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O dom de jogar e o torcer sem dom: extensões de uma categoria no contexto do futebol

The Gift of Playing and the rooting for without Gift: Extensions of a Category in the Soccer Context

RESUMO

Esse artigo pretende avaliar como a noção de dom se comporta nos contextos de futebol. A discussão envolverá a articulação e percepção dialética de dois domínios convencionais contíguos e constitutivos da prática, o jogar e o torcer, tomados como qualidades sensíveis e fundamentos daquilo que será metaforizado por cultura do futebol. Do ponto de vista da proposta analítica e metodológica do chamado modelo das relações busca-se argumentar a favor das percepções do olhar, faculdade conectiva entre aqueles dois domínios, que ajuízam as extensões de significados que o dom pode alcançar. O argumento central é que estamos diante menos de sistemas, mas espalhamentos contextuais do dom, misturando aquilo que sociológica e historicamente as convenções simbólicas mantiveram apartadas e hierarquizadas entre práticas do jogar e torcer.

PALAVRAS-CHAVE
Futebol; jogar; torcer; olhar; dom; antropologia das práticas esportivas

ABSTRACT

This article aims to evaluate how the notion of gift behaves in the soccer contexts. The discussion will involve the articulation and dialectical perception of two contiguous and constitutive conventional domains of the practice, playing and rooting for, taken as sensitive qualities and foundations of what will be metaphorized as soccer culture. From the point of view of the analytical and methodological proposal of the socalled relations model, we seek to argue in favor of the perceptions of the gaze, a connective faculty between those two domains, which judges theextensions of meanings that the gift can reach. The central argument is that we are facing not so much systems as contextual spreads of the gift, bringing together what sociological and historical symbolic conventions have kept apart and hierarchized, the practices of playing in relation to roorting for.

KEYWORDS
Soccer; playing; rooting for; gaze; gift; anthropology of sports practices

Apresentando um problema

Em uma das edições do G4, diário esportivo veiculado no canal BandSports1 1 Programa da crônica esportiva chamado G4, ao ar desde 2021 de terça a sexta-feira a partir das 12 horas na BandSports, canal de pay-per-view que pertence ao conglomerado midiático paulista popularmente conhecido por rede Bandeirantes. O programa é apresentado por Eduardo Tironi como condutor da pauta e o integram a jornalista Marilia Ruiz, Arnaldo Ribeiro e Paulo Massini. A discussão acima foi colhida na edição de 19 de outubro de 2022. , levantou-se a discussão a respeito da relação entre futebol profissional jogado no Brasil e seu amplo consumo. Reclamavam da má relação entre a qualidade que se oferta ante as expectativas dos torcedores consumidores e o tratamento que recebem da parte daqueles que gerenciam e disponibilizam o futebol como produto de entretenimento. Um dos debatedores, o jornalista Vitor Guedes, insistia que quando se é mal atendido em um estabelecimento comercial, a atitude esperada é que o consumidor interpele o estabelecimento, busque seus direitos ou, tão somente, não retorne ao local. Já os aficionados, mesmo maltratados e tungados em seus direitos torcedores, reincidem no consumo. Nesse impasse reside um fato inquietante para aqueles jornalistas esportivos, revelando, digamos assim, um paradoxo utilitarista.2 2 O estatuto de defesa do torcedor, um texto na forma e no conteúdo mimetizado do Estatuto do consumidor, promulgado pela lei nº 10.671, de 15 de maio de 2003, traduz formalmente o movimento de ambientar os torcedores à lógica consumerista. Os argumentos obviamente metaforizavam o fato de que as formas de adesão que se agregam ao futebol de espetáculo transcendem o fato econômico da mercadoria, ostentando relacionalidades e propriedades incomensuráveis se tomadas apenas do ponto de vista de um mero e conspícuo consumismo no mercado de entretenimento.

Paixão clubística e dinheiro produzem assimetrias quando se trata da mercadoria futebol. No imaginário torcedor, de resto para quase tudo numa sociedade monetarizada, dinheiro é algo que se ganha, se acumula e se gasta. Já a paixão e o pertencimento clubístico (Damo, 2002) seriam coisas que devem ser compartilhadas, ainda que estejam na órbita do consumo. Algo talvez assemelhado à renda familiar, tal como sugere Roy Wagner, que salienta, mobilizando Schneider, que “o amor é tradicionalmente aquilo que ‘o dinheiro não pode comprar’, e o dever, algo que se supõe estar acima de considerações pessoais” (Wagner, 2010WAGNER, Roy. 2010. A invenção da cultura. São Paulo, CosacyNaify.: 57).

Cientistas sociais atentaram para a complexidade do consumo e as relações conflituosas que presidem o direito consumerista.3 3 Sobre as relações que envolvem as controvérsias consumeristas na ponta da cadeia produtiva indico a potente etnografia de Bevilaqua (2008), bem como a alentada resenha do livro originado dessa pesquisa em Lanna (2008). Antropologias econômica e do consumo demonstram que não há consumismo apartado de valores, regido apenas pelas relações intrínsecas entre necessidade tangíveis, valores de uso e de troca. Das contribuições mais longevas que promoveram alguma interface entre fenômenos econômicos e o campo da ludicidade e dos esportes, pode ser citado o clássico trabalho de Veblen, do final do século XIX (1899), sobre a teoria da classe ociosa. O excerto abaixo não deixa de revelar a precocidade com que seu autor trata o fenômeno esportivo como um fato total naquele momento em que os esportes ainda se encontravam em meio às névoas de dúvidas a respeito do caráter irascível que emulavam, mas que se apresentavam cada vez mais atados à sociabilidade das nascentes sociedades modernas ocidentais.4 4 Será, posteriormente, Norbert Elias o autor que recolocará os passatempos, jogos e esportes na esteira de uma racionalidade em que as dimensões políticas, econômicas e lúdicas se entrelaçam ou se codeterminam em uma consonância histórica revelada naquilo que denomina de “processo civilizatório” (ELIAS, 1993; ELIAS e DUNNING, 1992). Escreve Veblen a respeito do jogar: "Os padrões econômicos ou regras de avaliação são, por sua vez, influenciados pelos padrões extra-econômicos de valor. (...) Considerando do ponto de vista da teoria econômica, o caráter esportivo se transforma no caráter do religioso devoto. Onde o senso animístico do jogador foi auxiliado por uma tradição de certa consistência, esse mesmo senso se desenvolveu numa crença mais ou menos articulada em um agente sobrenatural ou superfísico, com alguma coisa de conteúdo antropomórfico” (Veblen, 1974, p. [1899]: 407VEBLEN, Thorstein. 1974. “A teoria da classe ociosa”. Veblen. São Paulo, Ed. Abril. (Coleção Os Pensadores).).

Desenvolvimentos ulteriores nas esferas da sociabilidade urbana confinariam esses ditos comportamentos feéricos, religiosos e valores de conteúdo antropomórfico instilados pelos esportes às esferas do torcer, espaços mais refratários às racionalizações que sensibilizaram o jogar. À sombra da prática do jogar, cada vez mais orientado pelos rumos do profissionalismo, o torcer e a sociabilidade se espalharam em muitos futebóis e não seguiram na mesma velocidade daquelas mudanças verificadas no jogar. A esperada racionalização do público esportivo, sempre tão ansiada pelos reformadores urbanos5 5 A respeito do desenvolvimento da categoria “público”, que normatiza o conjunto de torcedores ver Costa e Toledo (2023). Um amplo trabalho que retrata as formas com que a agressividade e as paixões burguesas, inclusive sublimadas nos esportes, moldaram as subjetividades na virada do século XIX para o XX no contexto europeu podem ser consultadas em Gay (1995). , foi confrontada pelos comportamentos feéricos de massa, metaforicamente tão “animistas” quanto as surpresas descritas por Veblen diante daquele modismo que viria fincar suas raízes na sociabilidade urbana. O breve relato do jornalista, que não deixa de ser uma alegoria vebleniana, sugere que alcancemos o tema desse artigo, que não pretenderá realizar uma exegese das teorias sobre dom, sequer se fixar nos temas mais candentes de antropologia econômica ou do consumo, mas propor outro olhar para um aspecto que tem mobilizado, explícita ou implicitamente, uma parte dos estudos socioantropológicos esportivos, a ocorrência de um dom futebolístico.

O artigo atentará mais para os domínios do analógico, extensões e disputas de significados emprestados à categoria ante o formalismo analítico que fez do dom um fenômeno fulgurante e capital na literatura socioantropológica.

O percurso dos argumentos mobilizará o modelo das relações e a esportividade do olhar como propostas analíticas; segue explicitando duas categorias que constituem tal modelo – jogar e torcer em suas extensões jogar olhado e olhar jogado. Por fim, traz pontuais exemplos para amparar uma discussão que mobiliza a noção de dom numa diminuta, mas alentada bibliografia esportiva.

Dom futebolístico: de sistema à relação

Acepções mais gerais, ao menos desde autores clássicos, revelaram o dom como sistema de uma reciprocidade ubíqua, universal, estruturante e de múltiplas valências operadas por trocas restritas ou complexas, morais ou lógicas, simétricas ou hierárquicas, cooperativas ou agonísticas, implicadas na homeostase social ou como princípio abstrato,6 6 Lanna (2012: 12) abre uma interessante discussão a respeito do tratamento dos dados empíricos e as generalizações teóricas sobre o dom que, quando institucionalizado, revela aproximações insuspeitas com a prática funcionalista. parciais ou totalizantes, que se colocaram como fundamentos e causas das dinâmicas da vida social. O deslocamento da noção de dom para o contexto do futebol exige que novos fluxos de significados sejam incorpo rados às abordagens mais canônicas, até mesmo porque o futebol, de fato, guarda peculiaridades que transcendem ou tensionam sua comoditização, provavelmente por oferecer tantas mediações e assimetrias entre produção e consumo, valor de uso e valor de troca, tal como a bibliografia já vem atestando.

