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O som da negridade em Apeshit1 1 Este texto, publicado postumamente, foi enviado pelo autor e aprovado sem mudanças pelos pareceristas, ficando apenas sua revisão final a cargo de Vi Grunvald, uma das editoras do dossiê do qual faz parte.

THE SOUND OF BLACKNESS IN APESHIT

RESUMO

Este artigo pretende abordar as questões interseccionais no campo das artes e das ciências sociais em torno das categorias raça e gênero, articuladas pelo significante da negridade. Tendo como caso de análise o vídeo da música Apeshit, lançado em 2018APESHIT. The Carters. 2018. Sony Music Entertainment. Acesso em 20/09/2021. https://youtu.be/kbMqWXnpXcA
https://youtu.be/kbMqWXnpXcA...
, este artigo foca nos regimes de dizibilidade e visibilidade que se manifestam nas estéticas musicais. Nesta discussão, a performance preta opera uma quebra com regimes de (in)visibilidade na sequencialidade instaurada por uma certa narrativa da história da arte. Sonoridade, visualidade e corporalidade traçam um emaranhado sensível em uma performance, na qual se vislumbra problematicamente a reintegração de corpos subalternizados aos espaços que lhe foram negados como espaços da sua excelência. A dimensão performativa do clipe Apeshit permite trabalhar com estratégias de imaginação/criação de mundos que jogam com as ambivalências e os códigos da cultura hegemônica no sentido de traçar rotas e quebras performativas desde uma apropriação e decodificação da dimensão normativa e paródica desses códigos.

PALAVRAS CHAVE:
Performance; som; negridade; arte; tempo

ABSTRACT

This article aims to address intersectional issues in the field of arts and social sciences around the categories of race and gender articulated by the signifier of “negridade”. Taking as a case of analysis the video of the song Apeshit, released in 2018APESHIT. The Carters. 2018. Sony Music Entertainment. Acesso em 20/09/2021. https://youtu.be/kbMqWXnpXcA
https://youtu.be/kbMqWXnpXcA...
, this article focuses on the regimes of sayability and visibility that manifest themselves in musical aesthetics. In that discussion, black performance operates a break with regimes of (in)visibility in the sequentiality established by a certain narrative of art history. Sonority, visuality, and corporality trace a sensitive entanglement in a performance, in which one problematically glimpses the reintegration of subalternized bodies to the spaces that were denied to them as spaces of their excellence. The performative dimension of the clip Apeshit allows us to work with strategies of imagination/creation of worlds by minority subjectivities that play with the ambivalences and codes of hegemonic culture in order to trace routes and performative breaks from an appropriation and decoding of the normative and parodic dimension of these codes.

KEYWORDS:
Performance; sound; blackness; art; time

Impossível ir ao cinema sem me encontrar. Espero por mim. No intervalo, antes do filme, espero por mim.

( Fanon, 2008 FANON, Frantz. 2008. Pele Negra, Máscaras Brancas. Tradução Renato da Silveira. Salvador, Editora UFBA. : 126).

INTRODUÇÃO

Uma imagem, uma canção, um gesto além do tempo. O que nos diz a presença de artistas negras de grande sucesso internacional no campo da música pop em um mundo no qual as estruturas do racismo estão ainda a funcionar? Que imagens a presença negra nas artes movimentam no sentido de um futuro não racista? Este texto é fruto de um conjunto de reflexões e pistas para pesquisas interdisciplinares entre as artes e as ciências sociais que se perguntem sobre a relação entre arte e imaginação social/política. O que nos aponta a arte como imaginação de um futuro no presente? Nesse sentido, falar da imagem aqui significa algo que não se resume à uma dimensão ontológica ou fenomenológica das culturas visuais em torno da música, mas, antes de tudo, está ligado à sua dimensão fabulativa, ampliando com isso o horizonte especulativo e de ação nas práticas de imaginação política e supravivência das vidas negras no presente. Como pensar a música e as visualidades evocadas, articuladas, emaranhadas, corporificadas em uma dimensão performativa e transformadora das paisagens do nosso contemporâneo?

No presente artigo revisito um trabalho do casal de artistas estadunidenses Beyoncé e Jay-Z, com o objetivo de entender as relações entre música e negridade em uma faixa do álbum Everything is Love, de 2018. Refiro-me à música Apeshit, cujo vídeo suscitou muitos debates em torno do seu conteúdo e da locação do Museu do Louvre na realização do mesmo. Procuro problematizar a dimensão visual e performativa desse trabalho, pois me interessa buscar as pistas de um processo de criação. Nesse sentido, a pesquisa estética se constitui como o empreitada crítica e sensível, em que a dimensão performativa instaura novas atmosferas de vida. Por isso, discutirei o vídeo de Apeshit não na forma de uma análise do seu processo criativo, mas entendendo-o como disparador de metodologias críticas das humanidades e das artes na temática da negridade, deslocando-a para questões emergentes sobre a racialidade e os marcos teóricos e políticos que embasam esse debate.

Desde o lançamento de Lemonade, sexto álbum da carreira de Beyoncé, em 2016, a artista tem trabalhado, com uma densidade de referências, a questão racial. As referências à história da diáspora negra nas Américas, as lutas pelos direitos civis nos Estados Unidos, a ancestralidade, os movimentos antirracistas e a história da arte negra são algumas das pautas presentes em suas criações. Todos esses elementos fizeram do álbum “Lemonade” um manifesto da artista de afirmação da sua ancestralidade afro-americana, que passou a falar de memórias partilhadas, de um senso de comunidade, da construção coletiva de ressonâncias das vidas negras nas Américas, constituindo um marco na indústria da música pop estadunidense, e sendo reconhecida por publicações do meio como um dos melhores álbuns de 2016 na mídia norte-americana.

Em Lemonade, a artista fala de suas vivências, da busca por suas raízes, das experiências de trauma e solidão que atravessam a vida de pessoas negras, principalmente as mulheres negras. Nesse trabalho poético, não faltam referências à história de resistência do povo negro, à história da música negra nos territórios afrodiaspóricos, bem como toda a dimensão poética dessa mesma resistência nas várias tradições musicais da diáspora. Em 2018, o casal Beyoncé e Jay-Z lançam o álbum Everything is Love, no qual assinam como duo The Carters. O single de lançamento desse álbum, Apeshit, especificamente vídeo da música, será o material de análise neste artigo, que buscará abordar um conjunto de questões em torno da negridade, sobre os ecos dessa categoria na música negra contemporânea nesse trabalho e os debates dos limites da representação racial, da performance preta e da crítica dos regimes modernos de constituição do sujeito a partir da conexão com contribuições contemporâneas dos estudos sobre raça, performance e poéticas pretas.

