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A construção do espaço étnico roraimense, ou: os Taurepáng existem mesmo?

Resumos

Tomando a publicação - em 1989 e 1990 - de dois folhetos "histórico-antropológicos" como um esforço por parte da Diocese de Roraima com a finalidade tipicamente "orientalista" de impor um "consenso" à sociedade roraimense quanto à "realidade étnica" do estado, nosso trabalho reconstrói a história de construção deste "consenso", desde o século XVII até os trabalhos etnográficos decisivos de Theodor Koch-Grünberg.

etnicidade; tribalismo; orientalismo; Roraima; Taurepáng


Taking the publication - in 1989 and 1990 - of of two "historic-anthropological" booklets as an typically "orientalist" trial of the Diocese of Roraima to impose a "consensus" on Roraima society with relation to the "ethnic reality" of that state of Brazil, we reconstruct the history of the formation of that "consensus", starting in the 18th century, up to the decisive ethnography of Theodor Koch-Grünberg.

ethnicity; tribalism; orientalism; Roraima; Taurepáng


A construção do espaço étnico roraimense, ou: os Taurepáng existem mesmo?

Erwin H. Frank

Professor Adjunto da Universidade Federal de Roraima

RESUMO

Tomando a publicação – em 1989 e 1990 – de dois folhetos "histórico-antropológicos" como um esforço por parte da Diocese de Roraima com a finalidade tipicamente "orientalista" de impor um "consenso" à sociedade roraimense quanto à "realidade étnica" do estado, nosso trabalho reconstrói a história de construção deste "consenso", desde o século XVII até os trabalhos etnográficos decisivos de Theodor Koch-Grünberg.

Palavras-chave: etnicidade, tribalismo, orientalismo, Roraima, Taurepáng.

ABSTRACT

Taking the publication – in 1989 and 1990 – of of two "historic-anthropological" booklets as an typically "orientalist" trial of the Diocese of Roraima to impose a "consensus" on Roraima society with relation to the "ethnic reality" of that state of Brazil, we reconstruct the history of the formation of that "consensus", starting in the 18th century, up to the decisive ethnography of Theodor Koch-Grünberg.

Key-words: ethnicity, tribalism, orientalism, Roraima, Taurepáng.

Introdução

Entre 1989 e 1990, o Centro de Informação da Diocese de Roraima lançou dois volumes de uma Coleção Histórico-Antropológica (CIDR, 1989 e 1990) com a finalidade declarada (aliás, por ninguém menos que Dom Aldo Mongiano, então bispo de Roraima, na sua "Apresentação" ao primeiro volume) de proporcionar ao leitor " uma visão do índio, que permita equacionar corretamente o problema" (1989: 3; grifo meu). Desafortunadamente, o bispo não especifica o problema em questão. Mas, não temos dúvidas, se tratar da política declaradamente antiindígena do recém-criado estado de Roraima.

Ora, tendo em vista o considerável esforço logístico e, sobretudo, financeiro que, para uma diocese "pobre" como a de Roraima, com certeza significou a formação e manutenção durante meses de toda uma equipe de pesquisadores altamente qualificados1 1 O conteúdo das duas publicações é da responsabilidade de uma equipe de quatro pesquisadores, contratados pela diocese. Dois deles devidamente doutorados naquela ciência (a Antropologia), cujos representantes são popularmente considerados (e costumam declarar-se a si mesmos) os mais bem preparados para identificar a "visão correta", não somente da natureza dos índios roraimense, mas, de todos os povos não-ocidentais. Chefiada por Dr. Emanuele Amódio, naquela época talvez a mais (re)conhecida autoridade internacional na etnografia dos povos "circum-Roraima" (Butt-Colson, 1985), essa equipe fundamentou a sua pesquisa em informações etnográficas colecionadas por intermédio da ampla rede missionária da diocese, contextualizadas por uma exaustiva análise bibliográfica. , uma pergunta surge espontaneamente: quais foram mesmo os motivos que levaram Dom Aldo e a cúpula da igreja católica local a considerar tal esforço indispensável2 2 Por que não republicaram simplesmente um ou outro de alguns trabalhos parecidos, já publicados nacional e internacionalmente em diversos momentos anteriores, tais como: Diniz (1966, 1967 e 1972 – sobretudo a terceira parte); Farage (1986); Sampaio-Silva (1980); Farabee (1924); Migliazza (1978); Hemming (1987: 339-62); ou Rivière (1984)? ?

Neste trabalho defenderei a tese que, no fundo, as intenções do bispo e dos seus colaboradores foram orientalistas, o que em seguida esclarecerei.

Orientalismo

Como Edward Said (1979) nos ensinou já há vinte anos, longe de ser meramente outra "ciência regional", orientalismo "é uma espécie de consenso", pelo qual "certas coisas, certo tipo de pronunciamentos, certo tipo de obras [são] vistas pelo Orientalista [e seus leitores ocidentais, diria eu] como corretos"(: 202)3 3 Todas as traduções de Said são de minha autoria. . O "orientalismo pode, pois, ser tomado como um modo regulamentado (ou 'orientalizado') de escrever, olhar e estudar" que, segundo Said, "cria" o Oriente, não como um espaço geográfico particular, mas sim como "conhecimento verdadeiro" do Ocidente (idem).

É certo que Edward Said aplicou o termo especificamente a um conjunto de "ciências regionais" (tais como: Egiptologia, Sinologia, Indologia etc.) que surgiram no século XIX para dotar o Ocidente (sobretudo a França e a Inglaterra, naquele momento em rápida expansão colonial) com uma visão cientificamente legitimada do amplo espaço entre o Egipto e o Japão. Mas, como notou prontamente a maioria dos participantes da viva discussão provocada pelas teses de Said (e finalmente, até ele mesmo), o "orientalismo" como estilo de pensar [ocidental, claro], "fundamentado em distinções ontológicas e epistemológicas" (entre o Ocidente e tudo que fica fora deste espaço privilegiado), constitui toda uma "visão do mundo", associada a uma metodologia e estruturas institucionais "autorizadas para produzir, e institucionalizadas para autorizar" tal visão, que em nada se confine ao Oriente geográfico.