Metaforizado em símbolo diacrítico elevado à potência discursiva da órbita do dom, o futebol ainda é cotejado por muitas formas de experenciar identidades para além do consumismo ditado por valores instrumentais de mercado. E insinuando algum diálogo entre dom e outras noções, que nesse contexto esportivo expressam uma teleologia das identidades coletivas, temas como raça, ethos, destino, se acomodam aos discursos de senso comum e à uma fortuna crítica dos acadêmicos esportistas.7 7 Eximo nesse artigo em relacionar nominalmente os inúmeros trabalhos de várias áreas que abordaram os referidos temas que, a partir da década de 1980, pautaram as discussões que associam futebol e identidades nacionais. A bibliografia hoje é muito ampla e diversa a esse respeito. Sugiro em Toledo (2021) um panorama crítico sobre os balanços bibliográficos que de tempos em tempos incorporam novas perspectivas e abordagens, reavaliando a formação do campo de estudos esportivos no Brasil e na América Latina. Noções como “pertencimento” e “identidade” distinguem esses dois cenários. As análises mobilizadas pela noção de identidade aparecem com maior abundância na literatura latino-americana, de saída mais politicista se comparada à brasileira, em que as noções de cultura, drama, ritual, ethos, destino, pertencimento e sociabilidade se espraiaram à sombra de identidade. Alguns cuidados em relação aos usos de identidade em estudos antropológicos urbanos revelaram os limites em transpor o conceito de outras searas, sobretudo da etnologia. Mas também revela a precocidade com que a disciplina inaugurou essa temática no Brasil desde o amálgama analítico via DaMatta et al (1982), que não deixando de pensar a identidade a recoloca num plano comparativo expressivo, mobilizando autores como Victor Turner, Cliffort Geertz, e análises sistêmicas como as de Louis Dumont. Mas a questão da identidade pode ser reincorporada com recentes pesquisas que da perspectiva do futebol ameríndio demandam por novas análises comparativas. A esse respeito Costa (2021) e Costa & Toledo (2023). Parte das interpretações sobre futebol no Brasil flertou com um “dom coletivo” animado a partir de muitos lugares, acadêmicos inclusos, que avaliaram os impactos que o acesso ao futebol produziu nos modos de vida urbanos na virada do século XIX para o XX. Especulou-se a respeito das razões que levaram determinadas sociedades a um acolhimento sui generis da modalidade como espécie de síntese totalizante recoberta pelas premissas do dom. São alegorias, juízos estéticos, representações, pesquisas e ensaios que aludiram às especificidades da cultura brasileira indexada ao futebol.8 8 Abordando raça, mestiçagem e cultura, o artigo “Foot-ball mulato”, de Gilberto Freyre, é considerado por alguns autores como o marco culturalista da perspectiva sociológica que tematizou a relação entre cultura nacional e futebol. A esse propósito ver Guedes (2014).. Discursos a respeito de sociedades terem “nascidas” ou sido “escolhidas” para praticarem futebol conjuram toda sorte de imagens contrastivas que partem de uma concepção de dom.9 9 Venho discutindo a expressão “culturas com futebol” para incluir narrativas semelhantes a essa numa abordagem mais comparativa. Nessa direção está em andamento um projeto em coautoria com o antropólogo e etnólogo Carlos Eduardo Costa intitulado “Culturas com futebol: corporeidades, esportividades e formas expressivas de torcer em perspectiva comparada” (LELuS-CNPQ, 2022) em que, por exemplo, temas como identidade nacional via futebol são reavaliados da perspectiva indígena Evidência empírica e mediadora conceitual nas etnografias, a noção de dom potencializa as análises relacionadas a riqueza intangível que se move como sociabilidade e economia das emoções no futebol. É no âmago de uma prática de entretenimento, que historicamente atingiu um alto potencial de produção e circulação consumerista que se pode entrever o dom futebolístico.

Estudos antropológicos e outros de inclinação etnográfica mobilizaram a noção de dom para revelar tanto as cadeias locais ou transnacionais de produção e circulação de talentos individuais, voltados para o mercado da prática profissional do jogar, quanto atentaram para os juízos morais que amparam essas cadeias na produção de pessoas esportivas [Guedes, 1997; Santos (2007SANTOS, Claudemir. 2007. Futebol se aprende na escola. Novas práticas e sociabilidade esportiva no contexto urbano. São Carlos, Dissertação de mestrado, Universidade Federal de São Carlos.); Damo (2007DAMO, Arlei Sander. 2007. Do dom à profissão. A formação de futebolistas no Brasil e na França. São Paulo, Editora Hucitec/Anpocs.); Damo (2008DAMO, Arlei Sander. 2008. Dom, amor e dinheiro no futebol de espetáculo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 23, n. 66: 139-150. DOI 10.1590/S0102-69092008000100009
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); Palmieri (2009PALMIERI, Júlio César J. 2009. Quanto vale um talento? Uma análise antropológica sobre a valorização e circulação dos jogadores de futebol profissional no mercado esportivo. São Carlos, Dissertação de mestrado, Universidade Federal de São Carlos.); Palmieri (2014PALMIERI, Júlio César J. 2014. Aspirações etnográficas sobre o futebol de base no Brasil. Revista interfaces, vol. 1, n. 20: 123-142.); Spaggiari (2016SPAGGIARI, Enrico. 2016. Família joga bola. Jovens futebolistas na várzea paulistana. São Paulo, Intermeios∕Fapesp.)].10 10 Há trabalhos que não cobrem diretamente a temática do dom, mas se mantém próximos a ela, ou que permitem subsidiar discussões mais amplas sobre seus alcances e significados. É o caso, por exemplo, de Rial (2008), que trata da noção de “rodar” como categoria nativa para descrever a circulação de jogadores numa rede transnacional. E, na mesma direção, Jahnecka (2020), que mobiliza a categoria “infame” ou “as experiências do comum” para abordar trajetórias de futebolistas que se situam à margem ou que estão em posição de menor evidência no sistema futebolístico profissional. Já em Bitencourt (2017), que trabalha as normatizações tecnocientíficas na fabricação dos corpos dos atletas, é a noção de ciborgue de Donna Haraway que estabelece um diálogo contrastivo e racionalista às noções de talento e dádiva. Dom permite ainda estabelecer a interseccionalidade constitutiva de marcadores sociais com os futebóis, na medida em que transversaliza práticas eivadas de valores políticos e morais.11 11 Penso aqui particularmente nas emoções como valor a partir das reflexões presentes em Rojo (2021), que apresenta um cenário contextual das emoções nos esportes, pensadas na interface com marcadores sociais, tais como classe, gênero, raça, que podem infletir numa análise mais contextualizada sobre expressões do dom para além da canônica ideia de sistema de trocas. Como já estabelecia Mauss para o potlatch, as trocas podem ser deveras efervescentes (MAUSS, 2003, p. [1925]: 234), e porque não extrapolar, emocionantes a depender do ponto de vista. Também pode contribuir para elucidar os mecanismos de autoafirmação de subjetividades e constituição de sujeitos, e ser acessado como categoria política, tal como, por exemplo, se entrevê nas praticantes do futebol de mulheres em sua luta constante para estabelecer formas de jogar e delimitar espaços simbólicos de reconhecimento de talento para além de mimeses corporais vindas do futebol de homens. Atentar para o gênero do dom (Strathern, 2006, p. [1988]STRATHERN, Marilyn. 2006. O gênero da dádiva: problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na Melanésia. Campinas, Editora da Unicamp.) no futebol de mulheres permite compreender melhor as contrações e expansões dessa modalidade, que tensiona por maior autonomia existencial, estética, política e econômica. Nessa direção, como categoria não apenas analítica, mas de ação, encontramos um dom experenciado, vivido, que se impõe de modo determinante em um repertório de discursividades francas e envolventes, ritualizado em controvérsias que animam e fazem todo campo esportivo performar e fazer relacionar práticas, ideias, analogias e imagens impregnadas no senso comum.

Não obstante as evidências e contribuições decisivas de muitas sínteses teóricas, mais do que desdobradas e nuançadas por uma bibliografia espraiada, esse artigo parte do pressuposto semiológico wagneriano para abordar o dom na cultura futebolística. Destaque para suas apreensões de senso comum, que promovem um deslocamento analítico encontrado nas tensões entre o que Wagner concebe por dialética entre o inato e o adquirido. Tomaremos um conjunto de práticas que podem revelar as extensões dessa noção, promovendo alguma atualização etnográfica sobre o tema no interior dos estudos da esportividade.

Dom será retomado da perspectiva que venho denominando de “modelo das relações” (Toledo, 2019), proposta analítica que sigo expandindo numa perspectiva colaborativa em torno da noção de “esportividade do olhar” (Costa e Toledo, 2022COSTA, Carlos Eduardo; TOLEDO, Luiz Henrique. 2022. Transformações do torcer: esportividade do olhar e olhares sobre a esportificação. Ilha - Revista de Antropologia, vol. 24, n. 3: 92-113. DOI 10.5007/2175-8034.2022.e84360
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, 2023COSTA, Carlos Eduardo; TOLEDO, Luiz Henrique. 2023. Antropologia das Práticas Esportivas: investigações etnográficas e experiências comparadas em torno do Olhar. Etnográfica, vol. 27, n. 1: 27-50. DOI 10.4000/etnografica.12856.
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). Revisitaremos essas expressões ao longo das seções.

Desse ponto de vista falaremos de um dom futebolístico, em princípio categoria delimitadora das qualidades inerentes à pessoa, que se eleva como espécie de representação coletiva autoevidente e que se impõe no discurso esportivo a partir de instâncias motivadoras de controle simbólico convencional. Trata-se, nos termos de Wagner (2010WAGNER, Roy. 2010. A invenção da cultura. São Paulo, CosacyNaify.), de uma estratégia ou ilusão da significação, posicionando o dom em uma classe altamente convencionalizada de fenômenos, cujos efeitos na trama das relações em um determinado contexto é conferir características a si próprio, ou se retroalimentar (Wagner, 2010WAGNER, Roy. 2010. A invenção da cultura. São Paulo, CosacyNaify.: 80). Isso é possível dada sua ampla base comunicacional compartilhada no senso comum, que ampara processos de simbolização menos suscetíveis às relativizações contextuais, embora elas tendam a ocorrer.

Corolário desse ponto de vista, o senso comum não pode ser o lugar em que as evidências do dom se escondem, se alienam, se misturam em névoas de representações colaterais ou se reproduzam inadvertidamente a partir de apriorismos causais. Senso comum aqui passará a constituir o lugar dos efeitos das causas, deixadas de ser tomadas por últimas ou primárias. Até mesmo porque, seguindo Wagner, significações simbólicas convencionais produzem em torno de si suas próprias contrainvenções contextuais. No caso em tela, convenções e invenções são definidas pelas motivações de uma relação necessária entre jogar e torcer, elementos que definem o espírito analítico do referido modelo das relações.

Noutras palavras, tomaremos a noção de dom como expressão de significados convencionais que mantém, obviamente, como toda simbolização expressa por meio de ações, nomeações, coisas e imagens, sua natureza relacional atada às invenções sempre à prova dos contextos. Portanto, de sistema à relação, dom será mobilizado uma vez mais para oferecer subsídios etnográficos à discussão mais geral sobre o lugar que essa noção permanentemente ocupa na imaginação antropológica.

Modelo das relações: deslocando o olhar

Na cultura do futebol um dom futebolístico enfeixa qualidades corporais e morais que se orientam e se convencionalizam em qualidades esportivas, definidas ora por inatas, e aqui a categoria talento se impõe, ora por relações exotéricas ou sagradas na forma de dádiva divina,12 12 Damo (DAMO, 2007, 2008) fez essa crucial distinção devidamente nuançada etnograficamente entre um dom-dádiva e um dom-talento no contexto de disputas pelos corpos dos jogadores em formação. Adiante esse tema será retomado. pavimentando a trajetória daqueles poucos que alcançarão a prática jogada em alto nível. Portanto, no senso comum da cultura do futebol toma-se o dom na sua expressão convencional circunscrita à produção/ circulação de jogadores, visados por uma economia política do futebol masculino profissional. A bibliografia esportiva que discute ou tangencia o tema do dom parte da mesma aproximação, a de que o dom futebolístico se manifesta entre aqueles potencialmente dotados das qualidades exigidas pelas esferas do jogar, confinando o fenômeno do dom às convenções hierarquizantes entre jogar e torcer. Trata-se de definir quem é ou não agraciado pelo dom.

O modelo das relações visa justamente discutir os pressupostos dessa hierarquia universal e sociológica que elide a condição expressa entre quem joga e quem assiste, interpelando definições mais canônicas a respeito do dom e do dom futebolístico. Tal modelo sugere a produção de contextos e relações interseccionadas entre olhar, jogar e torcer, categorias sensíveis acomodadas num par dialético: jogar olhado e olhar jogado, discutidos logo adiante.

