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Barulho! Vamos deixar cantar o Fado Bicha. Cidadania, resistência e política na música popular contemporânea

Noise! Let Fado Bicha sing. Citizenship, Resistance and Politics in Contemporary Popular Music

RESUMO

Notando a desadequação do entendimento da música como mero fenómeno superficial de uma expressão sociopolítica, mostraremos, neste artigo, como os Fado Bicha enfatizam a importância da performatividade numa improvável resistência fundada no fado. Na verdade, procuramos demonstrar como as performances e as canções do Fado Bicha se assumem como produtores de denúncia e de protesto e, sobretudo, são (re)criadoras de temáticas/problemáticas de género. A sua insurgência manifesta na realidade portuguesa, ao provocar-lhe agitação e mudança pela leitura que dela fazem, constitui-se em elemento integrante de uma identidade coletiva reconfigurada pelo artivismo. Assim, procurou-se romper com o facto de a música, enquanto meio que atinge um elevado número de pessoas a uma escala transglobal, ter sido ainda pouco estudada no seu impacto político, isto é, como instrumento de refutação de hegemonias, de resistência e de articulação de novas alternativas - e, justamente, onde menos se esperava - no fado.

PALAVRAS-CHAVE:
Queer; artivismo; resistência; identidades; política

ABSTRACT

Noting the inadequacy of the understanding of music as a mere superficial phenomenon of a sociopolitical expression, the article presents how Fado Bicha emphasizes the importance of performativity in an improbable resistance founded in fado. It seeks to demonstrate how the performances and songs of Fado Bicha assume themselves as producers of denunciation and protest and, above all, as (re)creators of gender themes/problems. Their manifest insurgence in the Portuguese reality is based in provoking agitation and change through their reading of it, as it constitutes an integral element of a collective identity reconfigured by artivism. Thus, we sought to break with the fact that music, as a medium that reaches a large number of people on a trans-global scale, has still been little studied in its political impact, that is, as an instrument of refutation of hegemonies, of resistance and of articulation of new alternatives - and, precisely, where it was least expected - in fado.

KEYWORDS:
Queer; artivism; resistance; identities; politics

UM FADO QUE NÃO EXIGE SILÊNCIO PARA SER CANTADO 1 1 Este artigo insere-se no desenvolvimento de três matrizes de pesquisa: o projeto ARTSCITZENSHIP, o projeto CANVAS e a KISMIF Conference 2021 (https://www.kismifconference.com/). Agradeço à Rose Satiko, à Sofia Sousa, à Susana Januário e ao Vitor Grunvald pelos seus valiosos comentários, pela sua interlocução e pelo seu contínuo estímulo. Agradeço ainda aos pareceristas anónimos por ajudaram de sobremaneira a qualificar este trabalho. Dedico este texto à Lila Fadista (Tiago Leal) e João Caçador - Fado Bicha - atores sociais centrais nele, levando-me a reequacionar as formas de resistência artístico-política contemporâneas, proporcionando-me um exercício primeiro de descolonização da análise da música popular em termos sociológicos.

Se pensarmos em países anglo-americanos, como o Reino Unido, os Estados Unidos da América e até mesmo outros Europeus, como a França, a Espanha ou os Países Baixos, apercebemo-nos que tem sido feito um investimento crescente, teórico e empírico, de índole académica, sobre os estudos queer (Stormer, 2020STORMER, Tim. 2020. “My boy like a queen”. Musical and visual queer performance in music videos of Sam Smith and Troye Sivan. Utrecht, Utrecht University.; Taylor, 2010TAYLOR, Jodie. 2010. “Queer temporalities and the significance of ‘music scene’ participation in the social identities of middle-aged queers”. Sociology, vol. 44, n. 5: 893-907. DOI https://www.doi.org/10.1177/0038038510375735
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). Os estudos de género têm feito tentativas incessantes para conseguirem definir o termo queer da forma mais detalhada possível, porém, parece-nos cada vez mais imperativo atentar ao facto de que se trata de um termo que não é passível de ser cabalmente definido. Em primeiro lugar, é praticamente impossível dar conta das mudanças sociais que ocorrem ininterruptamente e, em segundo lugar, o próprio contexto geográfico e a interação entre condicionalismos sociais, políticos, económicos e culturais são fatores preponderantes e amplamente extensivos, tornando-se deveras difícil proceder ao seu mapeamento.

De acordo com Griffney (2001), o termo queer designa tudo o que é estranho, não normativo e não concernente, amplamente utilizado para caracterizar determinada identidade sexual, quase como um sinónimo de anti-identidades, visto pressupor um rompimento com as assunções e as expectativas normativas dominantes. Já Julian Wolfreys (2004WOLFREYS, Julian. 2004. Critical keywords in literary and cultural theory. Harmondsworth, Penguin Books.) menciona que apesar de queer ser um conceito por si só complexo, possui a capacidade de criticar os limites normativos e promover novos e diferentes atos de concetualização do self. Em oposição, Judith Butler (1999BUTLER, Judith. 1999. Gender trouble. Feminism and the subversion of identity. New York, Routledge .) garante que o conceito aponta para um mecanismo mental sintomático de identificação de uma figura opressora que entra em conflito com uma identidade oprimida. Inúmeras correntes e posições teóricas sobre os gender studies (Bonenfant, 2010BONENFANT, Yvon. 2010. “Queer listening to queer vocal timbres”. Performance Research, vol. 15, n. 3: 74-80. DOI https://www.doi.org/10.1080/13528165.2010.527210
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; Buikema et al., 2018BUIKEMA, Rosemarie; PLATE Liedeke; THIELE, Kathrin. 2018. Handbook genderstudies in media kunst en cultuur. New York, Routledge.) poderiam ser elencadas nesta abordagem, caso fosse nosso desígnio contribuir para mais um esforço de definição do conceito. Mas não. Pelo contrário, o que pretendemos demonstrar é que o conceito queer, no contexto português e no caso concreto do Fado Bicha, expressa uma identidade que é histórica e socialmente construída e que, em última instância, pressupõe uma resistência face à normatividade (Cascais, 2004CASCAIS, António Fernando. org. 2004. Indisciplinar a teoria. Estudos gays, lésbicos e queer. Lisboa, Fenda.). Daqui se depreende e sustenta que estão em constante diálogo dois eixos analíticos fundamentais: i) uma estrutura normativa e opressora e ii) e uma atitude de resistência face a uma sexualidade compulsiva.

“Eu sou a Lila, sou a vocalista do Fado Bicha2 2 Fado Bicha é formado por Lila Fadista e João Caçador. O projeto criado em 2017 - procura, por meio do fado - canção nacional por excelência- trazer à luz as histórias da comunidade lésbica, gay, bissexual, transgénero e intersexo. Os fados - muitas vezes os clássicos alterados de forma a incluir a realidade LGBTI - deixam a guitarra portuguesa para se juntarem à guitarra elétrica. Cfr. https://www.festivaliminente.com/pt/detail-artists/fado-bicha/ , e quero dar-vos as boas-vindas a uma noite de delícias que é o que nós temos para vocês hoje. Enquanto homossexuais, nunca nos sentimos representados nas letras das canções. Como sempre gostámos muito de fado, quisemos torná-lo numa ferramenta de expressão, para nós, e de visibilidade para a nossa comunidade.” (In Divergente,2018DIVERGENTE. 2018. “Tudo isto existe, tudo isto é bicha, tudo isto é fado”. Divergente. 17 de maio 2018. Disponível em: Disponível em: https://divergente.pt/fado-bicha/ . Acessado 19 de maio de 2021.
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: s/p).Assim se apresentavam pela primeira vez os Fado Bicha em 2018, demonstrando bem de que forma a música popular contemporânea se constitui como matéria e objeto de intervenção social, definindo um espaço próprio na denúncia, na contestação, no protesto e na revolta face a quadros vivenciais hegemónicos dominantes. Tendo como foco analítico este Fado, pretendemos ao longo do artigo abordar dois aspetos que nos parecem fulcrais no âmbito dos gender studies (Keegan, 2018).O primeiro aponta para a necessidade de estabelecer um paralelismo entre a teoria queer, o contexto português e as desigualdades, vislumbrando a importância do Fado Bicha. O segundo corporaliza as novas formas contemporâneas de resistência (Guerra, 2021GUERRA, Paula. 2021. “So close yet so far: DIY cultures in Portugal and Brazil”. Cultural Trends, vol. 30, n. 2: 122-138. DOI https://www.doi.org/10.1080/09548963.2021.1877085
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), manifestas no artivismo e em reapropriações de signos culturais tradicionais como o fado. Outro aspeto essencial a ter em conta, nesta reflexão, reverencia o questionamento dos modos de pensar binários, ao perspetivar-se as práticas e as materialidades queer como formas de rebelião política, cultural e social, que questionam inclusive as próprias identidades, no sentido da sua alteração e adaptação sistemáticas.

Estamos, ainda, perante um artigo que se pauta pela intersecionalidade (Perraino, 2006PERRAINO, Judith. 2006. Listening to the Sirens: Musical technologies of queer identity from Homer to Hedwig. London, University of California Press., 2015PERRAINO, Judith. 2015. “Synthesizing difference: The queer circuits of early synthpop”. In: BLOECH, Olivia, LOWE, Melanie e KALBERG, Jeffrey (org.). Rethinking difference in music scholarship. Cambridge, Cambridge University Press, pp. 287-314.), no sentido em que se procura enaltecer cruzamentos e influências em torno da sexualidade, do género, mas também ao nível artístico e cultural, como eles se relacionam com categorias relativas à raça, nacionalidade, idade, religião e outros aspetos da formação societária. Tal conceptualização - sublinhe-se - assume-se como uma máxima por considerarmos que o género atua sistematicamente em consonância com outros elementos e eixos diferenciativos. Assim, a música, por exemplo, nos conduz a outros campos de análise, essenciais para que o conhecimento científico seja descolonizado (Lovesey, 2017LOVESEY, Oliver. 2017. “Decolonizing the ear: Introduction to popular music and the postcolonial”. Popular Music and Society, vol. 40, n. 1: 1-4. DOI https://www.doi.org/10.1080/03007766.2016.1230695
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). Neste artigo, pretende-se realizar uma reflexão crítico-analítica das canções do Fado Bicha e dos discursos na primeira pessoa, despoletando-se, portanto, uma metodologia iminentemente qualitativa (Guerra, 2020aGUERRA, Paula. 2020a. “Paixões sónicas conservadas em disposofonias: o musicar de Gustavo Costa e da Sonoscopia”. ArtCultura, vol. 22, n. 4: 7-29. DOI https://www.doi.org/10.14393/artc-v22-n41-2020-58637
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), baseada numa entrevista em profundidade feita ao Fado Bicha3 3 Entrevista em profundidade realizada aos dois elementos do Fado Bicha em junho de 2020 por parte da autora deste artigo. A realização e tratamento da entrevista seguiu os protocolos éticos recomendados pela American Sociological Association. e numa breve análise de conteúdo dos seus produtos artísticos queer.