REVISITANDO DEBATES: RAÇA, CULTURA, REPRESENTAÇÃO E NEGRIDADE

A moderna produção da diferença pôs em movimento uma nova economia das imagens. Em um estudo clássico sobre as representações de raça e etnicidade, Stuart Hall (2016HALL, Stuart. 2016. Cultura e Representação. Tradução Daniel Miranda e William Oliveira. Rio de Janeiro, Ed. PUC RIO.) nos apontou algumas chaves para entender de que modo a moderna produção da diferença racial/cultural passava por um sistema de estabelecimento de imagens estereotipadas de pessoas negras. Para além de apenas definir o que seria um estereótipo, Hall nos instigou a uma análise mais profunda dos códigos que cifravam o racismo na imagem da diferença, na constituição de uma relação com a alteridade, produzindo um espetáculo do outro. O que interessava para Stuart Hall era desconstruir as relações entre linguagem, representação e poder desde uma perspectiva de estudo da cultura orientada para a produção das imagens dentro das práticas de representação. Desta forma, delineava-se o regime de representação sob o qual se constituía a diferença racial, ao mesmo tempo em que se mostrava como a questão da diferença está na base epistemológica e teórica de várias disciplinas das humanidades.

Hall destaca pelo menos quatro abordagens teóricas acerca da questão da diferença: a linguística de Saussure, a social de Bakhtin, a antropológica e a psicanalítica (Hall, 2016HALL, Stuart. 2016. Cultura e Representação. Tradução Daniel Miranda e William Oliveira. Rio de Janeiro, Ed. PUC RIO.: 153-155). Da linguística estrutural de Saussure (Saussure apud Hall, op. cit.: 153), Hall destaca principalmente a importância da diferença na construção da relação significante/significado. O significado só pode ser atribuído em uma relação de contraste entre significantes distintos, ou seja, o significado é relacional, o verde é verde não por uma propriedade inerente, mas porque é verde em relação a outras cores, como o vermelho, por exemplo. Assim sendo, a diferença está sempre relacionada a uma lógica de oposições binárias. Hall acrescenta ao entendimento da diferença pela teoria da linguística estrutural de Saussure, a contribuição de Jacques Derrida (Derrida apud Hall, op. cit.: 154-155), que argumenta pela interferência (aqui esse termo não deve ser compreendido como algo que vem de fora, mas sim o plano co-constitutivo de poder e linguagem) do poder no campo das oposições binárias, por exemplo: branco x negro. Se os significantes estão inscritos em uma gramática social e histórica, as relações de poder se estabelecem no momento em que um dos polos passa a se materializar dominante o que, por conseguinte, resulta em entender a manutenção da hegemonia de determinados grupos sociais sobre outros resultante da regulação e das disputas em torno das práticas de significação (Hall, 2016HALL, Stuart. 2016. Cultura e Representação. Tradução Daniel Miranda e William Oliveira. Rio de Janeiro, Ed. PUC RIO.: 155).

Na teoria de Bakhtin (Bakthin apud Hall: 155-156), o autor salienta a dimensão dialógica da diferença, ou seja, o significado é sustentado na relação com o outro o que implica aí uma negociação. Por fim, Hall recorre à perspectiva antropológica, ao argumentar que a diferença está na base da construção do conceito de cultura e, portanto, como as culturas operam lógicas distintas de classificação e definição de suas fronteiras simbólicas, o problema da diferença se relaciona ao que distingue uma cultura em relação às outras, ao mesmo tempo em que a diferença pode ser aquilo que põe uma certa ordem cultural em xeque. Sobre este último aspecto, é preciso sublinhar um certo simplismo dessa formulação, já que um conjunto de aportes mais recentes da antropologia contribuiu para evitar uma visão que chamaria ainda “emolduradora” da cultura, ou o entendimento muitas vezes esquemático da cultura como container da diferença. Teorias e debates da antropologia contemporânea têm empreendido, desde os anos 1980, uma crítica desse conceito, por exemplo, ao questionar os regimes discursivos da autoridade etnográfica e suas alegorias (Clifford, 2016CLIFFORD, James. 2016. “Sobre a alegoria etnográfica”. In: CLIFFORD, James; MARCUS, George (org.). A escrita da cultura: Poética e política da etnografia Tradução Maria Claudia Coelho. Rio de Janeiro, Ed. UERJ, Papeis Selvagens, pp. 151-181.). Nos estudos mais recentes da globalização, levando em conta os debates pós-coloniais, dos quais Stuart Hall foi ao mesmo tempo um expoente e um crítico, antropólogos como Arjun Appadurai (2004APPADURAI, Arjun. 2004. Dimensões Culturais da Globalização: a modernidade sem peias (Tradução Telma Costa). Lisboa, Teorema.) mostraram uma dimensão cada vez mais transnacional e uma complexidade da economia cultural global que funciona muito mais por disjunções do que por recurso às dicotomias redutoras, por exemplo, global x local.

A última perspectiva acerca da diferença tratada por Hall deriva das contribuições da psicanálise. No modelo psicanalítico, esta posição está relacionada com a diferença sexual e os processos de identificação, nos quais estão em jogo a instância do inconsciente, das relações do inconsciente com o Outro, no sentido lacaniano, e principalmente nas formulações lacanianas em torno do estágio do espelho.

Com esses quatros debates teóricos, Hall pretende elucidar quatro dimensões em que podemos investigar a diferença para adentrarmos na sua análise do regime racializado de representação que ele analisa. Essas quatro dimensões que os debates teóricos explanados por ele apontam são o linguístico, o social, o cultural e o psíquico (Hall, 2016HALL, Stuart. 2016. Cultura e Representação. Tradução Daniel Miranda e William Oliveira. Rio de Janeiro, Ed. PUC RIO.: 160), e podem ser encontradas inclusive no nosso presente nas mais diferentes escritas da crítica cultural e de arte que ainda formam uma “intelectualidade autorizada” a decifrar os códigos de interpretação dos artefatos da cultura. Tais dimensões não são mutuamente exclusivas e se transformam na invenção de tradições de uma certa forma de performar o conhecimento. Voltando aos estudos culturais, de que maneira podemos ler as imagens de pessoas negras em um regime racializado de representação? Uma das primeiras pistas que as formulações de Stuart Hall nos dá reside no fato de que tais imagens jogam com ambiguidades e ambivalências específicas das relações de poder que fazem do racismo uma prática articuladora de multifacetadas formas ritualizadas da violência. Isso acontece inclusive em imagens nas quais supostamente pessoas negras, em princípio, estariam representadas positivamente, ou para usar uma palavra que ganhou bastante força nos últimos anos, empoderadas. Como um jogo que não pode ser reduzido a um binarismo simplista, as imagens desse regime racializado de representação costuram camadas de sentidos, visibilidades e invisibilidades. Mas até que ponto se rompe com o binarismo da oposição racial e a polarização imagens negativas versus imagens positivas de pessoas negras?

O problema da estratégia do positivo/negativo é que, embora a adição de imagens positivas ao repertório amplamente negativo do regime dominante de representação aumente a diversidade com que “ser negro” é representado, o aspecto negativo não é necessariamente deslocado. Já que os binários não foram deslocados o significado continua a ser enquadrado por eles. A estratégia desafia os binários - mas isso não os prejudica. Os rastafáris pacíficos, que tomam conta de crianças, ainda podem aparecer no jornal do dia seguinte como um estereótipo do negro exótico e violento... (Hall, 2016HALL, Stuart. 2016. Cultura e Representação. Tradução Daniel Miranda e William Oliveira. Rio de Janeiro, Ed. PUC RIO.: 218).

