Acessibilidade / Reportar erro

Canção Purús: nacionalização e tribalização no sudoeste da Amazônia

Resumos

Tomando como ponto de partida a fala de um informante piaroa de Joanna Overing, o artigo analisa duas descrições de uma refeição no rio Purús no começo do século XX: uma canção piro e um ensaio breve de Euclides da Cunha. Contrastando as duas peças, referindo-as ao contexto do encontro dos ancestrais dos Piro com o celebrado escritor brasileiro, proponho os conceitos de "nacionalização" e "tribalização" como modos de ação simbólica. Nacionalização toma os eventos locais e os esquenta no tempo-espaço do Estado-Nação, enquanto tribalização desativa os perigos potenciais dos eventos locais. O primeiro lembra, o segundo esquece. Nesses dois modos de ação simbólica estão dois modos de filosofia política, como notou o informante piaroa de Overing.

Overing; Amazônia indígena; música; historicidade; nacionalismo


Starting from a statement about knowledge and power by a Piaroa informant of Joanna Overing, the article analyses two descriptions of a meal on the Purús River in early twentieth century: a Piro song and a short essay by Euclides da Cunha. Contrasting these two pieces in the context of how the ancestors of the Piro people of today came to meet the famous Brazilian writer, I propose the concepts of "nationalization" and "tribalization" as modes of symbolic action. Nationalization takes local events and escalates them into space-time of the nation state, while tribalization deactivates the dangerous ramifications of local events. The former remembers, the latter forgets. In these two modes of symbolic action are two modes of political philosophy, noted by Overing's Piaroa informant.

Overing; indigenous Amazonia; song; historicity; nacionalism


POLÍTICA DO CONHECIMENTO

"Canção Purús": nacionalização e tribalização no sudoeste da Amazônia1 1 Minha pesquisa de campo no Baixo Urubamba entre 1980 e 2000 foi financiada pelo Social Science Research Council, pelo British Museum, pela Nuffield Foundation, pela British Academy e pela London School of Economics. Minha dívida intelectual mais óbvia é à própria Joanna Overing, assim como devo por comentários de Fernando Santos-Granero, George Mentore, Steven Hugh-Jones e Minna Opas a versões anteriores deste artigo. Agradeço a Conrad Feather, Jadran Mimica, Ute Eickelkamp, Tânia Lima e Márcio Goldman por compartilharem suas idéias e, especialmente, a Cecilia McCallum por me apresentar ao Purús e ao Brasil.

Peter Gow

Departamento de Antropologia Social - Universidade de St. Andrews

RESUMO

Tomando como ponto de partida a fala de um informante piaroa de Joanna Overing, o artigo analisa duas descrições de uma refeição no rio Purús no começo do século XX: uma canção piro e um ensaio breve de Euclides da Cunha. Contrastando as duas peças, referindo-as ao contexto do encontro dos ancestrais dos Piro com o celebrado escritor brasileiro, proponho os conceitos de "nacionalização" e "tribalização" como modos de ação simbólica. Nacionalização toma os eventos locais e os esquenta no tempo-espaço do Estado-Nação, enquanto tribalização desativa os perigos potenciais dos eventos locais. O primeiro lembra, o segundo esquece. Nesses dois modos de ação simbólica estão dois modos de filosofia política, como notou o informante piaroa de Overing.

Palavras-chave: Overing, Amazônia indígena, música, historicidade, nacionalismo.

ABSTRACT

Starting from a statement about knowledge and power by a Piaroa informant of Joanna Overing, the article analyses two descriptions of a meal on the Purús River in early twentieth century: a Piro song and a short essay by Euclides da Cunha. Contrasting these two pieces in the context of how the ancestors of the Piro people of today came to meet the famous Brazilian writer, I propose the concepts of "nationalization" and "tribalization" as modes of symbolic action. Nationalization takes local events and escalates them into space-time of the nation state, while tribalization deactivates the dangerous ramifications of local events. The former remembers, the latter forgets. In these two modes of symbolic action are two modes of political philosophy, noted by Overing's Piaroa informant.

Key-words: Overing, indigenous Amazonia, song, historicity, nacionalism.

Antes de minha partida para a pesquisa de campo entre os Piro e Ashaninka do Baixo Urubamba, uma alma sábia me deu um conselho preciso sobre como fazer etnografia: leve consigo uma etnografia que você admira e apenas tente imitá-la. Levei The Piaroa, de Joanna Overing Kaplan, um livro que havia lido e admirado antes mesmo de ela se tornar minha orientadora da pesquisa de doutorado. Levei ainda um segundo exemplar, temeroso de que o meu precioso primeiro exemplar não sobrevivesse ao processo de pesquisa de campo. Aconteceu que o livro jamais chegou ao Rio Urubamba, já que o dei a um simpático antropólogo peruano. Eu o dei porque esse era o único objeto que eu possuía que tinha valor suficiente para expressar minha profunda gratidão a ele. Isso fez com que eu chegasse a campo com a Crítica da razão prática de Jean-Paul Sartre, o Esboço de uma teoria da prática de Pierre Bourdieu, o Espelho da produção de Jean Baudrillard, e apenas minhas vivas lembranças de Os Piaroa. Fiz minha etnografia com os Piro e os Ashaninka tendo esse livro como meu guia espiritual, mesmo não podendo mais tê-lo como meu manual cotidiano de instruções.

Uma imagem desse livro sempre permaneceu comigo, e, como é característico à obra de Overing, essa imagem é piaroa. Ela cita um informante falando dos poderes do ruwang, os xamãs piaroa:

"Um pensador muito poderoso pode ver o mundo como um único lugar. Mas isso é ruim para ele, e ter tal poder só leva a problemas porque ele

vê demais

. Ele pode ver que um

chisapo

(cunhado) no próximo

Itso'de

(grupo local) está bravo. E quando ele o vê ele pensa que esse

chisapo

está bravo com ele, embora seja provável que assim não seja. Ele muito provavelmente vai retaliar, mas sem razão nenhuma. O grande

Ruwang

deve desenvolver uma habilidade controlada de ter visões de outros lugares e do futuro, e uma habilidade controlada de transformar a si mesmo por meio de seus pensamentos. Deve ser como uma pequena casa dentro de seus pensamentos, pequena e apertada. Mas muito freqüentemente as pessoas querem poderes mais fortes que esses." (Overing, 1975, p. 63, grifo no original)

Esse depoimento é assombroso em sua abordagem caracteristicamente amazônica do conhecimento. Ao contrário da língua inglesa, que diz que ter pouco conhecimento é uma coisa perigosa, o orador piaroa sugere o oposto: que ter conhecimento demais é perigoso. Está aí o desafio posto à antropologia acadêmica pelos mundos pensados pelos povos amazônicos. Levados por razões profissionais a gerar mais e mais conhecimentos sobre essas pessoas, nós agimos diretamente contra sua própria política de conhecimento. Quando meus informantes respondem às minhas perguntas, como é tão freqüente, com um "Isso eu não sei!", minha frustração pela improdutividade de minha linha de interrogação é acompanhada de uma frustração que também é política - por que eu não posso dar a mesma resposta à maior parte das questões que me são propostas por colegas e estudantes? Por que sempre temos de saber tudo?

Aqui, quero explorar uma política de conhecimento indígena amazônica partindo daquela que pareceria uma de suas facetas menos promissoras, a sistemática destruição de memórias de uma série de eventos passados que afetaram os Piro que viveram no Rio Purús na primeira década do século XX. Nesse caso, o embotamento dos eventos passados está tão avançado que, partindo de evidências etnográficas coletadas desde 1980, seria difícil suspeitá-los. No entanto, arquivos documentais os registram em detalhes consideráveis, já que esses eventos tiveram grande importância para os Estados-Nação do Peru e do Brasil, e muito foi feito para comemorar certos aspectos deles. O que os povos piro efetivamente apagaram, as instituições dos dois Estados-Nação colecionaram e preservaram. São essas contrastantes políticas de conhecimento, que eu aqui denomino "tribalizações" e "nacionalizações", que este artigo explora. O contraste principal é lindamente encapsulado no comentário daquele Piaroa: "deve ser como uma pequena casa dentro de seus pensamentos, pequena e apertada. Mas muito freqüentemente as pessoas querem poderes mais fortes que esses".

