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Os efeitos da tradução: presença ritual, imagens e materialidades ameríndias

FAUSTO, Carlos. . 2020. Art Effects: image, agency and ritual in Amazonia. Lincoln: University of Nebraska Press. (Tradução de Rodgers, David. ).

“O homem inventou Deus para que este o criasse”, afirmou o crítico de arte Ferreira Gullar. Estamos nós sempre presos aos nossos desejos e objetos narcísicos, essas majestades. Desejos e resistências de analista, desejos de identificação e de investimento libidinal em um outro inventado, que por sua vez, nos contrainventa. Essa intersubjetividade perspectiva na metafísica ocidental nos permitiu ficcionar a antropologia como “ciência social do observado”, conforme preconizou Claude Lévi-Strauss (2014 [1958]LÉVI-STRAUSS, Claude. 2014. “Lugar da antropologia nas ciências sociais e problemas levantados por seu ensino”. In: Antropologia Estrutural. São Paulo: Cosac Naify, pp. 489-540.), e mais recentemente, como “filosofia com gente dentro”, de acordo com Tim Ingold (1992INGOLD, Tim. 1992. Editorial.Man, vol. 27, n. 4: 693-696.).

Outra via para entender a experiência vital expandida numa diversidade de seres é se perguntar por que as pessoas humanas e não-humanas fazem o que fazem. O porquê dos rituais que formulam, dos cantos e expressões visuais e corporais que elaboram. São presenças metonímicas e sinestésicas; são transposições e translocuções imagéticas, metafóricas e alegóricas? A questão do sentido da diversidade lúdica e política das imagens e das materialidades mobilizou o “desejo de antropólogo” do autor em questão, Carlos Fausto, em seu gosto pelas diferenças ameríndias, mas também pelo problema de como formular sua tradução como equivocação, se pensarmos com Viveiros de Castro.

Mas seriam exatamente obras de arte? Como conceber esse conceito diante da diversidade e da desigualdade caleidoscópica apresentada no livro? Estariam à cavalheiro e fariam a crítica da cultura, como preconizou Adorno, ou entropicamente mestiçadas com a vida, conforme sugeriu Walter Benjamin, ao pensarem o estatuto da arte ocidental?

Escrever sobre o trabalho que sintetiza as pesquisas das últimas décadas de um antropólogo quando ele foi o seu orientador no mestrado é uma situação arriscada em decorrência da condição afetada pelo mestre em questão, mas a minha intenção nesse texto é menos “ser predado” por esse trabalho, ou ainda a de fazer uma análise crítica de sua singularidade diante da tradição antropológica, e mais o interesse em apresentar a minha experiência estética ao flanar antropofagicamente pelos muitos saberes compilados neste livro.

Esse rico material traz à tona temas caros à antropologia atual que são o estatuto da materialidade, do corpo e da imagem nos mundos ameríndios. Nele encontraremos objetos considerados pessoas, suportes materiais encantados e vivos que personificam espíritos e ancestrais, fetiches que não são ilusórios, mas reais nos mundos em que operam. O autor está completamente alinhado com o debate contemporâneo, que considera que as ficções ameríndias sobre a materialidade que os circunda não devem ser vistas na ordem da crença ou como saberes “aparentemente irracionais” aos moldes de Lévy-Bruhl e Dan Sperber. Os rituais de consagração de presenças vivas em dadas formas materiais se inscrevem em uma lógica cosmopolítica, numa experiência de pensamento singular que possui uma dimensão estruturante na vida das pessoas e seres por eles enredados. Essa sensibilidade e compromisso ético de levar a sério a diferença dos povos apresentados no livro é um traço fundamental dessa obra que sintetiza a pesquisa e a carreira do antropólogo Carlos Fausto.