Hall propõe assim uma metodologia crítica para o estudo das representações da raça na cultura popular. Tal metodologia se conecta intrinsicamente com o entendimento da história colonial e do tráfico transatlântico de escravizados na constituição moderna do sentido da diferença no campo da cultura. Isto molda o ponto de inflexão crítica do seu pensamento nos debates em torno do essencialismo estratégico e da política de identidade, em que a categoria da cultura atrelada ao significante racial, ou melhor, da diferença cultural como significado flutuado (crio esse adjetivo no jogo com o termo “significante flutuante”) para raça mobiliza políticas culturais como vai ser debatido criticamente por autores e autoras que passamos a considerar desde então. Assim sendo, tais discussões conduziram à crítica do espaço social co-constitutivo da modernidade, apontado por Paul Gilroy (2001GILROY, Paul. 2001. O atlântico negro: modernidade e dupla consciência. Tradução Cid Knipel Moreira. São Paulo, Editora 34.) em Atlântico Negro, ou seja, esse espaço antinômico da modernidade que é o atlântico negro, quando a modernidade deixa de ser imaginada apenas pela via da continentalidade e da constituição dos Estados nacionais europeus. Na fundação da modernidade, o colonialismo e o tráfico transatlântico das pessoas escravizadas de África para as Américas e o Caribe deram cabo a um processo histórico através do qual se tensionou a reflexividade dessa modernidade que produz o Ocidente como Sujeito do mundo nesse novo espaço social, o atlântico negro que desdobrará em espaço afrodiaspórico.

Ao considerar Apeshit o material de análise no qual se concentra este artigo, precisamos entender esse trabalho de arte da produção cultural negra na música popular de massas e, sob esse aspecto, fazer algumas considerações sobre o momento atual de sociedades conectadas no presente global, ou seja, no emaranhado de movimentos, atores e representações nos entre-espaços da globalização. Entretanto, os impasses com que as manifestações culturais e artísticas negras se deparam dizem respeito às várias armadilhas, seja de uma ontologia racial em que a questão do essencialismo (ainda que definido de maneira estratégica) é ambiguamente reivindicada e/ou denegada, seja também a do nacionalismo, ou melhor dizendo, a noção de um irredutível étnico, ancorado numa reminiscência absoluta, que pode acabar por se fixar em um purismo da diferença. Gilroy é um dos autores que lançará um olhar transversal e transatlântico a essa modernidade, naquilo em que suas formações de poder, levadas a cabo pelo colonialismo e o empreendimento racial do tráfico negreiro, cerceiam a prática política da liberdade na tarefa de desmontar a eterna busca pela pureza cultural, étnica e política que baliza uma certa noção moderna de diferença, e, a partir daí, sua ação cultural enquanto missão civilizadora do homem branco. Ao perceber esses impasses e a questão da utopia, de uma efetiva abolição, com a qual se debaterão as populações negras em diáspora nessa modernidade, Gilroy aponta uma tarefa de transfiguração política:

Criada debaixo do nariz dos capatazes, os desejos utópicos que alimentam a política complementar de transfiguração devem ser invocados por outros meios mais deliberadamente opacos. Esta política existe em uma frequência mais baixa, onde é executada, dançada e encenada, além de cantada e decantada, pois as palavras, mesmo as palavras prolongadas por melisma e complementadas ou transformadas pelos gritos que ainda indicam o poder conspícuo do sublime escravo [slave sublime], jamais serão suficientes para comunicar seus direitos indizíveis à verdade (Gilroy, 2001GILROY, Paul. 2001. O atlântico negro: modernidade e dupla consciência. Tradução Cid Knipel Moreira. São Paulo, Editora 34.: 96).

No campo da cultura, em um outro trabalho, Stuart Hall se pergunta sobre quem é esse negro da cultura popular negra, muito implicado num conjunto de questionamentos em torno da identidade cultural em um momento global das circunstâncias e contingências da paisagem dos anos 1990. Em “Que negro é esse na cultura popular negra?”, Hall (2001)HALL, Stuart. 2001. “Que ‘negro’ é esse na cultura popular negra?”. Lugar Comum, n. 13-14: 147-159. abre o texto situando que essa é uma questão persistente, e não apenas do momento histórico sobre o qual disserta. Trata-se de uma questão que encontra uma recorrência em termos de uma diferença que insiste no tempo, enquanto interpelação da questão da cultura negra na constituição do que vai ser tomado como cultura popular. Hall se baseia numa proposição de Cornel West (West apudHall, 2001HALL, Stuart. 2001. “Que ‘negro’ é esse na cultura popular negra?”. Lugar Comum, n. 13-14: 147-159.) que define três eixos de orientação para o delineamento dessa problemática, os quais Hall toma como coordenadas gerais do momento em que o tema da cultura negra de massas mais uma vez emerge. O primeiro diz da própria constituição de Europa como Sujeito da cultura e da imposição de seu padrão de cultura ou, melhor dizendo, do seu sistema de classificação cultural, por meio do qual a cultura eurocentrada se afirma nas lógicas da distinção que balizam aquilo que, para este Sujeito que seria o Ocidente, vai ser diferenciado em termos de alta cultura sob os ditames de seu processo civilizatório. Isso, já sabemos, foi impulsionado pelo colonialismo e pela imposição de sua mentalidade aos territórios conquistados.

A segunda coordenada, a qual podemos situar o argumento de Hall ao momento histórico do pós-segunda guerra e a entrada dos Estados Unidos como novo agente global de um imperialismo cultural, o Imperialismo cultural. Esse tópico já foi bastante problematizado pelas tradições críticas do século XX, como, por exemplo, as contribuições dos intelectuais da Escola de Frankfurt (Adorno, 2002ADORNO, Theodor W. 2002. Indústria Cultural e Sociedade. Tradução Juba Elisabeth Levy, Augustin Wernet, Jorge Mattos Brito de Almeida e Mara Helena Ruschel. São Paulo, Paz e Terra.; Adorno & Horkheimer, 2014ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. 2014. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.) as contribuições dos intelectuais da Escola de Frankfurt (Adorno, 2002ADORNO, Theodor W. 2002. Indústria Cultural e Sociedade. Tradução Juba Elisabeth Levy, Augustin Wernet, Jorge Mattos Brito de Almeida e Mara Helena Ruschel. São Paulo, Paz e Terra.; Adorno & Horkheimer, 2014ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. 2014. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.). Na esteira dessas reflexões, constituiu-se uma nova epistemologia da crítica cultural para a qual os intelectuais de tal escola, mas não apenas eles, contribuíram no espaço intelectual acadêmico estadunidense.2 2 Temos que considerar aí outras tradições teóricas que migraram do espaço europeu para o espaço estadunidense, principalmente por conta da ascenção do nazismo e do fascismo em solo europeu, reduzindo, neste ponto, as contingências históricas da posição antifascista de emprestadas teórico-críticas como a psicanálise.