O Rio Purús

O período mais produtivo de minha primeira pesquisa de campo foi aquele em que fui hóspede na casa de Yeye Clotilde Gordón e dom Mauricio Fasabi, quando pude ouvi-los conversando cotidianamente, entre si e comigo. Eu simplesmente estava lá, um jovem que respondia a sua impressionante boa vontade em me inserir em suas vidas com insistentes perguntas. Eles me contaram que o pai de Clotilde, Maximiliano Gordón, junto com a maioria dos Piro do Urubamba, morou no Rio Purús, distante a leste. Clotilde me contou que seu pai foi para lá com seu patrão Shargi. Os arquivos históricos registram o nome desse homem como Carlos Scharff e que muitos Piro se mudaram do Urubamba para o Purús como servos por contrato de patrões seringueiros como ele, que buscavam explorar as ricas reservas daquele rio do caucho (Castilla elástica) com que se produz borracha. Esses Piro retornaram do Purús logo após a desvalorização da borracha em 1912. No entanto, em 1980, nenhum dos meus informantes era velho o suficiente para lembrar ter vivido lá, embora tenham me contado que seus parentes falecidos e mais velhos viveram e trabalharam lá. Porque estava fora da memória dos vivos, os Piro tinham pouco a dizer sobre isso.

Em vários sentidos, o mundo vivido dos Piro corresponde muito aproximadamente ao conceito de Lévi-Strauss (1966) de sociedade fria, já que os Piro evacuaram de modo eficaz, de seus relatos sobre o passado recente, a memória anterior aos vivos, o passado que está além da memória vivida, por sua redução a uma seqüência relativamente estereotipada que discuti em detalhe em outro trabalho. Diferentemente de nós, os Piro não memorizam o passado, e, seguindo Lévi-Strauss e Overing, tendo a pensar que esse é um aspecto positivo do mundo vivido piro. Os Piro não são sobrecarregados pela necessidade de criar museus ou arquivos e demonstram uma disponibilidade de deixar o que é passado no passado, com o que simpatizo. Questões sobre o passado, que por minha experiência em meu próprio mundo vivido rapidamente levam a problemas, são tratadas como questões ou da memória vivida ou de cosmogonia. Os Piro, pode-se dizer, não são "fazedores de história". As tentativas de fazer que o sejam são respondidas de modo evasivo. Questões relativas a quem fez o que para quem e quando, a essência de nossa história, me parecem ser ofensivas para eles. De fato, a concepção de conflito dos Piro está ligada a uma questão de história, às origens. Em sua reação a uma disputa de crianças, seu interesse não se volta à justiça no nosso sentido, quem está certo e quem está errado, mas a "quem começou?". Uma vez que cada criança sofreu uma quantidade eqüitativa de reprimendas, a briga é finda e esquecida.

Poroso shikale, a "Canção Purús"

Há um relato piro de seu tempo no rio Purús. É uma canção sobre a vida no Purús, Poroso shikale, "Canção Purús". Essa canção me foi cantada por uma mulher piro, chamada Teresa, em Sepahua em 1988, e foi gravada e traduzida pelo meu falecido compadre Pablo Rodriguez Manchinari. Sua letra é a seguinte:

Gike nikekowakni, poroso, poroso,

Gike nikekowakni, poroso, poroso.

Gachawripjixipje nika koraka,

Korakale, koraka,

Korakale, koraka,

Porotojipje nika koraka,

Korakale, koraka,

Korakale, koraka,

Gike nikekowakni, poroso, poroso,

Wane rawanatana porosole, poroso.

Pablo Rodriguez traduziu essa canção para o espanhol para mim, e eu a apresento aqui:

Eles não comem bem lá, no Rio Purús, o Rio Purús,

Eles não comem bem lá, no Rio Purús, o Rio Purús,

Ele come apenas pés de galinha, o patrão,

O pobre patrãozinho, o patrão,

O pobre patrãozinho, o patrão.

Ele come apenas feijão, o patrão, o pobre patrãozinho,

O pobre patrãozinho, o patrão,

O pobre patrãozinho, o patrão.

Eles não comem bem lá, no Rio Purús, o Rio Purús,

Quando eles viviam no pobre riozinho Purús, o Rio Purús.

Embora cantada por uma mulher, a "Canção Purús" pertence a um gênero deveras enigmático, chamado em Piro jeji shikale, "canções dos homens". Digo enigmático porque eu nunca ouvi um homem piro cantar uma canção desse tipo, afora um jovem no filme de Les Blank, The Burden of Dreams, sobre a realização do filme de Herzog Fitzcarraldo (cf. Blank & Bogan, 1984, p. 41-2). As "canções dos homens" parecem ter desaparecido como uma atividade dos homens piro, e meu conhecimento desse gênero vem das mulheres que as cantaram para mim e me contaram sobre essas canções.

Overing recentemente descreveu nossa tarefa como uma combinação do melhor da antropologia cultural americana com o melhor da antropologia social britânica. Os antropólogos culturais, ela me disse, são ótimos analisando o que as pessoas dizem, mas devemos também olhar para as relações entre quem está falando e quem está ouvindo, que é o que o antropólogo social faz bem. A "Canção Purús", como seu gênero, é um enigma histórico e apresenta um sério desafio a esse projeto. Não tenho idéia de quem compõs essa canção nem por que o fez, e é pouco provável que jamais o saberemos. Ademais, porque as "canções dos homens" não são mais performatizadas pelos homens, as dinâmicas desse gênero são difíceis de analisar: quem está cantando a canção, sobre quem e para quem? Sendo assim, esse é quase um caso clássico dos problemas metodológicos postos à antropologia histórica. Como uma perspectiva piro sobre uma fase importante das experiências históricas recentes do povo piro, ela é tão preciosa quanto enigmática. Faltando-lhe toda a precisão de relatos escritos de testemunho ocular, vinda de um gênero que está definitivamente morto, ela no entanto nos apresenta um tipo de testemunho ocular de eventos remotos.

O que podemos fazer dessa canção como um documento histórico? Em primeiro lugar, ela parece de fato documentar uma história no sentido piro. Enquanto suxo shikale, "canções das mulheres", cita seres míticos, e enquanto kangochi shikale, "canções dos xamãs", cita diversos seres sobrenaturais; dois dos três exemplos que tenho de "canções dos homens" referem-se a experiências que são vistas pelos Piro como características de sua história recente: relações com patrões brancos. E mais: todo discurso cantado piro é marcado pelo deslizamento da posição do sujeito: o cantor nunca é o orador/cantor original das palavras (Gow, 2001; cf. também Viveiros de Castro, 1986 e Seeger, 1987). Provavelmente a "Canção Purús" não é, portanto, um relato de testemunho ocular, e é muito mais provável que seja uma citação cantada de um relato de testemunho ocular de outro homem.

No mínimo, a canção chama a atenção para dois conjuntos de pessoas que comiam mal, já que o sofrimento do coletivo "eles" é justaposto ao sofrimento específico do "pobre patrãozinho", que tem apenas pés de galinha e feijões para comer. "Pobre patrãozinho" é um sentimento muito irônico, já que as relações patrão-trabalhador são, para os Piro, caracterizadas por uma cruel falta de compaixão: se o "pobre patrãozinho" está comendo tão mal, seus trabalhadores devem estar comendo pior. Isso é o que me faz suspeitar que o cantor está citando outro homem, o qual expressou uma empatia absurda tanto pelo "pobre patrãozinho" quanto pelo "pobre riozinho Purús", em vez de pelos Piro que devem ter sofrido muito mais. Pessoas piro são o objeto apropriado e significativo da compaixão de um homem piro (Gow, 1991), enquanto patrões e rios não o são. O absurdo do sentimento expresso na canção sugere que o falante original estava bêbado e, dada a natureza das relações homens-homens, era quase certamente um rival sexual do compositor.