Existem, sem dúvida, especifidades! Mas se o orientalismo é mesmo (como insiste Said) muito mais que meramente um "saber específico sobre uma região particular", um "modo particular de relacionamento" que o Ocidente desenvolveu (e institucionalizou em museus, bibliotecas e departamentos universitários) no exato momento (e, segundo Said, com a finalidade implícita) de se impor, não apenas sobre a Arábia e Índia, mas sobre a totalidade do mundo não ocidental, então não cabe dúvida que a Antropologia (única ciência especializada exclusivamente e particularmente nesta totalidade) constitui mesmo a ciência mais "orientalista" de todas! Pois, muito mais que a Indologia ou a Sinologia, a Antropologia é uma disciplina4 4 Said utiliza essa palavra aqui no seu sentido duplo de "temática de estudos" e "esforço controlado". "enormemente sistemática, pela qual o Ocidente foi [e continua sendo] capaz de manusear, e até produzir, o 'Oriente' [o mundo moderno, diria eu] politicamente, sociologicamente, militarmente, ideologicamente [e] cientificamente" (: 3). Nesse sentido, chamar a Antropologia de orientalista não é (como sugeriu um dos pareceristas anônimos deste ensaio) acusá-la de "errada" ou "artificial" nos seus resultados, mas sim, reconhecer o seu papel particular na constituição da relação entre a civilização ocidental atual com o resto do mundo.

O olhar "correto" – e suas alternativas

Visto por este ângulo, o caráter e as finalidades eminentemente orientalistas das duas publicações acima aludidas, lançadas pelo Centro de Informação da Diocese de Roraima em 1989 e 1990, resultam óbvios. Nas reveladoras palavras (outra vez) de Dom Aldo, o objetivo foi mesmo o de definir, com o máximo de autoridade científica que a Diocese pudesse mobilizar, uma "visão do índio, que permita equacionar corretamente o problema" e, com isso (eu acrescentaria), desautorizar qualquer visão alternativa, vigente na sociedade roraimense da época.

Ora, a "visão correta" que, num só momento, as duas publicações do CIDR definem e propagam, encontra-se exemplarmente resumida pelo próprio bispo, ainda na já citada "Apresentação". Diz Dom Aldo: "Os índios constituem grupos de pessoas, que se reconhecem com afinidades sócio-culturais, conforme suas caraterísticas, mesmo fazendo parte de um único projeto político, que é o Brasil [...]. Qualificar o índio como caboclo, pensar que para ser brasileiro é necessário não ser índio, é cometer um erro imperdoável" (1989: 3-4; grifos meus). E: "O primeiro passo para resolver o problema do índio em Roraima [...] é conhecer o próprio índio. O segundo passo é dar condições aos povos índios de viverem do seu jeito. É dar terra" (idem).

Analisando a seqüência e a ênfase de tais asseverações, fica claro contra que tipo de "visão" elas se opõem: combatem uma visão que nega "terra" (territórios/reservas) aos indígenas de Roraima, pela negação da própria indianidade deles (chamado-lhes "caboclos"5 5 É preciso lembrar, nesse contexto, que as publicações aqui em questão limitam a sua discussão aos "Índios de Roraima" (título do primeiro volume): aos "Makuxi, Taurepáng, Ingarikó, (e) Wapixana", como indica o subtítulo do mes-mo volume. ) e pelo "fato" de serem integrantes de povos sócio-culturalmente constituídos. Opõem-se também (e, talvez, sobretudo) à idéia de que "para ser brasileiro é necessário não ser índio", ou seja, ao conceito de integração.

Ora, para "provar" o equívoco da visão combatida, e (re)instalar toda a verdade (com toda a autoridade da ciência6 6 Afinal, claro, a quantia de autoridade científica que Dom Aldo e a diocese efetivamente foram capazes de mobilizar, mesmo que impressionante em termos regionais e do momento, foi insuficiente para realmente calar qualquer visão alternativa. Vide as publicações de Hemming (sobretudo 1994) ou a recente tese de Lemos (1998), que ambos simplesmente ignoram as publicações do CIDR. Por outro lado, as publicações indicadas mostraram-se eficientes para mudar radicalmente o discurso oficial contra o qual foram concebidas: em 1996, aquele quadro étnico roraimense que as duas publicações indicadas ajudaram a definir foi aproveitado por parte de quem menos se esperava a sua aceitação. Na sua contestação à delimitação da Área Indígena Raposa- Serra do Sol, escrito no ano indicado, o Estado de Roraima alegou (entre outras coisas) que tal delimitação em área única era improcedente, pois ignorava o "fato" de que naquela Área Indígena existissem "três tribos distintas, tradicionalmente opostas entre si: os Makuxi, Ingaricó e Taurepang". ), sobretudo o primeiro dos dois volumes indicados informa inicialmente que, muito antes da chegada do primeiro "brasileiro" (não indígena), o centro e o norte do atual estado de Roraima já foram ocupados por um número considerável de "grupos" sócio-culturais (menciona-se uns 25 que, ao contrário de Dom Aldo, os autores preferem chamar de "tribos") que, desde o século XVIII, em conseqüência de um longo e sangrento confronto com um crescente número de intrusos não-indígenas, foram reduzidos a, na atualidade, basicamente quatro: Makuxí, Taurepáng, Ingaricó e Wapixana, os quais, asseguram ambos os textos, ainda são "povos" autônomos, o que se comprova – supostamente – pelo fato que (1) "mantêm" nomes próprios, que (2) ocupam "territórios" próprios (mesmo que ameaçados por terceiros), e que (3) mostram ainda "particularidades (sócio) culturais", embora, os autores tenham notáveis dificuldades em especificar tais particularidades, em capítulos dedicados aos "modo de vida" destas quatro "tribos".