Além do exposto por Hall, há de se considerar toda uma tradição de pensamento radical preto nos Estados Unidos, como nos apontam os trabalhos de Paul Gilroy (2001GILROY, Paul. 2001. O atlântico negro: modernidade e dupla consciência. Tradução Cid Knipel Moreira. São Paulo, Editora 34.), Cedric J. Robinson (1983ROBINSON, Cedric J. 1983. Black Marxism: the making of the Black radical tradition. London, University of North Carolina Press.) e Fred Moten (2020MOTEN, Fred. 2020. “A Resistência do Objeto: o Grito de Tia Hester”. (Tradução de Matheus Araújo dos Santos). Revista Eco-Pós, vol. 23, n. 1: 14-43. DOI: https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i1.27542.
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), uma tradição crítica que na sua radicalidade desmonta os pilares sobre os quais se sustentam as bases de uma certa “epistemologia crítica da produção cultural” e inclui entre seus nomes Frederick Douglas (Douglas apudMoten, 2020MOTEN, Fred. 2020. “A Resistência do Objeto: o Grito de Tia Hester”. (Tradução de Matheus Araújo dos Santos). Revista Eco-Pós, vol. 23, n. 1: 14-43. DOI: https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i1.27542.
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), W. E. B. Du Bois (Du Bois apudGilroy, 2001GILROY, Paul. 2001. O atlântico negro: modernidade e dupla consciência. Tradução Cid Knipel Moreira. São Paulo, Editora 34.), C. R. L. James (2010JAMES, C. R. L. 2010. Os jacobinos negros: Toussaint L’Overture e a revolução de São Domingos. (Tradução Afonso Teixeira Filho). São Paulo, Boitempo.), por exemplo. Na sua crítica cultural, contudo, Hall salienta uma ambígua relação dos Estados Unidos com a alta cultura europeia no que toca as suas hierarquias internas em torno da etnicidade3 3 Hall adota uma perspectiva crítica da etnicidade, presente em vários de seus textos, demonstrando que na modernidade se torna cada vez mais problemático pensar nessa categoria em termos fundacionais: “A etnia é o termo que utilizamos para nos referirmos às características culturais - língua, religião, costume, tradições, sentimento de ‘lugar’ - que são partilhadas por um povo. É tentador, portanto, tentar usar a etnia dessa forma “fundacional”. Mas essa crença acaba, no mundo moderno, por ser um mito. A Europa Ocidental não tem qualquer nação que seja de apenas um único povo, uma única cultura ou etnia. As nações modernas são todas híbridos culturais” (Hall, 2006: 62). :

Os EUA sempre tiveram uma série de etnicidades, e, por isso, a construção de hierarquias étnicas, sempre definiu suas políticas culturais. E, claro, há o fato de a cultura popular ou de massa em si, a qual encerra com ela, quer silenciadas quer não, as tradições vernaculares da cultura negra popular americana. Talvez seja difícil lembrar que, vista de fora dos EUA, a cultura de massa americana sempre envolveu certas tradições que só são atribuíveis às tradições da cultura popular negra (Hall, 2001HALL, Stuart. 2001. “Que ‘negro’ é esse na cultura popular negra?”. Lugar Comum, n. 13-14: 147-159.: 148).

O terceiro e último momento diz respeito à “descolonização do terceiro mundo” (Hall, 2001HALL, Stuart. 2001. “Que ‘negro’ é esse na cultura popular negra?”. Lugar Comum, n. 13-14: 147-159.: 148), dos movimentos e das lutas por emancipação e liberdade da população negra desde as margens. Um novo tipo de políticas culturais surge e se desloca das chamadas políticas da identidade aos novos engajamentos daquelas gentes subalternizadas pelas hegemonias culturais vigentes. Em um novo diagrama dos espaços de poder aos quais as dinâmicas culturais estão relacionadas quais estratégias culturais podem fazer alguma diferença?

Os questionamentos lançados por Hall nos fornecem pistas para além do purismo das diferenças, indo em uma linha muito mais estratégica das disputas em torno da hegemonia cultural, percebendo o aspecto móvel dos jogos do poder no campo das políticas culturais, desfazendo argumentos pautados na separabilidade exclusivista e também dos modelos que só entendem a cultura negra do ponto de vista da reprodução da lógica dominante, abrindo espaço para a dimensão histórica e social da ação, desfazendo a percepção que apenas considera as vozes subalternizadas ou tornadas periféricas restritamente pela via da assimilação e introjeção, recusando a ver a dimensão crítica e inventiva que se dá nas ações que mudam a paisagem da cultura, da transformação dos modos de fazer, pensar, resistir e criar das culturas da diáspora negra, como culturas que descentram e se posicionam, abrindo novos espaços de imaginação política na articulação conjuntiva “e”, e não na lógica binária e excludente do “ou/ou”. Não estaríamos mais aí nem nos jogos de inversão ou das separabilidades, nem dos apartheids culturais criados para classificar e inferiorizar as produções culturais negras na lógica da distinção operada pela hegemonia. Doravante, é o termo “negro” da cultura popular negra que é posto em questão, ou seja, o significante racial como construção social nos campos das lutas por emancipação e reconhecimento e das relações de poder que são também relações de significação da diferença (Hall, 2015HALL, Stuart. 2015. “Raça, o significante flutuante”. (Tradução Liv Sovik e Kátia Santos). Z Cultural Revista do Programa Avançado de Cultura Contemporânea, Ano VIII, vol. 2, disponível em: 2, disponível em: http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/raca-o-significante-flutuante%EF%80%AA/ , acesso em 16/05/2021.
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). Essa chave que nos fornece Hall é muito importante para entendermos fenômenos como o jazz, o samba, o rap, o funk e várias das tradições musicais afro-atlânticas nas quais se inscrevem os trabalhos de artistas contemporâneas como Beyoncé e Jay-Z.

Em uma conferência sobre o conceito de raça na contemporaneidade, Hall (2015HALL, Stuart. 2015. “Raça, o significante flutuante”. (Tradução Liv Sovik e Kátia Santos). Z Cultural Revista do Programa Avançado de Cultura Contemporânea, Ano VIII, vol. 2, disponível em: 2, disponível em: http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/raca-o-significante-flutuante%EF%80%AA/ , acesso em 16/05/2021.
http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/rac...
) defende a ideia de que a raça é um significante flutuante. O autor adota essa proposição do significante flutuante (um conceito da psicanálise lacaniana que define o inconsciente estruturado como uma linguagem) em debate com as teses clássicas não apenas do racismo científico que fundamenta a raça em um princípio biológico, mas também com a desconstrução dela na medida em que os discursos que buscavam provar a pertinência biológica da raça se revelaram artifícios de fundamentos pseudocientíficos. Nem por isso o racismo deixou de existir, como já conhecemos do debate das teorias antirracistas de que raça é uma categoria social e historicamente situada. Com a formulação da raça como um significante flutuante, Stuart Hall traz um outro elemento que é a compreensão da raça como linguagem, ou seja, discurso e, nesse sentido, sua formulação aponta um conjunto de elementos para entendermos que não se trata de desconsiderar a dimensão material, epidérmica do racismo com a moderna ideia de raça, mas sim problematizar a materialidade corporificada da ficção racial como efeito de práticas de significação arbitrária que se rebatem sobre os corpos daqueles e daquelas que serão subjugados pela diferença racial.

