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Direitos humanos e os trabalhos da imaginação: uma etnografia da ordenação da primeira reverenda trans da América Latina

Human rights and the works of the imagination: an ethnography of the ordination of the first trans reverend in Latin America

RESUMO

Este texto está articulado em torno da etnografia da ordenação clerical de Alexya Salvador, primeira pastora transgênero latino-americana. Interessada em descrever e refletir sobre possíveis modos contemporâneos de correlacionar as categorias religião e direitos humanos, a análise coloca em foco a produção de cenas icônicas, artefatos de comunicação que inscrevem quadros vivos em redes orientadas a redefinir os sentidos dessas categorias a partir de experiências concretas e comunicáveis. Sob este enquadramento, direitos humanos podem ser compreendidos como uma linguagem em ação que possibilita a agentes que se denominam e são reconhecidos como religiosos dar forma e expressão às suas imaginações, as quais desconhecem fronteiras estabilizadas entre o político, o religioso e, neste caso, o erótico.

PALAVRAS-CHAVE:
Direitos Humanos; Religião e Transgeneridade

ABSTRACT

This article is constructed around the ethnography of the clerical ordination of Alexya Salvador, the first transgender Latin American pastor. The analysis is interested in describing and reflecting on possible contemporary ways of correlating the categories of religion and human rights. It focuses on the production of iconic scenes, communication artifacts that inscribe living pictures into networks oriented to redefine the meanings of these categories based on concrete and communicable experiences. Under this framework, human rights can be understood as a language in action that allows agents who designates and recognized themselves as religious to give form and expression to their imagination, which are unmarked by stabilized borders between the political, the religious and, in this case, the erotic.

KEYWORDS:
Human Rights; Religion and Transgenerity

INTRODUÇÃO

Propomo-nos neste texto1 1 Este texto está vinculado ao Projeto Temático Religião, Direito e Secularismo: a reconfiguração do repertório cívico no Brasil contemporâneo, Processo nº 2015/02497-5, apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Aproveitamos para agradecer as contribuições dos membros desse grupo de pesquisa. Sua leitura crítica, bem como dos pareceristas desta revista, ajudaram a aprimorá-lo. descrever e refletir sobre alguns modos contemporâneos de correlacionar as categorias religião e direitos humanos. Realizaremos essa empreitada por meio de análise etnográfica da ordenação clerical de Alexya Salvador, primeira pastora transgênero latino-americana2 2 Ao longo deste texto Alexya Salvador será designada de pastora ou reverenda. O primeiro termo classificatório se refere à sua posição eclesiástica; o segundo, a um grau de distinção conferido pelos agentes do campo etnográfico. , vinculada à Igreja da Comunidade Metropolitana de São Paulo (ICM), organização religiosa de origem norte-americana que se auto-intitula a “igreja dos direitos humanos”.3 3 No campo das igrejas inclusivas, classificação êmica que abarca o conjunto de instituições religiosas formadas por agentes associados em torno de questões de identidade de gênero e práticas sexuais em tensão com a heteronorma, a ICM se destaca por colocar em prática aquilo que ela enuncia ser “a radical inclusão”, acolhendo pessoas que estariam segregadas por conta de preconceitos sociais. Fundada em Los Angeles, Estados Unidos, em 1968, a ICM está instalada em mais de 30 países e foi implantada no Brasil nos anos 2000, estando hoje em plena atuação por meio de pequenos agrupamentos em Fortaleza (CE), Teresina (PI), Rio de Janeiro (RJ), Belo Horizonte (MG), São Paulo (SP), Cabedelo (PB), Salvador (BA), Vitória (ES) e Maringá (PR). À sua posição eclesiástica e identidade de gênero somam-se outras identidades e status sociais que são articulados em cena pública de maneiras e modos diferenciados: a identidade de mulher negra, o status de mulher casada e condição de uma mãe transgênero.

O evento ritualístico que reuniu, no dia 26 de janeiro de 2020, lideranças de diversas denominações religiosas e representantes de vários movimentos sociais no altar de uma igreja no centro da cidade de São Paulo, serve-nos para sustentar um argumento central deste artigo: direitos humanos podem ser compreendidos como uma linguagem em ação para além de sua dimensão regulatória. Queremos argumentar que essa linguagem possibilita a agentes sociais que se denominam e são reconhecidos como religiosos dar forma e expressão às suas imaginações, as quais desconhecem fronteiras estabilizadas entre o político, o religioso e, neste caso etnográfico, o erótico. Nosso argumento central coloca em nova perspectiva a forma de pensar a relação das categorias postas em observação.

Trata-se de um texto escrito a seis mãos, derivado de duas posições distintas de observação do evento, que foi assistido em transmissão online arquivada pelo Facebook da ICM São Paulo4 4 O evento foi divulgado de forma aberta, estando disponível a qualquer pessoa mesmo que não usuária da rede social. Disponível em https://www.facebook.com/events/praca-olavo-bilac-n-65-templo-da-igreja-anglicana/ordena%C3%A7%C3%A3o-clerical-de-alexya-salvador/2492652730989069/ pelas duas autoras, que se encontravam então no exterior, e presencialmente pelo terceiro autor, que fez parte da audiência ali presente. Explicitamos essa condição para chamar a atenção para duas dimensões articuladas do fenômeno. A primeira é que o ritual de ordenação de Alexya Salvador pode ser lido como uma escrita dramatúrgica na qual os direitos humanos se transmutam em enredo litúrgico para dar inteligibilidade a trajetórias de novas personas públicas: a “pastora trans”, no nosso caso em análise. Neste horizonte, há um duplo diálogo antropológico: com Turner, quando ele repensa a noção de drama à luz de Dewey e Dilthey em seu ensaio sobre a antropologia da experiência (1986TURNER, Victor. 1986. “Dewey, Dilthey, and drama: An essay in the anthropology of experience”. In: TURNER, Victor; BRUNER, Edward (Org.) The anthropology of experience. Champaign, University Illinois Pres, pp. 33-44.), e com Geertz, que nos incita a pensar o rito litúrgico posto em cena a partir dos moldes de uma descrição densa (1989GEERTZ, Clifford. 1989. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan.). Uma segunda dimensão do fenômeno, articulada à anterior, diz respeito à circulação das imagens do culto em mídias digitais, aspecto que evidencia a materialidade do rito quando apreendido e codificado em cenas transponíveis por dispositivos de comunicação diversos. É neste âmbito que ganham sentido as cenas icônicas, artefatos de comunicação social que inscrevem quadros vivos, como os que serão descritos na etnografia, em múltiplas plataformas de comunicação digital.

Em um plano geral, o universo empírico abordado dialoga com um conjunto de textos precedentes que inauguraram o estudo etnográfico desta igreja (Jesus, 2010JESUS, Fátima Weiss de. 2010. “A cruz e o arco-íris: Refletindo sobre gênero e sexualidade a partir de uma ‘igreja inclusiva’ no brasil”. Ciencias Sociales y Religión, vol. 12, n. 12: 131-146. DOI 10.22456/1982-2650.12731.
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; 2012JESUS, Fátima Weiss de. 2012. Unindo a cruz e o arco-íris: Vivência Religiosa, Homossexualidades e Trânsitos de Gênero na Igreja da Comunidade Metropolitana de São Paulo. Florianópolis, Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina.) e outras denominações (Natividade, 2010NATIVIDADE, Marcelo. 2010. Uma homossexualidade santificada? Etnografia de uma comunidade inclusiva pentecostal. Religião & Sociedade, n. 30: 90-121. DOI 10.1590/S0100-85872010000200006.
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) e pastorais religiosas (Silva, 2019SILVA, Jeferson Batista da. 2019. Um lugar à mesa: estudo sobre a produção pastoral do ativismo" católico LGBT" brasileiro. Campinas, Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas. DOI 10.13140/RG.2.2.21298.02246.
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). Em outra dimensão a etnografia também está situada em três projetos de pesquisa paralelos e correlacionados que analisam a agência de lideranças da ICM (Silva, 2016SILVA, Aramis Luis. 2016. Uma igreja em marcha. Relato etnográfico da participação da ICM na 20ª Parada do Orgulho LGBT de São Paulo. Ponto Urbe , n. 19. DOI: 10.4000/pontourbe.3314.
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; 2020SILVA, Aramis Luis. 2020.“Brazilian Gay Pastorate in Mission to Cuba: Shaping a Transnational Community of Speech”. In: BAHIA, Joana; KAMP, Linda van de; OOSTERBAAN, Martijn (Eds.). Global trajectories of Brazilian religion: Lusospheres. Londres: Bloomsbury, pp. 71-84.) e suas estratégias de visibilização do religioso (Montero et al., 2018MONTERO, Paula; SILVA, Aramis Luis; SALES, Lilian. 2018. Fazer religião em público: encenações religiosas e influência pública. Horizontes Antropológicos, n. 24, 131-164. DOI 10.1590/S0104-71832018000300006.
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; Barbosa et al., 2021BARBOSA, Olívia; NAGAMINE, Renata; SILVA, Aramis Luis. 2021. Uma trajetória imagética: a construção de uma Pastora Trans. Ponto Urbe, vol. 29. DOI: 10.4000/pontourbe.10952.
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). Nosso interesse agora é pensar a singularidade da ordenação de Alexya Salvador como primeira “reverenda transgênera do Brasil”, tarefa convergente aos esforços anteriores. Contudo, faremos isso cientes de que o nosso novo recorte etnográfico expressa um dos possíveis modos de uso de uma linguagem executada por uma gama de agentes nacionais e internacionais que, há décadas, vêm conformando aquilo que pode ser descrito como a arena dos direitos humanos. Ou seja, a ordenação da pastora será tomada como um evento etnográfico que, embora seja singular, permite-nos refletir sobre processos sociais que imbricam publicização e sacralização, produzindo, em ato cênico, uma só experiência pública mediada pela linguagem dos direitos humanos.