Na parte restante deste trabalho discutirei como tal visão profundamente "tribalista"7 7 O termo "olhar tribalista" se refere ao preconceito ocidental comum (ou, à visão orientalista) que declara o mundo não-ocidental e não-estatal (isto é, o mundo propriamente "primitivo" da Antropologia nos primeiros cem anos da sua existência) dividido em unidades supralocais de auto-identificação étnica (cultural/lingüística), embora, não necessariamente centralizadas politicamente. A persistência da idéia da "tribo" na Antropologia já foi devidamente criticada por Morton Fried, em 1968, mas segue ofuscando a discussão antropológica nos mais diversos campos. da história e realidade atual de Roraima (enquanto espaço étnico) foi historicamente construída, e reconstruída, inúmeras vezes, ao longo dos últimos 250 anos, discussão na qual os assim chamados Taurepáng terão um papel especial.

Construção da paisagem étnica roraimense: século XVIII

Os primeiros relatos sobre a estruturação interna do espaço étnico no atual estado de Roraima estão marcados pelo "olhar tribalista", típico do orientalismo antropológico ocidental com relação às sociedades não ocidentais e não estatais. Na realidade, os primeiros documentos dos quais dispomos são, basicamente, levantamentos de grupos "tribais" sob nomes, supostamente deles próprios, associados a determinados posicionamentos geográficos8 8 O fato não surpreende, afinal, desde os gregos clássicos é corriqueira essa lente "tribalista" sob a qual o Ocidente costuma olhar os "primitivos". . Contudo, os nomes e territórios indicados divergem, e muito, de uma fonte para outra. Há autores que interpretam tais divergências como evidência de migrações ou de um impacto especificamente devastador do contato inicial, causando a extinção súbita de grupos inteiros. Tais interpretações até podem estar corretas, em alguns casos, mas, do meu ponto de vista, elas não podem e nem devem ser aplicadas mecanicamente.

Uma hipótese alternativa considera as mesmas variações de nomes e territórios tribais uma conseqüência da "fusão aditiva" inicial de vários sistemas de classificação social nativos9 9 Como aquele dos Wapishana atuais, magistralmente analisado por Farage (1997 e 1998). (e neobrasileiras locais) alternativos, pré-existentes na área, e da lenta adaptação posterior do resultado dessa fusão às normas simplificadoras de um "olhar tribal" ocidental que, no fundo, equaciona "tribos" com "grupos lingüísticos". Tal "adaptação" levava, quase sempre e em qualquer lugar, a uma drástica redução em número e à estandardização, até na ortografia, de nomes tribais.

Se compararmos, por exemplo, as principais descrições da paisagem étnica roraimense do século XVIII10 10 Refiro-me aos relatos.de Alexandre Rodrigues Ferreira, que visitou a área em 1786 (1994a e 1994b), e à "Descrição relativa ao rio Branco" de Lobo D'Almada (1861), de 1787. Há, por certo, informações esporádicas anteriores a estas, resumidas por Whitehead (1988), relativas à Venezuela e às Guianas, e por Sweet (1974), para a região do rio Negro e do rio Branco. , encontramos, segundo Alexandre Rodrigues Ferreira (1994a e 1994b), Parauana junto com Aruaquiz e Macús, no médio rio Branco e o Catrimani e, junto com Aturahiz, também no rio Anauá. Um pouco mais ao norte, no médio e alto curso do rio Branco, moram os Pauxiana, povo então dominante. Vêm em seguida os Guaxumará, Tapicari, Sapará e Auaqui dos rios Mucajaí e Cauamé e, finalmente, no Uraricoera e os seus afluentes, os Uapexanas, Trimicanes, Peralvilhos (ou Peravilhanos), Caripunas e outros Tapicarys. Nos rios Surumú, Tacutú e Mahú há ainda os Uapexanas, juntos com Sucurys, Yaricuna, Carapys, Uaicás e, finalmente, também os Macuxis.

Em Lobo D'Almada (1861), por outro lado, deparamo-nos com informações surpreendentemente distintas (que dificilmente podem ser interpretadas como simplesmente "adicionais"), apesar de seu relato ser contemporâneo ao de Ferreira e de, provavelmente, ter-se beneficiado dos mesmos informantes, indígenas ou não indígenas. O autor corrobora Ferreira com relação aos Paravilhanos (se é que esses são mesmo os Peravilhanos deste último), embora os desloque do Uraricoe-ra para o rio Tacutú. D'Almada confirma também a presença dos Macuxí na Serra do Sol (entre Surumú e Maú), bem como os Wapixana, Auaquis (os Aruaquis de Ferreira?), Sapará e Caripuna, embora estes últimos, segundo este autor, ocupem terras ao este do rio Tacutú e parte do rio Rupununi. Os Waiká, por outro lado, são indicados numa área muito distante daquela que Ferreira indica, sendo encontrados agora nos rios Amajarí e Parime, junto aos Acaparis (ou Acarapi?), Arina e Tucurupis (dos quais Ferreira nada fala).

Também no alto Uraricoera aparecem novas tribos, tais como os Qui-nhaus, Procotóse e Guimaras, aliás, acompanhados agora por aqueles Makus, que Ferreira localizou no baixo rio Branco. Aparecem ainda os Chaperos e Guajuros. Estranha-se, porém, a ausência total de Yaricuna, que muitos autores consideram os nossos futuros Taurepáng (Farage, 1991: 127).

De nada adianta tentar "resolver" as contradições entre essas fontes, consultando ainda outras fontes e autores contemporâneos (como, por exemplo, Sampaio – 1872). Seguramente, o resultado de tal procedimento seria outros "nomes tribais", dos quais ninguém sabe o referencial social "objetivo".