A ficção racial incide no corpo, pois ela é uma maneira de ler o corpo, e isso é bastante interessante ao abordarmos a dimensão material desse significante flutuante chamado raça como processo que implica uma leitura do corpo pelo outro, ou seja, ele diz de um sistema de poder de significação cultural que materializa a dominação na linguagem. O poder da branquitude, estrutura de poder, em racializar consiste no poder de ler o corpo do outro ou de implicar o corpo do outro nessa prática de significação que é a gramática do racismo. Nesse sentido, Stuart Hall está muito próximo daquilo que traz Frantz Fanon (2008FANON, Frantz. 2008. Pele Negra, Máscaras Brancas. Tradução Renato da Silveira. Salvador, Editora UFBA.) quando o autor discute justamente essa dimensão epidérmica da ontologia, que implica na dialética racial a impossibilidade do sujeito negro sair desse olhar que o fragmenta. O corpo do negro se torna então um corpo fragmentado, amputado pelo olhar do branco. A questão da sociogênese em Fanon se vincula à relação entre a autoimagem e a materialização da ficção racial numa ontologia negativa do sujeito negro. Ao sujeito negro é subtraída sua humanidade, a sua possibilidade de ser para si mesmo.

Se formos pensar em uma teoria da representação em Frantz Fanon, essa teoria da representação operaria a partir do seu próprio negativo. Um elemento indicado por Achille Mbembe (2017MBEMBE, Achille. 2017. Políticas da Inimizade. (Tradução Marta Lança). Lisboa, Antígona.) na sua leitura do trabalho de Fanon é justamente esse aspecto de uma teoria negativa da representação. Em “Pele Negra, Máscaras Brancas”, Fanon (2008)FANON, Frantz. 2008. Pele Negra, Máscaras Brancas. Tradução Renato da Silveira. Salvador, Editora UFBA. debate a experiência vivida do negro, do sujeito negro que vai ao cinema e espera pela sua imagem. Essa espera pelo advento do sujeito negro enquanto sujeito para si mesmo e não um sujeito dilacerado, fragmentado pelo olhar do branco demonstra o quanto o negro já está desde sempre inserido em uma leitura do seu corpo por esse significante cortante, esse significante flutuante que é a raça. A ficção racial materializa esse corpo numa equação negativa de valor, como argumenta a filósofa Denise Ferreira da Silva (2019)FERREIRA DA SILVA, Denise. 2019. A dívida impagável. (Tradução Amílcar Packer e Pedro Daher). São Paulo, Living Commons, Oficina de Imaginação Política., da qual falaremos mais adiante na sua importante problematização da negridade.

Em Fanon (2021FANON, Frantz. 2021. Os condenados da terra. Tradução Antônio Massano. Lisboa, Letra Livre.), o olhar emoldurado que aprisiona negros em sua negrura e brancos em sua brancura tende a se encenar enquanto limiar da ficção racial nas lutas de descolonização quando o colonizador se sente ameaçado e passa, ele mesmo, a invocar o discurso da descolonização, mas sem o senso de reparação histórica ou justiça radical, apenas cooptando em seu próprio favor, com medo de uma inversão dos termos, que o colonizado revide a violência a qual por séculos o colonizador o submeteu. Na história do Brasil sabemos como o mito da democracia racial teve na sua gênese histórica o medo branco de que no Brasil ocorresse algo parecido com o que acontecera no Haiti.

A mirada colonial nas artes que compõem o quadro das culturas da diáspora negra procura cooptar vozes negras em processos criativos muitas vezes na intenção de inserir a imaginação negra na lógica da propriedade. Quando um negro é realocado como propriedade através das imagens, do sensível a ser partilhado, mais uma vez se exerce uma certa lógica do direito colonial de ocupar, investir e fazer circular em uma economia das despossessões sucessivas. Quando Jay-Z em Apeshit canta “You need me, I don’t need you” (Você precisa de mim, eu não preciso de você), o corpo negro irrompe essa lógica a partir da quebra do enlace necessário da moderna lógica do capital racial como dependência ontológica a partir do arquivo da escravidão como gramática do laço social4 4 Penso o termo gramática aqui no caminho aberto por Hortense Spillers (1987) ao discorrer sobre a relação entre raça, gênero e patriarcado na história estadunidense. . Como a performance preta pode operar para além dos limites do arquivo?

A PERFORMANCE PRETA EM APESHIT

Em junho de 2018, o casal de artistas estadunidenses Beyoncé e Jay-Z lançou uma das faixas do seu álbum conjunto, no qual assinam como The Carters: Apeshit. A faixa veio acompanhada por um vídeo de seis minutos no interior do Museu do Louvre, em Paris. No vídeo, Beyoncé e Jay-Z coreograficamente cantam e se movimentam diante de obras emblemáticas da história da arte ocidental, na sua maioria obras criadas por homens brancos europeus em que a presença de corpos negros é quase uma raridade, ademais quando se aparece além de uma posição subjugada, no entremeio dos poucos espaços destinados à arte africana, como a arte egípcia, por exemplo. Em uma das imagens, Beyoncé e Jay-Z se posicionam de costas para o quadro Monalisa, sobrepondo aí um jogo figura/fundo que também visa quem viria a ocupar a posição de espectador/a. A pintura Monalisa, de Leonardo da Vinci, pode ser dita o quadro símbolo do enigma da história da arte no Ocidente. Dois momentos históricos criam um espaço de tensão nessa apresentação. Contudo, a performance de Beyoncé e Jay-Z, como um trabalho de arte que reposiciona a invisibilidade de corpos negros em uma certa narrativa da arte ocidental, abre espaço para uma transformação dos sentidos que damos ao que é convencionalmente chamado de estética.Mais especificamente, estética negra. Nas memórias negras da diáspora, a música, a dança, os corpos como lugares de afirmação da identidade negra performam nas encruzilhadas que rasuram a coerência linear da modernidade que produziu a ficção racial e emoldurou o negro na representação da alteridade como já discutido no tópico anterior. A performance de Beyoncé e Jay-Z confronta ao mesmo tempo que abre o olhar emoldurado das formas de classificação e hierarquização moderna para sua exterioridade co-constitutiva, à medida que nos convida a vermos para além dos alicerces da colonialidade do moderno capital racial. Há toda uma beleza desse vídeo também na sua dimensão performativa. Por isso, sob esse aspecto, gostaria de trazer algumas proposições do ponto de vista da performance, no sentido de ampliar e contribuir para muitos dos diálogos e debates pensados com esse trabalho que já foi discutido por artistas, curadores, críticos e outres pesquisadores no campo da arte da contemporânea.

Em Memórias da Plantação (2019aKILOMBA, Grada. 2019a. Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Cotidiano. (Tradução Jess Oliveira). Rio de Janeiro, Cobogó.: 51), Grada Kilomba nos lembra que para descolonizar o conhecimento precisa-se reconhecer que a academia não é apenas um espaço de conhecimento e sabedoria, ela é também um espaço de violência, de reinstalação de regimes de autoridade discursiva por meio dos quais o privilégio da fala tem sido negado às pessoas negras, e, acrescento, também aos povos originários, quando essas coletivas se insurgem do lugar subalternizado de serem objetos/Outros e passam a lutar no intuito de se tornarem sujeitos de suas narrativas e histórias. No primeiro capítulo do seu livro, Grada Kilomba (2019aKILOMBA, Grada. 2019a. Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Cotidiano. (Tradução Jess Oliveira). Rio de Janeiro, Cobogó.: 33) discute a imagem de Anastácia, uma mulher escravizada e a trazida ao Brasil que teve o seu rosto retratado usando uma máscara de flandres, instrumento de tortura para evitar que as pessoas escravizadas pudessem comer os produtos da plantação, bem como fugir do sistema escravista via suicídio por ingestão de areia. No trabalho de Grada Kilomba, a máscara pode ser lida como uma metáfora do silenciamento ao qual as pessoas racializadas pelo colonialismo foram submetidas.