Art Effects é o resultado das pesquisas realizadas pelo autor no âmbito de seu doutoramento no PPGAS/Museu Nacional da UFRJ sobre o povo Parakanã, fruto de uma pesquisa intensiva realizada no final dos anos 1990 na Amazônia, mas também de materiais advindos de sua atuação entre os indígenas Kuikuro, localizados no Alto Xingu, o que além de artigos específicos, produziu premiados filmes em parcerias com cineastas indígenas e exposições. O livro se concentra no que se convencionou chamar de “cultura material” (por uma tradição de pensamento não afetada pela virada ontológica na antropologia) e de seus usos e sentidos produzidos em contextos rituais. Além dos materiais etnográficos xinguanos e amazônicos, Fausto “compara o incomparável” e produz simetrizações com o estatuto da materialidade entre povos indígenas norte-americanos; com ídolos e efígies no cristianismo; e ainda mobiliza repertórios de matriz africana de modo a evidenciar diferenças e ressonâncias pelos contrastes. Não pretendo nesse texto esgotar todas essas relações, mas evocar apenas as principais.

O nódulo central que entrelaça diferentes contextos etnográficos e rituais é o problema da gênese da presença no objeto, ou ainda, as questões acerca de como os objetos se tornam pessoas, como são “possuídos” por espíritos e adquirem agência. A questão da ausência evocada por uma presença que transfigura uma memória ancestral também está presente ao longo das mais de quatrocentas páginas do livro. Os interlocutores do autor são muitos e a impureza disciplinar presente na maneira como maneja autores clássicos da antropologia (como Claude Lévi-Strauss e Marcel Mauss), etnólogos às voltas com problemas afins (como Aristóteles Barcelos Neto, Lucia Van Velthem e Isabel Penoni), mas também referências advindas das artes visuais e da história (como Hans Belting, David Freedberg, Jean-Pierre Vernant e Carlo Ginzburg), trazem frescor, ineditismo e brilho ao trabalho.

Para aceder ao que chama de “reino arbitrário do símbolo”, Fausto evoca a virada ontológica de Latour, o vitalismo de Nietzsche e Bergson, mas se esquiva de abordagens generalizantes sinalizando o acento menos formalista-teórico e mais etnográfico-pragmático do livro, que postula questionamentos sobre os limites conceituais dos procedimentos da tradução antropológica. Já na introdução ele se pergunta quais conceitos são os mais apropriados: alma ou duplo? Agência primária e secundária ou agência forte e fraca? Analisar o corpo ou as partes corporais? Sua opção se dá na direção de considerar as complexas metafísicas das corporeidades ameríndias pela observação de suas partes, como o caso das peles, mas também em suas conexões, como a análise que realiza dos aerofones com os tubos corporais.

O modo como o mundo ordinário é sublevado por meio dos rituais, é apresentado através das tensões entre as convenções formais e os mecanismos pragmáticos que engendram as agências dos objetos. Os trabalhos de Alfred Gell e Carlo Severi são importante referência para Fausto, que enfoca o problema proposto utilizando uma abordagem cognitivista e que considera o estatuto da imaginação e as condensações quiméricas de sentido na análise dos grupos de transformação imagéticos e objetuais em questão. A partir de múltiplos exemplos, Fausto nos mostra como as imagens e objetos ameríndios são ambíguos e “enganosos” e estão sempre em relação, multiplicação e transformação.

Na introdução do livro o autor destaca os aspectos comuns das diferentes artes ameríndias como a multirreferencialidade; a duplicação da imagem e a oscilação entre figura e fundo; a instabilidade qualitativa (humano/não humano, macho/fêmea); a indeterminação quantitativa (uno/dual/múltiplo) e as relações de pertencimento sempre recursivas, instáveis e intercambiáveis (dentro/fora, figura/fundo).

Ancorando-se no conceito de “ficções persuasivas” de Marilyn Strathern (2014STRATHERN, Marilyn. 2014. “Fora de contexto: as ficções persuasivas da antropologia”. In: O Efeito etnográfico e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify , pp. 159-209. [1987]), Fausto se debruça sobre o material cristão de modo a elaborar o estatuto das imagens antropomórficas e compará-las com as esculturas africanas iorubanas analisadas por Robert Farris Thompson (1984THOMPSON, Robert Farris. 1984. Flash of the Spirit: African and Afro-American Art and Philosophy. Nova York: Vintage books.), assim como com as ambivalentes e paradoxais imagens quiméricas ameríndias. De modo a acessar a fronteira entre o real e a abstração das imagens ameríndias, cristãs e africanas enredadas na tessitura do trabalho, Fausto pretende superar grandes divisores ocidentais em direção a um pluralismo pluricêntrico.