Ademais, pés de galinha e feijões não são nikchi potu, "comida verdadeira", no que diz respeito aos Piro, mas kajitu nika, "comida dos brancos", comida que os Piro não gostam de comer (ibid.). A canção expressa, portanto, de modo enfático, o sofrimento dos Piro, forçados a comer "comida de brancos" e em pequenas quantidades, e assim enfatiza o absurdo da empatia deslocada do orador original pelo patrão.

O "aqui" da canção claramente não é o Purús, mas o Urubamba. A canção também liga esse sofrimento a estar "longe" (wajra, gi gowuko, em Piro). Teresa cantou essa canção no contexto de uma viagem que era sobre canções: enquanto eu tinha dado início a essa viagem Rio Urubamba acima na tentativa de estudar a arte visual piro, Pablo decidiu que o que estávamos fazendo era gravar "canções das mulheres". A arte visual piro é um domínio distintivamente feminino, e o conhecimento sobre ela não é compartilhado com os homens, ou ao menos não facilmente. As "canções das mulheres", de modo diverso, são ativamente dirigidas aos homens, e são assim uma porta de entrada legítima para os homens ao que é sabido pelas mulheres piro. Parece provável que Teresa se motivou a cantar essa canção exatamente porque Pablo, seu jovem parente, estava wajra, "longe" de casa. Dois dias depois de gravar essa canção, ele comentou espontaneamente: "Hoje, me sinto longe da casa. Ontem, em Sepahua, eu não sentia que estava longe porque eu estava com parentes próximos. Mas agora eu me sinto distante". Pablo disse isso a mim, que era claramente um homem muito "longe" de casa.

Ademais, Poroso, a palavra designando o Rio Purús na canção, não é um topônimo piro. Os Piro chamavam esse rio, que eles conhecem bem, Kokga, "Rio Coca", uma forma que entrou no português como Cujar, o termo corrente para as cabeceiras do Purús. "Purús" é um topônimo em português, e Poroso shikale sugere que o compositor dessa canção estava se referindo especificamente ao rio tal como conhecido pelos brasileiros.

Outra refeição no Purús

A questão então se torna: como eram as refeições no Purús nesse período? Muito afortunadamente, temos um relato de testemunho ocular no arquivo documental, e ele vem da caneta de Euclides da Cunha, um dos grandes escritores modernistas do Brasil, autor do seminal Os sertões, obra que é essencialmente uma genealogia do Brasil como uma nação moderna. Ela conta a história do derrotado movimento revolucionário da Bahia liderado por Antônio Conselheiro contra o estabelecimento no Brasil de um Estado-Nação republicano. Da Cunha escreveu também um pequeno ensaio chamado "Sucedeu em Curanjá", e que é muito mais intimamente ligado ao meu tema aqui. Da Cunha encontrava-se nessa região como líder da Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purús, cujo líder peruano era o capitão de corveta don Pedro Buenaño. O texto conta:

Foi o que sucedeu em Curanjá a 3 de julho.

Ofereceram-me um banquete (ao chefe peruano e a mim), as principais pessoas do lugar. Aceitei-o com prazer: estava ainda na ilusão de uma simpatia que desapareceria em breve. Dirigi-me ao local (uma casa comercial de C. Scharf, entregue à direção do seu guarda-livros, o alemão Alf. Shultz) e fui - logo surpreendido com a profusão de bandeiras peruanas em pleno contraste com a ausência da nossa - sendo, entretanto, facílimo aos promotores da festa o adquirirem-na no próprio acampamento.

Notando este fato, pensei em retirar-me e aguardava a primeira oportunidade para o fazer, sem alarde ou escândalo, quando observei, entre as ramagens que decoravam as paredes de paxiúba da sala do festim, algumas folhas de palmeira cujas faces internas de um amarelo muito intenso contrastavam com o resto da folhagem. Era uma solução a atitude contrafeita que me impusera..., o espetaculoso patriotismo daquela gente. Realmente, pouco depois de sentados à mesa, tomei de golpe a palavra, sem aguardar o momento oportuno para os brindes, e numa rápida saudação agradeci o convite que se me fizera - e isto por dois motivos essenciais:

Primeiro - como americano - sentindo-me feliz com todas as manifestações de cordialidade entre homens oriundos de raças quase irmãs, talvez destinados a íntimas alianças no futuro para reagirem ao imperialismo crescente das grandes nacionalidades; em segundo lugar - como brasileiro - profundamente comovido diante da "inteligente gentileza" e requintada galanteria com que se tinha posto naquela sala a bandeira de nossa terra. (O espanto dos convivas foi absoluto!) Esclareci-o então dizendo-lhes que uma extraordinária nobreza de sentir fizera que eles ao invés de irem procurar no seio mercenário de uma fábrica a bandeira de meu país tinham-na buscado no seio majestoso das matas, tomando-a exatamente da árvore que entre todas simboliza as idéias superiores da retidão e da altura. E terminei: "Porque, Srs. peruanos, a minha terra é retilínea e alta como as palmeiras..."

Não poderei dizer... o efeito destas palavras, nem o constrangimento com que o chefe peruano e outros cumprimentaram-me declarando "que eu havia compreendido muito bem o pensamento deles..." (1995, p. 583)

Esse evento ocorreu em 1905. Evidentemente, central nessa obra é a disputa, naquele momento, de onde estava Curanjá, se no Brasil ou no Peru.

O texto de Da Cunha é um relato não oficial de sua viagem, e eu o li em sua Obra completa. Seu relato desse jantar não é portanto simplesmente um relato, mas o relato de um escritor, já que ele tomou de detalhes da sua experiência contingente e do cenário e os imbuiu de sentido. O que impressiona nesse breve ensaio é o modo como Da Cunha é capaz de tratar de tantas e tão graves questões do seu tempo e lugar em tão poucas palavras: raça, terra, país, nação, nacionalismo, pan-americanismo, imperialismo, antiimperialismo e tantas mais. Todas essas grandes idéias acontecem em Curanjá, um lugar aparentemente de pequena importância e do qual a maioria das pessoas nunca ouviu falar. O texto de Da Cunha é uma condensação poética de idéias muito abrangentes e complexas num relato de um evento um tanto trivial num lugar de pouco significado aparente. Dirigido a um público leitor do Rio de Janeiro, é um exemplo da sensibilidade de Da Cunha e fala de um evento num lugar distante - sobre o qual sua audiência não se interessa de fato e certamente jamais o visitará -, e o rearticula em termos que seus leitores podem potencialmente sentir como exemplares: "tivesse você estado lá", essas palavras clamam o leitor, "espero que tivesse reagido do mesmo modo".

Pode-se argumentar que "Sucedeu em Curanjá" nada tem a ver com "Canção Purús", a não ser a coincidência de lugar e tempo. Eles vêm de contextos culturais diferentes, não dialogam entre si, e minha justaposição dos dois aqui está aberta a críticas válidas de "colagem" pós-moderna: a conexão está em mim, é um artifício de minha vida e de meus interesses, e não uma conexão real, que está no mundo. Isso pode ser verdade, mas a unidade de tempo e espaço fala, penso, de conexões e desconexões reais e significativas, e de conseqüências persistentes em diferentes mundos vividos. Diferentes mundos vividos é uma definição operacional do que chamamos "culturas" (Gow, 2001), e, enquanto os antropólogos têm muito a dizer sobre mudança social e contatos e conexões culturais, eles têm menos a dizer sobre suas conseqüências, desconexões e o apagamento intencional de certas relações sociais na vida social corrente.

Quando analisamos de perto, vemos que "Canção Purús" e "Sucedeu em Curanjá" têm muito em comum. Ambos referem-se a eventos espaço-temporalmente distantes, trazidos ao aqui-agora imbuídos de sentido. Em ambos, o Rio Purús é tido por distal e distante, do ponto de vista do falante/ouvinte, mas ambos os eventos são vistos como tendo relevância direta ao presente e ao futuro. Assim, também, ambos tratam do sentido da comida e da generosidade com comida: num, a comida é insuficientemente abundante e do tipo errado; no outro, a comida abundante e apropriada, e a generosidade em ofertá-la é associada com a falta de generosidade em outro nível - várias bandeiras peruanas e muito poucas bandeiras brasileiras.