Jogar e torcer são verbos de ação que se manifestam a partir das expressões corporalizadas de atores que constituem o campo esportivo, a saber, jogadores, times, torcedores, torcidas, e tantos outros mais que gravitam em torno da cultura do futebol.

Antes, cabe um breve comentário colaborativo.13 13 Foi o antropólogo Piero de Camargo Leirner que atentou para algum exagero no uso que faço da palavra modelo, já que tento me distanciar da própria ideia autopoiética que essa palavra encerra. Não responsabilizo Piero pela continuidade dessa discussão sobre modelagem. De toda forma, mantenho modelo para fins de convenção de escrita sociológica, que identifica no termo modelo a possibilidade comparativa entre paradigmas e/ou modelos, tais como campo bourdiesiano, esportificação eliseana etc. Mantém-se aberta a discussão se o encaminhamento analítico aqui proposto caberia na designação de “modelo” ou se trata menos de modelo teórico e mais da elucidação de “modelagem” de relações, emprestando argumentos strathernianos desenvolvidos alhures (L. H. Toledo, 2019TOLEDO, Luiz Henrique. 2019. Torcer: perspectivas analíticas em Antropologia das práticas esportivas. São Carlos, Tese de titularidade, Universidade Federal de São Carlos.). Modelagem nos serve à maneira de ver como relações entre categorias esportivas podem ser definidas a partir desses dois verbos de ação/relação: torcer e jogar. As vantagens de dessubstancializar a noção universalista de campo esportivo e fluidificar as categorias sociológicas que o presidem, notadamente “jogador” e “torcedor”, permitem atentar, antes, para a emergência dessas categorias mutuamente constitutivas das entranhas de relações que permanentemente as modelam, evitando reificar os usos excessivamente nominalistas que carregam. Jogador, sobretudo, é nome ou categoria genérica que aqui passará de causa a efeito das relações, assim como torcedor, aliás como quaisquer outras categorias que expandem o domínio ou os territórios de significação. Para tanto, tal modelo se volta para a centralidade de uma categoria sensível conectiva: o olhar.

Seja especulando sobre o próprio desempenho defronte o espelho, método comum observado em profissionais de dança e em modalidades de luta, seja observando outros, o olhar nas práticas da esportividade se coloca como faculdade sensível que busca externalizar significados numa continuada, mimética e necessariamente relacional interação que visa uma corpórea intersubjetividade. Olhar se coloca no epicentro do modelo das relações como aquela qualidade sensível que ativa a relação dialética entre jogar e torcer, bem como o modo com que as instâncias do inato e do adquirido se acomodam na cultura do futebol. Ninguém investe em uma expressão corporal e motora, ou vislumbra a prática de outros sem se colocar em um regime de atenção na posição de “olhador”. Olhar é faculdade sensível do jogar e do torcer em um só movimento.

O modelo das relações não desconsidera que qualquer prática corporal e motora internalizada possa subsumir a necessidade consciente ou objetivante do olhar perscrutador. Por exemplo, no deslocamento em uma mera escada rolante o corpo já adaptado torna o olhar em relação ao equipamento uma tarefa secundária e ou periférica, até que algo externo motive ou exija sua intervenção para antecipar ou reequilibrar os outros sentidos. Rotinas atléticas também ganham expressiva autonomia em relação ao olhar, fazendo com que o corpo antecipe sua vigília. Já nos esportes coletivos como o futebol essas motivações externas são induzidas pelas propriedades convencionais do jogo, suas regras, suas formas coletivas de jogar (L. H. de Toledo, 2022TOLEDO, Luiz Henrique de. 2022. Lógicas no futebol – releituras. São Paulo, Editora Ludopédio.), que fazem parte da dinâmica dos embates corporais em constante interação.14 14 Há esportes de contato físico direto, mediano e mediado. Essa classificação provisória embaralha as classificações canônicas. Exemplos do primeiro conjunto aparecem amiúde nos esportes de contato franco como as lutas MMA, também imprescindível em esportes coletivos como rúgbi, futebol americano, ou presente em modalidades bem menos intensas, mas de contato físico colaborativo, tais como o nado sincronizado por equipes ou algumas modalidades de ginástica artística. Outras lutas francas podem se agregar no segundo conjunto definido por contatos medianos (moderados), uma vez que a esquiva e os jogos de distanciamento entre competidores servem como expedientes que prescindem do contato físico aberto, caso do boxe e da luta ameríndia kindene praticada no Alto Xingu e discutida por Costa (2013). Contatos medianos também se evidenciam em outros esportes coletivos muito populares, é o caso notório do futebol e em maior intensidade no basquete. Já o vôlei se aproxima do terceiro conjunto de contatos chamados aqui de mediados, em que quase se prescinde do contato físico, manifestado ou limitado às comemorações de pontos e incentivos intraequipes. Modalidades individuais como no atletismo se prestam à externalidade dos movimentos de corpos que não devem se tocar, transferindo maior sensibilidade corpórea à relação mais estrita com objetos intensamente manipulados e colaborativos para se aferir desempenhos, tais como sapatilhas, bolas, martelos, massas, fitas, dardos, varas, arcos, pedras. Olhar mobiliza princípios de exteriorização do corpo, que se coloca como vidente e visível (Merleau-Ponty, 2006, p. [1945]MERLEAU-PONTY, Maurice. 2006. Fenomenologia da percepção. São Paulo, Martins Fontes.) e sob o escrutínio de novos olhares, fazendo do corpo um território expandido pela posse de novos significados. Daí um notório atleta ganhar muitos nomes, muitas designações, imagens e flutuar num mar de metaforizações que multiplicam sua persona. O produto de seu corpo na aferição das expertises esportivas em performance é também produto de muitos olhares que recaem sobre ele.

No que se refere ao dom futebolístico o olhar confere e viabiliza coletivamente as qualidades sensíveis atribuídas convencionalmente ao domínio do inato no confronto entre subjetividades na aferição dos desempenhos. Se o dom futebolístico diz respeito à esfera da corporeidade individual e se traduz em um conjunto de técnicas em exibição, produzidas, mensuradas e trocadas como experiências sensíveis, não é menos crível que se delegue ao olhar a instância da aferição objetiva e subjetiva dessas qualidades tangíveis. Se o corpo como totalidade é visível e vidente, o olhar objetiva e subjetiva ao mesmo tempo as qualidades inerentes a esse corpo.

Portanto, o modelo das relações busca o olhar como partícula relacional, cujas funções semiológicas são justamente deslocar uma suposta e intuitiva hierarquia entre jogar e torcer. Partir do olhar é problematizar uma evidência tão intuitiva quanto sociológica, a de que quem joga não assiste e quem torce não joga, tese reincidentemente recalcada e mais do que desdobrada epistemologicamente em regimes profissionais da prática esportiva, sobretudo naquelas que alcançam as formas dos espetáculos de massa. Todo esforço convencionalizante de profissionalização de alguns passatempos lúdicos em esportivos (Elias e Dunning, 1992ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. Em busca da excitação. Lisboa, Difel, 1992) foi justamente na direção dessa rigorosa separação entre jogar e torcer com implicações epistemológicas importantes.15 15 Para uma discussão mais detida sobre os desdobramentos e elisão epistemológica entre jogar e torcer ver Toledo (2019), Costa e Toledo (2023). Não obstante, tomando a cultura do futebol em seus controles simbólicos convencionalizantes, temos que as

[…] causas simbolicamente motivadoras de jogadores e torcedores são as mesmas, ou seja, exteriorizações de si mesmos oriundas da perspectiva do olhar, que projeta e co-ilude no plano sociológico duas posições distintas, apreendidas como se mantivessem historicidades definidas pelas ações objetivantes do jogar e torcer. Trata-se, na verdade, de uma separação urdida como objetos de ciências, que os mantêm como exteriorizações de uma fundamentação epistemológica específica da simbolização convencionalizante, que funda tanto as ciências normais, na separação entre sujeito e objeto, quanto os esportes na cisão entre jogadores e público de espetáculo (L. H. Toledo, 2019TOLEDO, Luiz Henrique. 2019. Torcer: perspectivas analíticas em Antropologia das práticas esportivas. São Carlos, Tese de titularidade, Universidade Federal de São Carlos.: 131).

Seguiremos discutindo dois tipos etnograficamente aferíveis de dom futebolístico pela via do modelo das relações, coligindo-os com outras interpretações presentes na bibliografia. Então, temos o dom viabilizado nos corpos que jogam, um dom hegemônico na acepção de senso comum, que exibe manejos técnicos e deles se esperam as manifestações de estilos mais pessoalizados (L. H. de Toledo, 2022TOLEDO, Luiz Henrique de. 2022. Lógicas no futebol – releituras. São Paulo, Editora Ludopédio.). Mas também derivamos um outro dom, bem mais pervasivo, cuja apreciação analítica aparece menos intuitiva, enunciado na forma de um “dom torcedor”, cujas metaforizações significantes não ferem o dom futebolístico, uma vez que ambos possuem o mesmo substrato, pois se manifestam nos corpos e nas subjetividades daqueles que jogam olhando, os jogadores, e daqueles que olham jogando, os torcedores.

O dom da perspectiva do jogar olhado

Já foi dito que quase toda atenção dispensada pela bibliografia sobre o tema do dom voltou-se para a prática do jogar, quer dizer, à perspectiva inerente aos jogadores e seus cuidados. Isso no futebol pode ser aferido como sendo a incorporação e aprendizado das regras e das técnicas visando à prática, instâncias eventualmente potencializadas por um conjunto fenomenotécnico (Latour e Woolgar, 1997LATOUR, Bruno; WOOLGAR, Steve. 1997. A vida de laboratório. Rio de Janeiro, Relume Dumará.), sobretudo para o caso do futebol praticado em alto rendimento.

Sem o adestramento do jogar não há possibilidade de se perceber as distinções entre as fronteiras das técnicas e das disposições motoras que se impõem aos corpos que jogam. Sem o apuro adquirido pelo jogar as interações se mantêm na confusão semiótica e estética de um ajuntamento de indivíduos pela posse desordenada e apenas lúdica da bola.

Mas o esforço inventivo sustentado pelo aprendizado de um esporte coletivo e toda forma de investimento que se nota no futebol de espetáculo (Damo, 2007DAMO, Arlei Sander. 2007. Do dom à profissão. A formação de futebolistas no Brasil e na França. São Paulo, Editora Hucitec/Anpocs.; Elias e Dunning, 1992ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. Em busca da excitação. Lisboa, Difel, 1992), matriz simbolicamente hegemônica na cultura do futebol, mantém uma contrainvenção dialeticamente necessária que anima todo sistema e é a partir dela que se vislumbra, do ponto de vista do modelo das relações, o fenômeno do dom. Ideia extrapolada de que

o cerne de todo e qualquer conjunto de convenções culturais [das quais as ciências são parte interessada] é uma simples distinção quanto a que tipo de contextos (...) serão deliberadamente articulados no curso da ação humana e que tipo de contextos serão contrainventados como motivação sob a máscara convencional do ‘dado’ ou do ‘inato’ (Wagner, 2010WAGNER, Roy. 2010. A invenção da cultura. São Paulo, CosacyNaify.: 95).

É em torno das expressões do dom futebolístico que a cultura do futebol mantém a motivação dos níveis de controle mais convencionalizantes. Esse dom é expresso na esfera do jogar, mas também nas esferas do torcer, como veremos adiante. Para o caso do jogar, as convenções afirmam o primado das regras e das técnicas coletivas sobre os corpos em constante evolução, que são dialeticamente contrainventadas nas experimentações do dom, tomado por técnica intuitiva, potencialmente diferenciante, pessoalizada e inata.