Como desmontar a violência epistêmica (Spivak, 2014SPIVAK, Gayatri. 2014. Pode o subalterno falar? (Tradução Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa). Belo Horizonte, Editora UFMG.) do arquivo? Recentemente, o artista Yhuri Cruz (2019CRUZ, Yhuri. 2019. Monumento à voz de Anastácia. Página do artista: Página do artista: https://yhuricruz.com/2019/06/04/monumento-a-voz-de-anastacia-2019/ , acesso em 16/05/2021.
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, 2020CRUZ, Yhuri. 2020. “Eixos” (ensaio visual). Poiésis, Niterói, vol. 21, n. 35: 59-70. DOI 10.22409/poiesis.v21i35.40415.
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) realizou uma intervenção artística na qual criou o “Monumento à Voz de Anastácia” que consistia num afresco com a palavra “Voz” mais uma releitura da imagem de Anastácia, dessa vez, liberta da máscara que a torturou e silenciou durante sua vida, além de distribuir santinhos com a imagem de Anastácia livre com uma “Oração a Anastácia Livre”. No trabalho do artista, o rosto de Anastácia sem a máscara porta, como escreve o artista em sua página virtual, um “pequeno sorriso-segredo”, enigmático, mas ao mesmo tempo resplandecente de uma mensagem que ecoa para além do evento racial (Ferreira da Silva, 2018FERREIRA DA SILVA, Denise. 2018. O evento racial ou aquilo que acontece n tempo. In: PEDROSA, Adriano; CARNEIRO, Amanda; MESQUITA, André (org. com colaboração de Artur Santoro, Hélio Menezes, Lilia Moritz Schwarcz e Tomás Toledo). Histórias afro-atlânticas: [vol. 2] antologia. São Paulo, MASP , pp. 407 - 411.), da linearidade do tempo moderno-colonial. Os trabalhos de Grada Kilomba e Yhuri Cruz são chamados para entendermos que a arte e a escrita crítica da arte podem nos ajudar no desenvolvimento de metodologias críticas entre as artes e as humanidades para a descolonização das imagens, ao operarem uma descolonização dos sentidos e da memória, um trabalho possível pela arte que desafia o poder disciplinar de epistemicídio (Carneiro, 2005CARNEIRO, Aparecida Sueli. 2005. A Construção do Outro como Não-Ser Como Fundamento do Ser. São Paulo, Tese de Doutorado,Universidade de São Paulo.) da cronologia que dispõe, classifica e hierarquiza culturas.

No trabalho de Grada Kilomba, aquilo que podemos ver nos refere ao que não podemos escutar: a fala insurgente da pessoa negra. Ao escrever para a revista alemã Monopol sobre o vídeo de Apeshit, Grada Kilomba (2019b)KILOMBA, Grada. 2019b. “Warum uns Beyoncé und Jay-Zs Louvre-Video nichlosslässt”. Monopol: Magazin für Kunst und Leben, 09 jan 2019, Disponível em: Disponível em: https://www.monopol-magazin.de/warum-uns-beyonces-und-jay-zs-louvre-video-nicht-loslaesst , acesso em 16/05/2021.
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tece uma brilhante análise imagem por imagem tendo como ponto de partida a articulação do título do álbum “Everythings is Love”, com as proposições de bell hooks (2021hooks, bell. 2021. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. (Tradução Stephanie Borges). São Paulo, Elefante. [1999]) sobre a força revolucionária do amor para aquelas pessoas que tiveram suas vidas dilaceradas, seu laços familiares partidos, suas memórias fragmentadas pela diáspora forçada de africanas e africanos nas Américas. Grada Kilomba nos lembra o legado das mulheres negras, da potência negra feminista diante de um poder colonial racista de dominação masculina. Homens e mulheres negras que nas suas lutas por emancipação e liberdade se puseram na reinvenção das comunidades negras diante de um mundo que lhes negava o acesso e o direito ao ser, ao existir, ao viver. Outrossim, Beyoncé e Jay-Z performam a história de novos corpos, novas ideias de beleza, nesse espaço do museu que simboliza a história “universal” da arte. Ao analisar a imagem de Beyoncé e Jay-Z diante da Grande Esfinge de Tanis, datada de 2.600 a.C., Grada Kilomba (2019b)KILOMBA, Grada. 2019b. “Warum uns Beyoncé und Jay-Zs Louvre-Video nichlosslässt”. Monopol: Magazin für Kunst und Leben, 09 jan 2019, Disponível em: Disponível em: https://www.monopol-magazin.de/warum-uns-beyonces-und-jay-zs-louvre-video-nicht-loslaesst , acesso em 16/05/2021.
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artista nos traz de volta a lembrança do saque do patrimônio material das culturas conquistadas durante o período colonial, ao mesmo tempo em que resgata a tragédia de Édipo Rei e o enigma da esfinge tebana, da verdade sobre si mesmo, sobre sua história, e se pergunta sobre o espaço do museu hoje, que histórias são contadas, que histórias precisam ser criticamente posicionadas, quem está de fora, quem está foracluído do espaço dessa narrativa universal da modernidade e seu círculo de violências. Essa violência excede os limites do arquivo como regime de verdade e também de representação, aos quais se parece sempre retornar, para extração dos significantes da dialética racial como luta por emancipação. Contudo, a profecia de Audre Lorde (2019LORDE, Audre. 2019. Irmã Outsider. (Tradução Stephanie Borges). Belo Horizonte, Autêntica.: 135-139) de que as ferramentas do senhor não desmontarão a casa grande se faz mais uma vez pertinente, já que essa é uma história não apenas das resistências:

O que é necessário para imaginar um estado livre ou para contar uma história impossível?

É preciso que a poética de um estado livre antecipe seu acontecimento e imagine a vida após o homem, em vez de esperar pelo momento retrocedente do Jubileu? É preciso que o futuro da abolição seja performado primeiro na folha de papel? (Hartman, 2020HARTMAN, Saidiya. 2020. “Vênus em Dois Atos”. Tradução Fernanda Silva e Sousa e Marcelo R. S. Ribeiro. Revista ECO-PÓS, vol. 23, n.3: 12-33. DOI: https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i3.27640.
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: 26).

Ao final do vídeo, Beyoncé e Jay-Z miram a Monalisa mais uma vez. Em sua performance, eles não só transformaram esse lugar “do que deve ser visto”, mas abrem a discussão desses lugares que foram fixados por uma história não apenas das visibilidades, mas também dos apagamentos e desaparecimentos. Na sua análise da cena final, Grada Kilomba (2019b)KILOMBA, Grada. 2019b. “Warum uns Beyoncé und Jay-Zs Louvre-Video nichlosslässt”. Monopol: Magazin für Kunst und Leben, 09 jan 2019, Disponível em: Disponível em: https://www.monopol-magazin.de/warum-uns-beyonces-und-jay-zs-louvre-video-nicht-loslaesst , acesso em 16/05/2021.
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comenta a alternância de figura e fundo nessa cena na medida em que os corpos negros de Beyoncé e Jay-Z sinalizam o presente de novas ideias de beleza. Uma tensão entre arquivos e memórias circula na instauração de uma outra mirada no tempo.