Desse modo, é preciso levar em conta que as cenas etnografadas a seguir integram um circuito comunicacional mais amplo e com regras de comunicação e visibilização em constante mutação e disputa. Nele, direitos humanos são uma língua corrente para tratar de assuntos que concernem à construção e regulação de relações sociais com outros entre próximos e distantes, ou seja, dos Estados com seus nacionais, entre os seus nacionais e desses com os nacionais de outros Estados, a partir do princípio de que todos são pertencentes a uma humanidade comum. Contudo, como linguagem, os direitos humanos são operados no interstício entre a estrutura e a ação. Se existem e perduram como fórmulas linguísticas, é porque ganham sentido em imaginações sociais particulares, construídas em experiências históricas situadas, como já demonstraram trabalhos de Lynn Hunt (2009HUNT, Lynn. 2009. A invenção dos direitos humanos: uma história. São Paulo, Editora Companhia das Letras.) e Sliwinski (2006SLIWINSKI, Sharon. 2006. The childhood of human rights: The Kodak on the Congo. Journal of Visual Culture, vol. 5, n. 3: 333-363. DOI 10.1177/147041290607051.
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; 2009SLIWINSKI, Sharon. 2009. The aesthetics of human rights. Culture, Theory & Critique, vol. 50, n. 1: 23-39. DOI: 10.1080/14735780802696336.
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; 2015SLIWINSKI, Sharon. 2015. “Inventing human dignity”. In: MCCLENNEN, Sophia; SCHULTHEIS, Alexandra (Org.). The Routledge companion to literature and human rights. Londres, Routledge pp. 173-183. DOI 10.4324/9781315778372.ch15.
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).

O trabalho de Hunt sobre as origens modernas dos direitos humanos nos interessa por mostrar como a circulação de certos artefatos, em especial livros, contribuiu para moldar sensibilidades de forma a que uma pessoa pudesse perceber como tocante a si o sofrimento imposto a outro distante, o que teria criado condições para o surgimento e a difusão da ideia de “direitos do homem”. Na mesma linha de Hunt, os trabalhos de Sliwinski (2006SLIWINSKI, Sharon. 2006. The childhood of human rights: The Kodak on the Congo. Journal of Visual Culture, vol. 5, n. 3: 333-363. DOI 10.1177/147041290607051.
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; 2009SLIWINSKI, Sharon. 2009. The aesthetics of human rights. Culture, Theory & Critique, vol. 50, n. 1: 23-39. DOI: 10.1080/14735780802696336.
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; 2015SLIWINSKI, Sharon. 2015. “Inventing human dignity”. In: MCCLENNEN, Sophia; SCHULTHEIS, Alexandra (Org.). The Routledge companion to literature and human rights. Londres, Routledge pp. 173-183. DOI 10.4324/9781315778372.ch15.
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) pretendem contar a história dos direitos humanos a partir de imagens, analisando como o encontro esteticamente mediado por meios materiais de comunicação, em especial a fotografia, contribuiu para a produção da forma de reconhecimento do humano e da humanidade à qual se sente pertencer. Nesses escritos, Sliwinski evidencia a formação de uma sensibilidade humanitária que teria criado condições para os direitos humanos (2006SLIWINSKI, Sharon. 2006. The childhood of human rights: The Kodak on the Congo. Journal of Visual Culture, vol. 5, n. 3: 333-363. DOI 10.1177/147041290607051.
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; 2009SLIWINSKI, Sharon. 2009. The aesthetics of human rights. Culture, Theory & Critique, vol. 50, n. 1: 23-39. DOI: 10.1080/14735780802696336.
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) e a ascensão da dignidade humana como ideia central na história dos direitos humanos se configurarem tais como os conhecemos.

O diálogo com essas autoras nos ajuda a esclarecer a razão de enfatizarmos a emergência de cenas icônicas na análise do culto de ordenação clerical de Alexya. Apesar de integrarem a trama narrativa de forma orgânica, essas cenas registradas em mídias veiculam metonimicamente os sentidos do rito de ordenação da pastora trans, que passam a concorrer também para a conformação de uma nova sensibilidade para a vida vivida dos direitos humanos. Em outras palavras, pretendemos mostrar que o uso desses direitos transforma a letra inanimada de codificações jurídicas em experiências sensíveis e inteligíveis, criando condições para acontecimentos públicos, abrindo campos de interlocução e concorrendo na produção de sujeitos.

Para fazer ver como isso se dá, inspiramo-nos nos escritos de Birgit Meyer (2010MEYER, Birgit. 2010. Aesthetics of Persuasion: Global Christianity and Pentecostalism’s Sensational Forms. South Atlantic Quarterly, vol. 109, n. 4: 741-763. DOI 10.1215/00382876-2010-015
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; 2019MEYER, Birgit. 2019. “De comunidades imaginadas a formações estéticas: mediações religiosas, formas sensoriais e estilos de vínculos”. In: GIUMBELLI, Émerson; RICKLI, João; TONIOL, Rodrigo (orgs.). Como as coisas importam: uma abordagem material da religião - Textos de Birgit Meyer. Porto Alegre: Editora da UFRGS, pp. 43-80.), que desenvolve uma abordagem material da religião deslocando as análises do restrito foco do conteúdo cosmológicos e ideológicos dos discursos religiosos. Uma das suas teses que nos interessa é que as religiões, enquadradas como “formações estéticas”, tornam-se tangíveis e inteligíveis ao conformarem uma estética materializada na estruturação do espaço, em edificações, objetos e instrumentos de culto, na indução de sensações por técnicas corporais e nas mídias. Entendidas como modeladoras de experiências compartilhadas, nas quais “sujeitos são forjados pela modulação de seus sentidos, pela indução de experiências, pela moldagem de seus corpos e pela produção de sentidos” (Meyer, 2019MEYER, Birgit. 2019. “De comunidades imaginadas a formações estéticas: mediações religiosas, formas sensoriais e estilos de vínculos”. In: GIUMBELLI, Émerson; RICKLI, João; TONIOL, Rodrigo (orgs.). Como as coisas importam: uma abordagem material da religião - Textos de Birgit Meyer. Porto Alegre: Editora da UFRGS, pp. 43-80.: 54), formações estéticas são indutoras de coletivos. Isso nos inspira a enquadrar a diversidade de grupos religiosos que irão compor a cena etnográfica ao lado da ICM como formas de mediação que produzem ajuntamentos circunstanciais ao mobilizarem sensações e, portanto, sentidos de pessoas e coletivos. Em outro plano, Meyer também nos estimula a perceber que a compreensão da presença pública da religião exige observar os efeitos da constante incorporação de novas mídias: no nosso caso, as audiovisuais (em ambientes digitais), que remodelam a mensagem religiosa e criam formas de mobilização e conexão das pessoas. Vale lembrar que para duas autoras deste texto o culto existiu como imagens apreensíveis por meio de uma tela.

Em outra chave, as proposições de Meyer ganham densidade a partir da perspectiva de uma sociologia pragmática, que nos permite enquadrar a arena em que os direitos humanos ganham vida como um espaço de visibilidade e de interação comunicativa na qual falantes plausíveis se constituem em função da sua capacidade de formar um público (Cefaï, 1996CEFAÏ, Daniel. 1996. La Construction des Problèmes Publics: Définitions de Situations dans des Arènes Publiques. Réseaux. Communication-Technologie-Société, vol. 14, n. 75: 43-66. DOI 10.3406/reso.1996.3684
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; 2017CEFAÏ, Daniel. 2017. Públicos, Problemas públicos, arenas públicas…: O que nos ensina o pragmatismo (Parte 1). Novos estudos CEBRAP, vol. 36, n. 1: 187-213. DOI 10.25091/ S0101-3300201700010009.
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). Dessa ótica, veremos como os diferentes atores que se lançam à cena etnográfica buscam se projetar nessa arena com o propósito de mobilizar e persuadir pessoas, conformando, em um primeiro momento, audiências e, num segundo passo, quiçá, comunidades, o que é especialmente caro a uma igreja que leva esse projeto no seu nome. Mas, como concordariam Cefaï e Meyer, a persuasão no jogo de comunicação pública não se restringe ao domínio do racional, expresso pelo conteúdo do que se fala. Ela pode ser estendida a modos mais amplos de expressão e convencimento, que emergem de regimes estético-políticos específicos (Meyer, 2010MEYER, Birgit. 2010. Aesthetics of Persuasion: Global Christianity and Pentecostalism’s Sensational Forms. South Atlantic Quarterly, vol. 109, n. 4: 741-763. DOI 10.1215/00382876-2010-015
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).

Lidos a partir de um regime estético-político específico, que apresentamos por meio da etnografia de um culto de ordenação suis generis, faremos ver como os direitoshumanoscomoumalinguagemquesópodemexistirematodecomunicação, no qual seus sentidos são negociados e definidos circunstancialmente pelos atores na arena de interlocução, a partir de distintos e interessados modos de usá-los em público. Como veremos a partir do caso empírico em análise, a linguagem dos direitos humanos possibilita à ICM expressar a uma audiência situada para além dos seus frequentadores aquilo que ela postula como sendo sua experiência com o divino. Em outro plano, evidenciaremos que essa operação de compatibilização do religioso e do público não existe sem o uso de códigos, formas e fórmulas historicamente estabelecidos, o que nos remete a uma problemática das estratégias de comunicação e visibilização cristalizadas em formas estéticas que subjaz toda a discussão etnográfica, como poderá ser observado adiante. Mas é importante destacar desde já uma dimensão fundante do jogo de comunicação no qual os direitos humanos são operados: essas formas estéticas fornecem enquadramentos que alocam conteúdos e significados produzidos em arenas públicas em uma estrutura de sentido processual, que se afirma, pela circulação da cerimônia da ICM por diferentes contextos e em diferentes temporalidades, como universal e atemporal. No âmbito da etnografia, tais formas retóricas e estéticas, como a declaração e o juramento, são vividas em atos de cena por atores que encarnam em cerimônia ritual a dignidade humana reclamada das instituições. Nesse sentido, as fórmulas retóricas dos direitos humanos, como a inscrita no artigo primeiro da Declaração Universal de 1948, segundo o qual “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, apontam para um mundo imaginado de concretização do reino de Deus na terra, aqui e agora.