As duas peças diferem de um modo importante, porém. A "Canção Purús" não faz nenhuma referência óbvia ao nacionalismo, enquanto "Sucedeu em Curanjá" é quase um hino alucinante a um tipo de nacionalismo que atualmente nos parece perturbador. Hoje reconhecemos a nação como um artifício construído pelos homens, e hesitamos perante a sugestão de que a vegetação local poderia, de um modo qualquer, determinar se um lugar está no território de uma nação e não da outra. O nacionalismo perturbador do texto de Da Cunha é obviamente uma conseqüência do fato de que ele estava em Curanjá como membro de uma comissão para descobrir onde lugares como esse estão, se no Brasil ou no Peru.

Em guerra

Da Cunha foi mandado ao Purús como o líder da parte brasileira da Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purús. Ela foi encaminhada em acordo mútuo pelos governos brasileiro e peruano, e fazia parte de tentativas muito antigas de finalmente estabelecer as fronteiras entre o Peru e o Brasil, que haviam efetivamente recuado das linhas do Tratado de Tordesilhas de 1494. No entanto, a causa imediata era a disputa entre os patrões da borracha e os trabalhadores peruanos e brasileiros em 1903 e 1904.

Fuentes, então prefeito do Departamento de Loreto, cita o testemunho ocular dessa disputa pelo patrão da borracha Virgilio Salazar (1906, p. 165-9). Salazar define a questão como a tentativa das autoridades brasileiras de impor impostos a patrões peruanos por explorarem borracha do território brasileiro, mesmo que os peruanos estivessem trabalhando acima da foz do Chandless, que foi provisória e mutuamente acordada como a linha divisória entre os dois territórios nacionais. No dia 25 de setembro, o capitão de polícia de Chandless, dom Jorge Barreto, seu tenente don César Cosío e nove soldados foram cercados por 200 soldados brasileiros e seringueiros armados, sob o comando do coronel Ferreira Araújo e de seu compatriota José Cardoso da Rosa. Após dois dias de cerco, os invasores mandaram a mensagem de que os peruanos deveriam se render e descer a bandeira peruana. Quatro patrões da borracha peruanos convenceram Barretos a se render, e ele desceu para Manaus. O tenente Cosío recebeu ordens de subir o Chandless com quatro soldados, que foram então todos mortos pelo capitão Emiliano "Marca-Fogo", sob ordens de Cardoso da Rosa. As tropas brasileiras subiram então o Chandless e capturaram Eliseo Vasquez, Virgilio Salazar e Carlos Scharff no seu acampamento Unión. Esse acampamento foi completamente saqueado, e Scharff foi mandado sob guarda armada a Manaus. Os brasileiros então tomaram posição em Fortaleza, acima do Chandless.

Scharff foi libertado em Manaus e rumou então a Iquitos para pedir ajuda ao coronel Portillo, prefeito de Loreto. Coronel Portillo mandou Lopez Saavedra, como novo capitão de polícia, com os tenentes Valdivia e Giorzo e 30 homens da Guarnição de Loreto, que foram reforçados por 200 patrões e seus trabalhadores. Eles se estabeleceram em Curanjá, e o engenheiro Von Hassel foi mandado a Chandless para dizer ao coronel Araújo e a Cardoso da Rosa para se retirarem imediatamente. Von Hassel foi feito prisioneiro. Uma equipe de resgate foi enviada, que consistia em Frederico Lafuente, Florêncio Ruiz, Carlos Zeballos e seis bogas (remeiros). Eles também foram feito prisioneiros. Enquanto isso, havia uma disputa em Curanjá, porque os patrões e trabalhadores insistiam em ser liderados por Scharff na luta, e não pelo capitão de polícia Lopes Saavedra. Este último recusou o arranjo, e a maioria dos homens dispersou, ficando apenas 67 homens sob o comando de Lopez Saavedra. Este desceu com seus homens o Santa Rosa, a meio caminho entre Curanjá e o Chandless, e posicionou 30 na margem direita e 37 na esquerda.

No dia 30 de março de 1904, 270 brasileiros apareceram nos navios a vapor "Acreana" e "Mercedes", roubados respectivamente de Julio Arana e Carlos Scharff, e tomaram a margem direita, aprisionando os soldados. A margem esquerda foi então atacada, mas eles resistiram tão ferozmente que 58 brasileiros morreram e o resto bateu em retirada. As forças peruanas então se retiraram, e no dia seguinte os brasileiros atacaram o campo abandonado, quando:

Para se vingarem dessa derrota e vergonha, os brasileiros vitimaram Lafuente, Ruiz, Zeballos e os seis remeiros que eles mantinham cativos desde que chegaram às cabeceiras do Chandless para as negociações. Esses cidadãos determinados e valorosos foram crucificados em uma cruz de madeira e depois banhados em querosene, seus corpos foram colocados sobre 2000 pedaços de lenha que foram postos em chamas em sua furiosa covardia. (1906, p. 169)

Fuentes escreve:

O túmulo dessas vítimas desafortunadas foi mais tarde honrado pelo capitão de corveta Don Pedro Buenaño, líder da comissão científica do Purús. (ibid.)

Buenaño era o outro hóspede, com Da Cunha, do jantar oferecido por Scharff e descrito em "Sucedeu em Curanjá", e esses antecedentes ajudam a explicar o apelo nacionalista daquele evento.

Nacionalizações

O relato de Salazar sugere, diante disso, um conflito simples entre cidadãos de dois Estados-Nação. Da Cunha também apresenta um relato basicamente similar desse conflito em O Rio Purús (1995, p. 753-810), embora com a previsível mudança no floreio. Salazar argumenta que a guerra foi causada pela insistência dos brasileiros em comercializar a borracha produzida por peruanos no Alto Purús como borracha extraída em solo brasileiro e, portanto, sujeita a impostos especiais. Claramente, essa borracha estava sendo produzida no Peru por peruanos, sendo assim isenta dessa taxa, e por isso funcionários do estado como o coronel Portillo tinham de responder a apelos à integridade nacional. Da Cunha o apresenta como uma invasão do território nacional por peruanos que tinham de ser repelidos.

No entanto, a história é mais complicada, e é de fato um drama interno a um império comercial familiar. Carlos Scharff não era desconhecido de Cardoso da Rosa, já que este último era ex-capataz de Carlos Fermín Fitzcarrald, e o segundo era padrasto de Aurora Velazco, viúva de Fitzcarrald. Este faleceu em 1897 e, enquanto sua viúva e o padrasto dela mantinham controle financeiro do império de extração da borracha, o controle operacional passou para seu irmão Delfin, que abrira as ricas reservas de borracha do Alto Purús. No retorno de sua primeira viagem ao Purús, ele foi morto pelos Amahuaca ao transportar a carga para o Sepahua. O controle operacional efetivo passou então para Scharff.

Parece que Cardoso da Rosa suspeitou Scharff de fraude, dado que a borracha nativa era extraída como habilitado, aviado, já que era produzida para cancelar uma dívida anteriormente contraída. Cardoso da Rosa via essa borracha como sua, já que a coleta havia sido financiada por ele ou, ao menos, por sua enteada. Scharff, ao contrário, tratava essa borracha como sua, uma vez que estava livre para vendê-la a quem quisesse. Scharff estava nos seus direitos nesse caso, já que, embora ele provavelmente concordasse que devia alguma borracha para a viúva de Fitzcarrald, não era evidente que lhe devesse essa borracha, e não outra borracha que pudesse produzir mais tarde. Em vez de mandar a borracha de volta a Sepahua, portanto a Iquitos na Amazônia peruana, Scharff estava tentando vendê-la no Purús diretamente a Manaus, na Amazônia brasileira. Em termos de impostos devidos, portanto, aparentemente Cardoso da Rosa agia nos interesses nacionais do Peru, e Scharff nos interesses nacionais do Brasil.