Mas de qual narrativa de tempo falamos quando apenas consideramos a entrada e saída das existências invisibilizadas pelo racismo no tempo da cena colonial? Esse tempo linear do projeto ocidental foi produtor de assimetrias de saber e poder, além da violência epistêmica de todas aquelas formas de saberes produzidas pelas corporalidades constituídas como outras do Sujeito de Europa, como incivilizadas, anormais, racializadas, monstruosas. Busco então uma outra cena do tempo, uma fissura nessa modernidade colonial que encadeia as outridades na cena colonial do tempo que esquadrinha, na verdade, coloniza o devir em uma sequencialidade presente-passado-futuro. No trabalho de uma metodologia crítica em artes e em ciências sociais que tensionem as percepções naturalizadas sobre o tempo, a desidentificação com a crononormatividade me parece bastante eficiente.

Gostaria, assim, de exercitar uma outra performance do olhar, um olhar das fissuras e das brechas, um olhar em demolição do contemplativo da colonialidade estética. Com esse procedimento pratico o que gostaria de trazer como a barreira do som da negridade. A imagem e o som em Apeshit em contra-roupagem do tempo, com o apoio dos estudos da performance. Ao me apoiar nos estudos da performance em sua contribuição interdisciplinar e também pensando a performance como episteme, o conhecimento incorporado ativado pela performance se relaciona com um campo de tensões nos limites do arquivo. Com isso, tendo em vista o que argumenta Denise Ferreira da Silva (2019)FERREIRA DA SILVA, Denise. 2019. A dívida impagável. (Tradução Amílcar Packer e Pedro Daher). São Paulo, Living Commons, Oficina de Imaginação Política., se problematiza como a negridade na função de significante na gramática racial moderna está imbricada na constituição dos pilares ontológicos, jurídicos e epistemológicos da modernidade em que branquidade e negridade são compostas enquanto ferramentas da dialética racial, na qual a violência racial enquanto excesso e princípio de classificação e hierarquização entre sujeitos e não-sujeitos (com um “lugar de fala” a se “conquistar”), humanos e não-humanos passa a ser negociada. Precisa-se, portanto, desmontar essa imagem de um modo que não o seja pela reencenação do jogo da significação da diferença, pois seus limites e a utopia do sujeito negro enquanto processo de subjetivação autodeterminada nos jogos dessa mesma lógica se torna impossível. Isso implica um trabalho que desmonta o princípio da soberania, enquanto vigência da lei do pai, ou seja, da lei de nomeação como grilhão do laço social que se estabelece entre capitalismo, patriarcado e racialidade. Dentro dessa problemática, me oriento na proposição de Denise Ferreira da Silva com ferramentas para a desfiguração dessa socialidade destrutiva da arquitetura moderna do poder:

(...) o excesso que é a violência nunca exposta, a violência resolvida pela lei, pelo estado, contida pela sociedade civil hegeliana, entra na própria constituição das categorias políticas, como negridade branquidade, empregada doméstica e dona de casa, nativo e colonizador, senhor e escravo (Ferreira da Silva, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise. 2019. A dívida impagável. (Tradução Amílcar Packer e Pedro Daher). São Paulo, Living Commons, Oficina de Imaginação Política.: 69).

CONSIDERAÇÕES FINAIS: O SOM DA NEGRIDADE NA FLECHA DO TEMPO

Como imaginar um tempo para além da cronologia linear da modernidade colonial? É possível se aproximar de Apeshit sem cair na armadilha da interpretação com os significantes da racialidade que obliteram o trabalho de transfiguração política? A primeira imagem que temos no vídeo de Apeshit é de um anjo negro de cócoras do lado de fora do museu. A cena é sucedida pelo interior do museu e um conjunto de imagens e afrescos que nos lembram que as figuras angelicais foram sempre representadas por corpos brancos. Tais figuras também nos remetem a um outro tempo, ao tempo imortal, ao eterno. Mas o anjo negro na calçada com suas grandes asas brancas, torso desnudo, jeans rasgado e tênis branco nos fala de um outra tessitura do tempo. São os primeiros vinte segundos de Apeshit, antes da música começar, que trago para esta parte do texto. Nesse breve trecho escutamos a batida dos sinos juntamente com as sirenes de ambulâncias ou viaturas, muitas camadas de tempo, entre o finito e o infinito, das passagens entre a vida e a morte. Essa mistura dos sons compõe a abertura, mas também a passagem, o portal para uma outra cena do tempo.

A cada vez que vejo o vídeo de Apeshit, algo novo me chama atenção e me leva até camadas de memória e ressonâncias impensadas. Ao olhar com calma, pensando justamente na perspectiva da performance, percebo um elemento novo da coreografia desse vídeo e o quanto essa coreografia se relaciona com uma escrita da memória, vindo essa percepção principalmente a partir do trabalho de Leda Maria Martins (2003MARTINS, Leda Maria. 2003. “Performances da oralitura: corpo, lugar da memória”. Letras, n. 26: 63-81. Língua e Literatura: Limites e Fronteiras.) e sua teoria da performance. Essa aproximação se faz possível porque Leda Maria Martins está tratando da relação entre performance e memória cultural das culturas da diáspora africana. Em outros momentos, tentava aproximar o conjunto das obras que aparecem no vídeo com a contraposição da entrada dos corpos negros, quase no sentido de um embate das imagens, já que venho pensando e escrevendo sobre esse clipe desde 2018. Ao ler o trabalho de Leda Maria Martins e trazendo mais o foco para entender a dimensão performativa do vídeo de Apeshit, fui levado a ver vídeos de outros artistas estadunidenses como Rihanna, Drake, Cardi B. Nesses momentos percebi o convite que a música faz ao movimento, à dança, a uma imaginação coreografada, a uma escrita com o corpo, na linha do que traz Leda Maria Martins quando fala das performances da oralitura, lembrando que o corpo e a voz são “portais de inscrição de saberes de vária ordem” (Martins, 2003MARTINS, Leda Maria. 2003. “Performances da oralitura: corpo, lugar da memória”. Letras, n. 26: 63-81. Língua e Literatura: Limites e Fronteiras.: 66). Quando dançamos, ritualizamos, quando dançamos, invocamos as memórias ancestrais, damos continuidade a um movimento que nunca cessou de acontecer, o movimento do universo como movimento da vida que se transforma. No trabalho com essas artistas citadas, é impossível seguir a escrita do texto sem escutar a música mais uma vez, e não apenas contemplar o vídeo, mas ver, ouvir e dançar, movimentar o corpo e a imaginação.

