 10-11) da seguinte forma:a realidade última é tanto imanente quanto transcendente; Deus pode ser concebido tanto em termos pessoais quanto não pessoais; também pode ser concebido como o absoluto sem forma ou em diversas formas e manifestações; ao divino foi dado muitos nomes, descrições e atributos; atma é Brahman, consciência, porém nossa unidade com o divino, que é ofuscada pela ignorância, faz com que nos identifiquemos com o ego; os indivíduos podem ser despertados para sua natureza divina através de inúmeros caminhos e práticas, a espiritualidade é um processo de desenvolvimento, que se movimenta através de uma série progressiva de estágios; realizar completamente a verdadeira natureza do Eu acarreta um fim ao sofrimento e início de um estado de liberação ou iluminação, chamado moksha. Esses princípios são ainda acompanhados pelos conceitos védicos de karma (toda ação tem uma reação) e do companheiro do karma, a reencarnação.
  • 8
    Não são somente os Vedas que são considerados textos sagrados, há também textos posteriores, que foram escritos durante muitos séculos, que também podem ser considerados sagrados para alguns, como o Kamasutra, o Ramayana, o Mahabarata e os Puranas, que são textos que contam os épicos e promovem a noção do Trimurti. No entanto, o grupo estudado concorda que sagrados realmente são os quatro Vedas e, por extensão, a Gita, considerada o “quinto Veda”.
  • 9
    Veda-anta (anta - fim, parte final) são as Upanishads.
  • 10
    Samsara é a vida de altos e baixos, de ação e conquistas, alegrias e tristezas, satisfações e depressões: ação para repetir o que se gosta, ação para evitar o que não se gosta. O samsara é entendido como a oscilação constante, assim como a mente está em constante oscilação.
  • 11
    Essa é também a definição de satsanga (sat - bom, sábio, sanga - estar junto).
  • 12
    Segundo Tadeu, “mithya é tudo aquilo que para existir toma sua existência emprestada de alguma outra coisa”.
  • 13
    A palavra filosofia deve ser entendida aqui em seu sentido etimológico: “estudo dos problemas fundamentais”, e poderia dizer que é a palavra em nossa língua que mais se aproxima do que os entrevistados entendem por Vedanta.
  • 14
    Ver: Carneiro (2003)CARNEIRO, Sandra. 2003. Rumo a Santiago de Compostela: os sentidos de uma moderna peregrinação. Rio de Janeiro, tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro..
  • 15
    O individualismo como ideologia é entendido por Roberto DaMatta como “uma instituição central e normativa”, um valor central nas civilizações ocidentais, nas quais esse indivíduo, dotado de uma independência e autonomia sem paralelo, é postulado “como sendo maior (e mais inclusivo) do que a sociedade da qual ele é parte” (DaMatta, 2000DAMATTA, Roberto. 2000 “Individualidade e liminaridade: considerações sobre os ritos de passagem e a modernidade”. Mana, v. 6, n. 1: 7-29. https://doi.org/10.1590/ S0104-93132000000100001
    https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
    : 10).
  • 16
    Aprofundo o debate sobre a relação entre projeto e busca pelo sentido da vida em: Bastos (2018)BASTOS, Cecilia. 2018. “Em busca do sentido da vida: a perspectivas de estudantes de Vedanta sobre uma ‘vida de yoga’”. Religião e Sociedade, v. 38, n. 3: 218-238. https://doi.org/10.1590/0100-85872018v38n3cap10
    https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
    .
  • 17
    Este depoimento remete ao conceito de identidades “nômades” ou “expatriadas”. D’Andrea (2006D’ANDREA, Anthony. 2006. “Neo-Nomadism: A Theory of PostIdentitarian Mobility in the Global Age”. Mobilities, v. 1, n. 1: 95-119. https://doi.org/10.1080/17450100500489148
    https://doi.org/https://doi.org/10.1080/...