O livro está dividido em cinco capítulos que tematizam repertórios materiais específicos. Cada um deles analisa uma modalidade de artefato ritual em suas relações.

No capítulo 1, “Corpo Artefato”, o autor analisa o material Parakanã, povo que teve seu primeiro contato em 1984. Considerando-se a inexistência de uma cultura material expressiva, a ênfase se dá na corporalidade sempre em movimento. São analisados o sentido das canções e do sonhar nos rituais Opetymo e Waratoa. Nesse mundo em que guerra e xamanismo estão integrados, os sonhos são lugares perigosos onde se pode ser predado e familiarizado, mas também se obter nomes e canções. As canções obtidas no sonhar são jaguares, duplos dos inimigos em forma musical que serão executados nos rituais por um cantador. Essa persona produz uma máscara acústica que evoca os duplos enredados e se torna um enunciador complexo que condensa em si a figura do sonhador predado e do matador inimigo, duplo de animal, que concede a canção ritual.

Opetymo, traduzido pelo autor como “ingerindo tabaco”, tem o charuto ritual como uma extensão da pessoa e quando usado produz uma transformação ontológica nos participantes. O papel do ritual, que possui conexões com as práticas de guerra do século XVI, é transmitir as canções e fazer nascer os jaguares. Como uma “ciência dos sonhos”, o Opetymo se aproxima do Waratoa no sentido corporal de outro objeto, dessa vez bastonetes de bambu, que aparecem em sonhos como captores de crianças. Considerados um útero antecipado que contém virtualidades da existência, mas também um pênis fertilizador, os bastonetes têm protagonismo nesse festival que faz parte da constituição e da educação da pessoa Parakanã.

Fausto analisa ainda o estatuto das cabeças-troféus na Amazônia, que contém propriedades animistas da pessoa tais como o espírito, a alma, a força, a potência e a respiração. Os orifícios da cabeça devem ser selados para prender o espírito dentro do troféu. As cabeças-troféus asseguram abundância, homens produtivos e mulheres férteis, e indexam múltiplas identidades em jogos de figura e fundo, produzindo duplicações e enredando diversas relações. O autor menciona que dentes são usados para adornar o corpo, ossos se tornam flautas, escalpos dão prestígio a chefes na região do Chaco, e cabelos são considerados repletos do poder vital da alma para os Jivaro, que veem as cabeças como um “feto antecipado”. A eficácia desses troféus, que podem evocar uma criança adotiva, um predador, um parente ou um parceiro sexual, é exatamente a sua indeterminação quantitativa e capacidade de duplicação/substituição.

No capítulo 2, “Mistérios Selvagens”, o autor se debruça sobre o “complexo ritual da flauta sagrada” constituído por aerofones tais como flautas, trompetes e clarinetas, que representam animais e ancestrais, mediam o mundo visível e o invisível e que são interditados às mulheres, que não os podem ver e nem tocar. Essa proibição codifica todas as relações rituais no gênero e nos campos que estão atrelados à reprodução e à fertilidade. Os instrumentos são considerados sagrados e na região do Rio Negro estão associados à iniciação masculina. Curiosamente os aerofones são considerados “pets” dos seus donos, que podem ser individuais, coletivos ou clânicos.

Fausto comenta o uso desses instrumentos de sopro pelos povos da região Norte da Amazônia, entre o Rio Negro e o Japurá, onde na dança Quati o som dos aerofones é a voz da serpente que devora as mulheres que vêem o instrumento. Segundo o autor, a interdição feminina e o complexo da flauta estão presentes em um ritual comum a diversos povos do Alto Rio Negro, falantes de línguas Tukano e Arawak, conhecido como Jurupari, nome do diabo no Rio Negro, segundo missionários católicos. Documentado pelo etnógrafo alemão Koch-Grünberg, o Jurupari é responsável pela produção patrilinear/virilocal e está envolvido em uma atmosfera de segredo, flagelação, consumo de bebida fermentada e associação com a fertilidade.