A condição inalienável e a posse de um bem individual relativizam o acesso da tecnicidade e o controle científico presente nos treinamentos dedicados à domesticação coletiva das performances. O dom, uma instância que se convencionaliza como “inata”, circunscrita às “qualidades técnicas da pessoa”, alcança ainda a personalidade, como veremos adiante.

A presença inventiva do dom, em dialética com as formas da convenção, tende a assegurar e justificar a necessidade do controle convencionalizante que se impõem às dinâmicas dos esportes coletivos. Nota-se que esportes coletivos produzem uma dialética sem síntese entre o coletivismo e o individualismo dos desempenhos, sinalizando a necessidade de se levar à sério as intervenções sobre os corpos nos treinos a partir de controles tecno-científicos, que se prestam tenazmente a fabricar e a domesticar os usos do dom, esse atributo individual e exotérico.

Assim, as faculdades evidenciadas como inatas, uma fulgurante singularidade alocada no plano individual, na verdade cumprem os desígnios motivacionais da própria convenção. As exigências do jogar detectam, selecionam e qualificam o dom futebolístico individual de acordo com procedimentos convencionalizantes. Veremos adiante que da perspectiva mais recursiva da socialidade entre torcedores – entre aqueles que torcem, aqueles que jogam outros futebóis -, o dom se espalha e rompe com as formas de controle que delimitam a cultura futebolística convencional.

É por isso que inventando e acrescentando plasticidade e criatividade à performance coletiva do jogo, o indivíduo discriminado como craque ou detentor de maior dom produz uma espécie de gatilho no interior da cultura do futebol convencional, estabelecendo uma obviação necessária, qual seja, a cisão das duas instâncias mediadas pelo olhar – jogar e torcer, como separadas, discriminadas e qualitativamente estranhas uma em relação a outra.

Portanto, o reconhecimento do dom sinaliza que a prática será para poucos e toda fenomenotécnica que envolve o apuro de um talento inato cumprirá as exigências de trajetórias esportivas muito sinuosas até que aquele seu portador possa responder aos níveis desejados de excelência técnica e psicológica colocadas em disponibilidade no mercado de pés-de-obra (Damo, 2007DAMO, Arlei Sander. 2007. Do dom à profissão. A formação de futebolistas no Brasil e na França. São Paulo, Editora Hucitec/Anpocs.).

Jogar olhado é a instância perceptível que permite discutir a exteriorização e o estatuto relacional desse corpo possuidor de dom. Pois um corpo que joga, se entreolha ao mesmo tempo. Ao olhar para si mesmo ou ser olhado por outrem, aquele que joga permite o vislumbre e maravilhamento de seu desempenho (que pode ser uma má avaliação) para além das possibilidades do próprio corpo, buscando os sentidos e sinais externalizados que alcançam a atenção de muitos outros olhares (interessados ou desdenhosos) que reterritorializam seu corpo em novas relações, imagens, contextos.

Apartando e selecionando “naturalmente” aqueles que jogam, e exteriorizando as relações depreendidas do jogar daqueles outros milhares e milhões de despossuídos de dom, inventou-se um futebol de espetáculo. Ao descartar um verdadeiro exército de reserva de desapossados de dom, esse futebol de espetáculo promoveu o olhar ubíquo da prática do torcer ou a prática de outros tantos futebóis de entretenimento pessoal ou coletivo bem menos espetaculares do ponto de vista da circulação mercantilizada. A evidência do dom futebolístico se prestou às evidências ubíquas da mercadoria no plano esportivo. A depuração ou convencionalização do dom futebolístico destinou-se a alta exposição consumerista de corpos atléticos, formando um sistema mundial (Rial, 2008RIAL, Carmen. 2008. Rodar: a circulação dos jogadores de futebol brasileiros no exterior. Horizontes Antropológicos, ano 14, n. 30: 21-65. DOI 10.1590/S0104-71832008000200002
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).

Produção, circulação ou relação? As ilusões do dom

Não obstante, podem ser variadas as circunstâncias em que se pode aferir o dom futebolístico, seja a partir da produção, da circulação e, no caso enfatizado nesse artigo, a partir das relações recíprocas entre jogar e torcer. A literatura clássica pós-maussiana identificou na troca, e não nas coisas em si mesmas, as propriedades conectivas do dom que se manifestam desde a produção, passando pela circulação de bens tangíveis e intangíveis, alcançando o consumo.

A produção de jogadores neófitos para fins de mercado está intimamente relacionada àquilo que Damo (2007DAMO, Arlei Sander. 2007. Do dom à profissão. A formação de futebolistas no Brasil e na França. São Paulo, Editora Hucitec/Anpocs.) identifica como duas apreensões possíveis, que destrincham o dom futebolístico/esportivo nas formas dom-dádiva e dom-talento. Dádiva está relaciona às qualidades mágica/divinas ofertadas àqueles que passam a exibir e a serem reconhecidos como portadores de um talento. E embora talento esteja em contiguidade à noção de dádiva recebida, quer dizer, tomado também como qualidade inata, abre a possibilidade de ser reconhecido como uma qualidade adquirida, ao menos passível de controles objetificados nas formas de treinamentos, técnicas e intervenções dos saberes que se embrenham na direção de seu incremento na produção de jogadores.

Dádiva e talento são fatores que fazem o dom flutuar sociologicamente entre esferas ou zonas de pertença influenciadoras de carreiras esportivas. Dádiva está mais propensa a agir nos círculos familiares (Spaggiari, 2013), coletivos de menor escala que geralmente se beneficiam do retorno financeiro das carreiras exitosas de seus descendentes, que se obrigam moralmente a redistribuir as dádivas recebidas divinamente. Trata-se também, ou antes, de um círculo de dívidas, com o sagrado, com a família, mais do que uma troca por reciprocidade, daí sua ambiguidade.16 16 Devo essa discussão, que não pode ser destrinchada aqui, aos comentários de um dos pareceristas, que atentou para as nuanças entre a troca levistraussiana por reciprocidade, que alude à conectividade e complementaridade, e a maussiana, que parece aproximar dádiva e dívida, instaurando alguma ambiguidade, que também pode se evidenciar na tensão entre jogar e torcer, dados os desdobramentos entre o compromisso (de jogar) e a liberdade (de torcer). Talento se compromete com as comissões técnicas e outros operadores de dom, geralmente alocados ou no entorno dos clubes, que buscam maximizar e evidenciar o dom-dádiva, visando agregar valor aos atletas para o mercado, promovendo a conversão do talento em valor de troca.

Mas é preciso atentar que dom não se apresenta apenas como uma forma síntese de troca, mas como conversão. Do ponto de vista das relações, e mesmo que se esteja na presença de contextos que se impõem bem menos exigências à troca do talento por “valor de mercado”, e o caso limite poderia ser exemplificado entre praticantes amadores numa pelada de final de seman17 17 Pelada, baba, racha, fut, bolinha são termos que se imiscuem ao vocabulário que delimita um amplo domínio de futebóis praticados ludicamente. , o dom se manifesta como conversão recíproca de relações mediadas pelo olhar perscrutador entre os praticantes. Isso porque nesse tipo de contexto todos horizontalmente e de maneira espalhada se avaliam, posicionando dons relativos entre si, o que permite distribuir o dom em outros territórios convencionalizados do qual as etnografias que definem o dom futebolístico partiram.Se está se falando da decantada competição europeia Champions League ou de um mero e anônimo jogo entre amigos, a chance de alguém manifestar o dom mais do que outro não é desprezível do ponto de vista do modelo das relações. Até mesmo na falação torcedora – em que sempre há aquele que se vangloria de seus próprios feitos esportivos (por vezes superestimados e até duvidosos), em um jogo sem responsabilidades no fim de semana – estamos diante de uma experimentação de um dom vivido e multiplicado. Portanto, é o caminho das metáforas do dom que está em discussão aqui, visando buscar os efeitos de uma esportividade do olhar. É necessária, para terminar essa sessão, uma longa citação.

Esportividade do olhar remete a uma distribuição mais equitativa do olhar etnográfico sobre as transformações recíprocas entre jogar e torcer. Esportividade do olhar é recurso metodológico de um modelo que intenta deslocar relativamente o objeto jogar, frequentemente atado a conceitos como esporte e jogo. Esse reenquadramento pretende apurar as metáforas eliciadas pelas faculdades perceptivas que enunciam as formas de torcer, consideradas, como o próprio jogar, metáforas tardias do olhar. Nesse deslocamento metodológico, jogar é retirado do epicentro do modelo e deslocado para formar uma relação menos hierarquizante ou determinista com torcer. Desse modo, olhar passa a se colocar como epicentro num modelo que pretende explicitar o torcer na mesma intensidade conceitual com que tantas searas acadêmicas se dedicaram ao jogar (Costa e Toledo, 2022COSTA, Carlos Eduardo; TOLEDO, Luiz Henrique. 2022. Transformações do torcer: esportividade do olhar e olhares sobre a esportificação. Ilha - Revista de Antropologia, vol. 24, n. 3: 92-113. DOI 10.5007/2175-8034.2022.e84360
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: 93).

Dom em escala infinitesimal

Do ponto de vista das relações, a presença do dom independe das escalas contextuais, ganhando uma dimensão mais fractal de experiências contrastivas para além das qualidades intrínsecas ostentadas por sujeitos portadores de dons. Nesse sentido, o dom passa a ser relação de significação em estado permanente e revela uma recursividade simbólica própria das metaforizações que o levam aos significados contextuais (Wagner, 1978WAGNER, Roy. 1978. Lethal Speech: Daribi Myth as Symbolic Obviation. London, Cornell University Press). Dom, seja dádiva ou talento, agora pouco importa em sua generalidade e espalhamento, tomado por relação, passa a definir quem joga pior ou melhor numa dimensão infinitesimal, expresso numa máxima muito comum na sociabilidade entre futeboleiros ao tornarem consensual entre convivas a máxima jocosa de que “sempre há alguém pior do que eu em um jogo de futebol”.

Portanto, a ideia central aqui é menos atentar para as propriedades inerentes às qualidades definidoras de dom como constitutivas da pessoa, tal como convencionalizado na cultura do futebol, mas também pensá-lo menos como primado de uma economia simbólica de trocas, para se ater às extensões analógicas dos significados que o olhar impõe fractalmente às relações de dom. É afirmar também que está menos em discussão a análise sobre o dom qualificando relações para se ater às modelagens de relações que possam qualificar e espalhar os significados a respeito do dom. Parafraseando Wagner, os efeitos do dom estão no dom dos efeitos, ou seja, naquele lugar fugidio em que jogar e torcer se misturam no modelo das relações.

Mesmo em regimes em que o dom é disputado pelas noções de dádiva e talento evidenciam-se extensões relacionais do dom. Damo (2007DAMO, Arlei Sander. 2007. Do dom à profissão. A formação de futebolistas no Brasil e na França. São Paulo, Editora Hucitec/Anpocs.) e Spaggiari (2016SPAGGIARI, Enrico. 2016. Família joga bola. Jovens futebolistas na várzea paulistana. São Paulo, Intermeios∕Fapesp.) trabalharam, respectivamente, com dois recortes etnográficos de muito alcance analítico: a presença de entourages no entorno do jovem jogador e a percepção de uma “família esportiva” que, a partir da manifestação de qualidades pessoais, passa a produzir, amparar e visibilizar o apuro do dom futebolístico daqueles membros agraciados por esse presente considerado divino, evocando aquela dívida sempre impagável.