Como, então, interpretar tudo isso? A minha proposta é a seguinte: entre 1770 e 1790, num momento de intensa preocupação do poder colonial português na Amazônia com a identificação e defesa da fronteira norte da colônia, os encarregados por esse poder da tarefa de organizar tal defesa in situ (entre outros, Ferreira e D'Almada) tentaram de tudo para formar uma visão clara da estruturação étnica da região, com a finalidade decididamente orientalista, de (nas palavras já citadas de Said) dominá-la melhor, "politicamente, sociologicamente, militarmente, ideologicamente [e], cientificamente". Para isso, eles registram nomes e territórios de "grupos" sociais de natureza altamente variável. Registram todos esses nomes igualmente como "tribos" (no sentido pré-formado que importaram para a área) e as relacionam como tais nas suas obras.

Construção da paisagem étnica: século XIX

Não temos tempo aqui para revisar detalhadamente a história da extremamente lenta formação e consolidação do atual quadro ortodoxo da composição étnica do espaço roraimense, como o que foi apresentado, entre outros, nas duas publicações da Diocese de Roraima de 1989 e 1990. É suficiente indicar aqui que, na primeira metade do século XIX, vários autores importantes contribuíram decisivamente para a formação de tal ortodoxia, basta citar, entre eles, os irmãos Robert e Richard Schomburgk. O mesmo vale para a segunda metade daquele século, quando, entre outros, Henri Coudreau e Everard ImThurn percorreram a área.

Ora, comparando as informações proporcionadas por esses autores, e contrastando-as com as fontes do século anterior, o que encontramos – além, claro, de uma variedade de novos nomes tribais, nunca antes e nem depois registrados – é: (1) o desaparecimento completo de muitas tribos, proeminentes ainda nas fontes do século XVIII, tais como os Paruá, Guayxumará, Tapicari, Arina, Acarapi, Sucuri etc.; (2) o lento, mas ao cabo, total desaparecimento dos Paraviana e Pauixana; e, finalmente; (3) a substituição destes últimos pelos anteriormente quase insignificantes Wapixana e Macuxí, como tribos dominantes na área. Do meu ponto de vista, muito mais do que uma conseqüência de tendências demográficas opostas em tribos vizinhas, essas mudanças testemunham a lenta formação e adesão, por parte de nossos testemunhos, a uma visão única da paisagem étnica roraimense, estruturada pelo "olhar tribal" ocidental, em decorrência do fato de que, antes de penetrar na área, os testemunhos do século XIX se prepararam, cada vez mais, estudando as obras dos seus predecessores.

Segundo nossa análise, ainda preliminar, a visão cada vez mais compartilhada por nossas fontes do século XIX fundamenta-se num contraste, tanto lingüístico como ecológico, entre membros da família lingüística aruak, que ocupam as savanas centrais, e os membros da família caribe, localizados nas montanhas do extremo norte do estado. A partir desse contraste, os Wapixana (aruak) são considerados o paradigma de "índio do lavrado", a absorver, lentamente, todos os seus vizinhos do mesmo estoque lingüístico e habitat. Os Macuxi, por sua vez, são tidos como o paradigma de "índios das montanhas", bem como de toda a família lingüística caribe. Uma vez estabelecidos como prototípicos, os dois grupos seguem "canibalizando" as identidades tribais alter-nativas, ainda sobreviventes na sua vizinhança, como os Amariba e os Atorai, no caso dos Wapixana, e os Arecuna dos rios Parime e Amajarí, outrora considerados muito mais importantes, no caso dos Macuxi11 11 Aliás, temos um valiosíssimo estudo nesse sentido (Farage, 1997), dedicado ao caso Wapixana, os quais "absorveram", supostamente, os grupos anteriormente distintos Amariba, Maopityan, Tapicari, Atorado e Tarumá. .

Construção da paisagem étnica: Koch-Grünberg

O autor que, sem dúvida, mais do que qualquer outro, contribuiu para a formação do quadro étnico ortodoxo na atual Roraima (falo daquela ortodoxia definida nas publicações do CIDR) foi Theodor Koch-Grünberg, antropólogo alemão que faleceu em Vista Alegre, perto de Caracaraí, Roraima, no dia 8 de outubro de 1924.

São três as obras nas quais esse famoso etnólogo analisou a constelação étnica no norte de Roraima (e no extremo sul da Venezuela). A primeira dessas obras é o diário da sua ousada viagem feita em 1912, de Manaus ao cume do monte Roraima, e de Boa Vista até o rio Orenoco, de onde voltou para Manaus através do canal Caciquiare. Esse diário foi publicado, ao que tudo indica sem grandes modificações, no primeiro volume (de um total de cinco) da obra-prima desse autor, Vom Roroima zum Orinoko. O segundo trabalho é um ensaio que trata da "Distribuição de povos entre rio Branco, Orinoco, rio Negro e Yapurá", publicado em Festschrift Eduard Seeler, em 1922. Finalmente, há ainda o primeiro capítulo do volume três da obra-prima acima indicada que, na realidade, é uma versão abreviada da obra de 1922, agora sob o título de "Land und Leute" ("Paisagem e povos")12 12 Existe ainda um quarto trabalho, publicado em 1908, ou seja, três anos antes da sua primeira chegada a Roraima, em co-autoria com Georg Hübner. Esse pequeno ensaio me parece importante, pois comprova um aspecto, de meu ponto de vista, de suma importância: muito antes de sua chegada a Roraima, Koch-Grünberg já tinha formado uma imagem relativamente clara da "distribuição de povos entre o rio Branco e o Orinoco", que, posteriormente, em seu ensaio de 1922 será apresentada como resultado de um levantamento de dados in situ... .

Ora, muito mais que simples "resumos etnográficos", esses três trabalhos constituem o resultado até hoje mais amplamente aceito, entre todos os intentos de algum antropólogo em descobrir e definir, de uma vez para sempre, "a verdade verdadeira" (científica) da constituição étnica de Roraima. Com essa finalidade, Koch-Grünberg realizou no campo uma série de manobras metódicas, tipicamente orientalistas, sobretudo o confronto sistemático e constante da totalidade dos seus informantes com um esboço da paisagem étnica de Roraima, elaborada a partir de todas as fontes históricas ao seu alcance.