O interessante nesse caso é a facilidade com que essas pessoas conseguiram mobilizar os políticos, as forças e os soldados de Estados-Nação para seus próprios fins, e a facilidade com que as disputas internas de uma única companhia foram elevadas a contendas entre interesses nacionais e cidadãos nacionais. De fato, é difícil saber até que ponto qualquer um dos participantes não oficiais desses eventos se preocupavam com sua afiliação a um ou outro Estado-Nação. José Cardoso da Rosa era do Brasil, certamente, mas casou com a viúva de um oficial do exército peruano e residia em Iquitos. Sua enteada Aurora Velasco demonstrou a força de seu compromisso com o Peru migrando para Paris com seus quatro filhos quando da morte de seu marido, Carlos Fermín Fitzcarrald. Este, um herói nacional peruano, contou um dia ao irmão de Aurora que era argentino, e já foi tido por irlandês ou americano, no sentido local pejorativo de gringo, dos Estados Unidos (Reyna, 1942). Carlos Scharff, o patrão peruano no cerne da guerra, é freqüentemente descrito nos relatos como "Alemão" e provavelmente nasceu, ou ao menos foi criado, no Brasil. Nacionalização parece ter sido um recurso para pessoas como Cardoso da Rosa e Scharff, algo que podia ser usado no jogo. Para eles, nações muito certamente não eram as "comunidades imaginadas" de Benedict Anderson, contextos nos quais se age, mas mais precisamente instrumentos a serem usados em busca dos mais diversos objetivos.

Teria sido difícil resolver essa briga no Rio Purús à maneira dos Piro. "Quem começou?", a pergunta piro levantada em toda disputa em busca de uma resolução pacífica, é aqui um ponto central em disputa. A resposta à questão "quem começou?" passa aqui rapidamente de Scharff ou Cardoso da Rosa a "os peruanos" ou "os brasileiros", em um exemplo impressionante de escalada na disputa.

Nomes

No relato de Salazar, tal como citado por Fuentes, há uma interessante economia dos nomes: quem é e quem não é nomeado. Funcionários de estado peruanos são nomeados com a especificação de seus postos militares e cargos políticos: capitão de Polícia Barreto, engenheiro Von Hassel etc. Patrões da borracha são referidos com o respeitoso don: don Carlos Scharff etc. Outros homens, presumivelmente menos importantes, são nomeados mas não recebem o "dom", enquanto outros nem são nomeados, mas simplesmente identificados pela ocupação e por número: "30 soldados" ou "seis remeiros". Salazar segue aqui a prática onomástica padrão de sua classe social: pessoas de maior status são nomeadas como agentes de controle de massas de trabalhadores anônimos que seguem suas ordens. Ele pode até mesmo ter conhecido os nomes de alguns dos "30 soldados" ou dos "seis remeiros", mas claramente não os vê como importantes o suficiente para recontá-los a Fuentes, ou este nem se preocupou em registrá-los na escrita.

Obviamente, o relato de Fuentes do relato de Salazar tornar-se-ia rapidamente muito pesado se cada participante de cada evento fosse nomeado, mas isso é, num sentido importante, o que é um "relato histórico": a produção de uma narrativa condensada de uma série de eventos altamente complexos ao trazer ao primeiro plano alguns agentes centrais e deixar nos bastidores outros. Como apontou Lévi-Strauss (1966), a história é sempre uma simplificação do passado, e o que interessa a antropólogos é o que é tornado anônimo e generalizado. O historiador Ginzburg o formula assim: "Quem construiu Tebas dos sete portões?, já se perguntava o 'trabalhador literário' de Bertold Brecht. As fontes nada nos contam dos pedreiros anônimos, mas a questão retém todo seu sentido" (1992, p. XIII). Ginzburg identifica aqui o problema central de estudos como este: toda análise histórica peca nos fatos do arquivo, porque o arquivo foi escrito por e para certas elites e reproduz concretamente seus interesses.

Tendo dito isso, se o arquivo jamais nos contará o que os "30 soldados" ou os "seis remeiros" pensavam dos eventos, podemos ainda extrair deles alguns dados interessantes para os propósitos da antropologia. Por exemplo, há uma conexão enganadoramente simples no relato de Salazar entre pessoas nomeadas e lugares nomeados. Dom Carlos Scharff é referido como peruano, ou seja, uma pessoa única e nomeada é posicionada em uma classe que deriva seu significado de uma nação única e nomeada, Peru. Compare isso com a seqüência em que Salazar, citado por Fuentes, nomeia uma série de trabalhadores: "Trabalhadores peruanos Amadeo Ruiz (sapino), Elías Flores (id.), Eleuterio Barbarán (moyobambino), Gregorio Talese (iquiteño) e Eustaquio Ramírez (tarapotino)" (1906, p. 167). Essas pessoas nomeadas e tornadas únicas que não levam o signo de respeitabilidade "dom" são ligadas a lugares de filiação que estão abaixo do nível da nação, como Saposoa, Moyobamba, Iquitos e Tarapoto. E os seis remeiros são só isso: não nomeados, não ligados a nações únicas ou mesmo a lugares.

Salazar segue aqui um esquema classificatório de raza, "raça". Os onomasticamente ligados apenas à nação são os blancos. Os onomasticamente ligados a cidades como Saposoa são mestizos, ou mozos, "trabalhadores". E aqueles que não são onomasticamente localizados são necessariamente membros da terceira categoria, indios. Esse esquema racial triádico era central às relações sociais da indústria da borracha, como já discuti em outro trabalho. Aqui, gostaria de apontar para a razão dos "seis remeiros" não serem onomasticamente localizados, que é a de que Salazar assumia que eles estavam onde deveriam estar de qualquer modo, que eles estavam em seu próprio território. Eles eram, em suma, Piro.

Este ponto é importante porque, mesmo que os patrões da borracha peruanos estivessem preocupados em definir lugares específicos tais como Curanjá como "peruanos", eles jamais tentariam reivindicar a posse do território. No limite, clamariam a posse de postos ou edificações específicas. Implicitamente, eles sempre aceitaram a prioridade territorial dos "índios". Isso em contraste marcante com o Brasil, no qual, dado o diferente modo de produção da borracha, os patrões da borracha de fato buscavam manejar os territórios indígenas como propriedade particular. Há uma importante razão para isso, para além das tecnicidades da produção da borracha. Qualquer reivindicação de um patrão da borracha peruano ao status de blanco dependia de desconexão a lugares, porque essa conexão significava ser mozo ou indio. É essa a razão para Fitzcarrald, nascido e criado em Ancash, reivindicar ora ser argentino, ora irlandês, ora americano, qualquer outra coisa que apenas de Ancash, de Ancash nomás. Esse herói peruano exemplar, conhecido pela radicalidade de seu patriotismo e pela abertura da Amazônia peruana à Nação, tinha também de ser, de modo demonstrável, não peruano.

Histórias heróicas e mundanas

Um dos mais famosos atos de Fitzcarrald, e razão de seu status heróico como um grande peruano, foi a descoberta do Istmo de Fitzcarrald, a passagem entre os rios Mishahua e Manú que liga os sistemas fluviais Ucayali e Madre de Diós, e que permitiu a exportação da borracha dessa área via Iquitos, evitando assim as maiores corredeiras do Madeira. Essa foi uma das ações dentre várias que caracterizam a história do sudoeste da Amazônia como uma série de descobertas heróicas. A descoberta do Alto Purús é mais ambígua, porque é diversamente atribuída a Delfin Fitzcarrald, o irmão de Carlos Fermín, a Leopoldo Collazos, capataz de Fitzcarrald, a Manuel Urbano, comerciante de Manacapuru na Amazônia próxima de Manaus, ou a William Chandless, inglês mandado pela Royal Geographical Society para inventariar os rios dessa parte da Amazônia. Dado que Chandless alcançou o mais alto ponto do Purús em uma expedição em 1864 ou 1865, e publicou um relato científico sobre isso no Journal of the Royal Geographical Society, a prioridade tende a ele, com os justos reconhecimentos da expedição anterior de Urbano. Entre Delfin Fitzcarrald e Leopoldo Collazos, fica a disputa da prioridade da descoberta da passagem entre o Sepahua e o Cujar, respectivamente nos vales do Urubamba e do Purús (ver Da Cunha [1995, p. 753-810] e Faura-Gaig [1964]).