Pais que possuem filho(s) ou filha(s) com talento, e que acompanham as carreiras de seus rebentos, que torcem por eles e que se embrenham como procuradores e agentes econômicos dos próprios filhos podem ser tomados como portadores ou beneficiários em algum nível daquele dom do filho. Obviamente não se trata mais do dom-talento ou dom-dádiva, mas como bem aponta Damo (2007DAMO, Arlei Sander. 2007. Do dom à profissão. A formação de futebolistas no Brasil e na França. São Paulo, Editora Hucitec/Anpocs.: 225) de uma forma transubstanciável de dom. Essa transubstanciação alcança os olheiros, outra categoria de profissionais no campo esportivo que guardam talento na detecção de dons alheios. São verdadeiros caça-talentos, que promovem a transubstanciação do olhar em dom.

Teoricamente e a partir de várias noções correntes, como bem explicita Damo, dom pode estar associado à noção de reciprocidade, habitus, significado flutuante. Todo o cuidado do autor está em não reduzir uma instância na outra, ou fazer derivar o fenômeno do dom das causas que estariam ausentes em suas formulações êmicas ou nativas. Dessa forma, preserva-se o dom de suas objetificações quer sociológicas como em associação ao habitus bourdiesiano, ou se evitam os excessos ou atalhos, como enfatiza o autor, que tentam aproximar qualquer manifestação do dom à lógica sistêmica da reciprocidade, uma vez que é preciso preservar as diferenças entre o ético e o êmico (Damo, 2007DAMO, Arlei Sander. 2007. Do dom à profissão. A formação de futebolistas no Brasil e na França. São Paulo, Editora Hucitec/Anpocs.: 195).

De todo modo, mesmo o dom transubstanciável se baseia na ideia prevalente de que o dom circula em um sistema, tal como bem indica a bibliografia a esse respeito: o dom é algo que na origem está no sujeito, mas não lhe pertence (Damo, 2007DAMO, Arlei Sander. 2007. Do dom à profissão. A formação de futebolistas no Brasil e na França. São Paulo, Editora Hucitec/Anpocs.: 207). Não obstante, e mesmo evocando uma percepção distributiva o dom não se realiza apenas como código ou sistema (dar-receber-retribuir), seja mágico como dádiva, seja mais racionalista como talento, desde que concebido em suas formas analógicas de extensão contextual em que símbolo e simbolizado passam a se pertencer mutuamente (Wagner, 2017WAGNER, Roy. 2017. Símbolos que representam a si mesmos. São Paulo, Editora da Unesp.: 19).

Essa observação pode levar a um outro conjunto de indagações mais negligenciadas pela bibliografia e já discutido acima: o caráter fractal do dom. Porque, em última análise, ele flutua numa escala (do indivíduo ao coletivo e vice-versa) que prescinde de uma socio-lógica para se perceber em suas múltiplas manifestações. Essa parece uma questão relevante desde que se mantenha a ideia de que existe, sobretudo um dom torcedor espalhado na cultura do futebol.

Dom e personalidade, corpo e performatividade

Aquilo que no futebol é identificado por postura individualista de jogadores-problema, politicamente rebeldes (Florenzano, 1998FLORENZANO, José Paulo. 1998. Afonsinho e Edmundo: a rebeldia no futebol brasileiro. São Paulo, Musa.), que primam por condutas estravagantes consideradas ecessivas ou por se posicionarem politicamente de modo mais contundente, coloca tais sujeitos em constante confronto com as condutas morais e acordos políticos tácitos que prescrevem os limites individuais de atuação esportiva no arranjo da cultura do futebol.

No atual momento do futebol profissional não é raro que entourages de muitos jogadores de sucesso busquem complementar o apuro de suas habilidades físicas num outro conjunto de conhecimentos exteriores aos seus corpos-dons. Valorizam-se as habilidades emocionais na incorporação de saberes que intervêm e auxiliam no cultivo da personalidade direcionada à gestão de carreiras. Nota-se que esse processo está cada vez mais objetivado por formas de conhecimento e métodos de autoajuda, ou através de searas científicas que lidam com as emoções de jogadores no âmbito esportivo.

As emoções na esfera do jogar estimulam um conjunto de pesquisas em várias searas acadêmicas, sem necessariamente estabelecer diálogos próximos ou interdisciplinares com as ciências sociais. Temos a inserção institucional e militância profissional da Psicologia do Esporte tanto na Psicologia, Educação e Educação Física (Rubio et al, 2000), que protagonizam as áreas mais atuantes que subsidiam várias modalidades, tais como o futebol profissional.18 18 Abordagens nas ciências sociais se dispersam e se afastam desse caráter aplicado, pontuando temas da subjetividade em uma antropologia e sociologia das emoções em intersecção com temáticas de gênero, focando não só o domínio do jogar como as esferas do torcer (BANDEIRA e HIJÓS, 2017; RIOS e COELHO, 2020). Na ausência de profissionais e psicólogos nas comissões técnicas esportivas o gerenciamento das emoções dos jogadores muitas vezes está ancorado em vulgatas acadêmicas conhecidas pela expressão “inteligência emocional”, muito difundidas entre comissões técnicas no futebol profissional brasileiro a partir da década de noventa do século passado (L. H. de Toledo, 2022TOLEDO, Luiz Henrique de. 2022. Lógicas no futebol – releituras. São Paulo, Editora Ludopédio.).

Boa parte da crítica comumente desferida aos jogadores incide na invenção dessa lacuna entre capacidades motoras e habilidades físicas tomadas por inatas e a má condução comportamental no gerenciamento do dom. O apuro adquirido pela via da maturidade psicológica na gestão de carreiras exitosas é modelagem cada vez mais decisiva na definição das políticas de contratação de grandes clubes no mercado futebolístico.

Nesse caso, o dom pode ser compreendido como sendo o input necessário, a simbolização que motivará traçar todo um percurso adquirido de relações que levarão ao aprendizado, experimentação, mensuração e socialização colocados à prova no sentido de objetivar uma carreira de sucesso. Aquilo que foi por muito tempo percebido como uma espécie de duplo vínculo, ou seja, habilidade técnica valorizada contraposta à personalidade “difícil” de jogadores-problema ou rebeldes, aparece cada vez mais parametrizado pelos cálculos de um maior controle sobre a pessoa esportista, sobre seu dom psicológico, na tentativa de integralizar a pessoa (Strathern, 2014).

Todo esforço se revela na aquisição de uma personalidade, já que dom-dádiva ou dom-talento garantem por intermédio do corpo a condição inata para o desenvolvimento da prática. Já no âmbito torcedor, a emoção, a paixão e o pertencimento clubísticos são assegurados pela convenção como domínios devotados às coisas do coração, quer dizer, inatas e de fundamento subjetivo.

As interpelações aos torcedores, sobretudo quando envolvidos em casos de transgressão, estimulam as interpretações que tomam o torcer como postura emotiva, reativa, irracional, violenta, explicada em termos de déficits psicológicos que alimentam um amplo espectro de imagens sobre comportamento torcedor.

Mas o que o torcer historicamente reivindica é justamente a posse de um corpo, inventado coletivamente nos associativismos torcedores de toda monta (L. H. Toledo, 2019TOLEDO, Luiz Henrique. 2019. Torcer: perspectivas analíticas em Antropologia das práticas esportivas. São Carlos, Tese de titularidade, Universidade Federal de São Carlos.; Costa e Toledo, 2023COSTA, Carlos Eduardo; TOLEDO, Luiz Henrique. 2023. Antropologia das Práticas Esportivas: investigações etnográficas e experiências comparadas em torno do Olhar. Etnográfica, vol. 27, n. 1: 27-50. DOI 10.4000/etnografica.12856.
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). Adquirir um corpo torcedor é chancelar performances próprias. Trata-se de olhar jogado, que passa a relativizar o mero exercício sublimado e subjetivista das emoções, lugar mais fugidio que a convenção alocou o torcer. A aquisição de um corpo torcedor coloca as emoções em movimento, em princípio um apanágio do jogar. Se jogadores reivindicam uma personalidade no apuro do jogar, torcedores reivindicam uma corporalidade para o torcer, expressões do jogar olhado e olhar jogado.

O dom dos efeitos e o efeito dos dons

Se o dom for tomado pelos seus efeitos e menos como realidade extrínseca às ações e relações, tanto as categorias êmicas (nativas) quanto as éticas (do contexto socioantropológico) podem igualmente ser tomadas por extensões metafóricas implicadas dentro do mesmo domínio convencional da cultura prevalente, pois partem do mesmo modo simbólico convencionalizante de controle na escolha ou distinção interpretativa do dom.

Nesse sentido, tomar o dom como instância transcendental, sobrenatural, dádiva recebida de Deus ou colocada em reciprocidade distributiva, ou imanente do talento, ou ainda na sua acepção estruturalista (como um significante flutuante, que se põe no lugar daquilo que se apressa ou demanda por significação) parte e compartilha da mesma ilusão cultural (porque motivada de maneira semelhante) uma vez que as qualidades de inato, sobrenatural ou indutor de operações dedutivas simbólicas da mente humana mantêm entre si a mesma motivação convencionalizada como instância a ser burilada na relação entre inato e adquirido. Dom tomado como talento ou explicado como fenômeno sistêmico socioantropológico são expressões da mesma convenção, que se impõe tanto no senso comum quanto nos campos científicos que intervém analiticamente sobre o fenômeno.

Essa interpretação obviamente não desautoriza os esforços criativos de compreensão do dom que, inclusive, apontam para os exageros de algumas análises demasiadamente semânticas (dom é reciprocidade) e finalistas (ancorado numa razão simbólica última). Tal como colocado de maneira extensa e densa, Damo (2007DAMO, Arlei Sander. 2007. Do dom à profissão. A formação de futebolistas no Brasil e na França. São Paulo, Editora Hucitec/Anpocs.: 185, passim; 2008) deixa flutuar deliberadamente a análise etnográfica entre definições nativas e categorias analíticas, mostrando que umas impõem efeitos sobre as outras.

Não obstante, a intenção aqui é espalhar ainda mais tais efeitos, advogando em nome da inventividade do dom vivido, relacional, criativo e menos simbolicamente convencionalizado, autorreferenciado num símbolo que representa a si mesmo (Wagner, 2017, p. [1986]WAGNER, Roy. 2017. Símbolos que representam a si mesmos. São Paulo, Editora da Unesp.). No plano empírico é como tratar do drible inusitado ocorrido na várzea, mas que quase ninguém viu e que jamais será repetido ou do futebol momentaneamente sem jogadores presente na falação corriqueira dos torcedores, onde o dom não deixa de vicejar como experiência. Posicionar o dom na chave dessas inventividades é percebê-lo em todo lugar, seja como mistério, condição inata ou dádiva e no talento visibilizado pela formação consciente de corpos jogadores e torcedores comprometidos com o jogar olhado e o olhar jogado, tal como relatado na última sessão.