No seu ensaio de 192213 13 Traduzi recentemente partes desse trabalho relativas às tribos de Roraima, trabalho que espero poder publicar em breve. , Koch-Grünberg começa a sua exposição, caracteristicamente, com uma referência às "primeiras notícias seguras" sobre a área, que encontra em Lobo D'Almada. Informa-nos que aquele autor encontrou 22 tribos distintas no centro-norte de Roraima, das quais Koch-Grünberg declara a maioria "extintas" ou "que dentro de pouco desaparecerão, já que [de muitos deles] sobrevivem somente alguns restos lastimosos" (: 205).

Estamos diante de uma manobra orientalista importante, que permite a nosso autor três operações fundamentais: primeiro, essa manobra permite a Koch-Grünberg eliminar a priori da sua versão do espaço étnico roraimense todos aqueles grupos (como os Parauianá, Amariba, Tucuripis, Acarapis, Arinas e Chaperos) identificados em fontes do século XVIII, mas ausentes das fontes do século XIX ("extintos"); e, segundo, permite também eliminar do quadro da constelação étnica roraimense de 1912 aqueles grupos "tribais" mencionados por autores do século XIX, ignorados como tais pelos informantes consultados por Koch-Grünberg no campo; terceiro, essa manobra introduz no quadro étnico roraimense a importante categoria de "tribos reduzidas a restos miseráveis", categoria que compreende todas aquelas "tribos" identificadas nas fontes, tanto do século XVIII como do século XIX (ou apenas nestas últimas), mas que os informantes de Koch-Grünberg em 1911 parece que ignoram como tais. Em resposta a seus insistentes questionamentos sobre as residências de Sapará, Wayumará, Purukotó e Makú, por exemplo, os informantes lhe apontam apenas um ou outro indivíduo ou (no caso dos Pauischianá, Marakaná e Auaké) as respostas são sempre extremamente vagas.

Ora, a importância desta curiosa categoria na história da formação de um quadro ortodoxo do espaço étnico roraimense está no fato que, posteriormente, nas décadas que seguem a morte de Koch-Grünberg, os grupos assim caracterizados não são mais sequer procurados pelos pesquisadores, pois não estariam eles já quase extintos nos tempos do grande antropólogo alemão14 14 Aliás, no meu entender, o fato de Koch-Grünberg lograr ainda identificar indivíduos que supostamente são sobreviventes de "tribos", como os Sapará, Wayamurá etc., não implica necessariamente que tais "tribos" existiram "realmente". Ninguém sabe com base em um Yekuana, que Koch-Grünberg encontrou no Surumú, apontou-lhe dois homens residentes da ilha de Maracá como Wayamurá, nem mesmo o que significava para este informante esta palavra. ? Por outro lado, devido à total confiança de Koch-Grünberg na veracidade das informações de Coudreau e Thurn e, sobretudo, dos irmãos Schomburgk (1841 e 1848, respectivamente), autores que, na sua totalidade, tinham formado as suas respectivas versões da paisagem étnica roraimense nas savanas do Essequibo.

Koch-Grünberg incluiu na sua visão dessa paisagem uma série de grupos, na sua faixa oriental, que, antes dele, não faziam parte desse quadro como, por exemplo, os Akawaio, os Ingarikó e os Patamona. A completa ausência dessas "tribos" no mapa étnico de autores que – como o próprio Koch-Grünberg – enfocaram esse espaço, desde as margens do rio Branco (ou da grande savana venezuelana), explica, aliás, as sérias dificuldades que Koch-Grünberg encontrou no campo, para verificar a existência e importância deles, atribuídas por seus autores preferidos do século XIX (1922: 210-13).

O caso dos Ingarikó é particularmente revelador. Por um lado, embora no seu caminho ao cume do Monte Roraima o antropólogo tenha cruzado o território desse grupo, conseguiu identificar como tal, somente um homem "já velho, casado com uma Taulipáng" (: 21). Por outro, entre os Taulipáng e Macuxí do Surumú e Cotingo, Koch-Grünberg encontrou uma rica prosa, relatando guerras sangrentas entre estes "homens da mata". Mesmo assim, persistiu duvidando da existência dos Ingarikó como "tribo" autônoma, documenta-o uma carta que dirigiu ao missionário jesuíta guianense Cary-Elwes, solicitando explicações sobre a relação exata entre os Akawaio da Guiana e os Ingarikó do norte de Roraima. O missionário, numa carta em que Koch-Grünberg cita em todos os seus trabalhos, respondeu: "Acho que não existem e nunca existiram 'Ingarikós' [...] os Makuschi falam dos Patamona como 'Ingarikós', os Arekuna chamam os Akawaio de 'Ingarikós' etc." (apud Koch-Grünberg, 1922: 22). Afinal, claro, Koch-Grünberg decidiu que os Ingarikó existiam mesmo e, aliás, como "tribo" distinta dos Akawaio. Ora, para aqueles que, por acaso, não conhecem a área, os Ingarikó são os Akawaio da Guiana Inglesa, ou melhor, tanto os que no Brasil são identificados como Ingarikó, como aqueles que na Guiana são classificados como Akawaio pertencem a um só grupo de autodenominação Kapon (junto aos Patamona), oposto aos Pemon, aos quais pertencem os Macuxi, Arekuna, Puru-kotó, Pemon e os Taulipáng.