EXISTE O FADO, MAS AGORA TAMBÉM EXISTE O FADO BICHA

A desigualdade de género como um todo implica um sistema de práticas sociais que constitui homens e mulheres como diferentes (Berkers e Shaap, 2018BERKERS, Pauwke; SCHAAP, Julian. 2018. Gender inequality in metal music production. London, Emerald Publishing Limited.). Ora, estas desigualdades não se limitam apenas a homens e mulheres, na verdade encontram-se ainda mais plasmadas quando nos retemos em outros géneros não-binários. Mais, se olharmos para o campo artístico-musical, aferimos que tais desigualdades são ainda mais evidentes, nomeadamente num contexto como o português ainda pautado por uma forte ideologia de género ditatorial (Guerra, 2020bGUERRA, Paula. 2020b. “Iberian punk, cultural metamorphoses, and artistic diferences in the post-Salazar and post-Franco Eras”. In: MCKAY, George; ARNOLD, Gina (orgs.). The Oxford Handbook of punk rock. Oxford, Oxford University Press. DOI https://www.doi.org/10.1093/oxfordhb/9780190859565.013.14
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). A respeito, note -se que se as mulheres são sub-representadas como artistas na indústria musical (Strong e Cannizzo, 2017STRONG, Catherine; CANNIZZO, Fabian. 2017. Australian women screen composers: Career barriers and pathways. Melbourne, RMIT.; Galloway e Sannicandro, 2019GALLOWAY, Samuel; SANNICANDRO, Joseph. 2019. “Queer noise: Sounding the body of historical trauma”. In: STRONG, Catherine; RAINE, Sarah (orgs). Towards gender equality in the music industry, New York, Bloomsbury, pp. 147-162.), ao passo que outros indivíduos de género não conforme são completamente olvidados.

Se equacionarmos nesta questão o fado, um género musical profundamente tradicional - e outrora símbolo de uma nação que vivia sob a égide de uma ditadura -, facilmente se depreende uma diáspora disruptiva e subversiva. É o pináculo da resistência à normatividade (Butler, 1999BUTLER, Judith. 1999. Gender trouble. Feminism and the subversion of identity. New York, Routledge .), principalmente pelo facto de o fado ser um género amplamente ligado à dominação masculina, heterossexual e patriarcal. Outrossim, a afirmação de Berkers e Shaap (2018BERKERS, Pauwke; SCHAAP, Julian. 2018. Gender inequality in metal music production. London, Emerald Publishing Limited.) de que a popular music se pauta por contribuir para uma construção de género (Frith e McRobbie, 1990FRITH, Simon; MCROBBIE, Angela. 1990.“Rock and sexuality”. In FRITH, Simon; GOODWIN, Andrew (orgs.). On Record: Rock,pop and the written word. London, Routledge , pp. 317-372; McRobbie, 2009MCROBBIE, Angela. 2009. The aftermath of feminism: Gender, culture and social change. London, Sage .), pode ser estendida ao fado em Portugal. Pode ter-se o mesmo entendimento face aos contributos Stormer (2020STORMER, Tim. 2020. “My boy like a queen”. Musical and visual queer performance in music videos of Sam Smith and Troye Sivan. Utrecht, Utrecht University.), nomeadamente no que respeita à existência de uma espécie de visão masculina heterossexual que paira sobre a indústria da música, fazendo com que a maioria dos produtos artísticos sejam produzidos também para o prazer masculino.

Não obstante, e na senda de Tim Wray (2003WRAY, Tim. 2003. “The Queer Gaze”. Wissenschaftliche Zeitschrift der Bauhaus-Universität Weimar, n. 4: 69-73. Disponível em: Disponível em: https://e-pub.uni-weimar.de/opus4/ frontdoor/deliver/index/docId/1267/file/ wray_pdfa.pdf Acessado em 15/05/2022
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), a visão hegemónica de que os produtos artísticos têm de ser produzidos com o intuito de agradar aos homens heterossexuais, tem vindo a sofrer alterações. O autor afirma que atualmente se verificam alguns códigos de ação queer que identificam as diferenças e questionam as formas de controlo por parte da visão normativa, criando uma série de tensões entre aparências, obrigações e sentidos de self. Se a visão hegemónica masculina busca o prazer do homem, uma visão queer questiona qualquer expressão tida como “normal” e enfatiza a transformabilidade das identidades. A partir de um olhar queer, os homens são tanto objeto como sujeito narrativos. Ainda, Megan Sharp e Pam Nilan (2015SHARP, Megan; NILAN, Pam. 2015. “Queer punch: young women in the Newcastle hardcore space”. Journal of Youth Studies, vol. 18, n. 4: 451-467. DOI https://www.doi.org/10.1080/13676261.2014.963540
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) descrevem o queer como um termo guarda-chuva utilizado para a minorias LGBTQI+, e Ruffolo (2009RUFFOLO, David. 2009. Queer interventions: Post-queer politic. Farnham, Ashgate.) reivindica que o termo e a ação queer invocam um pensamento crítico face aos corpos e à cultura, possuindo, assim, a capacidade de trespassar vários tempos e espaços.

É possível inferir que o Fado Bicha se assoma como uma nova forma de “fazer” género, dentro de um espaço profundamente masculinizado. É inerente a essa nova forma uma consciencialização pragmática que, simultaneamente, produz novas identidades queer4 4 Impõe-se, aqui, uma ressalva: apesar de referirmos inicialmente que os estudos queer nunca pensaram o queer como uma identidade, mas antes como um conceito, para efeitos da escrita deste artigo, iremos utilizar a expressão “identidade queer”, uma vez que associamos o queer às formas de ser, de estar, aos conceitos históricos e sociais, mas também às práticas de resistência que se encontram intrínsecas ao nosso objeto de estudo, nomeadamente Fado Bicha. pautadas pela resistência e pela subversão (Sharp, 2019SHARP, Megan. 2019. “Queer(ing) music production: Queer women’s experiences of Australian punk scenes”. In: RAINE, Sarah; STRONG, Catherine (eds.), Towards gender equality in the music industry. Education, practice and strategies for change. London, Bloomsbury , pp. 201-213.; Raine, 2019RAINE, Sarah; STRONG, Catherine (eds.), Towards gender equality in the music industry. education, practice and strategies for change. London, Bloomsbury.). Mais, se seguirmos Foucault (1997FOUCAULT, Michel. 1997. “Friendship as a way of life”. In: RABINOW, Paul (org.), Ethics: Subjectivity and truth, New York, New Press, pp. 135-140.) no que respeita à homossexualidade, arriscamos afirmar que estamos perante diferentes modos de posicionamento face ao tecido social que não vão diretamente contra a heteronormatividade (Wiegman & Wilson, 2015WIEGMAN, Robyn; WILSON, Elizabeth A. 2015. Introduction: Antinormativity’s queer conventions. Differences, vol. 26, n. 1: 1-25. DOI https://www.doi.org/10.1215/10407391-2880582
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); (re)criando novos - e alternativos - espaços de (re)configuração das identidades individuais e de grupo. A performatividade presente nas propostas do Fado Bicha materializará a construção paulatina de espaços alternativos de luta face à marginalidade e à estigmatização que a sexualidade normativa confina tudo o que a transcende. Por seu turno, avaliando a questão de forma mais específica, nomeadamente no respeita ao contexto português, verificamos a inexistência de tradução do termo queer para a língua portuguesa (Silva, 2019SILVA, Daniel. 2019. Trans tessituras. Confounding, unbearable and black transgender voices in Luso-Afro-Brazilian popular music. Nova York, tese de doutorado, Columbia University.). Tal leva-nos a considerar estar perante uma certa apropriação cultural, ampliada pelo facto de Portugal ser um país do Norte Global, mas com uma condição semiperiférica. Uma posição de meio caminho entre o Norte e o Sul Global: por um lado, ancorado a configurações de género e de sexo e, por outro, à prevalência de discursos nacionalistas e convencionais de identidades de género. Tal arranjo explica, em certa medida, a criação de divisões instáveis entre as identidades locais e as identidades globais, à medida que se assiste à proliferação da popular music e da cultura queer. A Revolução de 1974 (Guerra, 2020bGUERRA, Paula. 2020b. “Iberian punk, cultural metamorphoses, and artistic diferences in the post-Salazar and post-Franco Eras”. In: MCKAY, George; ARNOLD, Gina (orgs.). The Oxford Handbook of punk rock. Oxford, Oxford University Press. DOI https://www.doi.org/10.1093/oxfordhb/9780190859565.013.14
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) e a entrada de Portugal na União Europeia nos anos 1980 abrem caminho para que a politização das comunidades LGBTQI+ na década de 1990 ganhe ímpeto, apesar de o reconhecimento legislativo não ter sido, na totalidade, acompanhado pelo reconhecimento social. Atualmente, ainda que o termo queer não tenha uma tradução linguística, possui uma conotação e uma simbologia presentes no imaginário cultural português (Grave et al., 2019GRAVE, Rita; OLIVEIRA, João Manuel; NOGUEIRA, Conceição. Desidentificações de género: Performances subversivas. Ex aequo, n. 40: 89-104. DOI https://www.doi.org/10.22355/exaequo.2019.40.06
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; Oliveira, 2015OLIVEIRA, João Manuel. “Tumultos de género: os efeitos de gender trouble em Portugal”. Periódicus, vol. 3, n.1: 6-18. DOI https://www.doi.org/10.9771/peri.v1i3.12844
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).

Associar o termo queer ao Fado Bicha consubstancia-se no facto de estarmos perante o que consideramos ser uma forma de asserção política “radical” e de afirmação do eu (Valocchi, 2005VALOCCHI, Stephen. 2005. “Not yet queer enough: The lessons of queer theory for the sociology of gender and sexuality”. Gender and Society, vol. 19, n. 6: 750-770. DOI https://www.doi.org/10.1177/0891243205280294
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), não só materializada numa estética visual e performativa, mas também nas letras das canções (Taylor, 2010TAYLOR, Jodie. 2010. “Queer temporalities and the significance of ‘music scene’ participation in the social identities of middle-aged queers”. Sociology, vol. 44, n. 5: 893-907. DOI https://www.doi.org/10.1177/0038038510375735
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; Guerra, 2020cGUERRA, Paula. 2020c. “Cidade, pedagogia e rap”. Quaestio Revista de Estudos em Educação, vol. 22, n. 2: 431-453. DOI https://www.doi.org/10.22483/2177-5796.2020v22n2p431-453
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). O pendor crítico e provocativo das músicas rompe, opondo-se, com o fado dito tradicional centrado em temáticas como a saudade, a nostalgia ou o ciúme. Também as atuações performativas, ao vivo, fluem de forma a enfatizar o corpo vivo e ativo, em contraste notável com as posturas hirtas e estáticas inerentes ao modelo tradicional do fado. Assim, tal como se evidenciou noutro exercício incidente em António Variações5 5 António Joaquim Rodrigues Ribeiro, conhecido como António Variações, foi um cantor e compositor português do início dos anos 1980. A sua curta discografia continuou a influenciar a música portuguesa nas décadas posteriores ao seu desaparecimento. É um caso singular, paradigmático e fundacional da música pop portuguesa. (Guerra, 2017GUERRA, Paula. 2017. “António e as Variações identitárias da cultura portuguesa contemporânea”. Ciências Sociais Unisinos, vol. 53, n. 3: 508-520. DOI https://www.doi.org/10.4013/csu.2017.53.3.11
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), também ele queer, acreditamos que a análise de conteúdos artísticos, à luz da contemporaneidade, permite constatar a veiculação de discursos, narrativas e representações que perspetivam uma sociedade portuguesa diferente e um tanto quanto oculta, de certa forma, oriundas e envoltas do que podemos designar de “music in action” (Acord e DeNora, 2008ACORD, Sophia Krzys; DENORA, Tia. 2008. “Culture and the arts: From art world to arts-in-action”. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, 619: 223-237. DOI https://www.doi.org/10.1177/0002716208318634
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) e modos de ação queer. Aqui, rememorando Upton-Hansen et al. (2020)UPTON-HANSEN, Christopher; KOLBE, Kristina; SAVAGE Mike. 2020. “An institutional politics of place: rethinking the critical function of art in times of growing inequality”. Cultural Sociology , vol. 15, n. 2: 1-20. DOI https://www.doi.org/10.1177/1749975520964357.
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quando expõem ao poder crítico da arte, partindo de uma lógica artivista de subversão de narrativas universalizantes.