Dito isso, é hora seguirmos rumo à etnografia, organizada a partir de uma estratégia textual que passamos a sumarizar brevemente. De partida, apresentaremos o cenário, os personagens e algumas das relações de alianças que os situam em redes sociais (de parentela, ativismos e religiosidades) e convergem ali para testemunhar a postulação pública da primeira pastora trans da América Latina. São esses elementos que nos permitirão analisar a composição de quadros vivos, dispositivos de comunicação que dão vida à letra morta dos direitos humanos, considerando que eles resultam em parte de um programa litúrgico orientado a exibir o que seria uma igreja dos direitos humanos para a dupla audiência: a que assiste dos bancos da igreja presencialmente na forma de uma assembleia e o conjunto de pessoas que acessam o culto midiatizado nas plataformas digitais. Na sequência, apresentaremos o ciclo ritual como um texto integrado, privilegiando três momentos do roteiro litúrgico - Rito da palavra, Unção e Rito Eucarístico - a fim de evidenciar que discursos podem ser mais bem compreendidos quando encarados como atores sociais em ação.

A ORDENAÇÃO DA PRIMEIRA “REVERENDA TRANSGÊNERA” DA AMÉRICA LATINA

Na tarde de 26 de janeiro, mês em que se comemora no Brasil a Visibilidade Trans, as portas da Paróquia da Santíssima Trindade, na Praça Olavo Bilac, na Santa Cecília, bairro central da cidade de São Paulo, foram abertas para receber os convidados que lotaram a nave central da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil para a ordenação clerical de Alexya Salvador, mais tarde anunciada por várias mídias como a primeira pastora trans da América Latina. Além de servir aos cultos da comunidade anglicana e estar à disposição para ser alugada para casamentos, a igreja de tijolos aparentes e concreto armado simulando a posição das mãos em prece foi cedida a preços módicos para a realização do rito da ICM. O valor cobrado foi usado para cobrir gastos de eletricidade e demais insumos despendidos em outras áreas do complexo arquitetônico, como o salão de festas, que mais tarde abrigou uma recepção com salgadinhos, bolo e refrigerantes aos convidados.

A escolha do espaço não foi aleatória. Na ordem da intencionalidade, resolveu o problema prático para uma agência religiosa local que, apesar de associada a uma rede transnacional e ter crescente projeção midiática, só contava à época com uma pequena e simples sobreloja na Avenida Duque de Caxias para reunir fisicamente sua audiência. Nela, não haveria espaço para tantos convidados. Já na ordem do desejo de expressão, a ICM, que valoriza e pratica o apagamento das convenções do religioso, encontrou um espaço cenográfico marcado pelos sinais da convenção para desenhar em forma litúrgica o que suas lideranças pensam como sendo honra e pompa. Na cerimônia, altar e púlpito demarcam espaços de fala e escuta e posições na hierarquia eclesiástica. A estrutura acústica amplificava os efeitos estéticos dos louvores entoados pelos cantores da ICM e da música dedilhada em órgão eletrônico. A ordenação espacial propicia cortejos pelo corredor da nave central, forrado por um tapete vermelho que interliga a rua (o mundo) ao altar (o sagrado) e dispõe a audiência perfilada em bancos de madeira aos moldes do palco italiano retangular. A ICM, organização comunitária que se anuncia como sendo uma igreja das margens interessada na redefinição do que é o religioso, escolheu uma igreja modelar para validar em público seu projeto de produção de lideranças fora da norma.

Mas, com capacidade para abrigar 250 pessoas sentadas, a discreta e elegante igreja anglicana projetada em 1950 pelo arquiteto Jacob Maurício Ruchti imprimiria ao evento muito mais do que uma nova estética ao culto da ICM. Com teto pontiagudo elevado, que direciona os olhares para alto, e os vitrais desenhados pela artista Maria Leontina, que enchem a Paróquia da Santíssima Trindade com cores quentes, a igreja continha a assinatura do evento: a ordenação de Alexya, um culto especial da ICM, serviria como rito para publicizar alianças, expandir sua audiência e, quiçá, configurar novas comunidades.

No púlpito e também na plateia reuniam-se representantes de várias redes sociais. Gente que chegava sem alarde e procurava os seus para sentar em grupo. Estavam lá os anfitriões anglicanos, agrupamento religioso que declara em seu site ser uma comunidade “marcada pela diversidade de idade, étnica, de orientação sexual e de origens denominacionais”.5 5 Texto na íntegra disponível em <http://www.trindade.org/drupal/node/753>. (último acesso dia 20 de abril de 2020.) Os anglicanos que faziam parte da equipe administrativa prestavam auxílio para a realização do evento, ajudando, por exemplo, no manejo da aparelhagem de som. Outros membros da comunidade, incluindo pastores e lideranças, marcaram presença prestigiando o culto, aglutinando-se à esquerda de quem olhava o altar da igreja dividida em dois blocos. Em volta deles estavam parentes e amigos de Alexya, membros da ICM, de outras igrejas e entidades da sociedade civil, e uma equipe de filmagem do documentário Deus é Mulher. Ao longo de toda a cerimônia, além das câmeras da ICM que captaram as imagens que agora podem ser assistidas pelo Facebook, as lentes da produtora varreram a igreja em busca das melhores tomadas, deixando, aqui e acolá, alguém tímido ao saber que poderia estar inscrito na cena, e, até aquele momento, sem saber como e por onde ela iria circular. No final do culto, foram fornecidas informações sobre o registro e circulação das imagens.

A diversidade da audiência, daqueles que assistiam à cerimônia dos bancos, era espelhada pela composição de quem foi chamado ao altar e potencializada pela ritualização da nomeação. Estar no altar, isto é, estar em um espaço sacralizado era também portar e exibir publicamente uma identidade (um nome que designa e dá uma posição em um sistema de classificação), representando um grupo e/ou uma causa. No caso da cerimônia, a aparição no altar era um reconhecimento público da dignidade desses nomes e causas.

Ao fundo, compondo o eixo horizontal da cena e o esteio institucional do evento, as lideranças locais da ICM, de outras cidades do Brasil e duas autoridades eclesiais internacionais da organização religiosa: Ines-Paul, homem trans e autoridade religiosa alemã; a bispa Nancy Maxwell, mulher lésbica estadunidense. No canto, logo atrás do púlpito direito, assenta-se o grupo de mulheres trans e drags da igreja elegantemente paramentadas com roupas litúrgicas douradas, junto aos demais convidados de honra. De corpo presente e no discurso, como veremos adiante, a trama posta em curso na Paróquia da Santíssima Trindade é do feminino em várias das suas versões: das mulheres trans, das mulheres lésbicas e das mulheres cisgêneras.

Entre os convidados estavam personalidades que evidenciavam as alianças da ICM no âmbito da sociedade civil, como a atriz Renata Carvalho, que ganhou projeção nacional com a peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, discutida no noticiário nacional por representar o filho de Deus encarnado na pele de uma travesti. A peça inclusive já havia sido encenada no altar da paróquia anglicana. Os dizeres estampados na simples camiseta branca - “Lute como uma travesti” - demarcavam sua posição no campo do ativismo, no qual ela atua como presidente da Associação Nacional de Travestis. Junto a Renata estavam Maitê Schneider, fundadora do Transempregos, plataforma eletrônica que conecta empresas e pessoas trans em busca de trabalho; a ativista trans Renata Peron; Erica Malunguinho, educadora e artista plástica que se elegeu em 2018 como a primeira mulher transexual da Assembleia Legislativa de São Paulo pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), partido pelo qual Alexya concorreu à mesma posição legislativa, tendo obtido no pleito os 10.486 votos que a credenciaram como suplente. Nas eleições municipais de 2020, Alexya voltou à cena da política institucional. Primeiro como pré-candidata a vice-prefeita nas prévias do PSOL ao lado da deputada federal Sâmia Bomfim, nas quais foi vencida pela chapa formada por Guilherme Boulos e Luiza Erundina. Depois, apareceu como candidata não eleita à Câmara de Vereadores da capital paulista. Sua companheira de partido, Erica, que fez questão de declarar no altar da igreja protestante o pertencimento a religiões de matriz afro, prestigiou aquilo que foi formulado como mais uma conquista importantíssima para as pessoas trans: o direito à fé, desta vez, desde uma posição eclesiástica de comando.

Mas a cena da ordenação da pastora da ICM expressa alianças que tecem redes de relações a partir de uma outra ordem de identidade: a religiosa. Neste âmbito, como veremos a seguir, travam-se relações entre atores e coletivos nos quais os direitos humanos funcionam como base de sustentação de um novo ecumenismo, este marcado pela ideia de inclusão dos marginalizados por questões de identidade de gênero e sexualidade e libertação de opressões e preconceitos vinculados a tabus sociais. É dessa perspectiva que podemos situar a confluência no evento de atores como Tábata Tesser, das Católicas pelo Direito de Decidir, Jean Tetsuji, do templo budista Nambei Honganji Brasil Betsuin, liderança que representa seu agrupamento religioso em eventos públicos no que diz respeito à diversidade sexual e de gênero, e representantes de coletivos e entidades variados, como Coordenação Nacional dos Comitês Islâmicos de Solidariedade, Coletivo de Inclusão Luterana, Evangélicos pela Diversidade, Ordem Anglicana Missionária, Grupo de Ação da Diversidade Católica, Movimento Inadequados e Coletivo LGBT Ferraz de Vasconcellos. A lógica de coalizão, expressa nesse novo ecumenismo, já foi registrada por Batista da Silva (2019SILVA, Jeferson Batista da. 2019. Um lugar à mesa: estudo sobre a produção pastoral do ativismo" católico LGBT" brasileiro. Campinas, Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas. DOI 10.13140/RG.2.2.21298.02246.
https://doi.org/10.13140/RG.2.2.21298.02...
) em outros eventos públicos nos quais a ICM participava, embora como aliada convidada, não como regente da cena de confluência.