O "olhar tribal" de Koch-Grünberg

Tudo o que vimos até agora revela Koch-Grünberg como o fiel intérprete das suas próprias "autoridades máximas" (sobretudo, os Schomburgk e Coudreau), reinterpretadas, claro, à luz do próprio trabalho de campo que era, em grande parte, um esforço de verificar (pace Popper!) informações a priori tomadas como indubitáveis. Em conseqüência, Koch-Grünberg interpreta toda e qualquer diferença significativa, entre aquilo que estas autoridades indicam e aquilo que encontra no campo, como outra conseqüência de uma dinâmica interétnica nos lavrados de Roraima, profundamente avessa à sobrevivência indígena. Isso explica, por exemplo, porque Koch-Grünberg não se surpreendeu com a descoberta que dos Wayumará, tribo que, segundo Richard Schomburgk (1848), em 1838 contava com três malocas, sobreviveram somente dois irmãos e um desmonte abandonado, apenas oito décadas mais tarde. As diferenças ainda mais dramáticas entre as suas principais fontes e aquilo que consegue verificar em campo não fazem Koch-Grünberg duvidar das primeiras; nem mesmo lhe ocorre a hipótese de que os Wayamurá, identificados por Richard Schomburgk em 1838 e aqueles dois irmão que lhe são apresentados em 1911, possam não ter nada mais em comum. Ao contrário, a suposta "sobrevivência" dos dois Wayamurá que – segundo o próprio diário – lhe são apontados em resposta a perguntas insistentes por um Mayongong residente da maloca mista (Tauripang, Makuxi e Wapixaba) de Koimélemong, nas savanas do rio Cotingo, é tomada como outra "prova contundente" da confiabilidade de Richard Schomburgk, e de uma suposta decadência físico-social e moral indígena generalizada, em conseqüência do contato entre esses "primitivos" com a "civilização".

O papel de Koch-Grünberg na formação daquilo que chamo de ortodoxia orientalista do quadro étnico de Roraima, criado por esse antropólogo e válido até hoje (cf. Migliazza, 1978; Hemming, 1994), não se limita a um passivo transmissor e verificador (ou corretor) de informações preexistentes. Também encontramos em Koch-Grünberg uma série de "tribos" nunca antes mencionadas por alguém. São elas os Seregóng e os Pölöyemöko, do alto Cotingo; os Pischaukó, do alto Surumú; e, finalmente, os Taulipáng! É verdade que, com exceção dos últimos, nenhuma dessas "tribos" entrarão no quadro ortodoxo da paisagem étnica roraimense atual, principalmente, porque o próprio Koch-Grünberg não acreditava muito nelas. Com relação aos Seregóng e Pölöyemöko, o antropólogo alemão sugere uma "provável" subordinação deles aos Ingarikó (: 22). Quanto aos Pischaukó descreve-os, tanto no diário como no ensaio de Festschrift, em termos tais que sugerem a natureza meramente "mítica" deles15 15 Segundo relatos colecionados entre os Makuxi e Taulipang: "trata-se de uma tribo de 'Kanaimé', odiada por todos os vizinhos [...] que atribuem à bruxaria deles quase todos os falecimentos" (Koch-Grünberg, 1924, v. 4: 22). E: "Todos falam dos Pischaukó, mas ninguém jamais os viu. Parece que se trata de uma tribo que já não existe mais como tal" (idem). Finalmente: "Alguns Taulipang do alto Surumú me foram apontados como ex-Pischaukó [sic!]. Pelo tipo feio deles, os chumaços ósseos grossos acima dos olhos, e pela sua aparência pouco proporcionada, eles se diferenciam significativamente dos verdadeiros Taulipang e dos Arekuna" (idem). . Se, mesmo assim, nosso autor decidiu, afinal, incluí-los no seu quadro da constelação étnica de Roraima, a razão por ele declarada é que nunca conseguiu fazer os informantes índios admitirem a inexistência desses grupos.

Com isso, chegamos, finalmente, aos Taulipáng, única contribuição realmente original e permanente de Koch-Grünberg ao quadro atual da paisagem étnica do norte de Roraima, ainda que seja uma contribuição bastante duvidosa.

Então, os Taulipang existem mesmo?

O parágrafo do diário no qual Koch-Grünberg (1916-1928, v.1: 52) narra a descoberta dessa "tribo" é bem conhecido:

La tribu de los Taulipáng está ampliamente diseminada. Viven desde la parte Norte del Surumú hasta el Roraima, la gran sierra arenisca en la frontera de Brasil, Venezuela y la Guayana inglesa, y hacia el Sudoeste, más allá del Alto Perime y del Alto Majary, hasta la gran Isla Maracá de Uraricoera. El nombre de la tribu Taulipáng lo descubrí yo. A estos índios los llaman Yarikuana los Wapischana y conforme a ellos, también los blancos. Todos los viajeros anteriores, como los hermanos Schomburgk, Appun, Brown y otros, los llaman Arekuna, o Alekuná. Solo después de una prolongada estancia entre ellos, me enteré de que el verdadero nombre de su tribu era Taulipáng y esto lo encontré comprobado en los textos que grabé16 16 Cito a partir de tradução espanhola, publicada pelo Banco Central da Venezuela, em 1979, pois o original em alemão não está à minha disposição. .

Ou seja, Taulipáng é, segundo Koch-Grünberg, a autodenominação de uma tribo do norte de Roraima, chamada Yarikuna ou Arikuna pelos seus vizinhos Wapishana e pelos "brancos". Aliás, a classificação pelos Wapishana e pelos "brancos" dos Taulipáng parece ao antropólogo alemão duplamente equivocada, pois se trata, supostamente, de um grupo bem distinto dos "verdadeiros" Arekuna17 17 Os quais, segundo nosso autor, moram no oeste e norte do Monte Roraima, ou seja, nas savanas venezuelanas (1922: 53). , os atuais Pemon do sul da Venezuela. É ainda importante apontar que, no seu ensaio para a Festschrift..., Koch-Grünberg estimou os Taulipáng de Roraima em torno de 1.000 a 1.500 pessoas. No entanto, depois de Koch-Grünberg, ninguém foi mais capaz de encontrar índios em Roraima que se auto-identificam-se como Taulipáng! Mesmo assim, inclusive nas publicações do Centro de Documentação da Diocese de Roraima, os Taurepáng constituem uma das quatro tribos indígenas que, na atualidade, compartilham – supostamente – o espaço étnico do norte de Roraima com os "brancos". Como explicar isso?