A HISTERESE DAS MIL BICHAS EM EUFORIA EM LISBOA

Como observado no ponto anterior, os novos e diferentes modos de ação contemporâneos (Guerra, 2017GUERRA, Paula. 2017. “António e as Variações identitárias da cultura portuguesa contemporânea”. Ciências Sociais Unisinos, vol. 53, n. 3: 508-520. DOI https://www.doi.org/10.4013/csu.2017.53.3.11
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) podem ser apreendidos como meios alternativos de resistência. A partir deste modo de olhar e perspetivar a sociedade portuguesa (Guerra, 2020bGUERRA, Paula. 2020b. “Iberian punk, cultural metamorphoses, and artistic diferences in the post-Salazar and post-Franco Eras”. In: MCKAY, George; ARNOLD, Gina (orgs.). The Oxford Handbook of punk rock. Oxford, Oxford University Press. DOI https://www.doi.org/10.1093/oxfordhb/9780190859565.013.14
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), denotamos significativas - das maiores no conjunto das sociedades ditas ocidentais - discrepâncias em termos de género (Berkers e Schaap, 2018BERKERS, Pauwke; SCHAAP, Julian. 2018. Gender inequality in metal music production. London, Emerald Publishing Limited.). A tal, acresce-se um outro fator inquietante: a ascensão da popularidade de fações populistas de extrema direita, materializadas partidariamente e com representação parlamentar, as quais condenam manifesta e veementemente demonstrações contrárias à normatividade socialmente estabelecida (Marchi, 2020MARCHI, Riccardo. 2020. A nova direita anti-sistema - O caso do Chega. Lisboa, Edições 70.). Se compararmos esta realidade com a do Reino Unido, por exemplo, encontramos diferenças abissais, tendo em conta que, designadamente nas últimas três décadas, têm surgido, contínua e crescentemente, formas vigorosas e movimentos de indivíduos de género não binário, com repercussões a nível político (Pearce e Lohman, 2019PEARCE, Ruth; LOHMAN, Kristy. 2019. “De/constructing DIY identities in a trans music scene”. Sexualities, vol. 22, n. 1: 97-113. DOI https://www.doi.org/10.1177/1363460717740276
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). Não obstante em Portugal existirem reverberações deste tipo de artivismo, as mesmas acabam por não arrogar-se das mesmas proporções. O que não nos impede de aludir paradigmaticamente ao coletivo Pantera Rosa6 6 Assumem-se como um movimento coletivo e sem hierarquias, defensor de uma democracia radical onde não exista discriminação e agressão face à comunidade LGBTQIA+. Enquanto grupo queer e transfeminista, as Panteras Rosa denunciam o cissexismo, o heterossexismo e o primado da heterossexualidade como parte de um sistema político patriarcal que cria diferenciações sexuais e de género para determinar desigualdades sociais. Mais informações em: https://pt-pt.facebook.com/pages/category/Political-Organization/Panteras-Rosa-167629923258311/ (Colling, 2015COLLING, Leandro. 2015. Que os outros sejam normal. Tensões entre movimento LGBT e ativismo queer. Salvador, Universidade Federal de Bahia.). Pearce e Lohman adiantam ainda que deve equacionar-se a integração da diversidade de ideias pré-existentes face ao género e às possibilidades de género. Em termos de identidade, estamos perante uma significativa complexidade, refletida nas experiências específicas e em sentimentos individuais passíveis de serem construídos discursivamente. Ser queer, então, não significa inevitavelmente uma identidade fixa, mas antes uma condição potenciadora e mobilizadora da criação de novas possibilidades, o que atesta o reconhecimento da complexidade de género.

No âmbito da emergência de novas formas identitárias no contexto das comunidades, e da reconstrução de novos modos e de diferentes códigos a si associada, podem moldar-se inovadoras e excecionais formas de ativismo (Whittle, 1998WHITTLE, Stephen. 1998. “The trans-cyberian mail way”. Social & Legal Studies, vol. 7, n. 3: 389-408. DOI https://www.doi.org/10.1177/096466399800700304
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). Pearce e Lohman (2019PEARCE, Ruth; LOHMAN, Kristy. 2019. “De/constructing DIY identities in a trans music scene”. Sexualities, vol. 22, n. 1: 97-113. DOI https://www.doi.org/10.1177/1363460717740276
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) apontam para que estes processos de (re)construção identitários, imersos e enformadores de um entorno cultural, podem circunscrever-se a uma cena musical. Os eventos enquadram-se numa cena que não só aglutina um número, cada vez maior, de redes de promotores, performances e audiências, como também corporiza a ideia complexa de espaço queer. Efetivamente, entendemos que a performance, a postura e as produções do Fado Bicha consubstanciam modos não-institucionais de cidadania e de participação na esfera política, uma vez sustentados em dinâmicas artísticas e criativas. Assumem-se, particularmente, como veículos de questionamento (Brill, 2007BRILL, Dunja. 2007. “Gender, status and subcultural capital in the goth scene”. In: HODKINSON, Paul; DEICKE, Wolfgang (orgs.). Youth cultures: Scenes, subcultures and tribes. London, Routledge.) que se movem dentro de um campo de dominação masculina (McRobbie, 1991MCROBBIE, Angela. 1991. “Settling accounts with subculture: A feminist critique”. In: Youth Questions (Org.). Feminism and youth Culture. London, Palgrave, pp. 16-34.). Tomando a questão da dualidade da resistência e da existência (Guerra, 2021GUERRA, Paula. 2021. “So close yet so far: DIY cultures in Portugal and Brazil”. Cultural Trends, vol. 30, n. 2: 122-138. DOI https://www.doi.org/10.1080/09548963.2021.1877085
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), e estabelecendo relação com o contexto geográfico, social e político, é possível identificar-se nas criações artísticas do Fado Bicha, as microestruturas de poder, baseadas em padrões de exclusão e de inclusão que, concomitantemente, servem de base analítica das desigualdades de género. Aproximamo-nos, assim, de uma histerese. Ora, a histerese ocorre quando o habitus (Bourdieu, 1990BOURDIEU, Pierre.1990. The logic of practice. Stanford, Stanford University Press.) não se alinha com o campo em que opera - algo profundamente evidente nas produções artísticas do Fado Bicha. Aliás, o próprio conceito de histerese assume-se como um elemento capital para compreendermos estas mudanças e ruturas (Graham, 2020GRAHAM, Hannah. 2020. “Hysteresis and the sociological perspective in a time of crisis”. Acta Sociologica, vol. 63, n.4: 450-452. DOI https://www.doi.org/10.1177/0001699320961814
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): particularmente no que tange ao papel subalterno de indivíduos de género não-binário face a uma sociedade dominada pela masculinidade heteronormativa - em que a canção “Marcha do orgulho” (2019FADO BICHA. 2019. “Marcha do orgulho”. Videoclipe. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mCkPxNk5N50&ab_channel=FadoBicha
https://www.youtube.com/watch?v=mCkPxNk5...
)7 7 Uma versão animada da canção pode ser encontrada no canal do Fabo Bicha no Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mCkPxNk5N50&ab_channel=FadoBicha se assume como exemplar.

É dia de vir cá para fora Aqui e agora, pôr o pé no mundo Tirar a bandeira do armário É comunitário, num clamor rotundo Nem menos nem mais Direitos iguais São muitas as cores desta minoria Em cada esquina, amigas Novas e antigas Mil bichas em euforia Política na rua A minha voz e a tua.

Partindo dos contributos de Naomi Griffin (2012GRIFFIN, Naomi. 2012. “Gendered performance performing gender in the DIY punk and hardcore music scene”. Journal of International Women’s Studies, vol. 13, n. 2: 66-81.) e atendendo ao excerto apresentado, vislumbramos que à performatividade de género não se associam apenas letras subversivas, mas também o estilo musical, no sentido em que se dota o fado de estilos e sonoridades contemporâneas. Rompe-se o limiar de uma ideia do passado com uma representação no presente (Guerra, 2017GUERRA, Paula. 2017. “António e as Variações identitárias da cultura portuguesa contemporânea”. Ciências Sociais Unisinos, vol. 53, n. 3: 508-520. DOI https://www.doi.org/10.4013/csu.2017.53.3.11
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), conferindo-se-lhe uma nova roupagem profundamente política e politizada, que fala de direitos iguais, das cores das minorias e de “bichas”. O próprio corpo também é utilizado pelo Fado Bicha como uma forma de resistência (ver Figura 1.), aquilo que Wesley (2003) enuncia como “tecnologia do corpo”, sendo que este também é político e contrariando, deste modo, a ideia de Griffin (2012)GRIFFIN, Naomi. 2012. “Gendered performance performing gender in the DIY punk and hardcore music scene”. Journal of International Women’s Studies, vol. 13, n. 2: 66-81. de que as pessoas vivem a maior parte das suas vidas como sendo meros “corpos vestidos”. Estas tecnologias do corpo (do self) (DeNora, 2003DENORA, Tia. 2003. “Music sociology: getting the music into the action”. British Journal of Music Education, vol. 20, n. 2: 165-177. DOI https://www.doi.org/10.1017/S0265051703005369
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) podem também ser encaradas como formas de resistência e de contestação face à conformidade entre as normas e as expectativas sociais (Wagaman, 2013) - o uso de maquilhagem exuberante, de roupas com extravagantes padrões animais são igualmente formas assumidas pelo Fado Bicha, a par da música - de protestar face à sociedade. Assim, o corpo - quer por via da performance (Dhaenens, 2014DHAENENS, Frederik. 2014. “Articulations of queer resistance on the small screen”. Continuum, vol. 28, n. 4: 520-531. DOI https://www.doi.org/10.1080/10304312.2014.907869
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) quer por via da envergadura de uma estética - é utilizado como uma forma de reivindicar uma agência, isto é, é entendido como um locus de empoderamento contra as práticas normativas impostas (Langman, 2008LANGMAN, Lauren. 2008. “Punk, porn and resistance”. Current Sociology, vol. 56, n. 4: 657-677. DOI https://www.doi.org/10.1177/0011392108090947
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). Para Tia DeNora a música é consciência. E por isso, o Fado Bicha permite explorar o que Theodor W. Adorno (1976ADORNO, Theodor. 1976. Introduction to the sociology of music. New York, Continuum.) deixou por fazer: a música pode diligenciar recursos para um trabalho ideológico crucial para robustecer determinadas relações sociais (DeNora, 2003DENORA, Tia. 2003. “Music sociology: getting the music into the action”. British Journal of Music Education, vol. 20, n. 2: 165-177. DOI https://www.doi.org/10.1017/S0265051703005369
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: 174).