Ao analisar a região Sul da Amazônia e traçar conexões com a região do Alto Xingu, Fausto identifica apropriações realizadas por povos não-Arawak como os Nambiquara e os Munduruku produzindo novas agregações clânicas e trocas entre afins. Apesar da fragmentação clânica e da dispersão matrimonial, as relações formam eventualmente um sistema regional único através da unidade da casa-flauta que contém os aerofones de todos os clãs. O autor prossegue e avança até os Kuikuro demonstrando a relação entre esses instrumentos e animais ancestrais, mas também com o céu e a exterioridade da floresta. Apresenta ainda o festival da clarineta que propicia alegria, o quinteto de clarinetes e trompetes e suas conexões de maestria e domínio com espíritos das plantas.

As flautas ajudam a embelezar um mundo monstruoso em suas origens demiúrgicas e a manter a boa medida de uma vida social pacífica, afirma o antropólogo, que concebe o complexo da flauta sagrada como um regime de captura, como armadilhas acústicas mobilizando o que Gell chamou de intencionalidades complexas. As flautas estão sempre conectadas aos corpos, são extensão dos corpos em um “mundo de tubos”. Os espíritos das flautas durante as performances se manifestam dentro e fora do corpo do tocador e do instrumento, como uma garrafa de Klein. O autor evoca o jazzista Dizzy Gillespie para traduzir as habilidades corporais do flautista, menciona sua associação com o tubo gástrico dos idosos, afirma que tocar é como fumar para os xinguanos, e que aerofones devem ser alimentados com cerveja de mandioca.

No capítulo 3, “Redemoinhos de Imagens”, as máscaras têm destaque em uma visada ampla e panorâmica que vai desde o Alasca, passando pela produção visual dos povos da Costa Noroeste da América do Norte e aterrando na Amazônia. Afirma existirem grandes tradições de máscaras nessas regiões e destaca uma revitalização das mesmas entre os Yu’pik nos anos 1990. Definidas como a face de um não-humano que é simultaneamente uma pessoa humana, as máscaras falam da humanidade de animais, plantas e espíritos num contexto de renascimento do animismo na bibliografia da América do Norte. Mas, para além da exterioridade não-humana associadas a uma interioridade humana, Fausto está interessado nas relações entre os mecanismos interativos e as lógicas formais de modo a capturarem a imaginação da audiência.

Observando as relações recursivas conteúdo-continente e sua referencialidade múltipla, o autor analisa uma máscara Aglegmiut medicinal esquimó que possui uma representação paradoxal simultaneamente antropomórfica e zoomórfica, destacando a intensidade figurativa de multiplicação icônica de animais. Presentes em rituais do Potlach entre os Yu’pik, as máscaras narram encontros entre ancestrais míticos e seres zooantropomórficos, representam clãs legendários ancestrais e personificam as metamorfoses e as ambivalências de seres extraordinários. Caso semelhante ao Kwakiutl, que concebem homens como caixas e máscaras dentro de máscaras. Fausto destaca também que muitas delas foram feitas ou comissionadas por xamãs, muitas das vezes em rituais de feitura com músicas, para revelarem a imagem de seus espíritos familiares, e que foram usadas para hipnotizar convidados.

O autor avança até a Amazônia tencionando as diferenciações entre os estilos Tapirapé e Karajá que estão alinhados por empréstimos recíprocos, associados ao complexo ritual da flauta sagrada e que possuem diferentes identidades indexadas através de variações de motivos gráficos, cores, ornamentos, dança e música. Enquanto as máscaras karajá se referem à iniciação masculina e feminina, as máscaras “Cara Grande” dos Tapirapé, presentes em inúmeros museus brasileiros, incorporam inimigos reais assassinados no passado e são uma transformação de um troféu de guerra como uma relíquia familiar.