Emoções do olhar jogado

Aquilo que parece valer para o dom futebolístico do jogar, ou seja, a exibição das qualidades individuais (talento), definidoras da excepcionalidade singular da pessoa, vale muito menos ou se apresenta mascarado ou até mesmo interdito aos torcedores, que só demonstram algum dom no curso das ações mais coletivizadas, estimuladas pelas convenções que se acautelam diante de experimentações de torcedores de “personalidade difícil”. O deliberado investimento contemporâneo em reposicionar torcedores na esfera do consumo universalista, o que parte da literatura indicou pela categoria torcedores-consumidores, busca assegurar os imperativos das convenções simbólicas.19 19 Processo deflagrado primeiro na Europa em nome da segurança nos estádios e posteriormente no Brasil com a construção das arenas esportivas multiuso, erguidas sob a égide da FIFA para a Copa do mundo de 2014. A literatura debateu muito esse tema imiscuído na emergência dos chamados megaeventos esportivos (DAMO e OLIVEN, 2013). Para alguns autores esse processo revelou a instrumentalidade racional consumerista (L. H. de TOLEDO, 2014). Há trabalhos, no entanto, que procuraram matizar essa fórmula um tanto reificada. Para uma crítica etnográfica recomendo Rios (2018). Dom como qualidade da pessoa jogadora se apresenta como um contínuo indiviso, atado à corporeidade e personalidade daquele que joga, guardando a ideia de busca por uma unidade e coerência psíquica esportiva. Já o torcer, atado as qualidades manifestas que lhe cabem no domínio das emoções, aparece fragmentado individualmente pelo subjetivismo ou subsumido às ações coletivas de massa, fazendo soçobrar alguma propensão ou dom individual diante de uma genérica emoção amparada por um sistema classificatório enrijecido pelos pertencimentos clubísticos.

Não se trata de recolocar uma gasta dicotomia no contexto da cultura do futebol: individualismo como instância que define o dom de jogar, e holismo como substrato do torcer ou de um dom coletivo que reveste o comportamento torcedor. O acento do modo de simbolização convencional na cultura do futebol tem que valer para ambos, ou melhor, para a relação entre jogar e torcer e suas metáforas tardias, nomeadas por torcedores e jogadores.

As metáforas que estimulam a separação entre o jogar do torcer orientadas pela noção de dom levam paradoxalmente à presunção de um torcedor sem dom, ou a um desestímulo intelectual em pensar qualquer manifestação de dom relacionada às emoções da pessoa torcedora. Isso implica em aproximar dom das emoções. Mas em que termos ocorreria um dom torcedor?

Essa indagação pode ao menos projetar um problema novo implicado nas relações entre dom e algumas ordens de grandeza, bem como relativizar aludidas dicotomias entre indivíduo e coletivo, troca mercantil e economia das emoções, qualidades esportivas inatas e adquiridas. Nessa direção pode-se associar o dom torcedor também aos fenômenos de escala, tais como as conexões parciais strathernianas, fazendo com que dom e emoções possam novamente se reaproximar da problemática das relações.

Ilustro com um assunto recorrente que anima calorosas controvérsias em mesas redondas e programas esportivos pelo mundo e que reascendem de tempos em tempos um assunto tipicamente torcedor, a saber, a comparação de jogadores cujos dons futebolísticos são mundialmente reconhecidos.

O suposto dom incontestável de Pelé, estudado até pela fisiologia do esporte, que buscou explicitar sua capacidade inata de jogar pela compleição física e visão periférica à serviço de sua técnica apurada (L. H. de Toledo, 2004TOLEDO, Luiz Henrique de. 2004. “Pelé: os mil corpos de um rei”. In Garganta, Julio; Oliveira, José; Murad, Mauricio (orgs). Futebol de muitas cores e sabores. Porto, Campo das Letras, pp 147-166.), parece sofrer um processo de extensão relativizadora à medida em que passam as décadas e novos jogadores talentosos vão aparecendo no imaginário torcedor.

E incensando comparações sérias e jocosas a respeito de quem foi o melhor jogador de futebol do mundo, jogos comparativos estimulam o domínio especulativo torcedor e midiático: Pelé ou Maradona? Pelé ou Messi? Pelé ou Cristiano Ronaldo? Este ou aquele?20 20 Em 2022 a revista inglesa especializada em futebol FourFourTwo atualizou sua lista de grandes nomes do futebol e posicionou o atleta português Cristiano Ronaldo acima de Pelé, fato difundido em outras mídias esportivas, como a reportagem do portal Globo Esporte. Para mais ver: https://ge.globo.com/futebol/futebol-internacional/noticia/2022/10/10/revista-elege-messi-comoo-melhor-de-todos-ostempos-e-poe-pele-emquarto-no-ranking.ghtml. Acesso em: 02 nov. 2022. Todas essas especulações promovidas pela mídia para insuflar controvérsias instauram o dom como dúvida e não como dádiva ou “sistema”. Nesse sentido, dom é antes de tudo o resultado de projeções ou precipitações das relações entre jogar e torcer, que não param de oferecer comparações em cadeias extensas onde a medida das coisas, no caso o dom de Pelé, se coloca em posição de fractalidade, relativizando as qualidades inatas presente em seu corpo como índice do jogar. O inato se torna um exercício permanente e especulativo dos efeitos do adquirido.

Fractalizar Pelé nessas controversas comparações e falações, que alcançam o âmago da sociabilidade torcedora, é colocar sempre seu dom em perspectiva ou sob as tiranias do olhar de alguém, dos torcedores ou cronistas contemporâneos que repõem continuadamente as dúvidas sobre suas qualidades inatas. Mas Pelé está fora do mercado, já não converte mais seu dom em valor de troca e pode se oferecer, mesmo que à revelia, a toda sorte de relativização convencional. Fora do sistema esportivo mercantil, se espalha, não mais como jogador, mas como ex-jogador, ou como muitas vezes já afirmou, um simples torcedor, posição sociológica recursiva universal tomada por pressuposto no modelo das relações.

No sentido das convenções, que visam o mercado e que estabelecem o que deve ser inato e adquirido, um dom torcedor não somente pode ser um contrassenso como é necessário que não exista sob risco de relativização e desmoronamento de todo constructo simbólico assentado no controle mercadológico das emoções do futebol, aliás como aposta e mesmo reivindica inadvertidamente boa parte da teoria das emoções presente em Norbert Elias (1992ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. Em busca da excitação. Lisboa, Difel, 1992).

Sendo assim, o dom aparece como torção ou quiasma entre o olhar jogado e o jogar olhado engendrado na forçosa separação entre jogar e torcer, mas que não deixa de ser dependente dessa mesma cisão ou decisão de ordem simbólica convencional. De qualquer forma, o dom, esse atributo inato, não pode ser pensando fora das esferas do olhar, o que faz dele uma ilusão necessária como objetificação de toda as outras instâncias que pretendem controlá-lo, domesticá-lo e colocá-lo à serviço da maximização performática do jogar sob os olhares que se agregam a ele de quem o vê de fora (de torcedores, empresários, dirigentes, conglomerados empresariais, instituições esportivas etc.).

Tornar o dom visível implica perceber de maneira monista (Goldman, 2012GOLDMAN, Marcio. 2012. “O dom e a iniciação revisitados: o dado e o feito em religiões de matriz africana no Brasil”. Mana – Estudos de Antropologia Social, vol. 18, n. 2: 269-288. DOI 10.1590/S0104-93132012000200002.
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) a relação entre dádiva, talento e emoção, que se prestam a um esforço para revelar a relação dialética estabelecida entre olhar jogado e jogar olhado, mostrando que são perspectivas objetificadas ao mesmo tempo que obviantes na relação entre jogar e torcer. Já foi por demais ressaltado que no senso comum o dom é percebido como um feixe de disposições inatas que só pode ser evidenciado nas relações que o orientam. Mas pensar o dom como produto de relações reais e virtuais (tais como se apresenta nas discussões sobre quem seria melhor jogador, Pelé ou outros?), é abrir para a possibilidade de observar suas propriedades espalhadas na fractalidade das relações no interior da cultura do futebol.

Tratado como qualidade inata presente em determinadas pessoas o dom é continuadamente metaforizado na definição de ídolo esportivo. Pelé, que para muitos é aquele que deteria o dom dos dons, representaria tanto a posição de um big man esportivo, como um great man (Wagner, 1991WAGNER, Roy. 1991. “The Fractal Person”. In: STRATHERN, Marilyn; GODELIER, Maurice. (org.). Big Men and Great Men: Personifications of Power in Melanesia. Cambridge: Cambridge University Press.). Como big man, ele impôs um estilo pessoalizado de jogo hierarquicamente distanciado em relação aos outros (atletas, torcedores e jogadores amadores); já como great man ele atuou mudando de escala diante dos demais como o “rei do futebol”, mas também personificando a própria escala, na medida em que o futebol-arte por ele praticado também operou como princípio coletivizante, fundando toda uma socialidade, escola ou cultura futebolística, que só alcançou esse estatuto (futebol-arte) por intermédio de singularidades como Pelé.

Nesse sentido é muito curioso como a publicação póstuma dos escritos de outro jogador notabilizado, Sócrates, já na posição de ex-jogador e reconvertido a “torcedor comum”, definiu do ponto de vista do torcer aquilo que comumente se concebe como ídolo no contexto brasileiro. Provavelmente o ex-jogador pensava em si mesmo como exemplo dessa conversão de seu dom de jogador em dom torcedor

É interessante perceber que estas demonstrações de puro encantamento sejam tão raras aqui no Brasil. Pelé é um bom exemplo de quão distantes estamos daqueles que nos representam. Na verdade, não possuímos a paixão por estas figuras populares. Só mesmo em caso de um acidente de proporções gigantescas é que nos mobilizamos para cultuá-los. Ou, quando é o caso, se o personagem é realmente representativo do que esperamos deles. Aí sim nos sentimos próximos e existe uma identidade a nos aproximar. Mas, geralmente de maneira humana e realista e quase nada de veneração (Neves, 2019NEVES, Milton. “As memórias de Sócrates”. Portal Uol: Coluna Milton Neves. São Paulo, Uol, 9 ago. 2019. Disponível em https://blogmiltonneves.uol.com.br/blog/2019/08/09/as-memorias-de–socrates/ Acesso em 21 out. 2022.
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, s/p).

Ao especular sobre como os ídolos são relativizados na cultura futebolística brasileira, Sócrates estabelece a dialética entre jogar olhado e olhar jogado na medida em que o dom, atributo que qualifica um ídolo, pode ser tomado como fração presente na performance dos torcedores. Nessa aguda percepção de torcedor o ex-ídolo não se descola ou se hierarquiza ante os torcedores desapossados do dom do jogar. Percebe-se que até mesmo nos domínios do dom, lugar tão assegurado de cisão entre quem o tem e quem está despossuído dele, permite-se entrever, mais uma vez, a relação dialética entre torcer e jogar. Pois Sócrates não exulta a veneração cega dos torcedores diante de seus ídolos, que são colocados em perspectiva, e assim como ex-ídolo contrainventa um dom torcedor ao especular sobre o arrefecimento do dom futebolístico.

Nada asseguraria ao ídolo, de antemão, orientar o vetor da reciprocidade como polo doador dos fundamentos da técnica e do jogo aos torcedores que o retribuem com gastos onerosos e gritos de incentivo emocionados. Não tornar dicotômica ou estanque a relação entre jogar e torcer é circunscrever os domínios das habilidades físicas, o dom, e a fruição das emoções num continuum mais fractalizante, onde, no limite, dom e emoção se equivalem da perspectiva do torcer.