Figura 1
João e Lila, Fado Bicha em 2019.

A questão da performatividade no âmbito da problemática da identidade de género adensa-se com a perspetiva de Butler (1999BUTLER, Judith. 1999. Gender trouble. Feminism and the subversion of identity. New York, Routledge .): defensora de que o género é construído pela repetição de performances. Griffin (2012GRIFFIN, Naomi. 2012. “Gendered performance performing gender in the DIY punk and hardcore music scene”. Journal of International Women’s Studies, vol. 13, n. 2: 66-81.) presta igualmente um contributo importante neste âmbito, ao destacar a dança como a principal performance de construção de género. Associar a dança ao fado, como acontece no caso do Fado Bicha, pode ser entendido, uma vez mais, como um ato de resistência que desafia as lógicas social e culturalmente estabelecidas.

O fado surge, então, no caso em apreço, como um meio subversivo, isto é, como uma prática e uma posição provocativa que simultaneamente se relaciona e se opõe à representação do que é periférico - estéticas, práticas, ethos e identidades, entre outros -, rejeitando a submissão ao que é central. A utilização do termo “bicha” - pejorativo na língua portuguesa - é em si um ato de resistência, inclusive na própria comunidade LGBTQI+ que, com frequência, o entende como uma evocação negativa. Como esclarece João Caçador:

As palavras podem ser muitas coisas, dependendo da forma como são ditas. O que nós fazemos é pegar num termo conotado como pejorativo e usá-lo como forma de insurreição, de catarse. Transformámos a palavra bicha - que durante tantos anos nos atormentou, por estar associada a uma aberração, a algo que é desprezível, a um saco de bater - e tornámo-la num instrumento de luta. Eu sou bicha e sou bicha orgulhosa. Não são todos os homossexuais que são bichas e um heterossexual também o pode ser. Para ser bicha é preciso ser corajosa. A Amália era uma bicha gigante porque rompeu com muitos padrões no fado: foi a primeira a cantar Camões, ‘apedrejaram-na’ em praça pública por ter feito uma adaptação de um dos seus poemas. (João Caçador, para In Divergente, 2018DIVERGENTE. 2018. “Tudo isto existe, tudo isto é bicha, tudo isto é fado”. Divergente. 17 de maio 2018. Disponível em: Disponível em: https://divergente.pt/fado-bicha/ . Acessado 19 de maio de 2021.
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: s/p).

Ao ampliar-se os mundos do fado está a recriar-se uma diáspora de práticas culturais e de transgressão de género (Silva, 2019SILVA, Daniel. 2019. Trans tessituras. Confounding, unbearable and black transgender voices in Luso-Afro-Brazilian popular music. Nova York, tese de doutorado, Columbia University.), que acaba por impedir, de certa forma, que o mesmo seja visto como fado queer. Na verdade, historicamente, o fado - ao ser um sinónimo de destino - acaba por ser uma prática artístico-cultural inegável no âmbito das identidades tidas como marginais. Da dupla Fado Bicha, destaca-se o facto de Lila Fadista, que começou o seu percurso como drag queen, se defina como “agénero”, no sentido em que não se identifica como homem ou mulher e, mais ainda, considera que o termo “homossexual” não será suficiente para descrever-se. Lila, ao construir a sua identidade de género - ou ausência de uma -, por meio da multiplicidade de performances, marcadas pelo uso de pronomes femininos, pelas roupas e pelas formas como se apresenta, corporiza, de certo modo, o que teoriza Butler (1999BUTLER, Judith. 1999. Gender trouble. Feminism and the subversion of identity. New York, Routledge .) em relação à performatividade, exercendo-a de modo não cisnormativo. Por seu turno, João Caçador, guitarrista do Fado Bicha, expressa a sua resistência não só pelos elementos estéticos, mas, porventura sobretudo, no fazer musical do Fado Bicha (Guerra, 2020aGUERRA, Paula. 2020a. “Paixões sónicas conservadas em disposofonias: o musicar de Gustavo Costa e da Sonoscopia”. ArtCultura, vol. 22, n. 4: 7-29. DOI https://www.doi.org/10.14393/artc-v22-n41-2020-58637
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), ao utilizar a guitarra elétrica e a guitarra espanhola em alternativa à guitarra portuguesa. Fadistas como Amália Rodrigues8 8 Amália da Piedade Rodrigues foi uma cantora, atriz e fadista portuguesa, geralmente aclamada como a voz de Portugal e um nome-maior do século XX. http://amaliarodrigues.pt/en/home-page/ ou, mais recentemente, Carminho9 9 Tida como uma grande voz do fado português, é uma das artistas com maior projeção internacional. https://www.carminhomusic.com/ ou Mariza10 10 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kBk5Q4tpYTM&ab_channel=FadoBicha são referências nacionais: distintivas por serem mulheres e cantarem “à sua maneira” o fado. Também no fado se evidencia um viés de gênero (gender bias), atestado, nomeadamente, no facto de os temas cantados por mulheres e homens fadistas serem distintos e, por tal, consubstanciarem uma separação de género. No caso do Fado Bicha assiste-se a uma ampliação da questão. Apesar de cantar sobretudo temas do reportório feminino, o Fado Bicha escreve e produz os seus próprios fados, apropriando-os à sua realidade e às suas visões sobre a sociedade portuguesa (Peters, 2010PETERS, Brian. 2010. “Emo Gay Boys and subculture: Postpunk queer youth and (re) thinking images of masculinity”. Journal of LGBT Youth, vol. 7, n. 2: 129-146. DOI https://www.doi.org/10.1080/19361651003799817
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), ao abordar temas como a homossexualidade, as narrativas transgénero (Blashill e Kimberley, 2009BLASHILL, Aaron; POWLISHTA, Kimberley. 2009. “Gay stereotypes: The use of sexual orientation as a cue for gender-related attributes”. Sex Role, vol. 61, n. 11: 783-793. DOI https://www.doi.org/10.1007/s11199-009-9684-7
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), a vida queer, o amor e a perda (estes últimos de índole clássica e tradicional). Mas também canta a realidade social contemporânea, incindindo em temáticas como a discriminação, a xenofobia, a desigualdade e a precariedade económicas. Um caso muito representativo é a canção “Lisboa, não sejas racista”11 11 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kBk5Q4tpYTM&ab_channel=FadoBicha , de 2019FADO BICHA. 2019. “Lisboa, não sejas racista”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kBk5Q4tpYTM&ab_channel=FadoBicha
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, um repto da canção de Amália Rodrigues “Lisboa não sejas francesa”.

Lisboa, não sejas racista Colonialista De civismo à Brás (…) À mesa de trás Lisboa, limpa por mulheres Às quais não conferes Direito a sonhar Lisboa, não sejas racista É tão quinhentista Vê se mudas de ar.

Como podemos ler no excerto do fado apresentado, existe uma clara intenção de crítica social e política à sociedade portuguesa. Critica-se o tradicionalismo principalmente por referência ao colonialismo, evidenciando a persistência do racismo na sociedade portuguesa. Destaca-se, igualmente, a tenacidade da desigualdade de género, ao mencionar-se a despromoção e a destituição das mulheres, uma vez relegadas a papéis secundários e a trabalhos precários (Abtan, 2016ABTAN, Freida. 2016. “Where is she? Finding the women in electronic music culture”. Contemporary Music Review, vol. 35, n. 1: 53-60. DOI https://www.doi.org/10.1080/07494467.2016.1176764
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) e a quem é renegado o direito a sonhar - “Lisboa, limpa por mulheres/ Às quais não conferes/ Direito a sonhar”. Interessante é o facto, que importa destacar, de estas vivências das populações marginalizadas - e este fado em particular - denotarem uma referência aos fados de Amália. Na verdade, esta fadista tem sido uma parte fundamental das experiências queer no fado (Guerra, 2017GUERRA, Paula. 2017. “António e as Variações identitárias da cultura portuguesa contemporânea”. Ciências Sociais Unisinos, vol. 53, n. 3: 508-520. DOI https://www.doi.org/10.4013/csu.2017.53.3.11
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). António Variações e uma referência no campo da música pop portuguesa, gravou uma versão da música “Povo que Lavas no Rio”12 12 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Sxjasfl2Y_w&ab_channel=antoniovariacoesofic , apresentado no lado B do seu disco de estreia em 1982ANTÓNIO VARIAÇÕES. 1982. “Povo que Lavas no Rio”. Videoclipe. Anjo da Guarda (LP). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Sxjasfl2Y_w
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. Assim, quer em António Variações, quer no Fado Bicha se verifica a partilha de reportório de Amália, reportório esse interligado às expressões do tempo e às ressonâncias afetivas dos trânsitos das vidas periféricas e marginais. Estamos, assim, perante inegáveis e abundantes apropriações e (re)significações, que se materializam numa interação permanente entre contextos culturais e sociais, a qual ocorre no decurso de uma mudança permanente em termos líricos e coreográficos (Zhao, 2020Zhao, Jamie. 2020. “It has never been ‘normal’: queer pop in post-2000 China”. Feminist Media Studies, 20(4): 463-478. DOI https://doi.org/10.1080/13528165.2010.527210
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), culminando na intensificação de um sentimento de pertença a uma comunidade marginalizada e estigmatizada.

LISBOA NÃO SEJAS DESIGUALITÁRIA

O exercício que partilhamos, para além de incidir nas músicas, assenta numa exploração metodológica, de caráter qualitativo, dos discursos patentes numa entrevista em profundidade realizada a Lila e a João Caçador, protagonistas-artistas do Fado Bicha. Almeja-se, desta forma, compreender as identidades de género e a sua ligação com o conceito queer, bem como a relação de ambas com uma prática artística de caráter interventivo, nomeadamente o fado. Mais, intenta-se dar conta dos modos como as identidades queer, podem ser construídas a partir das experiências vividas (Denzin e Lincoln, 2003DENZIN, Denzin; LINCOLN, Yvonna. 2003. Collecting and interpreting qualitative materials. Thousand Oaks, Sage.; Halberstam, 2005HALBERSTAM, Jack. 2005. In a queer time and place: Transgender bodies, subcultural lives. New York, New York University Press.). Remetendo ao que foi dito anteriormente, ao falarmos em identidades queer, estamos a referir-nos ao conceito cunhado pelos estudos queer face às identidades e aos modos de resistência que se materializam e corporizam no Fado Bicha. Tal como Sharp e Nilan (2015SHARP, Megan; NILAN, Pam. 2015. “Queer punch: young women in the Newcastle hardcore space”. Journal of Youth Studies, vol. 18, n. 4: 451-467. DOI https://www.doi.org/10.1080/13676261.2014.963540
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) referem, o formato de entrevista permite que se crie um espaço que possibilite uma reflexão, notabilizando os modos como a construção do self pode ser evidenciada e entendida a partir do conteúdo da entrevista. O facto de termos adotado a aplicação de uma entrevista semiestruturada (May, 2002MAY, Tim. 2002. Qualitative research in action. London, Sage.) é determinante para percecionarmos as construções de identidade no plano da sexualidade e do género. Notamos, modestamente, a relevância deste exercício metodológico, uma vez constituir-se como pioneiro cientificamente, em Portugal, ao nível dos estudos queer e no âmbito da intervenção artística de pendor ativista. Efetivamente, os estudos que têm sido feitos, mais recentemente, sobre as formas de ativismo ou de artivismo, e/ou até sobre as desigualdades de género, tendem a focar-se nas mulheres e a menosprezar ou a aglutinar nessa categoria indivíduos queer, sendo que estes enfrentam outras formas de desigualdades e, consequentemente, ativam outros modos e formas de resistir e de enfrentar as mesmas. O fado posterior é bem revelador disso mesmo.