Essas descobertas podem, no entanto, ser vistas de um modo completamente diferente. O que Carlos Fermín "descobriu" foi simplesmente o ponto de passagem piro entre os rios Mishahua e Manú, e o mesmo vale para a "descoberta" de Delfin Fitzcarrald ou Leopoldo Collazos para a passagem entre Sepahua e o Cujar. Essas eram rotas padrão usadas pelos Piro ao se movimentar entre sistemas fluviais, e são regularmente mencionadas na literatura anterior. Povos de língua piro dos vales do Ucayali-Urubamba, Manú, Piedras, Purús e Juruá estavam envolvidos num complexo sistema de trocas de longa distância numa vasta área do sudoeste da Amazônia e dos Andes peruanos do norte e do sul, que foi bem documentado para os meados do século XIX, mas que era certamente muito anterior. O que a "descoberta" relatada nas histórias de fato conta é o aumento da articulação direta desse sistema de trocas com a florescente indústria de extração de borracha na segunda metade do século XIX.

Consideremos a própria palavra Curanjá. Essa palavra, despida do tom artificial, vem do piro kolamaga, "Rio do Musgo Verde", e foi registrada na literatura nas formas hispanicizadas ou aportuguesadas como "Curamaha" e "Curanja/Curanha", já que os falantes piro habitualmente elidem as vogais que antecedem sufixos como —ga, "líquido, corrente, rio". De fato, o Alto Purús, como as áreas vizinhas, está atualmente cheio de lugares com topônimos piro, evidenciando que foram os Piro que introduziram os patrões da borracha em sua rede de trocas.

A origem piro da descoberta pode ganhar ênfase, já que a expansão da indústria de extração da borracha inquestionavelmente refletiu as dinâmicas transformações nesse sistema de troca. Sinal disso é a presença dos bens de metal (yowuma, em Piro) no sistema. Na primeira metade do século XIX, parece ter havido duas fontes de bens de metal nesse sistema: o sistema da missão franciscana, centrado em Sarayacu no baixo Rio Ucayali, e a feira anual em El Encuentro, no alto do Rio Urubamba. É possível que os Kuniba, povo falante do Piro do Juruá, estivessem obtendo tais bens em trocas no Amazonas, rio abaixo, mas é certo que os Manitineri, falantes do Piro, não trocavam diretamente ao longo do Purús até a chegada de Manuel Urbano, possivelmente devido à presença dos Mura rio abaixo. A troca mais dinâmica estava a oeste e, particularmente, nas rotas de troca localizadas em Sarayacu, que por sua vez estava ligado ao comércio ao longo do Amazonas entre Belém do Pará e Moyobamba no vale do Huallaga, na encosta dos Andes.

Embora saibamos bastante sobre os aspectos exteriores desse sistema de trocas pelos arquivos documentais, sabemos bem menos sobre sua dinâmica interior. Há indicações de que a troca foi crucial para a competição política entre chefes piro, que teriam usado suas velocidades relativas nas transações para aumentar sua pogirchi, "fama, influência", e sua rede de seguidores. Uma coisa, porém, é certa: os povos falantes de Piro se percebiam como cronicamente subabastecidos de bens de metal, provavelmente porque tais bens estavam constantemente sendo atraídos para áreas remotas de seus pontos de entrada no sistema.

Uma importante mudança nesse sistema de troca foi a instalação de comerciantes brasileiros na comunidade cocama de Nauta, na confluência dos rios Manañon e Ucayali, por volta de 1830. Os Piro do Urubamba rapidamente perceberam essa oportunidade de troca e, em 1854, contaram ao viajante francês Paul Marcoy que Nauta era no Brasil (Marcoy, 1875, vol. I, p. 508). Diferentemente dos padres franciscanos, os viajantes brasileiros estavam interessados apenas no lucro, e eram por isso muito mais interessados em aumentar a circulação dos bens de troca. O capitão naval e espião americano Herndon (1991, p. 250) relata que don Bernardino Cauper, comerciante português de Nauta, estava já representando sua troca como aviamento ou habilitación, e não como um comércio independente, mas este é provavelmente o modo como os Piro o viam.

Quando a indústria de extração da borracha se expandiu, os patrões da borracha se mudaram Rio Ucayali acima, em direção ao Urubamba, território natal dos Piro. Lá eles estabeleceram alianças específicas com os chefes piro, cujos seguidores tornaram-se sua força de trabalho. Não há razão para acreditar que os povos piro viveram esse processo como qualquer outra coisa que não altamente desejável, e viajantes daquele tempo registram sua riqueza em produtos de comércio e sua disponibilidade em viajar para áreas de caucho distantes, o que eles presumivelmente percebiam como uma continuação de expedições de troca mais antigas, com a vantagem de que agora os bens trocados chegavam de barco a vapor.

O relato de Chandless

O geógrafo inglês William Chandless, que pode ou não ter sido o primeiro não índio a subir o Purús, em 1864-1865, descreve um aspecto desse complexo sistema de troca dos povos de língua piro e sua articulação com a florescente indústria de extração de borracha. Na boca do Rio Araçá (renomeado Chandless em sua homenagem e locação da querela discutida acima), a expedição encontrou Manitineri. Chandless escreveu:

Mesmo se conhecendo a existência desses índios, e se sabendo de sua relativa civilização, não se pode evitar ficar impressionado, depois de viajar por tantas semanas entre selvagens nus e suspeitos, com esses índios ainda mais embrenhados no interior e desligados de seu canal de comunicação natural com o mundo exterior; e que, no entanto, usam roupas e plantam algodão e fiam e tecem, tanto para seu uso como para comércio, e que não demonstram sombra alguma de medo mas grande alegria quando vêem estrangeiros - infelizmente, deve-se acrescentar, que se aproximam do estrangeiro com ofertas de crianças para vender, e com outras ofertas como as que viajantes relatam serem feitas por polinésios. (1866, p. 101)

Chandless explica:

É provável que os Manetenerys [Manitineri] tenham por muito tempo comercializado no Juruá, e talvez diretamente com os brancos, aos quais, no entanto, sejam conhecidos por um nome diferente; e a parte superior da tribo se comunica, ou se comunicou, com o Ucayali. Eles sempre usam o termo em português "patrício" para se referir a alguém; conhecem, porém, as palavras hispânicas "muchacho" e "muchacha", e chamam à faca "cuchero" (cuchillo). Da "língua geral" ouvi apenas uma palavra, "pina" (anzol), e apenas uma vez. Embora sequiosos por todo artigo de ferro, estão bem providos deles, e conhecem perfeitamente a diferença de valor de um machado português e americano; sabem também o valor de sua própria roupa de algodão, e, via de regra, não a venderão senão por ferro - um machado, ou facão, ou um par de tesouras, de acordo com o tamanho da peça: muito raramente por um espelho. (Ibid.)

Os Manitineri estavam também, muito claramente, comercializando rio abaixo ao longo do Purús, já que eles falavam ao menos uma palavra da língua geral, assim como algo de português. Manuel Urbano, comerciante do Manacapuru no rio Amazonas, que era o guia de Chandless e o precedeu como explorador do Purús, obteve uma jovem Manitineri, que lhe ensinou algo de sua língua, e já trocava com esse povo.

Rio acima, Chandless encontrou os Canamary, que lhe disseram pertencer de fato ao Rio Curumaha (Curanjá), e certamente residiam lá. Chandless viajou Purús acima desde a boca do Curanjá e encontrou outra aldeia de índios:

[...] diferente daqueles que vimos até agora, embora semelhantes em roupas, etc. Eles se denominam Catianás; mas isso parece ser simplesmente uma corruptela de "Castillano". Com certeza não são Canamarys, e evidentemente não consideram um elogio ser assim considerados; nem parecem ser Manetenerys, mesmo que similarmente mal-humorados e impertinentes, e dados ao furto... O chefe Canamary nos contou que eles não são nativos do Purús, e que vieram de um rio a leste. (Id., p. 107)

Essas pessoas eram manifestadamente Piro do Urubamba.