Considerações finais

Essa curiosa manifestação intermitente da emoção torcedora ante os ídolos esportivos, que aqui finalmente pode ser definida por dom torcedor, espécie de dívida que rejeita a mera troca,21 21 Comunicação pessoal com o antropólogo Jorge Villela a respeito de um de seus trabalhos (VILLELA, 2001) em que discute as relações entre dívida e reciprocidade. aponta para alguma inconstância da alma torcedora na troca permanente que o torcer estabelece com o jogar.

Vaia-se um ídolo, xinga-se um craque se ele não corresponder e não reatualizar seu dom de jogar a cada desempenho do time em campo. Afinal, o dom precisa ser objetivado em contexto. Sócrates reclama do esquecimento torcedor, mas suas observações são argutas em relação a essa paixão torcedora que alguns insistem tomá-la por inata e contínua como se o dom que o próprio Sócrates ostentou em campo também pudesse sê-lo, nessa mesma medida.

Tanto a paixão torcedora quanto o dom de jogar são relativizados ou contrainventados na relação entre jogar e torcer, onde o dom, essa substância que se convencionaliza por inata, se coloca como conectivo simbólico adquirido contextualmente por toda cultura do futebol.

Como se pode extrapolar a partir da fala de Sócrates, as dúvidas em relação ao futebol transcendente e ao superfísico tão enaltecido de Pelé não necessariamente o desmerecem na relação com as ingratidões torcedoras, mas apenas o humaniza ou o converte em uma espécie de torcedor, ainda que privilegiado, reatualizando seu dom no torvelinho das relações que permanentemente o contrainventam.

Assim como o dom pode ser percebido para além da reciprocidade e homeostase sistêmica (Villela, 2001VILLELA, Jorge Mattar. 2001. A dívida e a diferença. Reflexões a respeito da reciprocidade. Revista de Antropologia, vol. 44, n. 1: 185-220. DOI 10.1590/S0034-77012001000100006
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) é preciso se acautelar em relação à troca entre o oferecimento do talento a “serviço” do jogo retribuído com apego, idolatria, reverência, emoção e entrega corporalizada torcedora. O dom torcedor não se revela apenas ou tão somente em relações hierarquizantes com o dom dos jogadores, até mesmo porque ao final de toda carreira futebolística os jogadores na condição de ex-jogadores também se convertem em torcedores.

Portanto, é preciso liberar o torcer dentro de um amplo domínio de relações em que não se reconhece mecanicamente e a todo tempo um sistema de emoções em que um dos atores, aquele “artista” que porta o dom de jogar é exibido aos olhos dos outros que só assistem. O jogador não deve ser considerado hierarquicamente como homólogo ao todo, à cultura do futebol, como espécie de síntese do próprio jogo. Afinal, se o jogo jogado também é olhado, nem que seja pelos próprios jogadores numa pelada, isso acontece ao mesmo movimento do jogo “torcido” ou retorcido dos torcedores, quer dizer, olhares corporalizados e externalizados na condição torcedora.

Sempre faltará àqueles que jogam algum apuro do olhar, internalizado ou externalizado, para que se possa contrainventar permanentemente aquilo que se percebe como propriedade corporal inata, o dom futebolístico. Um ex-jogador como Sócrates, mas isso parece valer para tantos outros, passa a olhar retrospectivamente sua carreira e a relativizar seu próprio dom, que modulava sua condição inconteste de ídolo à época que atuava. Sócrates, considerando a condição de ex-jogador, agora torcedor, já sentia que se afastava do movimento do dom. Reconhecido sim, mas já sem portar o dom futebolístico convertido em dom torcedor.

Mas também faltará a quem torce uma condição imposta pelo jogar. Esse jogar aqui é expresso na busca por manejos da corporalidade torcedora e sua condição feérica que podem levar às situações de confrontos e transgressões, como se nota amiúde. O olhar do jogar e o jogar do olhar como torcer são fatores que mantém a relação dialética como princípio simbólico motivador, que promove e atualiza as separações entre jogadores e torcedores.

Não obstante, as indagações de Sócrates, diminuindo as distâncias incomensuráveis entre ídolos e fãs, jogar e torcer, inato e adquirido, como quem reivindica um olhar jogado para o seu jogar olhado, expõem uma dívida do jogar para com o torcer,22 22 Extrapolando considerações de Lanna a respeito da relação entre troca e dívida (2012). sinalizando que dom jogador e emoção (paixão) torcedora, ou dom torcedor, tensionam o modo de simbolização que definitivamente mantém o jogar e o torcer em estado permanente de dialética.

Aquela imagem do jogador, de resto do próprio jogar, como “agente sobrenatural ou superfísico, com alguma coisa de conteúdo antropomórfico”, tal como imaginou Veblen ao problematizar os fatores extra-econômicos do valor nos esportes encaminha essa discussão de volta ao modelo das relações que, como modelo ou modelagem, tenta num plano metodológico rediscutir certas categorias essencializantes presentes no campo da antropologia das práticas esportivas. De resto, fazer da cultura do futebol um caso particular de crítica etnográfica sobre a temática do dom permite ampliar as discussões que pretendem matizar as fórmulas canônicas em tomar o dom na chave de relações estanques entre o inato e o adquirido, muitas vezes e inadvertidamente contempladas nos autores etnossemânticos.23 23 Antropólogos etnossemânticos para Wagner seriam aqueles que objetificam a natureza por meio de categorias nativas (WAGNER, 2010: 228), ou seja, transferem os mecanismos epistemológicos de controle da sua cultura ao estudar outras culturas, tais como os funcionalistas o fizeram para as próprias categorias nativas que ganham em potência cognitiva, mas sem abrir mão de que tal objetificação nativa permanece atada a uma mesma noção de natureza como mecanismo e controle que a do antropólogo.