Estás a cem metros de mim no Cristo Rei Não mando fotos assim pois não sou gay. Só quero experimentar novos desejos. Mas sem nos vermos, pouco dizermos, E nada de beijos! De quem eu gosto é da minha namorada! Vá lá, entende, ela não pode saber de nada. Não mandes mais mensagens Que eu vou apagar o Grindr (…) Ontem foi mesmo rés-vés… Mas ela não viu. Não pode haver mais cafés junto ao rio. Pára de falar de amor! Eu não sou mau… A culpa disto, Digo e insisto, É do meu pau!

FIGURAS BIZARRAS QUE O FADO VIVE. UMA CRÓNICA DO FADO BICHA

Lila afirma ter sempre consumido avidamente música e, desde cedo, se considerar alguém que procura música e artistas semelhantes àqueles que ela conhecia. Nesse sentido, a música sempre foi um estímulo para a busca de informações que, com frequência, eram encontradas na leitura de revistas como a Blitz. Lila, mestre em psicologia, aquando da sua entrada na faculdade, começou a assistir a concertos das bandas de que gostava e também a ser uma frequentadora regular de festivais, o que atesta, de certa forma, os seus gostos ecléticos e não apenas centrados no fado. Note-se que, apesar da sua relação com o fado se ter dado muito cedo, como ouvinte de fado gravado, de discos e na internet, Lila nunca frequentou casas de fado, não tendo existido, na verdade, uma relação de proximidade ao fado quer por parte da sua família, quer por parte do seu grupo de amigos mais próximos. Aliás, Lila também nunca teve curiosidade para conhecer como é que seria a comunidade do fado e de como é que seriam as casas de fado. Durante a entrevista, confessa haver uma “certa fantasia e uma certa idealização, mas talvez mais histórica do que propriamente sobre a atualidade” do fado.

Numa fase de vida mais avançada, Lila envolveu-se com o mundo do teatro e acaba por viver na Grécia durante algum tempo, onde cantava de forma informal para o seu grupo de amigos. Durante esse período, terá ficado ainda mais claro na sua mente a força de uma mensagem transmitida pela música. Outro aspeto que viria a ser determinante da sua trajetória - com o fado -, prende-se com o facto de ter tido aulas na Escola de Fado da Mouraria13 13 A Escola de Fado da Mouraria nasceu em novembro de 2012 e é hoje uma das instituições mais marcantes da cidade de Lisboa. , onde, desde o início, diga-se, se sentiu limitada pelas regras impostas. O ambiente que lá encontrou não foi o que esperava: “o professor era muito bom tecnicamente, mas tinha uma postura muito rígida e mesmo nos alunos e alunas entre si havia muito pouca camaradagem. Era um ambiente muito seco”. Para si, professores e alunos demonstraram atitudes e comportamentos conservadores no que respeita, designadamente, às letras e às temáticas exploradas, bem como quanto aos papéis atribuídos a homens e mulheres no mundo do fado. Lila cedo percebeu que não se sentia bem ali, ao contrário do bem-estar que os espaços LGBTQI+ lhe proporcionavam; viria a desistir de frequentar a escola. Não obstante, percebeu que não estava disposta a abdicar do que sentia e do que gostava de cantar, nem em abdicar daquilo que poderia trazer de novo e de inovador à indústria. E, no que podemos apelidar emblematicamente, de um ato revolucionário, começou a cantar a capella, com instrumentais que estavam disponíveis na Internet, um fado “pouco polido” que decorre porque as “as pessoas estão no mesmo espaço sem pudor, preocupações e regras”. Aproximava-se o fado das suas origens - a música da Lisboa marginal e boémia. Essa liberdade para experimentar, trouxe-a do teatro amador onde “tudo se deve experimentar e isso acontece com Fado Bicha”. Aliás, Lila afirma que muito do que fazia em palco não era concebível para si como algo que alguma vez iria fazer, “desde a exposição do corpo até à própria experiência de movimentos”. O fado e o teatro terão permitido libertar-se de certas amarras constrangedoras.

A libertação perante os constrangimentos impostos pelo tradicionalismo, não só a nível musical, como também ao nível pessoal, parece-nos decorrer do próprio prazer musical e corpóreo que Lila sente, durante as suas performances, e do modo como tal se estará relacionado com as consequências das experiências políticas e sociais (Street, 2017STREET, John. 2017. “Rock, pop and politics”. In: FRITH, Simon; STRAW, Will; STREET, J. (Orgs.). The Cambridge Companion to pop and rock. Cambridge, Cambridge University Press .). As palavras de João Caçador, o instrumentista que acompanha Lila, que narram a sua experiência pessoal, confluem nos mesmos sentidos. João considera que, até a adolescência, a sua cultura musical era muito “limitada e muito fechada”, algo que é explicado por ter crescido num contexto familiar conservador e profundamente religioso. Embora a sua irmã mais velha já consumisse alguma música internacional, como The Offspring ou The Doors, João não conseguia identificar-se com esse tipo de música. Pelo contrário, começou a ligar-se à música portuguesa e aos cantautores: Lembro-me que até aos dezoito anos ou dezanove eu só ouvia música portuguesa”. Assume-se a questão do contexto familiar como determinante para compreendermos os percursos de Lila e de João, especialmente pelo facto de as suas músicas e as suas formas de artivismo, serem o resultado dessa multiplicidade de experiências vividas. A propósito, John Street (2017)STREET, John. 2017. “Rock, pop and politics”. In: FRITH, Simon; STRAW, Will; STREET, J. (Orgs.). The Cambridge Companion to pop and rock. Cambridge, Cambridge University Press . afirma que desde muito cedo os músicos têm utilizado a música - principalmente a popular music - como veículo para as suas ideologias políticas, transpondo-as para o papel, sob a forma de rimas, versos e letras a partir de uma base instrumental, tendo essas escolhas rítmicas um passado familiar.

Nos casos em apreço, notamos que, enquanto o pai de Lila era um apreciador de música e sempre gostou muito de compositores e cantores ligados à resistência, tanto em Portugal - Sérgio Godinho e Fausto - como no Brasil - Chico Buarque, os pais de João, segundo o próprio, não teriam gostos musicais tão refinados. O pai deste não tinha qualquer ligação à música e não tinha por hábito sequer ouvir discos. A mãe ouvia, essencialmente, música ligeira portuguesa, como Tony Carreira14 14 Cantor português, com mais de 33 anos de carreira, cuja música “Ai Destino”, gravada em 1995, foi um êxito nacional, tendo-lhe conferido o título de maior cantor romântico português. ou Marco Paulo 15 15 Nome artístico de João Simão da Silva, um dos maiores cantores populares portugueses, tendo já recebido cerca de 140 galardões de platina, de ouro e de prata e até mesmo um de diamante. . É, em parte, daqui que vem o interesse e a identificação de João com os cantautores portugueses. Aliás, a ligação de João à música é sobretudo uma ligação à música portuguesa, na medida em que assume ter algumas dificuldades com o inglês.

O meu pai gostava de Sérgio Godinho, mas não sei se ele comprou… quer dizer, desde os finais dos anos 1980, eu não sei se ele comprou algum álbum na vida dele. Portanto, também não era… ele era apreciador de música e continuava a gostar muito de Sérgio Godinho e do Fausto, por exemplo, que ele adora, e do Chico Buarque. Esses compositores muito ligados à Resistência de Portugal e do Brasil. Mas ele não era, nem é, propriamente um consumidor e conhecedor. Mas tinha um gosto mais refinado (Lila Fadista).

Os contextos precoces de socialização não podem ser escamoteados quanto à influência que exercem na construção quer dos gostos, quer das criações. No caso de João, foi por volta dos 18 ou 19 anos, e por influência do seu grupo de amigos do bairro onde vivia, na cidade de Loures, que começou a interessar-se pelo hip-hop. E é ao hip-hop que João atribui as raízes da sua postura interventiva na música (Sharpley-Whiting, 2007SHARPLEY-WHITING, Denean. 2007. Pimps Up Ho’s Down: Hip-hop’s hold on young black women. New York, New York University Press .).

Eu vivia em Loures, por isso também havia toda uma mística do subúrbio e eles retratavam isso, não é? Esse bichinho da intervenção foi muito buscado ao hip-hop. Hoje em dia, eu arrisco-me quase a dizer, que a ligação entre o fado e o hip-hop é uma coisa muito orgânica pela questão do estar à margem, do subúrbio (João Caçador).

Mais, estabelece uma associação entre o hip-hop e o fado, na medida em que ambos trabalham a questão das várias periferias e têm a capacidade de tecer um “olhar muito lúcido e completo sobre coisas que não passam na televisão, que não passam na rádio e que não são faladas nas universidades, mas que é falado no fado e que é falado no hip-hop”. João toca guitarra desde os doze anos. Estudou jazz e música moderna, no Hot Club16 16 A Escola de Jazz do Hot Clube de Portugal foi fundada em 1979 pelo contrabaixista Zé Eduardo e desde então tem vindo a crescer paulatinamente. , onde conheceu muito reportório de jazz, mas com o qual afirma não se identificar. Na verdade, João assume que o início do período de formação no Hot Club foi um choque, na medida em que o seu background musical era praticamente limitado à música pimba e à música popular portuguesa. Não obstante, esses anos serviram para desconstruir e complexificar uma ideia musical mais rica e mais diversa do que aquela que João possuía. Afastando-se dos gostos musicais de seus pais e, entretanto, também do hip-hop como música de intervenção contemporânea (Guerra, 2020bGUERRA, Paula. 2020b. “Iberian punk, cultural metamorphoses, and artistic diferences in the post-Salazar and post-Franco Eras”. In: MCKAY, George; ARNOLD, Gina (orgs.). The Oxford Handbook of punk rock. Oxford, Oxford University Press. DOI https://www.doi.org/10.1093/oxfordhb/9780190859565.013.14
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), João começa a deixar-se influenciar pelas músicas dos Dead Combo17 17 São uma banda portuguesa pautada pelo mix entre o fado, o rock e as bandas sonoras dos westerns. É composta por apenas dois músicos, Tó Trips e Pedro Gonçalves. e pela musicalidade de Naifa - um projeto musical português que conjuga o fado e o pop-rock, cujas letras são adaptações de poemas de autores portugueses, tais como Adília Lopes ou José Luís Peixoto. As influências são fundamentais para a construção e entendimento do eu, principalmente pelo facto de as identidades individuais se encontrarem dependentes de um conjunto de normas que são construídas na vivência com o outro (Nicholas, 2007NICHOLAS, Lucy. 2007.“Approaches to gender, power and authority in contemporary anarcho-punk”. Gender: Power and Authority,eSharp,n. 9: 1-22. Disponível em: Disponível em: https://www.gla.ac.uk/media/Media_41219_smxx.pdf . Acesso em, 15/05/2022.
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). É também por isso que podemos encarar as produções do Fado Bicha como um meio efetivo de des-universalização dos sistemas tradicionais de género e de oposição às autoridades do patriarcado contemporâneo (McHoul e Grace, 1993MCHOUL, Alec; GRACE, Wendy. 1993. A Foucault primer. London, UCL Press.) (ver Figura 2), no sentido em que prefiguram uma nova e diferente realidade social, através da mistura entre a arte e o ativismo social (Raposo, 2015RAPOSO, Paulo. 2015. ““Artivismo”: articulando dissidências, criando insurgências”. Cadernos de Arte e Antropologia, vol. 4, n.2: 3-12. DOI https://www.doi.org/10.4000/cadernosaa.909
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). As produções do Fado Bicha visam a rutura, a resistência e a luta por um lugar “ao sol”.