Para concluir, a composição do altar é complementada por outro elemento icônico fundamental para a trama que organiza o evento: a família de Alexya, posicionada no canto direito da cena, logo atrás de onde ela permaneceria até a hora do seu rito de ordenação. Sentados ombro a ombro, mãe e pai da pastora encenavam um dos tópicos discursivos centrais para a ICM e demais igrejas inclusivas: a aceitação da homossexualidade ou da transexualidade pela família. Juntos aos pais apareciam Roberto, marido da pastora, e os três filhos adotivos do casal, duas deles meninas trans.

A história da família será contada no curso do rito na forma de relato e de um testemunho que entrelaçam e compatibilizam em uma única narrativa os sentidos políticos e teológicos da formação de uma família religiosa suis generis, composta por mulher transgênero, homem cisgênero que se declara gay, um menino cisgênero e duas meninas trans. Trata-se de uma configuração que confronta o padrão da “família natural” defendida por religiosos dali ausentes, mas que serão nomeados na cena como conservadores e fundamentalistas. Contudo, diferindo da estratégia usual do movimento LGBT+ de reivindicar o secular como barreira de contenção para coibir o religioso, os atores ali presentes, posicionando-se como uma nova feição do mundo LGBT+, tomam para si o religioso, materializado e mediatizado em forma ritual. Isso é feito não só para reafirmar o valor da família como instituição, mas também para mostrar performaticamente que uma família formada por agentes que portam identidades fora da norma expressa a intersecção de projetos políticos seculares com desígnios divinos. Alexya, equiparada na cerimônia à virgem Maria e já reconhecida pela mídia como a primeira mulher trans a adotar crianças, será iconizada no evento como um símbolo da revolução dos costumes e do amor de Deus.

Uma vez apresentada a composição do palco em que a ICM modela em público e com o público o que ela concebe e pratica como sendo religião, analisaremos essa trama em ação. Para tanto, e seguindo o roteiro litúrgico definido pela própria igreja, vamos colocar sob escrutínio momentos-chave do culto, atentos a um fato: conteúdos discursivos, para serem veiculados e circularem publicamente, precisam ter uma forma. Vamos às cenas.

Rito da palavra

Pairava um clima comunal na Paróquia da Santíssima Trindade após o Ato Penitencial, com louvor entoado por mulheres trans vinculadas a organizações da sociedade civil e membros da ICM ao fundo, quando a atriz Renata Carvalho, da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), foi chamada ao microfone posicionado no altar para realizar a leitura do primeiro documento da tarde. Renata abriu a seção litúrgica, sugestivamente chamada de “Rito da Palavra: a Declaração de Fé das Igrejas da Comunidade Metropolitana”. A leitura, como todo o evento, desde o canto inicial, contou com tradução para a língua brasileira de sinais (Libras).

Mulheres trans, drags e líderes religiosos formavam um quadro vivo, tendo ao fundo um enorme painel cinza de concreto em que eram exibidas as três cruzes do altar: a cruz de madeira sem o Cristo crucificado da igreja anglicana e as duas cruzes célticas da ICM Brasil, impressas em banners. O banner da esquerda, com as siglas da denominação em inglês, “MCC”, exibia a cruz céltica colorida em rosa e azul, remetendo à bandeira do movimento trans; o banner da direita, com as cores do arco-íris, aludia ao movimento LGBT+. Assim emoldurada, Renata leu:

(Preâmbulo)

A Igreja da Comunidade Metropolitana é um capítulo na história da Igreja, o Corpo de Cristo. Somos pessoas em uma caminhada, aprendendo a viver nossa espiritualidade, enquanto afirmamos nossos corpos, nossos gêneros e nossas sexualidades. Nem todas as pessoas acreditam exatamente no mesmo. E mesmo em meio à diversidade, estamos construindo uma comunidade, enraizada no amor radicalmente inclusivo de Deus para todas as pessoas. Somos parte de um diálogo em andamento, em questões de crença e fé formadas pelas Escrituras e pelos credos históricos, construído segundo os que nos precederam. Nosso capítulo começa quando Deus nos diz: "Venham, vejam e experimentem".

(Nossa Fé)

“Venham, vejam e experimentem!”. Jesus Cristo, tu convidas a todos os povos a sua mesa aberta. Tu fizeste-nos seu povo, uma comunidade amada. Tu restauras o prazer de nossa relação com Deus, inclusive em meio à solidão, ao desespero e à degradação. Somos pessoas únicas e cada uma faz parte do todo, do sacerdócio de todos os crentes. Batizadas e cheias do Espírito Santo, Tu nos empoderas para sermos tua presença saradora no mundo ferido. Esperamos ver Teu Reino, assim na Terra como nos céus, e trabalharemos por um mundo onde todas as pessoas tenham o que precisam, que acabem as guerras e toda a criação viva em harmonia. Reconhecemos Tua entrega da terra, do mar e do ar aos cuidados de toda a humanidade. Portanto, ativamente resistimos aos sistemas e estruturas que estão destruindo a sua criação. Com toda a criação, Te adoramos - cada tribo, cada língua, cada povo, cada nação. Conhecemos-te com diversos nomes, Deus Trino, muito além da compreensão, revelado em Jesus Cristo, que nos convida à festa. (ICM, 2016ICM - Igreja da Comunidade Metropolitana. 2016. Declaração de Fé das ICMs. [s/l]: Fraternidade Universla das Igrejas da Comunidade Metropolitana. Disponível em Disponível em https://mccchurch.org/files/2017/01/ DE CLARA%C3%87%C3%83O-DE-F%C3%89-DAS-ICM%C2%B4S.pdf acesso em 10 dez. 2022.
https://mccchurch.org/files/2017/01/ DE ...
).6 6 Disponível em: https://mccchurch.org/files/2017/01/DECLARAÇÃO-DE-FÉ-DAS-ICM´S.pdf. Último acesso em 21 de abril de 2020.

Trata-seda Declaraçãode Fédas ICM, queremontaaumaformahistoricamente constituída de enunciação e inscrição de direitos em ordens constitucionais e na ordem internacional de origem moderna, revolucionária e utópica, que convocam à ação no mundo para a sua transformação. Como as declarações de direitos, a Declaração de Fé das ICM tem um preâmbulo. Preâmbulos, os mais icônicos dos quais são o da Declaração de Independência Americana7 7 Disponível em <https://www.archives.gov/founding-docs/declaration-transcript> (último acesso em 26 de abril de 2020). e o da Declaração Universal de Direitos Humanos8 8 Disponível em https://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/pdf/declaracao_universal_dos_direitos_do_homem.pdf. Último acesso em 6 de dezembro de 2020. , de 1948, são uma espécie de enunciação de princípios que prepara o público para o anúncio de um catálogo de direitos. São uma forma de apelo às suas sensibilidades que dá um sentido, orienta seus afetos. Esse apelo é feito pela enunciação de valores, ou memórias compartilhadas, dando a sensação de que se pertence a uma comunidade que a própria enunciação incita a imaginar, como fica claro, por exemplo, quando a Declaração de 1948 lembra, em seu preâmbulo, que

[O] desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da humanidade e que o advento de um mundo em que mulheres e homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do ser humano comum. (Assembleia Geral das Nações Unidas, 1948ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. 1948. Declaração Universal dos Direitos Humanos.Paris: Organizaçãodas Nações Unidas. Versão online disponível em Versão online disponível em https://www. unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos acesso em 12 dez. 2022.
https://www. unicef.org/brazil/declaraca...
)

É significativo, assim, que o ato inicial da cerimônia seja a leitura de uma declaração composta por um preâmbulo e uma enunciação de fé propriamente dita. O documento assume, afinal, uma forma concebida para ser lida em público e consagrada como dispositivo retórico pelas revoluções modernas para anunciar princípios de organização do poder político e de direitos. Unindo teológico e político ao evocar experiências pessoais de sofrimento (relação com Deus “em meio à solidão, ao desespero e à degradação”), a ICM anuncia em sua Declaração os seus princípios de ação no mundo, que podem ser resumidos à resistência a sistemas e estruturas sociais, remetendo a sua forma à mediação dos direitos. Em linha com seu entendimento de religião e comunidade, fica claro que a igreja enfoca a ação social a partir de um enquadramento moral: para a conservação do que é tido como bom (a natureza, por exemplo) e a transformação do que é mau, como as estruturas sociais de opressão.