Dizer que, nunca mais, depois de Koch-Grünberg, foram encontrados índios em Roraima, que se autodenominavam Taulipáng ou Taurepáng, não significa, por certo, que não existam em Roraima, atualmente, indígenas que "saibam" (e insistam) que o seu nome "tribal" fosse Taurepáng. Contudo, esses índios se chamam a si mesmos Pemon(gong), como todos os demais falantes da língua caribe daquela área, inclusive os Arekuna e Macuxí. Mas, os Pemon que, segundo nosso ponto de vista, em conseqüência dos esforços orientalistas do CIDR (e de Koch-Grünberg), "sabem" que o seu nome "tribal" é Taurepáng, são descendentes diretos dos Taulepáng identificados por Koch-Grünberg? Duvido!

Fato é que, menos de trinta anos após Koch-Grünberg, o padre Cesareo de Armellada, grande lingüista e folclorista dos Pemon/Arikuna da Venezuela e autor de Bellezas del dialecto Taurepan (1943), incapaz de detectar, tanto na Venezuela como no Brasil algum grupo indígena que se auto-identificasse como Taurepáng/Taulipáng, chegou finalmente à conclusão de que os Taulipáng de Koch-Grünberg eram, na verdade, alguns Pemon que, por casualidade histórica, viviam e seguem vivendo no Brasil!

Trata-se, sem dúvida, de uma solução elegante para o enigma dos Taulipáng que, justamente por isso, agora fazem parte de nossa visão ortodoxa da composição interna da paisagem étnica roraimense. Mas essa solução elegante tem sérios problemas.

O principal problema é, por certo, que os Pemon atuais de Roraima, aqueles que, desde Koch-Grünberg, "sabem" que o seu nome "tribal" é Taurepáng, não ultrapassam três grupos locais, com uma população total de menos que cem pessoas, dos quais pelo menos alguns parecem ter emigrado recentemente para esta área, vindos, supostamente, da Guiana! Em 1911, por outro lado, Koch-Grünberg indicou a existência de mais de mil Taulipáng no Brasil, que ocupavam, talvez, umas vinte malocas, distribuídas numa área enorme: "do Surumú para o norte, até o Roraima e, para o sudeste, passando pelos cursos altos dos rios Parimé-Maruá e Majary até a ilha de Maracá" (1922: 209). Destarte, como inexistem fontes historiográficas (pace Andrello, 1993) que comprovem uma migração em massa de índios roraimenses para o sul da Venezuela nas primeiras décadas do século XX, a identificação dos Taulipáng de Koch-Grünberg com os atuais Pemón do alto Surumú e do rio Kukenán, na Venezuela, parece-me altamente improvável. Levando em conta, particularmente, que nem o termo macuxi, nem os termos arikuna ou taurepang, nem mesmo qualquer outro nome "tribal" de nossas fontes (com exceção do termo pemong) constituem de fato um termo de autodenominação de algum conjunto de índios de Roraima, considero muito mais provável que os Taurepáng de Koch-Grünberg eram apenas outra facção regional dos Macuxí que, segundo a nossa evidência etno-histórica, desde a segunda metade do século XIX e, sobretudo, a partir do início do século XX18 18 Compare-se, por exemplo, os dados de Butt-Colson (1998) e Ule (1913), além dos dados do próprio Koch-Grünberg, com as fontes da primeira metade do século XIX, sobretudo a dos irmãos Schomburgk. , começaram a descer maciçamente das montanhas norte-orientais e, assim, a compartilhar com os Wapixana os lavrados roraimenses ao norte do Uraricoera e do Tacutú. Acredito que os Wapixana e os não indígenas de Roraima classificaram esses Macuxí como Arekuna, por causa de semelhanças lingüísticas e de estilo de vida com os Pemon (Arikuna) da Venezuela. No mínimo, essa hipótese me parece de igual probabilidade que aquela do famoso lingüista venezuelano.

Gostaria de lançar aqui ainda outra hipótese, bem mais ousada. Parece-me que, na realidade, todas as nossas costumeiras diferenciações "tribais" no interior do conjunto de indígenas da família lingüística caribe – incluindo-se aí, além dos Macuxi de Roraima e da Guinana, os Pemon (Taulipáng, Arekuna e Kamarakoto etc.) da Venezuela, os Patamona e Akawaio da Guiana (bloco que ocupa as extensas matas e savanas naturais ao redor do Monte Roraima) – são plenamente artificiais, fruto de processos tipicamente orienta-listas de imposição de diferenciações classificatórias, sem fundamento nenhum na "realidade" classificada.

Não duvidamos que (como anotou um dos pareceristas anônimos deste trabalho) todas as classificações são mesmo contestáveis, inclusive as lingüísticas e as dos próprios indígenas. Mas isso não significa que todas elas fossem mesmo "iguais". Algumas nos ajudam a enxergar melhor uma realidade, que existe além das percepções que dela fazemos, enquanto outras servem unicamente para a manipulação em favor dos classificadores.