Figura 2
Lila e João. Fado Bicha.

Em termos de estruturação e mecanismos de poder, podemos afirmar que as abordagens marginais que intervêm, confrontando, o sistema de género totalizante e hegemónico, possuem a capacidade de criarem os seus próprios mecanismos de reconhecimento de uma atividade que, na verdade, pode ser entendida como sendo micro ou macro-política (Butler, 1999BUTLER, Judith. 1999. Gender trouble. Feminism and the subversion of identity. New York, Routledge .). As ações diárias de prefiguração, ensaio e demonstração de modos de vida alternativos ou opositores aos tidos como convencionais, usualmente vistos como transgressivos (Bowen e Purkis, 1997BOWEN, James; PURKIS, Jon. 1997. Twenty-first century anarchism: Unorthodox ideas for the new millennium. New York, Cassell.), são entendidos por alguns (Oliveira e Romanini, 2020OLIVEIRA, Itauane; ROMANINI, Moises. 2020. “Sobre existências: As narrativas de vida de mulheres trans e seus modos de resistência”. Diversidade e Educação, vol. 7, n. 2: 417-444. Disponível em: Disponível em: https://www. readcube.com/articles/10.14295%2Fde.v7i2.9138 . Acesso em 16/5/2022
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) como dualidades vivenciais, isto é, ações que dependendo dos múltiplos contextos sociais, culturais, políticos ou económicos - podem ser entendidas como modos de resistência, ou modos de existência (Guerra, 2021GUERRA, Paula. 2021. “So close yet so far: DIY cultures in Portugal and Brazil”. Cultural Trends, vol. 30, n. 2: 122-138. DOI https://www.doi.org/10.1080/09548963.2021.1877085
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). Por comparação ao exemplo de artistas do contexto brasileiro, como Liniker, Linn da Quebrada, Mc Xuxu ou Johnny Hooker, percebemos as diferenças.

No caso de Lila e João, justifica-se a materialização das demonstrações de vivências transgressivas, a partir de dois elementos fundamentais: i) a frequência de espaços LGBTQI+ friendly e ii) o contacto com outros músicos fadistas. Estes dois elementos contribuíram para que, em 2017, os seus caminhos se cruzassem. Não só os caminhos, mas as suas reivindicações e as suas lutas. O “essencialismo estratégico” que Spivak (1994SPIVAK, Gayatri Chakravorty. 1994. “In a word: Interview. Gayatri Chakravorty Spivak with Ellen Rooney”. In: SCHOR, Naomi; WEED, Elizabeth (orgs.). The essential difference. Bloomington, Indiana University Press.: 167) associa às noções de género feministas de caráter pós-estruturalista, permite-nos inferir que é possível encontrar formas de avançar dentro dos limites discursivos. O que é que isto significa? Ainda, o que isso significa nomeadamente em relação ao Fado Bicha? O essencialismo estratégico diz respeito a uma tática que pretende desconstruir o género (Sharp e Shannon, 2020SHARP, Megan; SHANNON, Barrie. 2020. “Becoming non-binary: An exploration of gender work in Tumblr”. In: FARRIS, Nicole; COMPTON, D’Lane; HERRERA, Andrea (orgs.). Gender, sexuality and race in the digital age. London, Springer, pp. 137-150.), que, no caso do Fado Bicha, ocorre fundamentalmente por meio da música - do fado - e da performance. Assim se cria leituras subversivas e, simultaneamente, se evita as que pretendem reforçar o que é suposto ser subvertido. Um exemplo modelar a este respeito é a música “O Namorico do André” (2019FADO BICHA. 2019. “O Namorico do André”. Videoclipe. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GrZv7FJGUKE&ab_channel=FadoBicha
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)18 18 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GrZv7FJGUKE&ab_channel=FadoBicha em resposta ao fado “O Namorico da Rita”, imortalizado por Amália Rodrigues em 1957.

No Mercado da Ribeira, há um romance de amor Entre o André que é peixeiro e o Chico que é pescador Sabem todos que lá vão que o André gosta do Chico Só a mãe dele é que não consente no namorico (…) Namoram de manhãzinha e da forma mais diversa Dois caixotes de sardinha são dois dedos de conversa E há quem diga à boca cheia que depois de tal banzé O Chico, de volta e meia, prega dois beijos no André (…) Em dias de mais movimento, quando o peixe se esgota Pra não perder clientela, a mãe manda o André à lota E ali, entre os contentores, salmão, atum e garoupa Dá-se o André aos amores: mais Chico, menos roupa

O videoclipe da música deste trecho visibiliza de forma manifesta a narrativa. Aliás, são várias as narrativas visuais ali contidas: a da família tradicional, no caso associada à atividade piscatória - bastante tradicional e tendencialmente religiosa, em Portugal - que não aceita a sexualidade do filho e que a pretende mudar a todo o custo. Ela ocorre, paralelamente, a assumida por Lila e João, ou seja, uma narrativa disruptiva em relação à primeira, na qual se representa, pelo tronco desnudo, a imagem simbólica queer (Stormer, 2020STORMER, Tim. 2020. “My boy like a queen”. Musical and visual queer performance in music videos of Sam Smith and Troye Sivan. Utrecht, Utrecht University.) e se despoleta a sequente associação ao voguing. De notar, ainda, uma referência visual - e temática - relevante no que respeita à questão do racismo (tratada como provocatória e por oposição) - o casal protagonista da estória é constituído por um homem negro e um homem branco. Numa única música - e videoclipe - são múltiplos os alvos de contestação e de oposição à sociedade portuguesa. Estas práticas e narrativas - meios específicos de fazer (Spivak, 1994SPIVAK, Gayatri Chakravorty. 1994. “In a word: Interview. Gayatri Chakravorty Spivak with Ellen Rooney”. In: SCHOR, Naomi; WEED, Elizabeth (orgs.). The essential difference. Bloomington, Indiana University Press.) - materializam invocações e contestações que podem ser entendidas a partir de símbolos historizados, no sentido em que reveliam face às estruturas do patriarcado, um tanto quanto ilídimas, ou às de género (Hindess, 1986HINDESS, Barry. 1986. “Actors and social relations”. In: WARDELL, Mark; TURNER, Stephen (orgs.). Sociological theory in transition. Boston, Allen and Unwin, pp. 103-116.).

Não se olvide que a matriz de referência e a matéria sobre as quais esta dupla trabalha é o fado, um estilo musical conservador e nutrido por um meio tradicionalista. Pela alteração de poemas já cantados e da criação de novos, com uma grande ênfase colocada nas letras e na língua portuguesa, Lila e João criam espaços para a experimentação de narrativas não normativas no que toca ao género e à sexualidade. O seu projeto, e desde logo no nome escolhido, conciliam o fado, um género musical tipicamente conotado à identidade portuguesa e a uma dimensão conservadora e tradicional, com um termo pejorativo, por eles transformado num instrumento de luta. As letras, performances, e forma como se apresentam procuram reescrever as regras (ou aboli-las) do fado, tanto musicalmente, como na forma de estar, de cantar, de vestir:

Para mim, as letras, a escrita e a língua são coisas muito importantes, portanto, seria decididamente uma coisa que eu quereria explorar em qualquer projeto musical que fizesse, e neste em particular, até porque já gosto de escrever há muito tempo (…) algumas pessoas dizem “ah, também podias escrever coisas menos panfletárias. Vocês escrevem coisas que parecem panfletos de comícios” e eu consigo perceber isso. Eu também quero dizer muitas coisas para além disso, mas muito daquilo que eu posso dizer sobre a minha própria vivência e as coisas que eu sinto, muitas delas vão acabar por ser políticas também. Como o João dizia (…), os nossos corpos, os nossos desejos e as nossas práticas e a forma como nós nos colocamos embate de uma forma tão vigorosa no sistema, na norma e naquilo que é esperado, que acaba por se tornar política a forma como nós nos agarramos a elas sem cedências, ou com poucas cedências (Lila Fadista, 2020).

Mais do que um ato de ativismo para o exterior, Lila e João definem o que fazem como um “ato de ativismo que é feito com o próprio corpo”, o distingue de o da participação em manifestações ou na distribuição de panfletos. Ao invés de intervirem numa massa, num todo, reivindicam sozinhos os seus direitos, lutam pelas suas causas, ocupando por isso um lugar mais frágil que, ao mesmo tempo, decorrente da forma como o assumem, implica também uma maior responsabilidade, a par de uma maior exposição, no sentido em que dão a cara pelas suas causas (Colling, 2015COLLING, Leandro. 2015. Que os outros sejam normal. Tensões entre movimento LGBT e ativismo queer. Salvador, Universidade Federal de Bahia.).

Uma coisa é tu ires a uma manifestação do Orgulho Gay, em que estão cinco mil pessoas, em que tu sentes que estás lá e estás exposto, mas de alguma forma estás salvaguardado, estás seguro. Outra coisa é, de repente, estares num projeto como o Fado Bicha, que te empurra… em que estamos os dois, no palco em que tu é que estás a dar a cara. (…) Quando vem essa exposição, tu começas a ver que tens uma responsabilidade muito maior e faz-te questionar porque põe-te sempre num lugar mais frágil e mais exposto e que te empurra, obrigatoriamente, para mais reconhecimento e para aprofundares tudo aquilo que fazes (João Caçador, 2020).