Em outro âmbito, a Declaração de Fé das ICM’s (2016ICM - Igreja da Comunidade Metropolitana. 2016. Declaração de Fé das ICMs. [s/l]: Fraternidade Universla das Igrejas da Comunidade Metropolitana. Disponível em Disponível em https://mccchurch.org/files/2017/01/ DE CLARA%C3%87%C3%83O-DE-F%C3%89-DAS-ICM%C2%B4S.pdf acesso em 10 dez. 2022.
https://mccchurch.org/files/2017/01/ DE ...
) afirma a prevalência de sujeitos religiosos encarnados, pois o aprendizado da vivência da espiritualidade se dá simultaneamente à “afirmação de nossos corpos, nossos gêneros e nossas sexualidades”, ou ainda, considerando as necessidades materiais, sociais e espirituais de um nós constituído no ato de coalizão e experimentado em forma ritual. Essas necessidades espirituais seriam universais (observáveis em cada tribo, cada língua, cada povo, cada nação) e poderiam ser contempladas de múltiplas formas, um princípio sustentado por um universalismo religioso (o Deus conhecido por diversos nomes) em que as diferenças se acomodam. Daí o lugar possível para o novo sujeito LGBT+, que confere prestígio à convivência harmônica com outras pertenças religiosas e se materializa ao longo do culto em formas rituais, como no momento da comunhão, em que todos, independentemente de credo, pertencimento institucional ou qualquer outra ordem de pertencimento identitário, são convidados a comungar, isto é, ingerir a hóstia que foi imersa em uma taça de vinho. A cena da comunhão, que descreveremos adiante, iconiza a radical inclusão a que a ICM se propõe.

Após a ativista Renata Peron cantar o salmo 50, que conclama à intercessão divina para a criação de um coração puro e livre da culpa, a feminista Tábata Tesser, das Católicas pelo Direito de Decidir, foi chamada ao microfone. Sua missão era evidenciar ao público que as pessoas trans ocupam posições históricas na produção do sujeito religioso da ICM, instituição formada, aqui como em outras partes do mundo, majoritariamente por pessoas homossexuais cisgêneras. Como fica claro na fala de Tábata, a modelagem desse sujeito está estreitamente associada à militância. Evidenciando como isso se dá, Tábata leu um texto que conta a trajetória de vida da ativista trans e negra Sylvia Rivera, imortalizada por seu papel na linha de frente nos motins de Stonewall e diaconisa da ICM de Nova York. Tornou-se uma espécie de lenda do mundo LGBT+ a versão de que foi a sapatada lançada por Sylvia contra os policiais que comumente humilhavam os frequentadores de Stonewall que deflagrou a rebelião da noite de 28 de junho de 1969, hoje celebrada como marco do nascimento do movimento da diversidade sexual e de gênero. Tábata lembra que Sylvia trabalhou em nome dos membros marginalizados do movimento gay, especialmente aqueles que enfrentavam a pobreza, o racismo e a transfobia, e, poucas horas antes de morrer, tinha pedido à pastora da ICM Nova York que criasse um lugar para que jovens da comunidade pudessem passar a noite. Desse pedido surgiu o Sylvia’s Place, um projeto social da ICM Nova York.

A história desfiada por Tábata inscreve a trajetória de Alexya, que será contada ao longo do evento, em um quadro narrativo de sujeitos singulares e à margem das convenções que torna fluidas as fronteiras estabelecidas entre o político e o religioso. Mas, ao mesmo tempo que tais falas particularizam Alexya, elas também a transformam em símbolo vivo de uma bandeira de luta da ICM no Brasil, empunhada no retiro nacional da igreja em 2017, no Rio de Janeiro, evento que reúne periodicamente líderes e membros de todas as ICM brasileiras. No retiro de 2017, quando já era mãe de um menino e estava em meio ao processo de adoção da sua primeira filha, Alexya teve lugar de destaque no encontro, celebrando o culto de abertura dos trabalhos religiosos e proferindo palestra intitulada “Cristrans”, na qual vaticinou: “o gênero vai ser a última revolução humana a ser feita”.

Foi nessa condição de proeminência crescente nas ICM que Alexya aterrissou em Cuba em 2017, a convite da então recém-inaugurada ICM local. Reconhecida como uma liderança religiosa e porta-voz da causa trans, ela se projetava cada vez mais como uma representante da igreja. Suas aparições em várias mídias se tornam recorrentes, colocando em cena pública uma aliança ímpar entre religioso e transgeneridade, seja para a defesa da sua identidade de gênero e de suas filhas, seja para a afirmação dos direitos de família, de uma família cuja forma ela reconfigura.

Durante a ordenação clerical essa aliança entre o religioso e a transgeneridade ganhou a sua expressão metafórica mais ousada, conferindo uma dimensão teológica inédita à experiência trans. Ela se constitui, ainda no Rito da Palavra, pela apresentação sucessiva de diversas formas do feminino. Primeiro Maitê Schneider, da plataforma Transemprego, recitou com fundo musical o Magnificat (Lucas 1:46-55),9 9 A minh'alma engrandece o Senhor e o meu espírito se alegrou em Deus meu Salvador/ Pois Ele me contemplou na humildade da sua serva/ Pois desde agora e para sempre me considerarão bem-aventurada/ Pois o Poderoso me fez grandes coisas/ Santo é Seu nome!/ A Sua misericórdia se estende a toda a geração daqueles que o temem/ Com o Seu braço agiu mui valorosamente/ Dispersou os que no coração tem pensamentos soberbos/ Derrubou dos seus tronos os poderosos/ Exaltou os humildes, encheu de bens os famintos/ despediu vazios os ricos/ Amparou a Israel Seu servo para lembrar-se da Sua misericórdia/ A favor de Abraão e sua descendência/ Como havia falado a nossos pais./ Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo,/ Como era no princípio, agora e sempre. Amém. também conhecido como “Canção de Maria” ou “Canto de Maria”, um cântico comum na liturgia católica que teria sido entoado pela mãe de Jesus durante a sua visita à prima Isabel, grávida de João Batista. Na sequência, a bispa Nancy Maxwell, do Conselho de Bispos e Bispas das Igrejas da Comunidade Metropolitana, assumiu o microfone do centro do palco, exibindo sua posição hierárquica codificada nos trajes litúrgicos. Suas palavras eram traduzidas pela namorada brasileira, que poucos dias depois se tornaria reverenda da ICM em Belo Horizonte.

A bispa contava que foi dada a Alexya a chance de escolher o trecho que desejasse para coroar o rito da palavra. Alexya, católica de formação, escolheu o Magnificat. Para a bispa, era uma escolha acertada e, fazendo a exegese do texto, ela explica: após o anúncio da gravidez feita pelo anjo Gabriel, Maria, uma pobre menina virgem, encontrou apoio em outra mulher, Isabel, velha demais para ter filhos. Segundo a bispa, essa passagem do evangelho trata do encontro entre as improváveis aos olhos das regras dos homens. Recuperando as palavras de Alexya para justificar sua escolha de Magnificat, a bispa afirma que a maternidade e o contexto de vida de Alexya, como no caso de Maria, também eram improváveis. Constrói assim uma equivalência entre as posições de maternidade das mulheres bíblicas e de Alexya. Em contrapartida, marcando uma diferença de leitura em relação àquela que Alexya tinha feito, concluía que Deus usa as pessoas por causa, e não a despeito, de seu gênero, de sua idade e de seu contexto social. Dirigindo-se a Alexya, a bispa então disse que, com sua ordenação, Deus a chama por tudo o que ela é: seu gênero, seu contexto social, sua coragem, seu coração verdadeiro, seu amor infalível pelo Santo, sua autenticidade, sua visão, sua maternidade, seu conhecimento inabalável da sua identidade e sua reivindicação de ser reconhecida como amada de Deus.

Unção

À medida que a história de Alexya era entretecida a outras, construíam-se a sua biografia pública e a positividade da diversidade, central ao seu processo de subjetivação. A ICM visava nesse processo narrativo ser reconhecida como instância privilegiada para a fabricação de uma subjetividade cristã diversa e militante. Esse aspecto da igreja fica claro quando, na sequência da cerimônia, o reverendo Cristiano Valério, pastor fundador da ICM São Paulo e líder da Rede ICM Brasil, deu início ao rito de unção narrando a biografia de Alexya.

Em passo de relato, supondo que é possível ler desígnios divinos em trajetórias humanas, Cristiano Valério, que acompanhou como pastor e amigo todo processo de transição de gênero de Alexya, conta que ela nasceu em lar católico e aos 18 anos fundou a Comunidade Rainha da Paz em Mairiporã, cidade da região Metropolitana de São Paulo, para acolher socialmente pessoas em situação de rua. O pastor também informou a audiência que ela ingressou no seminário Diocesano de Bragança Paulista, interior de São Paulo, onde iniciou seus estudos teológicos como seminarista, sugerindo a coerência de um percurso que só poderia ser compreendida após a expansão dos nossos limites de compreensão do que seria o religioso. Entretanto, destaca Cristiano, a tensão entre fé, sexualidade e identidade de gênero levaram Alexya a abdicar de sua vocação. Trocando o sacerdócio pelo magistério, ela ingressou nos cursos de Letras e Pedagogia.

A narrativa do pastor prosseguiu cedendo espaço à temática do amor conjugal, que funcionava ali como um ponto de inflexão de uma trajetória reconstituída em nome da inteligibilidade de um sujeito. A história de amor de Alexya contada no púlpito da igreja torna-se um gesto emblemático. Nele, o pastor relatou que em 2009 Alexya conheceu seu esposo, Roberto Salvador, em um encontro fortuito no metrô de São Paulo. E foi nesse período, em fevereiro de 2010, antes mesmo de transicionar, que Alexya chegou com Roberto à ICM de São Paulo, em busca de uma igreja na qual sua história de amor fizesse sentido.

Em 2011, um mês após a decisão do Supremo Tribunal Federal reconhecendo as uniões homoafetivas como família, lembra o líder da ICM, Alexya e Roberto estiveram entre os casais que oficializaram seu relacionamento na cerimônia de casamento coletivo realizada pela ICM no salão nobre da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Neste trecho da narrativa, a memória do pastor prestava tributo a outra cena emblemática anteriormente produzida pela ICM e na qual Alexya já despontava como personagem capital: tendo uma das principais faculdades de Direito do país como cenário, a ICM, que se vê como celeiro para produção de novos ativistas pelos direitos de pessoas LGBT+, promoveu em um único evento o casamento cívico e religioso, sugestivamente acionando uma ideia de cidadania religiosa.