No vídeo de Apeshit, enquanto as obras de arte estão estáticas e posicionadas para a contemplação na inscrição monumental de uma narrativa da história da arte, Beyoncé e Jay-Z alternam entre poses estáticas, como modelos para um quadro, com coreografias no espaço interior e externo ao museu. Junto a eles, dançarinos e dançarinas negras performam no espaço do museu e abrem um universo de exterioridade, que nos fala de fabulação das memórias afro-atlânticas, como discute Leda Maria Martins acerca de como podemos entender tais performances da diáspora africana nas Américas:

No âmbito dos rituais afro-brasileiros (e também nos de matrizes indígenas), por exemplo, essa concepção de performance nos permite apreender a complexa pletora de conhecimentos e de saberes africanos que se restituem e se reinscrevem nas Américas, recriando-se toda uma gnosis e uma episteme diversas. Nessa perspectiva, como afirma ainda Roach, “as performances revelam o que os textos escondem”. Afinal, como também nos alerta Pierre Nora (1994), a memória do conhecimento não se resguarda apenas nos lugares de memória (lieux de mémoire), bibliotecas, museus, arquivos, monumentos oficiais, parques temáticos, etc., mas constantemente se recria e se transmite pelos ambientes de memória (milieux de mémoire), ou seja, pelos repertórios orais e corporais, gestos, hábitos, cujas técnicas e procedimentos de transmissão são meios de criação, passagem, reprodução e preservação de saberes (Martins, 2003MARTINS, Leda Maria. 2003. “Performances da oralitura: corpo, lugar da memória”. Letras, n. 26: 63-81. Língua e Literatura: Limites e Fronteiras.: 66-67).

O corpo negro em Apeshit é o lugar da memória e a tessitura do devir. Os sons dossinosquedobramashorascombinadoàssirenesarticulamamarchadeumtempo que não dorme, que não conhece descanso, que não nos deixa descansar. Volto à essa cena inicial e me lembro do texto de Walter Benjamin “Sobre o conceito de história”. Em suas teses sobre o tempo e a história, Walter Benjamin (2012)BENJAMIN, Walter. 2012. “Sobre o conceito de história”. In: Obras Escolhidas I: Magia e Técnica, Arte e Política. (Tradução Sérgio Paulo Rouanet). São Paulo, Brasiliense, pp. 241-252. argumenta que os relógios não contam o tempo das revoluções. Benjamin foi um grande crítico da modernidade principalmente sobre a questão do tempo relacionado ao historicismo positivista e a uma história que oblitera suas contradições ao ser contada apenas pela perspectiva dos vencedores. Em uma das suas teses, Benjamin escreve sobre uma pintura de Paul Klee que adquiriu em 1921, Angelus Novus, na qual figura um anjo de asas abertas, que compara ao anjo da história:

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Nele está desenhado um anjo que parece estar na iminência de se afastar de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, seu queixo caído e suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu semblante está voltado para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as arremessa aos seus pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos (Benjamin, 2012BENJAMIN, Walter. 2012. “Sobre o conceito de história”. In: Obras Escolhidas I: Magia e Técnica, Arte e Política. (Tradução Sérgio Paulo Rouanet). São Paulo, Brasiliense, pp. 241-252.: 245-246).

O anjo negro de Apeshit se apresenta como um anjo de uma outra história. No sono do museu, ouvimos os passos da visita noturna. No silêncio da grande noite, a música irrompe, perturba-se o som da negridade na flecha do tempo. O anjo negro de Apeshit em sua presença espectral desde o exterior abre o caminho para uma noite no museu em que novas aparições despertam do sono da grande arte, uma balada para o antimuseu:

O escravo deve continuar a assombrar o museu, tal como existe nos nossos dias, pela sua ausência. Convém que esteja por todo e lugar nenhum, enquanto as suas aparições ocorrem sempre como ruptura e nunca no seio da instituição. É, assim, que se pode preservar no escravo a sua dimensão espectral. É também assim que se pode evitar que sejam tiradas consequências fáceis a partir do acontecimento abominável que foi o tráfico de escravos. Quanto ao antimuseu, não é de todo uma instituição, mas a figura de um lugar-outro, o da hospitalidade radical (Mbembe, 2017MBEMBE, Achille. 2017. Políticas da Inimizade. (Tradução Marta Lança). Lisboa, Antígona.: 228).

Podemos entender a entrada de Beyoncé e Jay-Z na cena do museu, espaço em que se instaura a narrativa moderna da história da arte (a dimensão performativa da institucionalidade e também da disciplina), mais do que apenas uma releitura ou um apontamento de lacunas na história do cânone da arte ocidental. Interessa-me entender a coreografia dessa música para além do sentido da representatividade, e muito mais próxima a um eco de algo, dessa resistência do objeto que define Fred Moten (2020MOTEN, Fred. 2020. “A Resistência do Objeto: o Grito de Tia Hester”. (Tradução de Matheus Araújo dos Santos). Revista Eco-Pós, vol. 23, n. 1: 14-43. DOI: https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i1.27542.
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), dessa presença negra em performance que não é nem totalmente sujeito, nem totalmente objeto, como se o per-formar nesse vídeo se transformasse em pre-formar (seria essa também a proposição de um formation?), uma performance que é ao mesmo tempo um convite ao ritual. Assim, a música, a dança e as imagens são dispostas como performativos que movimentam a afrofabulação (Nyong’o, 2019NYONG’O, Tavia. 2019. Afro-fabulations: The Queer Drama of Black Life. New York, NYU Press.) em quem se dispõe a ver, ouvir, cantar e dançar com, ainda que não esteja no espaço do museu. Esse elo se estabelece entre o passado, o presente e o futuro, enquanto despertar do corpo aquilo que o excede. Enfim, a performance preta acontece nesse movimento que é fugitivo da representatividade na medida em que vibra em uma sonoridade outra, inaudível, pois molecular na composição de um gesto na escuridão da grande noite.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • SPIVAK, Gayatri. 2014. Pode o subalterno falar? (Tradução Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa). Belo Horizonte, Editora UFMG.

Vídeo:

  • 1
    Este texto, publicado postumamente, foi enviado pelo autor e aprovado sem mudanças pelos pareceristas, ficando apenas sua revisão final a cargo de Vi Grunvald, uma das editoras do dossiê do qual faz parte.
  • 2
    Temos que considerar aí outras tradições teóricas que migraram do espaço europeu para o espaço estadunidense, principalmente por conta da ascenção do nazismo e do fascismo em solo europeu, reduzindo, neste ponto, as contingências históricas da posição antifascista de emprestadas teórico-críticas como a psicanálise.
  • 3
    Hall adota uma perspectiva crítica da etnicidade, presente em vários de seus textos, demonstrando que na modernidade se torna cada vez mais problemático pensar nessa categoria em termos fundacionais: “A etnia é o termo que utilizamos para nos referirmos às características culturais - língua, religião, costume, tradições, sentimento de ‘lugar’ - que são partilhadas por um povo. É tentador, portanto, tentar usar a etnia dessa forma “fundacional”. Mas essa crença acaba, no mundo moderno, por ser um mito. A Europa Ocidental não tem qualquer nação que seja de apenas um único povo, uma única cultura ou etnia. As nações modernas são todas híbridos culturais” (Hall, 2006HALL, Stuart. 2006. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva, Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro, DP & A.: 62).
  • 4
    Penso o termo gramática aqui no caminho aberto por Hortense Spillers (1987)SPILLERS, Hortense. 1987. "Mama’s Baby, Papa’s Maybe. An American Grammar Book". Diacritics, vol. 17, n. 2: 65-81. ao discorrer sobre a relação entre raça, gênero e patriarcado na história estadunidense.
  • CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA:

    Não se aplica.
  • FINANCIAMENTO:

    Não se aplica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    17 Maio 2021
  • Aceito
    05 Ago 2021
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