Começa toda uma viagem em busca da ocupação do nosso próprio corpo porque muitas vezes nós criamos lugares de não acesso e de não pertença. É, quase, uma espécie de cura diária até ao final da vida e de ocupação. Isso é uma parte. A outra parte é uma espécie também de ocupação, mas de destruir essas construções que fomos fazendo, como de masculinidade tóxica e do direito ao prazer no corpo como um lugar completo, e de eliminar estereótipos que nós perpetuamos na forma como vivemos as nossas relações sexuais e o nosso corpo. Passa pelo repensar a homofobia, a bitransfobia, a sidofobia, a putofobia, a gordofobia, a xenofobia, o racismo. É uma viagem que parece que nunca mais acaba. Passa por pensarmos o nosso corpo como sendo o nosso corpo e, como tal, nós podemos celebrar como nós quisermos, sem esse tipo de… é uma viagem muito difícil de fazer, até, e é contínua e diária. Por exemplo, ainda ontem eu estava a falar com o meu colega de casa e estava a dizer que eu pintei as unhas com verniz e ele estava a achar que não era nada de especial. Ele é muito masculino, mas também é gay. Eu estava-lhe a dizer “já reparaste que em trinta anos não houve um único dia em que publicamente tenhas posto em causa a tua masculinidade?”. Parece que é um exercício tão simples, mas é uma coisa muito difícil de fazer (Lila Fadista, 2020).

Com o projeto o Fado Bicha, Lila e João consideram ter iniciado um processo de “contínua descolonização da cabeça e do corpo”. Procuram desconstruir ideias e estereótipos que eles e todos nós fomos construindo - sobre identidades de género, masculinidade tóxica, direito ao prazer -, questionando-os e reposicionando-se em relação a eles. Através da música, da sua postura, dos seus corpos, da forma como se vestem e como se apresentam materializam um ativismo corporal (Souza, 2019SOUZA, Natália Maria Félix. 2019. “Quando o corpo fala (a)o político: Ativismo feminista na América Latina e a busca por futuros democráticos alternativos”. Contexto Internacional, vol. 41, n. 1: 89-112. DOI https://www.doi.org/10.1590/S0102-8529.2019410100005
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). As causas que abraçam e pelas quais lutam dizem sempre respeito a uma dicotomia centro-periferia que caracteriza os sistemas sociais (Guerra, 2020bGUERRA, Paula. 2020b. “Iberian punk, cultural metamorphoses, and artistic diferences in the post-Salazar and post-Franco Eras”. In: MCKAY, George; ARNOLD, Gina (orgs.). The Oxford Handbook of punk rock. Oxford, Oxford University Press. DOI https://www.doi.org/10.1093/oxfordhb/9780190859565.013.14
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), seja do ponto de vista das identidades de género e da questão pós-feminista (McRobbie, 2009MCROBBIE, Angela. 2009. The aftermath of feminism: Gender, culture and social change. London, Sage .), seja do racismo estrutural da sociedade portuguesa, ou da dimensão territorial.

Na entrevista, tanto João como Lila assinalam que, no último ano, discutiram e leram mais sobre o sistema político, sobre a forma como veem o sistema representativo partidário e, consequentemente, repensaram como se podem posicionar, enquanto banda, ora dentro dele, ora paralelamente a ele ou, ainda, em associação. Assinalam, a respeito de três momentos em que participaram em ações relacionadas com partidos políticos 19 19 Abreviadamente, dá-se conta dos três momentos em questão: i) a atuação num jantar organizado pela Secretaria de Estado para a Cidadania e a Igualdade, em celebração do Dia Internacional de Luta contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia; ii) a gravação de uma música na sede do PAN, quando este apresentou o projeto de lei para a abolição total da tauromaquia [os Fado Bicha, que já tinham um manifesto musicado no qual se posicionavam contra a tourada, abordaram o partido, perguntando se eles tinham interesse em ligar a sua música à campanha, a qual acabou por ser gravada na sede do partido]; iii) o convite para atuar, em 2019, no aniversário do Bloco de Esquerda, num evento em Lisboa. , que não perspetivam fazê-lo novamente. Consideram que este tipo de iniciativas - de associação a partidos políticos - retiram o caráter político e politizado, mas também interventivo, às suas manifestações artísticas, pessoais e ideológicas. Na realidade, afirmam que aquilo que fazem é por si bastante político, pelo que não necessitam, nem faz sentido, de reforçar instituições e estruturas que muitas vezes não controlam e que não os representam por completo. Assomam, a este respeito, que todas as decisões que tomam envolvem sempre imensas questões éticas epolíticas, na medida em que não conseguem desligar-se dessas preocupações.

O nosso trabalho já é político e associarmo-nos a uma outra instituição ou estrutura política, para além de poder ser redundante, acaba por ser emprestarmos o nosso trabalho e aquilo que nós fazemos à imagem de outra instituição, ou seja, é fazer essa colagem com outra instituição que pode não nos representar inteiramente (Lila Fadista, 2020).

Num concerto pesa tanto ou mais onde é que é o concerto e para quem é que é, do que propriamente o cachê (João Caçador, 2020)

João e Lila reconhecem que ocupam um lugar poderoso, na medida em que conquistaram um palco a partir do qual, e por meio da música, da palavra, dos seus corpos e da sua postura, podem transmitir as suas mensagens, as suas leituras e interpretações. Sabem que têm um público, um conjunto de pessoas que, independentemente do seu número, para os ouvir e para prestar atenção ao que dizem, ao que querem debater. Têm, por isso, a noção de responsabilidade que esse lugar privilegiado que ocupam (Jones, 2010JONES, Richard Jr. 2010. “Putting privilege into practice through intersectional reflexivity: Ruminations, interventions and possibilities”. Reflections: Narratives of Professional Helping, vol. 16, n. 1: 1-5. Disponível em: Disponível em: https://thekeep.eiu.edu/commstudies_fac/3 . Acesso em 16/05/2022
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) lhes confere e não se inibem de uma constante afinação da mensagem que transmitem e da forma como a estão a transmitir, bem como de um exercício de reflexão sobre quem é o seu público, sobre quem são aqueles sobre quem não estão a falar, quem é que estão (ou não) a representar, quais são os seus limites e os das suas mensagens:

Digerir a informação de uma determinada temática e conseguir uma letra que, de certa forma, espelhe a forma como eu leio essa informação e aquilo que eu quero transmitir. Esse é um lugar muito poderoso, não é? Qualquer pessoa que esteja nesse lugar e nessa plataforma, em que é ouvida e em que tem a oportunidade de digerir a informação e de passar a sua leitura da informação de uma forma contundente… é um lugar muito poderoso. Eu tenho muito essa noção e o João tem muito essa noção, desse lugar privilegiado. Apesar de estarmos num lugar de vulnerabilidade, sujeitos ao olhar do ridículo, sujeitos à violência, sujeitos ao descrédito, sujeitos a uma série de processos (Lila Fadista, 2020).

Ao longo do seu percurso, têm vindo a perceber e a comover-se com o facto de as pessoas, ao verem um espetáculo e aquilo que fazem, se sentirem empoderadas e, de alguma forma, validadas pela música, ou por um videoclipe. Por outras palavras, aquilo que fazem como Fado Bicha permite criar símbolos, não raras as vezes escassos no nosso dia-a-dia e na nossa cultura. Permitem-se criar símbolos de processos de mudança e de transformação, empoderando e validando pessoas e causas. Prova disso são os muitos episódios de pessoas que os contactam, quer seja online, quer diretamente a seguir aos concertos, que contam histórias e lhes dão exemplos concretos de como o projeto Fado Bicha impactou e impacta as suas trajetórias de vida, ao conferir-lhes sentido.

Foi sentir que aquilo que nós fazemos veio trazer validade a uma coisa que não tinha sido validada ou era pouco validada. A arte tem esse papel e eu acho que Fado Bicha faz isso. Em jantares com amigos, em jantares com os pais ou noutras situações de debate, é muito difícil conseguir racionalizar a questão do racismo em Portugal. De repente tens uma música e podes dizer a muita gente “olha, é isto! Está aqui. Ouve esta música”. De repente tens uma validação, tens uma concretização de muitas ideias. (…) Permite criar um símbolo. Estes símbolos eram e são tão escassos no nosso dia-a-dia e na nossa cultura, que de repente tens um conjunto de dez músicas com dez símbolos, que podem ser muito ricos e que podem criar uma transformação. Não é uma transformação que não existisse, porque não vimos dizer nada de novo, mas é trazer um símbolo para essa revolução, que já estava em curso (João Caçador, 2020).

Até ao momento, o projeto Fado Bicha tem atuado sobretudo em palcos alternativos, embora Lila e João considerem que isso está a mudar e a instigar em si a devida equação e reflexão sobre o que tal implica ou pode implicar. Perscrutando um caminho mais longo, verificamos que quase todo o trabalho inicial acerca das subculturas, incluindo o de Hebdige (2018)HEBDIGE, Dick. Subcultura. O significado do estilo. Lisboa, Maldoror., presumiu a dominância dos homens na atividade subcultural, elegendo o estudo dos grupos juvenis como os produtores mais ativos de novos estilos culturais (Guerra e Quintela, 2018GUERRA, Paula; QUINTELA, Pedro. 2018. “O resto ainda é Hebdige”. In: HEBDIGE, Dick. Subcultura. O significado do estilo, Lisboa, Madoror, pp. 5-71.). Isto, apesar de as subculturas queer - tal como outras juvenis - não se inscreverem com facilidade na relação com as ditas culturas parentais - como ficou patente no videoclipe e na música de “O Namorico do André” e, por tal, se constituírem como objeto passível de enquadramento na abordagem subcultural. De facto, muitos dos estudos da Escola de Birmingham, ao presumiram uma estrutura edipiana dentro da qual os rebeldes juvenis rejeitam o mundo dos seus pais e criam um submundo no qual refazem e reformam os legados da geração mais antiga, abrem a possibilidade de entender o fado como materialização da presunção que enunciam. E Angela McRobbie(1996)MCROBBIE, Angela. 1996. “Different, youthful subjectivities”. In: CHAMBERS, Ian; CURTI, Lidia (orgs.). The postcolonial question: Common skies, divided horizons. London, Routledge , pp. 29-45. foi mais longe ao repensar as relações entre a juventude branca e a juventude de cor e o significado de feminilidade nas culturas juvenis pós-modernas. Mas essas mesmas culturas juvenis ainda presumiam uma moldura heterossexual.

As (sub)culturas e o conceito queer, como é o caso do Fado Bicha, de António Variações, ou até mesmo de outros artistas contemporâneos anglo-americanos, como é o caso de Sam Smith, ilustram notadamente os limites das teorias subculturais que omitem a sexualidade. Estas identidades tendem a formar-se em relação tanto ao espaço como a um género de expressão cultural, opondo-se, em última instância, à cultura dominante hegemónica, mas também à cultura gay e lésbica mainstream. Assim, urge alterar os olhares para que se possa ter em linha de conta as especificidades do conceito queer e das suas implicações nas identidades, atendendo ao contexto geográfico e social em que se materializam. A nova teoria queer (Nicholas, 2007NICHOLAS, Lucy. 2007.“Approaches to gender, power and authority in contemporary anarcho-punk”. Gender: Power and Authority,eSharp,n. 9: 1-22. Disponível em: Disponível em: https://www.gla.ac.uk/media/Media_41219_smxx.pdf . Acesso em, 15/05/2022.
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) vai ter de incorporar a produção não heterossexual-masculina, não branca e não adolescente em toda a sua especificidade.