Cristiano conta que tempos depois do casamento Alexya foi instalada diaconisa da comunidade local e, em outubro daquele ano, deu início à sua transição de gênero. Segundo o reverendo, naquele intervalo, a vida de Alexya foi completamente transformada. Sendo quem ela de fato era, afirma Cristiano Valério, Alexya foi experimentando sua nova vida em Deus. Tornou-se a primeira mulher trans a adotar no Brasil e foi instalada pastora auxiliar leiga na ICM de São Paulo, onde exerceu seu ministério pastoral por dois anos.

O reverendo recontava, assim, o percurso de Alexya com ênfase nos percalços que o fato de ela ser primeiro gay, depois mulher trans, cristã e a descoberta da sua negritude representaram até seu encontro com a ICM. Ainda ressaltou à audiência que o ministério de Alexya e, subliminarmente, a sua figura pública estavam além das fronteiras nacionais e da religião. Ele lembra que Alexya deu palestras e “ministrou a palavra” em outros países, era vice-presidente da Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas (ABRAFH) e “é militante dos direitos humanos, transfeminista, da causa da adoção, das pessoas com deficiência, do magistério público e das lutas sociais”.

A partir desse relato, apreende-se que o sofrimento de Alexya por ela estar nas margens do catolicismo, do gênero e das convenções sociais familiares é um código que dá inteligibilidade à sua condição de sujeito dos direitos humanos. Nessa nova comunidade, que é a ICM, suas práticas cristãs estão inseridas em uma ação mais ampla por justiça social e a transformação das condições em que marginalizados e destituídos habitam o mundo. Segundo o próprio reverendo, ele também fala desde as margens do Cristianismo, mas há, nessas margens que a sua igreja representa, um lugar para ele, homem cis gay e negro, para Alexya, mulher trans, e para usos dos direitos humanos na criação do reino de Deus no mundo, aqui e agora.

Para dar seguimento à cerimônia, Cristiano Valério chamou então Ines-Paul, homem trans da ICM que veio da Alemanha especialmente para presidir a unção de Alexya. O momento mais solene e fotografado da cerimônia tem assim por protagonistas uma mulher trans e um homem trans. Vestindo uma túnica branca com faixas em rosa e azul sobrepostas, scarpins carmim, Alexya caminhou para o centro, posicionou-se diante do altar, no corredor entre os bancos da primeira fila, de onde aguardou Ines-Paul. Sentado ao lado da bispa Nancy Maxwell atrás do altar, Ines-Paul se levantou, e, enquanto chegava ao centro da cena, Alexya se prostrou diante da cruz. Portando traje litúrgico sobre roupas pretas e coturnos na mesma cor, Ines-Paul a asperge, e ela, depois de cerca de um minuto de prostração, ajoelha-se diante dele. Os dois seguravam aberta uma pasta preta, em que Ines-Paul começou a ler, em inglês, as tarefas de Alexya como ministra. Ela reagia em português, diante de lideranças religiosas e ativistas, audiência e câmeras atentas. Ines-Paul compartilhava que suas tarefas são “proclamar o Evangelho”, “anunciar a boa nova de Jesus, que vai na contramão da injustiça, da segregação e da morte” e “declarar o amor incondicional de Deus”. Depois de a mesma leitura ser traduzida para o português, Ines-Paul retomou a palavra para proceder a uma série de perguntas e respostas. Perguntas que interpelam demandando confirmação, submissão e promessas; respostas pelas quais Alexya confirmava seu chamado, submetendo-se publicamente à responsabilidade, à ICM, e transformando em seus os compromissos da igreja.

A forma das respostas de Alexya - “sim, eu farei isso” - deixa ver o aspecto formal do próprio jogo em que as trocas se dão: um juramento. Trata-se de mais uma forma retórica capaz de produzir conexões mnemônicas entre o rito posto em cena pela ICM e a série de declarações solenes já inscritas nas imaginações (juramento nos tribunais, juramento profissionais, juramento à bandeira etc.), que encontrariam nesta forma o modelo que explicita a uma suposta convergência entre o sagrado e o jurídico.

O juramento de Alexya compreende, em síntese, proclamar o evangelho de Jesus Cristo em palavras e ações, opor-se à injustiça, à segregação, amar e servir a todas as pessoas, sem distinção, “continuar lutando contra todo ‘fundamentalismo religioso’, que segrega, exclui e mata”. Ines-Paul então afirma que a ICM não tolera injustiça social, nem sucumbe a forças demoníacas que pretendem “destruir a Sua criação”, e pergunta se Alexya “se compromete ainda mais com a luta pelos direitos humanoseaconstruçãoefetivadoreinode Deusaquieagora”. Ojuramentoseconclui assim com os direitos humanos no centro da unção. De um lado, eles aparecem como uma forma de ação desses atores religiosos no mundo, um meio para a “construção do reino de Deus” no tempo humano, o que - apreende-se - exigiria a busca por justiça social, nela incluída a transformação do mundo em um lugar mais acolhedor das formas de expressão de gênero, sexualidade e religiosidade da criação. De outro, o juramento fala em “luta pelos direitos humanos”, tensionando, sem negá-la, a ideia de que esses são direitos inatos, como reiteram documentos e construções retóricas em torno deles. Essa reunião de feminilidades e masculinidades - e situadas fora de uma natureza em momento mais solene da cerimônia para reafirmar seu compromisso com a “luta pelos direitos humanos” - é uma lembrança de que o status formal de direitos e sujeitos é efeito da narração do sofrimento que o mundo impõe a quem pertence a grupos postos em risco pelas convenções, da ação social para transformá-las e da afirmação da sua dignidade através de seus corpos, atos e falas em sensibilidades que se tornam compartilhadas e possibilitam imaginar a sua inscrição nas formas jurídicas.

É importante assinalar que a ICM se define pela dimensão comunitária e entende por comunidade não apenas a reunião dos que a frequentam, mas o conjunto daqueles que seu compromisso com a justiça e sua imaginação pode alcançar. Essa dimensão aparece quando Ines-Paul ressaltou que o ecumenismo e a inter-religiosidade são marcas da ICM e convidou todas as lideranças religiosas e toda a assembleia reunida na ocasião a impor as mãos sobre Alexya. Todos se reuniram em torno dela para orar em conjunto:

Deus criador de toda a vida e de toda a diversidade humana, pedimos que através de seu filho Jesus Cristo envie agora o seu Espírito Santo, a santa Ruah, sobre a nossa irmã Alexya Salvador enchendo-a com sua graça e poder para que ela possa bem exercer a função de clériga ordenada na Igreja. Que nossa irmã, Alexya Salvador, também o exalte, Senhor, no meio de seu povo marginalizado e excluído, sem medo de proclamar o Evangelho da libertação a todas as pessoas, administrando com sua vida os sacramentos. Faça da Alexya uma pastora fiel, uma professora paciente e uma conselheira sábia. Tudo isso nós o pedimos através de seu filho Jesus Cristo em seus múltiplos nomes. Amém.

(Transcrição da cerimônia, 26 jan. 2020).

Ao longo da oração, a cena, carregada de emoção, é reiteradamente iluminada por flashes de celulares e máquinas fotográficas dos convidados, que se levantam dos bancos da audiência para registrar o momento. Percebe-se também a movimentação tensa do cinegrafista do documentário Deus é Mulher, que procuravam os melhores ângulos para filmar a reunião de líderes. O cinegrafista e a equipe da produtora, pelos equipamentos que portam e héxis corporal manifesta na movimentação pela igreja, explicitam que, para alguns, a oração se desdobra para além do ato presentificado: ela é uma cena e eles a fabricam como tal. Enquanto isso, Inês-Paul, por meio da sua predicação, orientava o Cristianismo a um mundo a ser transformado por princípios de justiça social. Esses princípios incluem a materialidade e a diversidade da vida. Mas sua fala também pode ser entendida como sendo ela mesma uma descontinuidade em relação a certas leituras do Cristianismo, por deslocar a ideia de igualdade em Deus e situar no seu centro a diversidade, que encontra no igual amor de Deus uma condição de possibilidade.

Alexya enfim foi ordenada com as vestimentas sagradas, douradas, que foram trazidas e colocadas nela por sua madrinha de ordenação e “comadre”, Ana Ester, a teóloga e futura reverenda da ICM Belo Horizonte, que meses mais tarde se mudaria para os Estados Unidos, onde se casaria com a bispa da ICM estadunidense presente no púlpito. Inês-Paul a apresentou como a nova clériga da ICM, a reverenda Alexya Salvador. Todos se levantam e aplaudiram efusivamente. Alexya se levantou, saudou a assembleia e voltou-se novamente ao altar, agora se colocando do seu outro lado, junto às lideranças. Iniciou-se, então, o rito do ofertório em que o reverendo Márcio Retamero, liderança da ICM do Rio de Janeiro que havia se mudado para São Paulo, reiterava que os membros da ICM são encorajados a não negar seus corpos, mas a assumi-los como coisa santa e do Senhor. Entram pelas portas da Igreja, trazendo as ofertas e os dons do pão e do vinho, a atriz Renata Carvalho e os três filhos de Alexya, entre eles duas meninas trans.