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  • 1
    Programa da crônica esportiva chamado G4, ao ar desde 2021 de terça a sexta-feira a partir das 12 horas na BandSports, canal de pay-per-view que pertence ao conglomerado midiático paulista popularmente conhecido por rede Bandeirantes. O programa é apresentado por Eduardo Tironi como condutor da pauta e o integram a jornalista Marilia Ruiz, Arnaldo Ribeiro e Paulo Massini. A discussão acima foi colhida na edição de 19 de outubro de 2022.
  • 2
    O estatuto de defesa do torcedor, um texto na forma e no conteúdo mimetizado do Estatuto do consumidor, promulgado pela lei nº 10.671, de 15 de maio de 2003, traduz formalmente o movimento de ambientar os torcedores à lógica consumerista.
  • 3
    Sobre as relações que envolvem as controvérsias consumeristas na ponta da cadeia produtiva indico a potente etnografia de Bevilaqua (2008), bem como a alentada resenha do livro originado dessa pesquisa em Lanna (2008LANNA, Marcos. 2008. “Resenha”. Bevilaqua, Ciméa Barbato. Consumidores e seus direitos: um estudo sobre conflitos no mercado de consumo. São Paulo, Humanitas, Revista de Antropologia, vol. 51, n. 1: 305-312.).
  • 4
    Será, posteriormente, Norbert Elias o autor que recolocará os passatempos, jogos e esportes na esteira de uma racionalidade em que as dimensões políticas, econômicas e lúdicas se entrelaçam ou se codeterminam em uma consonância histórica revelada naquilo que denomina de “processo civilizatório” (ELIAS, 1993ELIAS, Norbert.1993. O processo civilizador. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.; ELIAS e DUNNING, 1992ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. Em busca da excitação. Lisboa, Difel, 1992).
  • 5
    A respeito do desenvolvimento da categoria “público”, que normatiza o conjunto de torcedores ver Costa e Toledo (2023COSTA, Carlos Eduardo; TOLEDO, Luiz Henrique. 2023. Antropologia das Práticas Esportivas: investigações etnográficas e experiências comparadas em torno do Olhar. Etnográfica, vol. 27, n. 1: 27-50. DOI 10.4000/etnografica.12856.
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    ). Um amplo trabalho que retrata as formas com que a agressividade e as paixões burguesas, inclusive sublimadas nos esportes, moldaram as subjetividades na virada do século XIX para o XX no contexto europeu podem ser consultadas em Gay (1995GAY, Peter. 1995. O cultivo do ódio. A experiência burguesa da rainha Vitória a Freud. São Paulo, Companhia das Letras.).
  • 6
    Lanna (2012LANNA, Marcos. 2012. O dom e a teoria ameríndia. R@U – Revista de Antropologia da UFSCar, vol.4, n. 1: 10-20. DOI 10.52426/rau.v4i1.60
    https://doi.org/10.52426/rau.v4i1.60...
    : 12) abre uma interessante discussão a respeito do tratamento dos dados empíricos e as generalizações teóricas sobre o dom que, quando institucionalizado, revela aproximações insuspeitas com a prática funcionalista.
  • 7
    Eximo nesse artigo em relacionar nominalmente os inúmeros trabalhos de várias áreas que abordaram os referidos temas que, a partir da década de 1980, pautaram as discussões que associam futebol e identidades nacionais. A bibliografia hoje é muito ampla e diversa a esse respeito. Sugiro em Toledo (2021TOLEDO, Luiz Henrique de. 2021. Balanços bibliográficos e ciclos randômicos: o caso dos futebóis na antropologia brasileira. BIB - Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, n. 94: 1-34. DOI 10.17666/bib9404/2021.
    https://doi.org/10.17666/bib9404/2021....
    ) um panorama crítico sobre os balanços bibliográficos que de tempos em tempos incorporam novas perspectivas e abordagens, reavaliando a formação do campo de estudos esportivos no Brasil e na América Latina. Noções como “pertencimento” e “identidade” distinguem esses dois cenários. As análises mobilizadas pela noção de identidade aparecem com maior abundância na literatura latino-americana, de saída mais politicista se comparada à brasileira, em que as noções de cultura, drama, ritual, ethos, destino, pertencimento e sociabilidade se espraiaram à sombra de identidade. Alguns cuidados em relação aos usos de identidade em estudos antropológicos urbanos revelaram os limites em transpor o conceito de outras searas, sobretudo da etnologia. Mas também revela a precocidade com que a disciplina inaugurou essa temática no Brasil desde o amálgama analítico via DaMatta et al (1982DAMATTA, Roberto; GUEDES, Simoni; VOGEL, Arno & FLORES, Luiz Felipe Baêta Neves. 1982. Universo do Futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro, Edições Pinakotheke.), que não deixando de pensar a identidade a recoloca num plano comparativo expressivo, mobilizando autores como Victor Turner, Cliffort Geertz, e análises sistêmicas como as de Louis Dumont. Mas a questão da identidade pode ser reincorporada com recentes pesquisas que da perspectiva do futebol ameríndio demandam por novas análises comparativas. A esse respeito Costa (2021COSTA, Carlos Eduardo. 2021. Futebol em campo, no campo da etnologia. O desporto bretão e a esportividade ameríndia. Revista de Antropologia, vol. 64, n. 3: 1-23. DOI 10.11606/1678-9857.ra.2020.189722.
    https://doi.org/10.11606/1678-9857.ra.20...
    ) e Costa & Toledo (2023COSTA, Carlos Eduardo; TOLEDO, Luiz Henrique. 2023. Antropologia das Práticas Esportivas: investigações etnográficas e experiências comparadas em torno do Olhar. Etnográfica, vol. 27, n. 1: 27-50. DOI 10.4000/etnografica.12856.
    https://doi.org/10.4000/etnografica.1285...
    ).
  • 8
    Abordando raça, mestiçagem e cultura, o artigo “Foot-ball mulato”, de Gilberto Freyre, é considerado por alguns autores como o marco culturalista da perspectiva sociológica que tematizou a relação entre cultura nacional e futebol. A esse propósito ver Guedes (2014GUEDES, Simoni Lahud. 2014. “A produção das diferenças na produção dos ‘estilos de jogo’ no futebol: a propósito de um texto fundador”. In: BUARQUE DE HOLANDA, Bernardo; BURLAMAQUI, Luiz G. (orgs). Desvendando o jogo. Nova luz sobre o futebol. Niterói, Editora UFF/Faperj, pp 153-171.)..
  • 9
    Venho discutindo a expressão “culturas com futebol” para incluir narrativas semelhantes a essa numa abordagem mais comparativa. Nessa direção está em andamento um projeto em coautoria com o antropólogo e etnólogo Carlos Eduardo Costa intitulado “Culturas com futebol: corporeidades, esportividades e formas expressivas de torcer em perspectiva comparada” (LELuS-CNPQ, 2022) em que, por exemplo, temas como identidade nacional via futebol são reavaliados da perspectiva indígena
  • 10
    Há trabalhos que não cobrem diretamente a temática do dom, mas se mantém próximos a ela, ou que permitem subsidiar discussões mais amplas sobre seus alcances e significados. É o caso, por exemplo, de Rial (2008), que trata da noção de “rodar” como categoria nativa para descrever a circulação de jogadores numa rede transnacional. E, na mesma direção, Jahnecka (2020JAHNECKA, Luciano. 2020. “Sobre as trajetórias de futebolistas infames: poder sobre a vida e poder da vida”. CSOnline - Revista Eletrônica de Ciências Sociais, vol. 31, n. 14: 37-50. DOI 10.34019/1981-2140.2020.30473.
    https://doi.org/10.34019/1981-2140.2020....
    ), que mobiliza a categoria “infame” ou “as experiências do comum” para abordar trajetórias de futebolistas que se situam à margem ou que estão em posição de menor evidência no sistema futebolístico profissional. Já em Bitencourt (2017BITENCOURT, Fernando G. 2017. O Ciborgue: corpo, técnica e ciência no futebol – uma etnografia de um centro de treinamento. Esporte e Sociedade, vol. 29, n. 12: 1-25.), que trabalha as normatizações tecnocientíficas na fabricação dos corpos dos atletas, é a noção de ciborgue de Donna Haraway que estabelece um diálogo contrastivo e racionalista às noções de talento e dádiva.
  • 11
    Penso aqui particularmente nas emoções como valor a partir das reflexões presentes em Rojo (2021ROJO, Luiz Fernando. 2021. “Emoções e esporte em diálogo”. In CAMARGO, Wagner; PISANI, Mariane; ROJO, Luiz (orgs). Vinte anos de diálogos. Os esportes na Antropologia Brasileira. ABA/Brazil Publishing, pp. 183-192.), que apresenta um cenário contextual das emoções nos esportes, pensadas na interface com marcadores sociais, tais como classe, gênero, raça, que podem infletir numa análise mais contextualizada sobre expressões do dom para além da canônica ideia de sistema de trocas. Como já estabelecia Mauss para o potlatch, as trocas podem ser deveras efervescentes (MAUSS, 2003, p. [1925]: 234MAUSS, Marcel. 2003. “Ensaio sobre a dádiva”. Sociologia e Antropologia. São Paulo, Cosac Naify, pp.183-313.), e porque não extrapolar, emocionantes a depender do ponto de vista.
  • 12
    Damo (DAMO, 2007DAMO, Arlei Sander. 2007. Do dom à profissão. A formação de futebolistas no Brasil e na França. São Paulo, Editora Hucitec/Anpocs., 2008DAMO, Arlei Sander. 2008. Dom, amor e dinheiro no futebol de espetáculo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 23, n. 66: 139-150. DOI 10.1590/S0102-69092008000100009
    https://doi.org/10.1590/S0102-6909200800...
    ) fez essa crucial distinção devidamente nuançada etnograficamente entre um dom-dádiva e um dom-talento no contexto de disputas pelos corpos dos jogadores em formação. Adiante esse tema será retomado.
  • 13
    Foi o antropólogo Piero de Camargo Leirner que atentou para algum exagero no uso que faço da palavra modelo, já que tento me distanciar da própria ideia autopoiética que essa palavra encerra. Não responsabilizo Piero pela continuidade dessa discussão sobre modelagem. De toda forma, mantenho modelo para fins de convenção de escrita sociológica, que identifica no termo modelo a possibilidade comparativa entre paradigmas e/ou modelos, tais como campo bourdiesiano, esportificação eliseana etc.
  • 14
    Há esportes de contato físico direto, mediano e mediado. Essa classificação provisória embaralha as classificações canônicas. Exemplos do primeiro conjunto aparecem amiúde nos esportes de contato franco como as lutas MMA, também imprescindível em esportes coletivos como rúgbi, futebol americano, ou presente em modalidades bem menos intensas, mas de contato físico colaborativo, tais como o nado sincronizado por equipes ou algumas modalidades de ginástica artística. Outras lutas francas podem se agregar no segundo conjunto definido por contatos medianos (moderados), uma vez que a esquiva e os jogos de distanciamento entre competidores servem como expedientes que prescindem do contato físico aberto, caso do boxe e da luta ameríndia kindene praticada no Alto Xingu e discutida por Costa (2013COSTA, Carlos Eduardo. 2013. Ikindene hekugu: Uma etnografia da luta e dos lutadores no Alto Xingu. São Carlos, Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos.). Contatos medianos também se evidenciam em outros esportes coletivos muito populares, é o caso notório do futebol e em maior intensidade no basquete. Já o vôlei se aproxima do terceiro conjunto de contatos chamados aqui de mediados, em que quase se prescinde do contato físico, manifestado ou limitado às comemorações de pontos e incentivos intraequipes. Modalidades individuais como no atletismo se prestam à externalidade dos movimentos de corpos que não devem se tocar, transferindo maior sensibilidade corpórea à relação mais estrita com objetos intensamente manipulados e colaborativos para se aferir desempenhos, tais como sapatilhas, bolas, martelos, massas, fitas, dardos, varas, arcos, pedras.
  • 15
    Para uma discussão mais detida sobre os desdobramentos e elisão epistemológica entre jogar e torcer ver Toledo (2019TOLEDO, Luiz Henrique. 2019. Torcer: perspectivas analíticas em Antropologia das práticas esportivas. São Carlos, Tese de titularidade, Universidade Federal de São Carlos.), Costa e Toledo (2023COSTA, Carlos Eduardo; TOLEDO, Luiz Henrique. 2023. Antropologia das Práticas Esportivas: investigações etnográficas e experiências comparadas em torno do Olhar. Etnográfica, vol. 27, n. 1: 27-50. DOI 10.4000/etnografica.12856.
    https://doi.org/10.4000/etnografica.1285...
    ).
  • 16
    Devo essa discussão, que não pode ser destrinchada aqui, aos comentários de um dos pareceristas, que atentou para as nuanças entre a troca levistraussiana por reciprocidade, que alude à conectividade e complementaridade, e a maussiana, que parece aproximar dádiva e dívida, instaurando alguma ambiguidade, que também pode se evidenciar na tensão entre jogar e torcer, dados os desdobramentos entre o compromisso (de jogar) e a liberdade (de torcer).
  • 17
    Pelada, baba, racha, fut, bolinha são termos que se imiscuem ao vocabulário que delimita um amplo domínio de futebóis praticados ludicamente.
  • 18
    Abordagens nas ciências sociais se dispersam e se afastam desse caráter aplicado, pontuando temas da subjetividade em uma antropologia e sociologia das emoções em intersecção com temáticas de gênero, focando não só o domínio do jogar como as esferas do torcer (BANDEIRA e HIJÓS, 2017BANDEIRA, Gustavo Andrada; HIJÓS, Maria Nemesia. 2017. Significados das emoções no futebol brasileiro e argentino: um diálogo em contextos etnográficos distintos. Revista Fulia, vol. 2, n. 1: 80-102. DOI 10.17851/2526-4494.2.1.80-102.
    https://doi.org/10.17851/2526-4494.2.1.8...
    ; RIOS e COELHO, 2020RIOS, Fabio Daniel da; COELHO, Maria Claudia Pereira. 2020. “Emoção e masculinidade no universo do futebol no Brasil”. Cadernos Pagu, n. 58: 1-35. DOI 10.1590/18094449202000580007 .
    https://doi.org/10.1590/1809444920200058...
    ).
  • 19
    Processo deflagrado primeiro na Europa em nome da segurança nos estádios e posteriormente no Brasil com a construção das arenas esportivas multiuso, erguidas sob a égide da FIFA para a Copa do mundo de 2014. A literatura debateu muito esse tema imiscuído na emergência dos chamados megaeventos esportivos (DAMO e OLIVEN, 2013DAMO, Arlei Sander; OLIVEN Ruben George. 2013. Apresentação ao Dossiê Megaeventos. Horizontes Antropológicos, vol. 19, n. 40: 9-15. DOI 10.1590/S0104-71832013000200001
    https://doi.org/10.1590/S0104-7183201300...
    ). Para alguns autores esse processo revelou a instrumentalidade racional consumerista (L. H. de TOLEDO, 2014TOLEDO, Luiz Henrique de. 2014. “Torcedores e o mercado de bens futebolísticos”. In Campos, Flavio; Alfonsi, Daniela (orgs). Futebol objeto das Ciências Humanas. São Paulo, Leya.). Há trabalhos, no entanto, que procuraram matizar essa fórmula um tanto reificada. Para uma crítica etnográfica recomendo Rios (2018RIOS, Fabio Daniel da. 2018. Os torcedores e o Novo Maracanã: emoção e espaço nas arenas esportivas contemporâneas. Rio de Janeiro, Tese de doutorado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.).
  • 20
    Em 2022 a revista inglesa especializada em futebol FourFourTwo atualizou sua lista de grandes nomes do futebol e posicionou o atleta português Cristiano Ronaldo acima de Pelé, fato difundido em outras mídias esportivas, como a reportagem do portal Globo Esporte. Para mais ver: https://ge.globo.com/futebol/futebol-internacional/noticia/2022/10/10/revista-elege-messi-comoo-melhor-de-todos-ostempos-e-poe-pele-emquarto-no-ranking.ghtml. Acesso em: 02 nov. 2022.
  • 21
    Comunicação pessoal com o antropólogo Jorge Villela a respeito de um de seus trabalhos (VILLELA, 2001VILLELA, Jorge Mattar. 2001. A dívida e a diferença. Reflexões a respeito da reciprocidade. Revista de Antropologia, vol. 44, n. 1: 185-220. DOI 10.1590/S0034-77012001000100006
    https://doi.org/10.1590/S0034-7701200100...
    ) em que discute as relações entre dívida e reciprocidade.
  • 22
    Extrapolando considerações de Lanna a respeito da relação entre troca e dívida (2012).
  • 23
    Antropólogos etnossemânticos para Wagner seriam aqueles que objetificam a natureza por meio de categorias nativas (WAGNER, 2010WAGNER, Roy. 2010. A invenção da cultura. São Paulo, CosacyNaify.: 228), ou seja, transferem os mecanismos epistemológicos de controle da sua cultura ao estudar outras culturas, tais como os funcionalistas o fizeram para as próprias categorias nativas que ganham em potência cognitiva, mas sem abrir mão de que tal objetificação nativa permanece atada a uma mesma noção de natureza como mecanismo e controle que a do antropólogo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    03 Nov 2022
  • Aceito
    03 Abr 2023
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