Ao chegar ao Xingu e aos Kuikuro, Fausto mostra como as máscaras estão relacionadas ao itseke, seres extraordinários do cosmos que capturam o duplo-alma dos humanos e estão sempre presentes em pares e em rituais com cantores. O autor menciona ainda as máscaras Waujá, associadas com as experiências xamânicas do sonhar, e também as máscaras redemoinhos, que dão nome ao capítulo, que entre os Wayana são concebidas como uma assemblage de seres em uma multiplicidade infinita por uma estética excessiva e hiper-adornada. Muitas das vezes, menciona, o corpo que veste a máscara está pintado e adornado, se tratando de uma dupla máscara. Podemos concluir desse modo que o envelope ameríndio é pandemônio, repleto de movimento e de partes e almas integradas que se associam e se dissociam como um redemoinho. O capítulo finaliza com a análise de um ritual xinguano em que uma mulher é atacada por uma máscara espírito.

Os capítulos 4 e 5 são complementares, podem ser entendidos como geminados já que analisam materiais associados. Enquanto o capítulo 4 destaca os sentidos rituais das imagens no ritual Javari através da análise da efígie humana que conecta anfitriões e convidados, o capítulo 5 evidencia o uso das efígies de madeira no ritual xinguano do Quarup para destacar chefes mortos. A imagem Javari é apresentada em sua condição polivalente e mediadora de múltiplas identidades, atualizando estados de guerra passados em disputas verbais entre primos cruzados; já a imagem no Quarup é aproximada das estátuas funerárias da Grécia Antiga e da Europa Medieval. Fausto está interessado nas mimeses xinguanas e na relação entre imagem, duplo e reificação.

No capítulo 4, “A Efígie Pronominal”, ele inicia mencionando como a representação de inimigos mortos é comum na Amazônia através de troféus corporais e substitutos artefatuais. E que, no Alto Xingu, as efígies são um índice do parente morto tornado ancestral. Fausto menciona os usos desses objetos para os Arawak, como um valor ancestral que interage com um valor inimigo em um duplo movimento do morto entre afinidade e ancestralidade. No Alto Xingu são três os rituais importantes: Tiponhü, Egitsü (Quarup) e o Hagaka (Javari). O ritual Tiponhü antecipa o chefe morto comemorado no Quarup e faz parte da mitologia xinguana em que o primeiro Quarup é mantido em honra à mãe dos gêmeos Sol e Lua.

Já o Javari, foco do capítulo, é um ritual funerário que comemora cantores e arqueiros do passado e tem por objetivo principal “queimar a imagem da alma”. Nele os participantes decoram a si próprios como se fossem ngikogo (não pessoas). A finalidade do ritual é prestigiar um nome intergeracional e ele é entendido como alternativo ou complementar ao Quarup para homenagear a pessoa morta. O autor afirma que é um ritual intenso que acontece por quinze dias e possui um vasto repertório coreográfico e musical. Nele convidados são recebidos e logo há um duelo verbal dos mesmos com os anfitriões em torno de uma efígie antropomórfica que é queimada no festival do ritual. Animais são figurados pela evocação mimética e vocalização, e o ritual é considerado como entre o icônico e o indexical em seu visual minimalista e iconismo artístico que atribui uma identidade animal-espírito (itseke) para um conjunto de atores rituais.

Fausto compara o boneco Javari com o toco de madeira Quarup para afirmar que ambos são o hutoho de uma pessoa morta. O autor estabelece ainda conexões com as efígies de criminosos executados na Europa no século XVI. Ele afirma que a efígie no Quarup é um duplo e não apenas um artefato dotado de subjetividade. Ela produz mediações entre vivos, como no caso dos duelos verbais direcionados à efígie Javari que funciona como um token que antecipa o primo ausente. Há a produção de parentesco e a evocação da memória dos festivais passados. O antropólogo conclui que a efígie Javari é uma pessoa ritual entre animais e primos cruzados, e entre ancestrais e inimigos.

Como os kolossoi gregos, a esfígie Javari Kuge Hutoho demanda alguém como interlocutor, quer dar voz ao morto e convoca uma presença. Sua localização funerária é precisa: a praça da aldeia, lugar onde chefes e homens mortos comemorados no ritual Javari foram enterrados. O autor afirma que diferente das efígies dos reis medievais e incas, a efígie Javari é simultaneamente “outro eu” e “outro do eu” e condensa a alteridade interior do enunciador e a alteridade exterior do receptor no ritual, ambos presentes e se distinguindo de afins e inimigos.