É UMA VIAGEM INACABADA COM CERTEZA

A associação entre as identidades, o conceito queer e o artivismo nunca esteve tão perene nos quotidianos como no presente. A relação estabelecida entre música e identidade (Frith, 1996; Taylor, 2010TAYLOR, Jodie. 2010. “Queer temporalities and the significance of ‘music scene’ participation in the social identities of middle-aged queers”. Sociology, vol. 44, n. 5: 893-907. DOI https://www.doi.org/10.1177/0038038510375735
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), está fortemente patente no caso do Fado Bicha é inevitável, no qual se verifica uma simbiose entre o fado enquanto estilo musical de eleição e as suas manifestações identitárias por via de performances sucessivas e reivindicação de um espaço no âmago da sociedade portuguesa (Butler, 1999BUTLER, Judith. 1999. Gender trouble. Feminism and the subversion of identity. New York, Routledge .).

A abordagem feita ao percurso, às práticas e às vivências do Fado Bicha, enquadra-o numa modernidade tardia, na qual são exacerbadas as estruturas de significados (Frith, 1996). Talvez a recente década tenha sido aquela em que surgiu o maior número de conteúdos artísticos marcados pela mensagem política, pela ideologia, pela reivindicação e pela resistência face a sistemas opressores e normativos (Street, 2017STREET, John. 2017. “Rock, pop and politics”. In: FRITH, Simon; STRAW, Will; STREET, J. (Orgs.). The Cambridge Companion to pop and rock. Cambridge, Cambridge University Press .; Guerra, 2020cGUERRA, Paula. 2020c. “Cidade, pedagogia e rap”. Quaestio Revista de Estudos em Educação, vol. 22, n. 2: 431-453. DOI https://www.doi.org/10.22483/2177-5796.2020v22n2p431-453
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; Garcìa e Feixa Pàmpols, 2020). A ideia de que a arte está ao serviço do ativismo e de uma cidadania ativa é, cada vez mais, elemento estrutural das identidades que mapeiam as sociedades contemporâneas. João e Lila, como mostramos ao longo do artigo, partem de um conjunto de vivências que estruturam as suas identidades, para disruptivamente, construírem um novo lugar de existência e de resistência (Guerra, 2021GUERRA, Paula. 2021. “So close yet so far: DIY cultures in Portugal and Brazil”. Cultural Trends, vol. 30, n. 2: 122-138. DOI https://www.doi.org/10.1080/09548963.2021.1877085
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; Mauss, 2006MAUSS, Marcel. 2006. “Techniques of the body”. In: MAUSS, Marcel; SCHLANGER, Nathan (eds.), Techniques, technology and civilisation, Oxford, Berghahn Books, pp. 77-95.; Ingold, 2001INGOLD, Timothy. 2001. “Beyond art and technology: The anthropology of skill”. In: SCHIFFER, Michael Brian (ed.). Anthropological perspectives on technology. Albuquerque, University of New Mexico Press, pp. 17-31.). Uma forma musical tradicional como o fado é a principal arma de luta para a uma sociedade ainda demarcada por uma ideologia ditatorial de género, desigual, ainda bastante discriminatória e patriarcal. O corpo torna-se num eixo fundamental para compreender a forma como Lila e João se definem enquanto indivíduos e como artistas, bem como a forma como estes interagem com outros indivíduos, mas especialmente em relação ao seu próprio eu (Driver e Bennett, 2015DRIVER, Christopher; BENNETT, Andy. 2015. “Music scenes, space and the body”. Cultural Sociology, vol. 9, n. 1: 99-115. DOI https://www.doi.org/10.1177/1749975514546234
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).

As performances do Fado Bicha, as suas estéticas, letras, composições e produções podem, efetivamente, ser entendidas como espaços alternativos de luta (Sharp, 2019SHARP, Megan. 2019. “Queer(ing) music production: Queer women’s experiences of Australian punk scenes”. In: RAINE, Sarah; STRONG, Catherine (eds.), Towards gender equality in the music industry. Education, practice and strategies for change. London, Bloomsbury , pp. 201-213.; Raine, 2019RAINE, Sarah. “Keychanges at Cheltenham Jazz Festival: Issues of gender in the UK jazz scene”. In: RAINE, Sarah; STRONG, Catherine (eds.), Towards gender equality in the music industry. education, practice and strategies for change. London, Bloomsbury , pp. 187-200.; Hongwei, 2018). Ao criarem novos espaços, proporcionam a emergência de novos e diferentes modos de ação contemporâneos (Guerra, 2017GUERRA, Paula. 2017. “António e as Variações identitárias da cultura portuguesa contemporânea”. Ciências Sociais Unisinos, vol. 53, n. 3: 508-520. DOI https://www.doi.org/10.4013/csu.2017.53.3.11
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), um pouco à semelhança do que Amália Rodrigues e António Variações fizeram. Para lá caminhará o Fado Bicha, tendo em consideração o crescente número de participações na esfera pública e a ocupação de inúmeras e variadas salas de espetáculos, de norte a sul do país, inclusive contextos geográficos frequentemente relegados, como é o caso dos péri-urbanos e rurais. O fado é subversivo, ainda mais quando conjugado com o termo “bicha”. Certo é que tanto João como Lila contribuíram - e continuam a contribuir - para a cimentação de um fado queer, alternativo e aberto à sociedade e à diferença, conferindo assim pioneirismo ao que pode ser equacionado como uma diáspora (inacabada) de práticas culturais de transgressão de género (Silva, 2019SILVA, Daniel. 2019. Trans tessituras. Confounding, unbearable and black transgender voices in Luso-Afro-Brazilian popular music. Nova York, tese de doutorado, Columbia University.) em Portugal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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DISCOGRAFIA

  • 1
    Este artigo insere-se no desenvolvimento de três matrizes de pesquisa: o projeto ARTSCITZENSHIP, o projeto CANVAS e a KISMIF Conference 2021 (https://www.kismifconference.com/). Agradeço à Rose Satiko, à Sofia Sousa, à Susana Januário e ao Vitor Grunvald pelos seus valiosos comentários, pela sua interlocução e pelo seu contínuo estímulo. Agradeço ainda aos pareceristas anónimos por ajudaram de sobremaneira a qualificar este trabalho. Dedico este texto à Lila Fadista (Tiago Leal) e João Caçador - Fado Bicha - atores sociais centrais nele, levando-me a reequacionar as formas de resistência artístico-política contemporâneas, proporcionando-me um exercício primeiro de descolonização da análise da música popular em termos sociológicos.
  • 2
    Fado Bicha é formado por Lila Fadista e João Caçador. O projeto criado em 2017 - procura, por meio do fado - canção nacional por excelência- trazer à luz as histórias da comunidade lésbica, gay, bissexual, transgénero e intersexo. Os fados - muitas vezes os clássicos alterados de forma a incluir a realidade LGBTI - deixam a guitarra portuguesa para se juntarem à guitarra elétrica. Cfr. https://www.festivaliminente.com/pt/detail-artists/fado-bicha/
  • 3
    Entrevista em profundidade realizada aos dois elementos do Fado Bicha em junho de 2020 por parte da autora deste artigo. A realização e tratamento da entrevista seguiu os protocolos éticos recomendados pela American Sociological Association.
  • 4
    Impõe-se, aqui, uma ressalva: apesar de referirmos inicialmente que os estudos queer nunca pensaram o queer como uma identidade, mas antes como um conceito, para efeitos da escrita deste artigo, iremos utilizar a expressão “identidade queer”, uma vez que associamos o queer às formas de ser, de estar, aos conceitos históricos e sociais, mas também às práticas de resistência que se encontram intrínsecas ao nosso objeto de estudo, nomeadamente Fado Bicha.
  • 5
    António Joaquim Rodrigues Ribeiro, conhecido como António Variações, foi um cantor e compositor português do início dos anos 1980. A sua curta discografia continuou a influenciar a música portuguesa nas décadas posteriores ao seu desaparecimento. É um caso singular, paradigmático e fundacional da música pop portuguesa.
  • 6
    Assumem-se como um movimento coletivo e sem hierarquias, defensor de uma democracia radical onde não exista discriminação e agressão face à comunidade LGBTQIA+. Enquanto grupo queer e transfeminista, as Panteras Rosa denunciam o cissexismo, o heterossexismo e o primado da heterossexualidade como parte de um sistema político patriarcal que cria diferenciações sexuais e de género para determinar desigualdades sociais. Mais informações em: https://pt-pt.facebook.com/pages/category/Political-Organization/Panteras-Rosa-167629923258311/
  • 7
    Uma versão animada da canção pode ser encontrada no canal do Fabo Bicha no Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mCkPxNk5N50&ab_channel=FadoBicha
  • 8
    Amália da Piedade Rodrigues foi uma cantora, atriz e fadista portuguesa, geralmente aclamada como a voz de Portugal e um nome-maior do século XX. http://amaliarodrigues.pt/en/home-page/
  • 9
    Tida como uma grande voz do fado português, é uma das artistas com maior projeção internacional. https://www.carminhomusic.com/
  • 10
  • 11
  • 12
  • 13
    A Escola de Fado da Mouraria nasceu em novembro de 2012 e é hoje uma das instituições mais marcantes da cidade de Lisboa.
  • 14
    Cantor português, com mais de 33 anos de carreira, cuja música “Ai Destino”, gravada em 1995, foi um êxito nacional, tendo-lhe conferido o título de maior cantor romântico português.
  • 15
    Nome artístico de João Simão da Silva, um dos maiores cantores populares portugueses, tendo já recebido cerca de 140 galardões de platina, de ouro e de prata e até mesmo um de diamante.
  • 16
    A Escola de Jazz do Hot Clube de Portugal foi fundada em 1979 pelo contrabaixista Zé Eduardo e desde então tem vindo a crescer paulatinamente.
  • 17
    São uma banda portuguesa pautada pelo mix entre o fado, o rock e as bandas sonoras dos westerns. É composta por apenas dois músicos, Tó Trips e Pedro Gonçalves.
  • 18
  • 19
    Abreviadamente, dá-se conta dos três momentos em questão: i) a atuação num jantar organizado pela Secretaria de Estado para a Cidadania e a Igualdade, em celebração do Dia Internacional de Luta contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia; ii) a gravação de uma música na sede do PAN, quando este apresentou o projeto de lei para a abolição total da tauromaquia [os Fado Bicha, que já tinham um manifesto musicado no qual se posicionavam contra a tourada, abordaram o partido, perguntando se eles tinham interesse em ligar a sua música à campanha, a qual acabou por ser gravada na sede do partido]; iii) o convite para atuar, em 2019, no aniversário do Bloco de Esquerda, num evento em Lisboa.
  • FINANCIAMENTO:

    Este artigo decorre do desenvolvimento das atividades dos projetos - ARTSCITZENSHIP - Youth and the arts of citizenship: creative practices, participatory culture and activism (PTDC /SOC -SOC/28655/2017) e CANVAS - Towards Safer and Attractive Cities: Crime and Violence Prevention through Smart Planning and Artistic Resistance (Ref.ª POCI-01-0145-FEDER-030748) - ambos financiados pela Fundação para a Ciência e Tecnologia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    16 Abr 2021
  • Aceito
    29 Out 2021
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