Notas

Bibliografia

Recebido em janeiro de 2002

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  • WHITEHEAD, N. L. 1988 Lords of the Tiger Spirit: a history of the Caribs in Colonial Venezuela e Guyana (1498-1820), Dordrecht, Foris Publications.
  • 1
    O conteúdo das duas publicações é da responsabilidade de uma equipe de quatro pesquisadores, contratados pela diocese. Dois deles devidamente doutorados naquela ciência (a Antropologia), cujos representantes são popularmente considerados (e costumam declarar-se a si mesmos) os mais bem preparados para identificar a "visão correta", não somente da natureza dos índios roraimense, mas, de todos os povos não-ocidentais. Chefiada por Dr. Emanuele Amódio, naquela época talvez a mais (re)conhecida autoridade internacional na etnografia dos povos "circum-Roraima" (Butt-Colson, 1985), essa equipe fundamentou a sua pesquisa em informações etnográficas colecionadas por intermédio da ampla rede missionária da diocese, contextualizadas por uma exaustiva análise bibliográfica.
  • 2
    Por que não republicaram simplesmente um ou outro de alguns trabalhos parecidos, já publicados nacional e internacionalmente em diversos momentos anteriores, tais como: Diniz (1966, 1967 e 1972 – sobretudo a terceira parte); Farage (1986); Sampaio-Silva (1980); Farabee (1924); Migliazza (1978); Hemming (1987: 339-62); ou Rivière (1984)?
  • 3
    Todas as traduções de Said são de minha autoria.
  • 4
    Said utiliza essa palavra aqui no seu sentido duplo de "temática de estudos" e "esforço controlado".
  • 5
    É preciso lembrar, nesse contexto, que as publicações aqui em questão limitam a sua discussão aos "Índios de Roraima" (título do primeiro volume): aos "Makuxi, Taurepáng, Ingarikó, (e) Wapixana", como indica o subtítulo do mes-mo volume.
  • 6
    Afinal, claro, a quantia de autoridade científica que Dom Aldo e a diocese efetivamente foram capazes de mobilizar, mesmo que impressionante em termos regionais e do momento, foi insuficiente para realmente
    calar qualquer visão alternativa. Vide as publicações de Hemming (sobretudo 1994) ou a recente tese de Lemos (1998), que ambos simplesmente ignoram as publicações do CIDR. Por outro lado, as publicações indicadas mostraram-se eficientes para mudar radicalmente o discurso oficial
    contra o qual foram concebidas: em 1996, aquele quadro étnico roraimense que as duas publicações indicadas ajudaram a definir foi aproveitado por parte de quem menos se esperava a sua aceitação. Na sua contestação à delimitação da Área Indígena Raposa- Serra do Sol, escrito no ano indicado, o Estado de Roraima alegou (entre outras coisas) que tal delimitação em área única era improcedente, pois ignorava o "fato" de que naquela Área Indígena existissem "três tribos distintas, tradicionalmente opostas entre si: os Makuxi, Ingaricó e Taurepang".
  • 7
    O termo "olhar tribalista" se refere ao
    preconceito ocidental comum (ou, à visão
    orientalista) que declara o mundo não-ocidental e não-estatal (isto é, o mundo propriamente "primitivo" da Antropologia nos primeiros cem anos da sua existência) dividido em unidades supralocais de auto-identificação étnica (cultural/lingüística), embora, não
    necessariamente centralizadas politicamente. A persistência da idéia da "tribo" na Antropologia já foi devidamente criticada por Morton Fried, em 1968, mas segue ofuscando a discussão antropológica nos mais diversos campos.
  • 8
    O fato não surpreende, afinal, desde os gregos clássicos é corriqueira essa lente "tribalista" sob a qual o Ocidente costuma olhar os "primitivos".
  • 9
    Como aquele dos Wapishana atuais, magistralmente analisado por Farage (1997 e 1998).
  • 10
    Refiro-me aos relatos.de Alexandre Rodrigues Ferreira, que visitou a área em 1786 (1994a e 1994b), e à "Descrição relativa ao rio Branco" de Lobo D'Almada (1861), de 1787. Há, por certo, informações esporádicas anteriores a estas, resumidas por Whitehead (1988), relativas à Venezuela e às Guianas, e por Sweet (1974), para a região do rio Negro e do rio Branco.
  • 11
    Aliás, temos um valiosíssimo estudo nesse sentido (Farage, 1997), dedicado ao caso
    Wapixana, os quais "absorveram", supostamente, os grupos anteriormente distintos
    Amariba, Maopityan, Tapicari, Atorado e
    Tarumá.
  • 12
    Existe ainda um quarto trabalho, publicado em 1908, ou seja, três anos antes da sua primeira chegada a Roraima, em co-autoria com Georg Hübner. Esse pequeno ensaio me parece importante, pois comprova um aspecto, de meu ponto de vista, de suma importância: muito antes de sua chegada a Roraima, Koch-Grünberg já tinha formado uma imagem relativamente clara da "distribuição de povos entre o rio Branco e o Orinoco", que, posteriormente, em seu ensaio de 1922 será apresentada como resultado de um levantamento de dados
    in situ...
  • 13
    Traduzi recentemente partes desse trabalho relativas às tribos de Roraima, trabalho que espero poder publicar em breve.
  • 14
    Aliás, no meu entender, o fato de Koch-Grünberg lograr ainda identificar indivíduos que supostamente são sobreviventes de "tribos", como os
    Sapará, Wayamurá etc., não implica necessariamente que tais "tribos" existiram "realmente". Ninguém sabe com base em um
    Yekuana, que Koch-Grünberg encontrou no Surumú, apontou-lhe dois homens residentes da ilha de Maracá como
    Wayamurá, nem mesmo o que significava para este informante esta palavra.
  • 15
    Segundo relatos colecionados entre os
    Makuxi e
    Taulipang: "trata-se de uma tribo de 'Kanaimé', odiada por todos os vizinhos [...] que atribuem à bruxaria deles quase todos os falecimentos" (Koch-Grünberg, 1924, v. 4: 22). E: "Todos falam dos Pischaukó, mas ninguém jamais os viu. Parece que se trata de uma tribo que já não existe mais como tal" (idem). Finalmente: "Alguns Taulipang do alto Surumú me foram apontados como ex-Pischaukó [sic!]. Pelo tipo feio deles, os chumaços ósseos grossos acima dos olhos, e pela sua aparência pouco proporcionada, eles se diferenciam significativamente dos verdadeiros Taulipang e dos Arekuna" (idem).
  • 16
    Cito a partir de tradução espanhola, publicada pelo Banco Central da Venezuela, em 1979, pois o original em alemão não está à minha disposição.
  • 17
    Os quais, segundo nosso autor, moram no oeste e norte do Monte Roraima, ou seja, nas savanas venezuelanas (1922: 53).
  • 18
    Compare-se, por exemplo, os dados de Butt-Colson (1998) e Ule (1913), além dos dados do próprio Koch-Grünberg, com as fontes da primeira metade do século XIX, sobretudo a dos irmãos Schomburgk.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Jun 2003
    • Data do Fascículo
      2002

    Histórico

    • Recebido
      Jan 2002
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