Rito eucarístico

Agora reverenda, Alexya os recebe e consagra o pão e o vinho, símbolos na tradição cristã do corpo e sangue de Cristo, dando início à eucaristia, rito sacramental que remeteria ao sacrifício do filho de Deus à cruz, presentificado e reatualizado em cada ofício cultual cristão. Com incensório prateado em mãos, ela rodeia solenemente o altar, purificando-o; depois, torna-se à audiência e fala pela primeira vez:

Há 10 anos atrás eu chegava na ICM e quando eu subi aquelas escadas eu não sabia quem eu era. Quando eu cheguei naquelas escadas eu tinha plena certeza de que Deus não me amava. Eu tinha certeza de que eu era um erro de Deus. E quando eu cheguei na ICM, eu que vim de uma tradição católica, eu aprendi que eu não podia me aproximar do altar porque eu estava em pecado. E só algumas pessoas eram convidadas para a ceia. E essas algumas pessoas tinham que ter um crachá pra isso. E eu entrei e eu lembro que o reverendo Cristiano naquela noite disse que essa mesa não é da Igreja, que a mesa na ICM é de Jesus Cristo. Porque Jesus não colocou Judas pra fora mesmo sabendo que ele o trairia. Jesus não colocou Pedro pra fora mesmo sabendo que ele o negaria por três vezes. Jesus partiu o pão naquela noite derradeira para aqueles homens e para aquelas mulheres que ali estavam, não preocupado com quem eles dormiam. Jesus não tava preocupado se eles eram da direita ou da esquerda, Jesus não tava preocupado se eles eram cisgêneros ou transgêneros. Jesus simplesmente partiu o pão. E quando eu ouvi essa mensagem foi transformador, porque a vida toda eu ouvi o contrário. Que eu tinha que fazer parte do clube, que eu tinha que estar em dia com as minhas coisas. Que eu tinha que tá em dia com a sã doutrina. E naquela noite Jesus me abraçou de maneira exagerada. A mim e ao meu marido. E quando eu cheguei na ICM eu não imaginava tudo o que Deus já tinha pensado pra mim. Eu não imaginava tudo o que Deus já tinha rascunhado sobre a minha vida e porque que eu escolhi também o evangelho de hoje. O Magnificat. Porque assim como Deus fez na vida de Maria maravilhas, hoje eu posso dizer pra você que o Senhor fez em mim maravilhas e Santo é o seu nome. E as maravilhas de Deus nesse corpo travesti, nesse corpo transgressor. Porque para Deus não tem órgão genital, pra Deus não tem o corpo ideal. Pra Deus tem, sim, o coração aberto. Um coração disposto, uma mente acolhedora. (Transcrição da fala de Alexya, 26 jan. 2020).

Sua primeira fala como reverenda conta a história de seu encontro com a ICM e consigo mesma, uma mulher trans cristã, através da ICM. Para recontar a história desses sucessivos encontros, Alexya recuperava seu passado católico, seu sentimento de inadequação e não-pertencimento, e então salientava seu encontro com a sua nova igreja, que ela qualifica de “transformador”: por sua fala, transformador, antes de tudo, da sua imaginação. Alexya lembra que, ao subir as escadas, não sabia quem era. A imagem do caminho não é aleatória. Ela nos leva a conjugar outras duas, a porta estreita da ICM, que dá acesso às escadas e, no topo dela, ao salão, e a porta estreita do Evangelho segundo Mateus, que é o caminho que leva à vida. O acesso à ICM, no entanto, teria colocado Alexya em contato com leituras que reinterpretam a Bíblia de forma a remodelar os sentidos que lhe empresta a tradição, em especial no que se refere à exclusividade da verdade da fé e a construções morais relacionadas com os usos do corpo para fins eróticos e afetivos. Em contrapartida, o caráter transformador de seu encontro com a ICM repousa no fato de que a agência religiosa está inscrita na história do Cristianismo, nas margens, mas não à margem dele.

Ao som do louvor gospel “Porque Ele vive” e elevando o tom da voz, Alexya consagrou o pão e o vinho, iniciando a ceia eucarística. Enquanto partia o pão, agradecia a Deus e pedia pela vida de todas as travestis, de todas as mulheres trans, de todos os homens trans, de todas as pessoas não binárias, as “pessoas desajustadas”, aquelas que, como ela, “estão fora da caixinha”. Registra na memória de sua ordenação duas ativistas trans pelos direitos humanos, Marsha Johnson e Sylvia Rivera, “exemplos de fé”. Rendeu graças por todas as vidas de ativistas que “tombaram ao chão” e relembrou que o Brasil é o país que mais mata travestis no mundo. Pedia ao Senhor que a unisse em comunhão com todas as irmãs travestis, aos irmãos homens trans, as irmãs transgêneras, a todas as pessoas desajustadas, a todos os LGBT, gays, lésbicas, pansexuais, assexuais, bissexuais, a todas as pessoas humanas que no passado abriram caminho para que aquela cerimônia pudesse se realizar.

Se hoje nós podemos andar nas ruas, mesmo com toda a violência. Se temos alguns poucos direitos conquistados é porque muitas pessoas deram a vida para que nós pudéssemos hoje andar a luz da rua. O nosso lugar não é somente nas esquinas, meus amores, o nosso lugar é onde nós quisermos estar. O nosso lugar é onde Deus nos chamar. E é a esse Deus que é travesti, sim. Esse Deus que é gay, sim. A esse Deus que é lésbica, sim. A esse Deus que é homem, sim. A esse Deus que é mulher, sim. A esse Deus que é pessoa. Ele amou tanto a obra que ele criou que ele resolveu se travestir de homem e nasceu em Maria. Então, ó, meu amor, quando você ouvir por aí que Jesus é travesti, antes do seu ouvido se chocar, repense um pouco. Você não é exclusividade de Deus, nós somos todos exclusivos de Deus. Homens, mulheres, brancos e pretos. Nós somos povo eleito do Senhor.

(Transcrição da fala de Alexya, 26 jan. 2020).

No ato final da consagração, entoou o louvor gospel ao microfone, mãos ao alto e olhos cerrados. Partido o “pão de justiça”, “pão de igualdade”, finalmente convidou à comunhão, que ela oferecia ao lado de Cristiano Valério e que também é oferecida às duas autoridades eclesiásticas internacionais da ICM, Nancy Maxwell e Ines-Paul, à sua esquerda. Os presentes aos poucos se perfilaram, sem se aglomerar, e a comunhão transcorreu lentamente, ao ritmo de Magnificat.

Osdireitoshumanos, mencionadosnafalade Alexyaealudidosporsuamenção à dignidade humana, aparecem nas construções retóricas como “conquistados” por lutas e “corpos que tombaram ao chão”, e são inscritos em cena como uma forma que a comunhão em torno da crença na radical inclusão assume. Imagina-se que todos aqueles que buscam construir o reino de Deus comungam da “crença nos direitos humanos”, e, como se nota no registro da cena, muitos vivem esses direitos na produção, ao mesmo tempo, de seus corpos como meios de comunicação e de uma comunidade religiosa situacional ou com pretensão à permanência. Também podemos perceber que algumas alianças ganham formas corpóreas e sociais na ceia da ICM: (i) aquelas que seus frequentadores LGBT constroem dentro de si, as quais se evidenciam quando eles se apresentam à igreja como gays, lésbicas, bissexuais, travestis ou pessoas trans cristãs, (ii) as que as próprias ICMs articulam entre si, para formar a rede global de comunidades inclusivas, que é a denominação, e (iii) aquelas entre lideranças religiosas umas com as outras e com lideranças do ativismo.

Outro recurso imagético para o qual Alexya nos desvia os olhos pela modulação da voz é a transformação do altar em uma mesa, instrumento e espaço da comunhão. É a partir da mesa que é possível a experiência da reunião, a possibilidade de todos se juntarem em torno dela como “a grande verdade da fé”. Nas práticas religiosas da ICM, a eucaristia é uma forma que sua ‘radical inclusão’ assume e que aparece como um drama, organizado em torno de um convite que incita ao exercício do livre arbítrio. Assim convidou Alexya no seu primeiro rito eucarístico:

Se você está participando de um culto da ICM pela primeira vez hoje, eu quero te falar, porque de graça eu recebi, de graça eu quero transmitir. A grande verdade da fé: que essa mesa não é minha. Estes elementos não são meus. E não precisa ser cristão ou cristã. Olha quanta gente linda de outras fés aqui. Eu fiz questão disso, porque a ICM me ensinou isso. A verdade. O que é verdade? A ICM não é uma nova igreja. A ICM é um capítulo na história do cristianismo. Capítulo esse que ninguém mais pode frear. Capítulo esse que ninguém mais pode apagar. Você que nos visita hoje, se o seu coração assim desejar, participe da nossa ceia. Comungue. Mas se você entender que não, não quero. Tá tudo bem também. Porque o princípio de Deus é a liberdade, é o respeito, é a dignidade humana.

A trama se desenvolve em dois atos. Primeiro, o gesto da pessoa de levantar-se e dirigir-se para o centro da igreja, ou seja, assumir-se e colocar-se à vista em toda a sua diferença. Depois, a comunhão, o ato de estar junto, de vivenciar uma comunidade modelada por uma formação estética que pode ser circunstancialmente experimentada. E ali, no rito eucarístico da paróquia da Santíssima Trindade, comungar também era experimentar uma nova posição na audiência. Era a possibilidade de trocar a escuta passiva e ir à mesa manifestar publicamente a sua adesão a um convite polifônico e compactuar com uma causa transcrita em duas gramáticas, a religiosa e a política. A reunião à mesa é uma imagem desse ato dramático, representando, ao mesmo tempo, a recusa de qualquer forma de exclusão, inclusive por profissão de outra fé ou de fé alguma, e a centralidade do encontro. Interpretado assim, o lugar que a mesa ocupa na fala de Alexya, em que está relacionada com “a grande verdade da fé”, remete àquele que Arendt, teóloga de formação, lhe confere ao refletir sobre o espaço público como espaço intersubjetivo, em que os atores aparecem uns aos outros. Para Arendt (1998), a mesa ao mesmo tempo relaciona e distancia, possibilitando trocas de ideias através das palavras entre iguais, pessoas em igual posição, que é a característica do espaço público. É a reunião em torno da mesa e é o fato de que há uma mesa que possibilitam aos atores comunicar ideias e a si mesmos, ou, em uma palavra, revelarem-se. Sem nos afastarmos da leitura arendtiana, mas dando um passo adiante, podemos pensar que na fala da reverenda à mesa institui um regime de igualdade e de visibilidade, facilitando tanto a construção de alianças pela prática da troca orientada pelo princípio da abertura irrestrita quanto a partilha do pão, feita às vistas de todos.