Por fim, o capítulo 5, “Os Dois Corpos do Chefe”, Fausto segue comparando os rituais do Javari e do Quarup dando mais destaque a esse último. Ele começa afirmando que no Alto Xingu os mortos não são outros, são perpetuados e transmitidos entre gerações como seres lembrados através dos rituais funerários. A efígie Javari oscila entre o afim vilanizado e o parente comemorado, e está situada entre rito de guerra e rito funerário, enquanto o Quarup é uma homenagem ao chefe morto. Mas o autor se pergunta qual o estatuto dessa homenagem e do corpo do morto já que o ritual contrariaria a idéia de que a eficácia ritual dos artefatos na Amazônia depende do caráter múltiplo das relações que o constituem.

Fausto apresenta um relato etnográfico detalhado sobre a confecção da efígie Quarup mencionando o fato de os xamãs baforarem fumaça sobre os troncos que servirão para o morto ser animado, mas não ressuscitado. Em seguida ele relata que é necessário perder a conexão entre o tronco cortado e o espírito dono para produzir uma nova conexão entre o morto e sua efígie. Presença ambivalente, há conexão e desconexão, ou seja, o morto é e não é o dono da árvore de onde foi extraído o tronco da efígie. O autor conclui que haveria, portanto, uma zona de indeterminação e incerteza na qual o duplo do morto é feito visível como artefato, tencionando o problema da relação entre original e cópia.

Finalizando o denso e complexo trabalho de fôlego, Fausto retoma na conclusão a aproximação das imagens ameríndias com as cristãs evocando a questão da semelhança entre Deus e o homem no Gênesis bíblico, assim como aproximando a iconografia da monstruosidade no cristianismo com a estética transformacional ameríndia. O desfecho reencena a vocação histórica do autor ao recuar até o passado pré-colombiano de modo a aprofundar as genealogias das imagens indígenas e observar as chamas que ainda ardem.

Na introdução do livro o autor destaca o sorriso sarcástico de um escultor que obteve como resposta em uma situação específica no campo e que o intriga como problema potencial de análise. É o humor transcultural? Esse impasse produtivo o fez analisar o estatuto da ironia e do engano característicos do trickster nas cosmologias ameríndias, que subvertem e reembaralham os lugares do que é literal e do que é figurativo. Essa imagem inicial é usada para pensar o estatuto polifônico, polisêmico, multiplicado, multi-situado, fractal e transformacional das imagens e materialidades ameríndias em suas redes relacionais humanas e não-humanas em mundos de constante movimento e engano. No entanto, o autor consegue produzir “a sua presença no ritual” de modo a tentar traduzir todas as cadeias simbólicas e sinapses indígenas em suas elaborações “filosóficas” ultrarracionais, deixando pouca margem para os acasos, irracionais, imprevistos e gambiarras comuns a quaisquer experiências da vida humana.

À guisa de conclusão, vale destacar que o trabalho é fruto de uma sólida investigação e convívio intensivo com indígenas Parakanã e Kuikuro ao longo de sua formação como antropólogo profissional que maneja e traduz as línguas dos seus interlocutores (mas também amigos) e cujos dados são fruto de uma complexa rede de relações, conversações e intertraduções com apoio de lingüistas. A tradução antropológica aparece também como tema de indagação no trecho final do livro, matéria máter do ofício antropológico. Recorrendo a um jogo de espelhamentos e diferenças, Carlos Fausto experimenta a busca da presença que torna viva a possibilidade de os ameríndios manterem e atualizarem a vida como transformação e partilha do sensível.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • INGOLD, Tim. 1992. Editorial.Man, vol. 27, n. 4: 693-696.
  • LÉVI-STRAUSS, Claude. 2014. “Lugar da antropologia nas ciências sociais e problemas levantados por seu ensino”. In: Antropologia Estrutural. São Paulo: Cosac Naify, pp. 489-540.
  • STRATHERN, Marilyn. 2014. “Fora de contexto: as ficções persuasivas da antropologia”. In: O Efeito etnográfico e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify , pp. 159-209.
  • THOMPSON, Robert Farris. 1984. Flash of the Spirit: African and Afro-American Art and Philosophy. Nova York: Vintage books.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022
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