    : 99) considera os “nômades globais” como “pessoas deslocadas” com “mentes deslocadas”, que tendem a rejeitar suas terras natais tanto espacialmente quanto afetivamente, por meio de um etnocentrismo reverso. Deleuze e Guattari (1987)DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. 1987. A Thousand Plateaus: Capitalism and Schizophrenia. Minneapolis, University of Minnesota., por sua vez, entendem o nomadismo como referindo-se a um estilo de pensamento crítico que busca expor e superar a lógica sedentária do Estado, da ciência e da civilização.
  • 18
    Viver uma vida de yoga significa desenvolver certas qualidades “entendidas como espirituais, que se tornam bastante valorizadas, tais como ser simples, ter calma e, acima de tudo, discernimento, no sentido de saber qual atitude estaria de acordo com o dharma (fazer sempre o que é correto ou adequado em cada situação, ou o que seria o dever de cada um). Yoga, para o grupo, significa unir-se, integrar a mente com as ações: o que se pensa deve estar integrado ao que se fala e a como se age. Viver uma vida de yoga é tentar realizar este exercício a cada momento” (Bastos, 2018BASTOS, Cecilia. 2018. “Em busca do sentido da vida: a perspectivas de estudantes de Vedanta sobre uma ‘vida de yoga’”. Religião e Sociedade, v. 38, n. 3: 218-238. https://doi.org/10.1590/0100-85872018v38n3cap10
    https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
    ).
  • 19
    Ver: Turner (1974)TURNER, Victor. 1974. O Processo ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis, Vozes ..
  • 20
    Ver: Vallverdu (1999VALLVERDU, Jaume. 1999. “Conversión, compromiso y construcción de identidad en el movimiento Hare Krisna.” Alteridades, v. 9, n. 18: 57-70.: 68).
  • 21
    Como explicado em Bastos (2019a)BASTOS, Cecilia. 2019a. “Meditação e yoga nas camadas médias do Rio de Janeiro: análise do campo nos estudos da Bhagavad Gita”. Religare, v. 16, n. 2: 659-691. https://doi.org/10.22478/ufpb.1982-6605.2019v16n2.46356
    https://doi.org/https://doi.org/10.22478...
    .
  • 22
    Flood (2004FLOOD, Gavin. 2004. The ascetic self: Subjectivity, Memory and Tradition. Cambridge, Cambridge University Press .: 215) entende performance como envolvendo um tipo particular de competência ou conhecimento cultural que flui através das gerações.
  • 23
    A ideologia da Bildung (formação) enfatizava, segundo Duarte (2006DUARTE, Luiz Fernando. 2006. “Formação e ensino na antropologia social: os dilemas da universalização romântica”. In GROSSI, M.; TASSINARI, A.; RIAL, C. (orgs). Ensino de antropologia no Brasil: formação, práticas disciplinares e além fronteiras. Blumenau, Editora Nova Letra, pp. 17-36.: 19), a capacidade de autodesenvolvimento dos sujeitos, “com a ampliação de seus horizontes” consistindo numa ênfase no “renascimento” do sujeito exposto a uma conversão e “na disposição em fazer a experiência humana culminar na elaboração e atualização de sujeitos cultivados, interiormente expandidos, capazes de levar às últimas consequências o potencial de realização contido in nuce em todo ser humano” (Duarte, 2006DUARTE, Luiz Fernando. 2006. “Formação e ensino na antropologia social: os dilemas da universalização romântica”. In GROSSI, M.; TASSINARI, A.; RIAL, C. (orgs). Ensino de antropologia no Brasil: formação, práticas disciplinares e além fronteiras. Blumenau, Editora Nova Letra, pp. 17-36.: 25).
  • CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA:

    Não se aplica
  • FINANCIAMENTO:

    A autora recebeu financiamento para pesquisa de doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e para a pesquisa de pós-doutorado do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    03 Mar 2020
  • Aceito
    18 Mar 2022
Universidade de São Paulo - USP Departamento de Antropologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. Prédio de Filosofia e Ciências Sociais - Sala 1062. Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, Cidade Universitária. , Cep: 05508-900, São Paulo - SP / Brasil, Tel:+ 55 (11) 3091-3718 - São Paulo - SP - Brazil
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