O rito eucarístico conduzido por Alexya nos permite tecer outras considerações sobre as imagens icônicas do religioso quando percebemos que o quadro vivo resultante do culto conduzido pela pastora, que agora também circula em forma de fotografias e vídeos, entra em disputa com cenas icônicas que masculinizaram o rito da consubstancialização do corpo e sangue de Cristo. Alexya, na condição de uma mulher trans, não só desafia a convenção e assume o ofício de presentificar o primeiro ritual sacramental, no qual Jesus encenou pela primeira vez o ato sacrificial expresso pela oferta aos seus seguidores do seu corpo e sangue em forma de pão e vinho, como acusa o apagamento do feminino desta cena, que tem A Santa Ceia, pintura de Leonardo Da Vinci de Jesus entre os 12 apóstolos, como uma das representações mais famosas do primeiro ritual. Ao se permitir ser iconizada pelo rito de ordenação, Alexya feminiliza o ritual em cena e proclama em ato: “Deus é travesti, sim! Deus é gay, sim!... Deus são todas as pessoas”, conclui a mais nova reverenda do Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Imaginar consiste em tornar presente o ausente. Isso requer a produção de uma imagem que se concebe entre a sensibilidade e o entendimento, e que, portanto, tem o real por modelo, além de ser um esquema para ele. Como Hannah Arendt (1992ARENDT, Hannah. 1992. Lectures on Kant’s Political Philosophy. Chicago, The University of Chicago Press.) propõe, esse esquema fornece (i) uma síntese da infinita multiplicidade do mundo das aparências, possibilitando a apreensão do sensível, e (ii) uma imagem para os conceitos, tornando o mundo um objeto acessível ao pensamento. Como esses esquemas são compartilhados, a sensibilidade e o entendimento transformam o mundo em um objeto de comunicação e tornam seu conhecimento e entendimento possíveis. Graças a elas podemos, assim, construir um mundo comum, comunicarmo-nos a respeito dele e agir em conjunto para transformá-lo. Esse aspecto compartilhado dos esquemas nos faz pensar que nossas interações implicam a formação de sensibilidades e de um imaginário, entendido como conjunto de formas forjadas pela imaginação que torna o sensível inteligível.

Documentos de direitos humanos, cujas fórmulas retóricas se tornaram largamente compartilhadas, seriam uma peça do imaginário moderno que cumpre o papel de dar às pessoas a imagem de um mundo mais justo e de oferecer-lhes formas para alcançá-los. Como vimos na cena etnográfica descrita, tais direitos não são apenas discursos, entendidos como fórmulas retóricas do campo jurídico que se deslocam para outras arenas. A partir da imaginação de um coletivo em ação, eles são iconizados em atos cênicos que incitam a audiência a experimentá-los a partir de um rito que, no instante em que cristaliza uma ideia abstrata de direitos, fornece meios estéticos para as audiências o interiorizarem a partir da narrativa de uma trajetória de vida singular, a da pastora trans. Visto desta perspectiva, o problema da estratégia de visibilidade pública, ancorada na produção e circulação do rito por mídias, desloca-se da simples disputa da nomeação da figura pastora trans para a sua inscrição em um imaginário social mais abrangente.

Para apreender a dinâmica dessa operação na cena etnográfica tivemos de explicitar que a linguagem dos direitos humanos pertencente a um imaginário que precede e transborda a ICM no tempo e nos seus modos de uso. Trata-se de uma linguagem que dá substância a um imaginário por meio de códigos, como amor, família, dignidade, sofrimento e superação, e formas e fórmulas retóricas ritualizadas, como juramentos, declarações, proclamações e chamados.

É a transversalidade dos direitos humanos entendidos nesse sentido específico que possibilita que a imaginação dos frequentadores e, sobretudo, das lideranças da ICM, plasmada no rito de ordenação clerical de Alexya, resulte na aliança com lideranças de comunidades religiosas e movimentos sociais distintos, ocasionalmente distantes, em uma reunião situacional em torno de imaginários a serem experimentados em conjunto a partir de uma linguagem compartilhada. Na forma de uma coalização, a concretização dessa confluência é situacional encontra em um repertório forjado nas tradições do direito e do Cristianismo recursos que a tornam possível.

Parafraseando Ernst Gombrich (1995), não há nada a que se possa dar o nome de religião. O que há são religiosos. Partindo dessa perspectiva, procuramos evidenciar um tipo de ator religioso específico: aquele que usa os direitos humanos para tornar, ao mesmo tempo, imanente na vida pública o que toma como divino e transcendentes as causas políticas em cujos engajamentos ele se constitui como figura pública.

Essa operação, ancorada no uso de uma linguagem que também se tornou língua global de justiça, põe em relação e articula imaginações que as audiências para as quais a igreja se dirige concebem como autônomas: a imaginação política e a teológica. É justamente essa capacidade de articulação que estaria na base da força comunicativa da igreja. Vide as cenas do culto. Elas nos possibilitam deduzir que o poder que uma agência religiosa tem de relacionar e conjugar imaginações é proporcional à sua capacidade de produzir coalizões, expressas em cenas públicas iconizadas, cuja circulação interessa a todos que compõem o quadro vivo que corporifica um sistema de alianças.

Foi dessa forma que o altar da Paróquia da Santíssima Trindade se transmutou ora em palco para afirmação das identidades e das causas dos movimentos sociais, ora em tribuna para proclamações e juramentos que subjetivam aqueles que os realizam em atos de fala pública. O altar, que de forma recorrente emoldura o religioso sob o peso da convenção, também emoldurou o quadro vivo do novo ecumenismo LGBT+, expresso por mulheres trans, drags, lésbicas, homens gays, pessoas não binárias e lideranças de coletivos religiosos e movimentos sociais. É nessa condição que o altar se transmuta em cenário para um ritual que se destaca do tempo para circular em outras temporalidades ao se tornar conteúdo de uma peça audiovisual de acesso irrestrito, encarregada de conectar a igreja e seus personagens a novas redes e a novas imaginações.

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  • 1
    Este texto está vinculado ao Projeto Temático Religião, Direito e Secularismo: a reconfiguração do repertório cívico no Brasil contemporâneo, Processo nº 2015/02497-5, apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Aproveitamos para agradecer as contribuições dos membros desse grupo de pesquisa. Sua leitura crítica, bem como dos pareceristas desta revista, ajudaram a aprimorá-lo.
  • 2
    Ao longo deste texto Alexya Salvador será designada de pastora ou reverenda. O primeiro termo classificatório se refere à sua posição eclesiástica; o segundo, a um grau de distinção conferido pelos agentes do campo etnográfico.
  • 3
    No campo das igrejas inclusivas, classificação êmica que abarca o conjunto de instituições religiosas formadas por agentes associados em torno de questões de identidade de gênero e práticas sexuais em tensão com a heteronorma, a ICM se destaca por colocar em prática aquilo que ela enuncia ser “a radical inclusão”, acolhendo pessoas que estariam segregadas por conta de preconceitos sociais. Fundada em Los Angeles, Estados Unidos, em 1968, a ICM está instalada em mais de 30 países e foi implantada no Brasil nos anos 2000, estando hoje em plena atuação por meio de pequenos agrupamentos em Fortaleza (CE), Teresina (PI), Rio de Janeiro (RJ), Belo Horizonte (MG), São Paulo (SP), Cabedelo (PB), Salvador (BA), Vitória (ES) e Maringá (PR).
  • 4
    O evento foi divulgado de forma aberta, estando disponível a qualquer pessoa mesmo que não usuária da rede social. Disponível em https://www.facebook.com/events/praca-olavo-bilac-n-65-templo-da-igreja-anglicana/ordena%C3%A7%C3%A3o-clerical-de-alexya-salvador/2492652730989069/
  • 5
    Texto na íntegra disponível em <http://www.trindade.org/drupal/node/753>. (último acesso dia 20 de abril de 2020.)
  • 6
    Disponível em: https://mccchurch.org/files/2017/01/DECLARAÇÃO-DE-FÉ-DAS-ICM´S.pdf. Último acesso em 21 de abril de 2020.
  • 7
    Disponível em <https://www.archives.gov/founding-docs/declaration-transcript> (último acesso em 26 de abril de 2020).
  • 8
  • 9
    A minh'alma engrandece o Senhor e o meu espírito se alegrou em Deus meu Salvador/ Pois Ele me contemplou na humildade da sua serva/ Pois desde agora e para sempre me considerarão bem-aventurada/ Pois o Poderoso me fez grandes coisas/ Santo é Seu nome!/ A Sua misericórdia se estende a toda a geração daqueles que o temem/ Com o Seu braço agiu mui valorosamente/ Dispersou os que no coração tem pensamentos soberbos/ Derrubou dos seus tronos os poderosos/ Exaltou os humildes, encheu de bens os famintos/ despediu vazios os ricos/ Amparou a Israel Seu servo para lembrar-se da Sua misericórdia/ A favor de Abraão e sua descendência/ Como havia falado a nossos pais./ Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo,/ Como era no princípio, agora e sempre. Amém.
  • Financiamento:

    Este texto está vinculado ao Projeto Temático “Religião, Direito e Secularismo: a reconfiguração do repertório cívico no Brasil contemporâneo”, Processo n. 2015/02497-5, apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    23 Mar 2022
  • Aceito
    13 Out 2022
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