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Roberto Cardoso de Oliveira

Depoimento

Roberto Cardoso de Oliveira

Professor Emérito do Departamento de Antropologia – UNICAMP

Professor Visitante do Departamento de Antropologia – UnB

Membro do Conselho Editorial da Revista de Antropologia

Ao dar depoimento sobre a Revista de Antropologia, que neste ano completa seu cinqüentenário, é impossível deixar de falar sobre seu criador – o professor Egon Schaden – e sobre uma feliz coincidência: este aniversário ocorre junto com a comemoração das cinco décadas da I Reunião Brasileira de Antropologia, que a nossa comunidade profissional irá festejar nos próximos dias 13 e 14 de novembro no Museu Nacional, onde ela se realizou em 1953. Duas comemorações, dois feitos importantes, intrinsecamente ligados graças à oportunidade com que a revista, já em seu primeiro número, pôde registrar a primeira reunião. Em sua seção intitulada "Pequenas comunicações", lê-se: "Proposta pelo Museu Nacional, realizar-se-á no Rio de Janeiro de 8 a 14 de novembro de 1953, a I Reunião Brasileira de Antropologia, cuja organização está a cargo duma comissão especial nomeada pelo Ministério de Educação e Saúde" (p. 72). A proposta é sintetizada, informando sobre os objetivos da reunião e a ampla temática dos debates. Lê-se ao final da notícia a sigla "E. Sch". Eis como os dois eventos – a revista e a reunião (que só na segunda, em 1955, geraria a nossa ABA) – articulam-se no nascedouro de ambas.

Embora não tenha participado da primeira reunião, já que ocorreu no ano em que eu concluía minha licenciatura em filosofia na USP, dela Roberto Cardoso de Oliveira. Depoimento só pude tomar conhecimento quando de minha contratação pelo Serviço de Proteção aos Índios, em 1954, a convite de Darcy Ribeiro, à época diretor do recém-criado Museu do Índio. E foi precisamente nesse museu que pude ler as comunicações submetidas um ano antes ao debate, com vistas a uma espécie de levantamento do estado da arte da disciplina no Brasil.

Egon Schaden era para mim o antropólogo do Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, um professor cujos cursos eu jamais havia tido a oportunidade de assistir. Meu contato com a antropologia deu-se em meus anos de graduação com o professor Florestan Fernandes, por meio de um curso regular, oferecido aos estudantes de filosofia (se não me falha a memória, em nosso segundo ano), e por meio de dois cursos que tive a chance de ter (a meu pedido) e de seguir no terceiro e quarto anos de faculdade. Aliás, como seu único aluno, dado ao fato de ser uma disciplina especial, o que fazia com que eu me sentisse estar tendo um curso particular... Portanto, meu relacionamento intelectual com Florestan teria como seqüência a realização, sob sua orientação, de meu doutoramento em sociologia, ainda que sobre um tema etnológico e bem ao estilo da antropologia social que ambos cultivávamos. Schaden participaria de minha banca de exame, juntamente com os professores Herbert Baldus, Fernando Altenfelder da Silva e Gérard Lebrun. Schaden e o filósofo Lebrun entraram obrigatoriamente na banca porque foram os leitores de minhas duas teses complementares: uma em antropologia, que resultaria no livro O índio e o mundo dos brancos; e outra, em filosofia, intitulada A lógica das transformações totêmicas, que seria bastante reduzida a fim de ser publicada com o título interrogativo Totemismo Tükúna? no Festgabe für Herbert Baldus zum 65 Geburtstag, em Hannover. Não posso deixar de registrar o debate que se deu entre o doutorando de então e o professor Schaden, como um duro examinador. Afinal de contas eu não poderia esperar outra coisa, já que minha tese, com sua ênfase na estrutura social, chocava-se com a visão culturalista de meu examinador. Não obstante, nossas relações acadêmicas não foram afetadas por esse desencontro entre nossas diferentes concepções do que seria o trabalho antropológico. E tanto isso era verdade que algum tempo depois eu era sondado por Schaden para trabalhar com ele na então cátedra de antropologia, com a tarefa de assumir a função de professor do curso noturno. Só não aceitei por estar empenhado em organizar o PPGAS do Museu Nacional.

Tivemos várias oportunidades de nos encontrarmos em eventos diversos, não só quando eu ainda estava vinculado ao Museu Nacional, mas também quando me transferi para a Universidade de Brasília, em princípios dos anos 1970. Mas, antes disso, tivemos um encontro memorável – e é sobre ele que eu desejo concluir com um depoimento que considero o mais significativo sobre meu relacionamento com o fundador de nossa Revista de Antropologia. Isso ocorreu em 1967, quando participamos da "Reunião para a Integração do Ensino com as Pesquisas Antropológicas", realizada na Áustria, nas encostas dos Alpes, no Burg Wartenstein sob os auspícios da Wenner-Gren Foundation. Coube a cada um de nós apresentar um relatório sobre a questão central do evento relativamente ao Brasil. Schaden nessa época estava licenciado da USP e se encontrava participando do Seminar fur Vollkerkunde da Universitat Bonn, na Alemanha. Tivemos uma convivência muito agradável, para não dizer fraterna, não apenas durante a semana que passamos no castelo, mas também fora dele na oportunidade de passeios em Viena, onde tomamos boas cervejas e comemos – lembro-me muito bem – num magnífico restaurante localizado em um edifício do século XI, antiga sede de um convento medieval. Schaden ofereceu-se como cicerone para instrutivos passeios naquela lindíssima cidade.

Mas é sobre as amenas conversas que tivemos nos intervalos das sessões, que se estendiam ao anoitecer, que eu gostaria de me referir. Naquelas noites escutávamos – todos nós, fellows do Burg Wartenstein – as músicas clássicas, sobretudo as barrocas e as do folclore austríaco, a nós oferecidas num amplo terraço na cobertura do castelo. Nessas ocasiões, por diversas vezes, pudemos conversar sobre a Revista de Antropologia, criada 14 anos antes. A quem tenha lido nossos relatórios publicados no Anuário Indigenista (1967) do Instituto Indigenista Interamericano, poderia estar questionando o porquê da ausência da revista na fala de seu criador! Afinal de contas, estávamos lá para tratarmos da integração entre o ensino e a pesquisa e, certamente, uma troca de idéias sobre os meios de comunicação teria um lugar de realce. Todavia, estávamos limitados a um questionário que nos enviaram meses antes da reunião, onde não cabia falar de revistas como tema de política editorial. Tal política limitava-se a discutir publicação de livros, particularmente em termos de traduções a serem difundidas na América Latina. Mas se o tópico revista não pôde ser introduzido nos debates oficiais, ele esteve presente em nossas conversas laterais. Schaden estava convencido de que à Revista de Antropologia estava destinado um papel importante na divulgação da disciplina entre nós. Previsão com que eu, de meu lado, concordava inteiramente. Mas ao invocar as conversas que tivemos ao cair da tarde naquele belíssimo castelo e usufruindo a beleza dos Alpes austríacos, fico com a certeza de que a Revista de Antropologia já começava a cumprir o destino almejado por seu criador, como um periódico de alto nível a serviço de nossa disciplina e de sua comunidade de profissionais. Vejo a revista – que, atualmente, todos nós lemos – com toda a experiência que ela somou nesses 50 anos de existência, como a plena realização das melhores previsões que então fizemos.

Recebido em 21 de setembro de 2003.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2004
  • Data do Fascículo
    2003
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