Claramente, Chandless descreve aqui um conjunto de povos indígenas com relações complexas entre si e com outros índios e não índios mais distantes. Esses povos são ordenados por diferenciações e relações e são parte da complexa rede de trocas discutida acima. É interessante notar que essas pessoas reagiram a Chandless dando pistas sobre Estados-Nação: os Manitineri o saudaram em português como "compatriota", enquanto os povos do Urubamba estabeleceram que eram castellanos (castelhanos). Ao menos foi assim que Chandless o percebera. Suspeito que de fato os Manitineri estavam felizes de ter agora acesso direto a falantes do português rio abaixo, enquanto os povos do Urubamba estavam frustrados porque seu monopólio da área do Purús, que se originara com falantes do espanhol, tinha sido quebrado. Estados-Nação já são, digamos, operativos no Purús muito antes de qualquer agente de um Estado-Nação chegar lá.

Mas há mais. Pode-se argumentar que, ao usar as línguas portuguesa ou espanhola como símbolos de suas diferenças previamente existentes entre si, os povos piro e manitineri já estavam "nacionalizando" o Purús, pelo simples fato de se orientar a dois diferentes conjuntos de parceiros de troca. Eles não o fazem pelos Estados-Nação do Peru ou do Brasil, e certamente não o fazem como cidadãos peruanos ou brasileiros, mas em virtude de suas preexistentes diferenciações entre si. O que quero sugerir aqui é que os fenômenos que tendemos a interpretar como modernos, produtos de "sociedades quentes" como os Estados-Nação modernos do Peru e do Brasil, são na realidade algo muito diferente, já que são fenômenos tribais, produtos de "sociedades frias" como os povos piro e manitineri. Uma seqüência de eventos iniciada por povos indígenas amazônicos se expande para fora e se vê transformada por efeitos ligados a Estados-Nação, que são então vistos como suas causas. Foi isso o que quis dizer por nacionalização - o contínuo eclipsar de ações e sua representação como efeitos de relações sociais nacionais.

Há dois pontos aqui. Primeiro, que a nacionalização do passado é virtualmente o produto inevitável de como viemos a conhecê-lo por meio dos arquivos. Da Cunha podia talvez imaginar um futuro pan-americano ou antiimperialista, mas apenas podia fazê-lo pela brasileirização das palmeiras que cresciam em Curanjá, que mais tarde passarram a fazer parte do Peru. O passado do sudoeste da Amazônia nos chega quase exclusivamente por um arquivo que é construído em termos explicitamente nacionalistas. É uma dificuldade infernal pensar além desses enquadramentos do passado e perceber a simples questão de que, em 1865, Curanjá estava, muito literalmente, em lugar nenhum, enquanto não tinha sido ainda produzido qualquer documento que pudesse nos dizer retrospectivamente onde estava. Em segundo lugar, não temos testemunhos dessas pessoas que identifiquei como agentes-chave, os povos indígenas. Por exemplo, no relato de Buenaño da Comissão Mista, há uma fotografia da casa de Scharff, onde aconteceu o jantar (figura 1). No fundo se vê um grande grupo de Piro. Se, como sugeri acima, os seis remeiros anônimos que foram imolados em Santa Rosa eram Piro, essas pessoas da fotografia eram seus parentes e presumivelmente tinham fortes opiniões sobre esses assassinatos. Mas nada sabemos sobre suas opiniões ou conseqüências. Não é apenas que elas foram sistematicamente apagadas da documentação; seus próprios descendentes as esqueceram ou optaram por não contar a ninguém sobre elas.


Transporte, mídia ou nacionalização

Benedict Anderson (1991) argumentou a respeito da centralidade da mídia impressa na gênese e na manutenção do Estado-Nação, do modo como as línguas locais, agora inovadoramente reificadas pela escrita, deram aos leitores um sentido de comunidade imaginada. Ler a Bíblia em alemão, por exemplo, proporcionou ao leitor um acesso imaginário a uma comunidade que era maior que a aldeia, vila ou cidade em que ele vivia, embora menor e mais intimista, mais humano, que a humanidade compartilhada que a Bíblia, por exemplo, propõe. Para Anderson, a mídia impressa tem essa potência pela facilidade em transportá-la e difundi-la. Uma Bíblia impressa em alemão pode, com um custo relativamente baixo, ser transportada a praticamente qualquer lugar, conectando lugares distantes, para os quais o transporte dos corpos seria custoso. E a grande reprodução da mídia impressa, o fato de que o custo de reprodução cai dramaticamente com a impressão, permite a difusão da mídia em um crescimento exponencial de relações sociais aparentemente pessoais. É uma imagem muito sedutora, com o metal quente como a origem dos prazeres e dos terrores do nacionalismo.

Tenho uma impressão quase visceral de que Anderson está errado, e minha suspeita é confirmada pela admissão, que se deve reconhecer muito franca, na edição revista de Imagined Communities, de que o Brasil constitui uma exceção à sua teoria geral. O Brasil é único, concordo, mas qualquer teoria geral do nacionalismo que considere o Brasil uma exceção tem algo de muito errado. Contra Anderson, sugiro que a mídia impressa é central aos Estados-Nação pelo modo como pode efetivamente transportar e divulgar interesses locais e de classe específicos.

A mídia impressa permite que um jantar em Curanjá, em si mesmo nada demais para aqueles que não estavam presentes ou não foram convidados, alcance o Rio de Janeiro e lá relate a ofensa exemplar feita contra a nação peruana por um nacionalista do Brasil. Mas o texto de Da Cunha também leva potencialmente sua ofensa fervorosamente patriótica aos mundos pessoais e separados da classe local de leitores, portanto, para um mundo social mais amplo definido como "brasileiro". É uma nacionalização.

Um bom exemplo disso é que a fronteira entre o Peru e o Brasil não está na realidade na área do Purús. Está prioritariamente em uma série de documentos escritos no Rio de Janeiro e em Lima (e em outros lugares), em centros metropolitanos de cálculo, para usar a expressão arguta de Latour. Para ser efetivada no Purús, a fronteira teve de ser transposta desses mapas, dessas descrições escritas, e coisas assim, para ordens a soldados, à polícia e a guardas de fronteiras que foram mandados para esses postos específicos para concretizarem a fronteira em uma realidade física. Mas elas não são tomadas muito seriamente pela população local. Em 1987, eu viajava descendo o Rio Purús, onde atualmente é o Brasil, e um velho seringueiro me contou a disputa sobre a fronteira entre o Brasil e o Peru. "A guerra de Santa Rosa", como ele a chamava e que testemunhou no rio quando menino, custou, como me disse, 21 vidas. Concluindo sua história, ele fez uma reflexão sobre o que percebia como uma perda inútil de vidas desperdiçadas e disse: "A verdade é que essa terra nem é o Peru nem o Brasil. É a terra deles, é dos índios". De modo similar, Pancho, líder Kaxinawa local, me contou que quando cruzou a fronteira e os guardas lhe pediram os documentos, respondeu: "Essa é a minha terra, não a sua, e não preciso pedir permissão para viajar nela!". E acrescentou que os soldados aceitaram seu argumento.

A "Canção Purús" revisitada

A "Canção Purús", ao contrário, é o que gostaria de chamar de tribalização. Ela toma de uma série de experiências vividas de sofrimento e a transforma numa sociável canção para beber. Experiências específicas de raiva, violência, vingança e perda são esvaziadas de seu conteúdo emocional para pessoas particulares, e são generalizadas em uma canção absurda sobre uma emoção absurda. O sofrimento a que a canção faz referência está longe, lá no Rio Purús, e não aqui onde nós nos embebedamos e fazemos graça. As penosas experiências daqueles Piro que passaram por esses eventos são então suplantadas e relembradas apenas por uma canção humorística. Os eventos e sua emoção latente, agora não mais existentes, estão ativamente sendo deixados para trás e tornados esquecíveis.

Penso que há ainda mais nesse processo de tribalização, já que ele parece ter contagiado o gênero mesmo em que ocorria, porque, como já disse, os homens piro não cantam mais jeji shikale, "canções dos homens". Os gêneros correspondentes e ainda ativos de "canções dos xamãs" e "canções das mulheres" nos ajudam aqui. Quando um xamã canta kangochi shikale, "canção dos xamãs", ele se define muito especificamente como um xamã em sua capacidade de ser humano transformado, um humano que é agora um ser sobrenatural. Quando as mulheres cantam suxo shikale, "canções das mulheres", elas se definem muito especificamente como mulheres piro, falantes de yiner-tokanu, "a língua humana", amantes sexualmente ativas de homens piro e potenciais ou atuais mães de crianças piro. Similarmente, se um homem piro cantasse jeji shikale, "canções dos homens", ele se definiria muito especificamente como homem piro, ou seja, como agressivo, conflituoso e vingativo em suas relações com outros homens piro. Se, como argumentei acima, as "canções dos homens" eram compostas para citar e fazer ridículo de outros homens piro enquanto homens, parece que os homens piro deixaram de gostar de fazê-lo. O gênero era, pode-se dizer, muito e perigosamente histórico para os homens piro, trazendo o passado na forma de ciclos incompletos de rivalidade masculina. Não sendo mais ativamente compostas, essas canções sobrevivem apenas no discurso cantado de mulheres mais velhas.

Chamo as "canções dos homens" e seu desaparecimento como um gênero de tribalizações porque tanto as canções como sua desaparição tomam das ramificações potencialmente perigosas e persistentes do passado e as neutralizam. Eles suavizam as ramificações dos eventos do passado, ramificações estas que ameaçam contagiar as relações sociais presentes e as destruir. Ramificações contagiantes aquecem as coisas e confrontam os Piro com sua imagem como uma "sociedade quente". Para manter a escala desejada em suas relações sociais, os Piro têm de se livrar da história e até mesmo dos meios de esquecê-la.

Os Piaroa, de Overing, como a maior parte de seus trabalhos, é sobre a positividade do que inicialmente nos parece uma ausência. Nesse livro, ela mostra que a aliança simétrica entre os Piaroa não liga grupos constituídos por outros princípios tais como descendência, mas é o princípio fundamental e constitutivo dos próprios grupos locais. A "ausência" de grupos de descendência na vida cotidiana piaroa não é uma coisa negativa, é mais uma dessas muitas coisas que quase todo mundo tem mas os Piaroa e outros povos indígenas não. Ela mostra o valor positivo disso, que é uma escolha estética e política de viver socialmente. Os Piaroa estão bem cientes de que outras escolhas são possíveis, e são ou foram feitas por outros (os deuses em tempos míticos, vizinhos indígenas, os mortos etc.), mas eles vivem diferente. Muito já se escreveu em antropologia sobre casamento de primos cruzados como uma variante do casamento humano, mas Overing foi certamente a primeira a mostrar que ele pode articular uma filosofia política coerente. Ao fazê-lo, ela abriu um modo totalmente novo de se pensar sobre as sociedades amazônicas.

Tribalizações são compromissos com uma certa escala. Como notou o informante de Overing: "um pensador muito poderoso pode ver o mundo como um único lugar". Essa habilidade é, evidentemente, a doença conhecida como paranóia. Lendo "Sucedeu em Curanjá" de Da Cunha, em que ele imbui aquele jantar específico de potenciais crescentes de discórdia, para então ver nas árvores a expressão de seu amor por uma terra natal que a diplomacia burocrática subseqüentemente lhe negará, percebemos que o autor está evidentemente paranóico na definição piaroa. Foi necessário o longo trabalho da antropologia, incluindo-se as prolongadas e profundas reflexões de Overing sobre os Piaroa, para descobrir o que Da Cunha não poderia saber, que um conselho político sábio poderia ter sido dado por aqueles "selvagens" que rodeavam a casa enquanto ele se sentava para jantar.

Nota

Bibliografia

Aceito em dezembro de 2005.

Tradução de Clarice Cohn.

  • ANDERSON, Benedict 1991 Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism (edição revista), London, Verso.
  • ANÔNIMO 1906 Informes de las comisiones mixtas peruano-brasileras encargadas del reconocimento de los rios Alto Purús i Alto Yuruá de conformidad con el acuerdo provisional de Río de Janeiro, Lima, La Opinión Nacional.
  • BLANK, Les & BOGAN, James (orgs.)1984 Burden of Dreams: Screenplay, Journals, Reviews, Photographs, Berkeley, North Atlantic Books.
  • CHANDLESS, William 1866 "Ascent of the River Purús", Journal of the Royal Geographical Society, vol. 35: 86-118.
  • DA CUNHA, Euclides 1995 Obra completa: volume 1, Rio de Janeiro, Nova Aguilar.
  • FAURA-GAIG, Guillermo S. 1964 Los ríos de la Amazonía peruana: estudio histórico, geográfico, político y militar de la Amazonía peruana y de su porvenir en el desarrollo socio-económico del Perú, Lima, Imprenta del Colegio Militar Leoncio Prado.
  • FUENTES, Hildebrando 1906 "Apuntes geográficos, históricos, estadísticos, políticos i sociales de Loreto", in CORREA, Carlos L. i (ed.), Colección de leyes, decretos, resoluciones i otros documentos oficiales referentes al Departamento de Loreto, vol. 16: 139-56, Lima, La Opinión Nacional.
  • GINZBURG, Carlo 1992 The Cheese and the Worms: The Cosmos of a Sixteenth-Century Miller, London, Penguin.
  • GOW, Peter 1991 Of Mixed Blood: Kinship and History in Peruvian Amazonia, Oxford, Oxford University Press.
  • GOW, Peter 2001 An Amazonian Myth and its History, Oxford, Oxford University Press.
  • HERNDON, W. Lewis & GIBBON, Lardner 1991 Exploración del valle del Amazonas, Iquitos/Quito, CETA/Abya-Yala.
  • LÉVI-STRAUSS, Claude 1966 The Savage Mind, London, Weidenfeld and Nicholson.
  • MARCOY, Paul 1875 Travels in South America from the Pacific Ocean to the Atlantic Ocean (2 vols.), London, Blackie.
  • OVERING KAPLAN, Joanna 1975 The Piaroa: A People of the Orinoco Basin, Oxford, Clarendon Press.
  • REYNA, Ernesto 1942 Fitzcarrald, el rey del caucho, Lima, P. Barrantes Castro.
  • SEEGER, Anthony 1987 Why Suyá Sing: A Musical Anthropology of an Amazonian people, Cambridge, Cambridge University Press.
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B. 1986 Araweté: os deuses canibais, São Paulo, ANPOCS.
  • 1
    Minha pesquisa de campo no Baixo Urubamba entre 1980 e 2000 foi financiada pelo Social Science Research Council, pelo British Museum, pela Nuffield Foundation, pela British Academy e pela London School of Economics. Minha dívida intelectual mais óbvia é à própria Joanna Overing, assim como devo por comentários de Fernando Santos-Granero, George Mentore, Steven Hugh-Jones e Minna Opas a versões anteriores deste artigo. Agradeço a Conrad Feather, Jadran Mimica, Ute Eickelkamp, Tânia Lima e Márcio Goldman por compartilharem suas idéias e, especialmente, a Cecilia McCallum por me apresentar ao Purús e ao Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Set 2007
    • Data do Fascículo
      Jun 2006

    Histórico

    • Aceito
      Dez 2005
    • Recebido
      Dez 2005
    Universidade de São Paulo - USP Departamento de Antropologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. Prédio de Filosofia e Ciências Sociais - Sala 1062. Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, Cidade Universitária. , Cep: 05508-900, São Paulo - SP / Brasil, Tel:+ 55 (11) 3091-3718 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revista.antropologia.usp@gmail.com