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Escolarização e reivindicação de uma teoria do conhecimento guarani e kaiowá: interconexões entre o modo de ser indígena - ava reko - e o modo de ser não indígena - karai reko

RESUMO

O artigo discute o engajamento de intelectuais Kaiowá e Guarani no esforço de sistematização de uma teoria do conhecimento oriunda de seus próprios princípios cosmológicos. Tal teoria seria forjada nas conexões multifacetadas entre o sistema de conhecimento indígena - ava reko - , referido como distintas modalidades de seres, habitantes dos vários planos de existência e acessados por especialistas indígenas, como os homens e mulheres xamãs, e o sistema não indígena de escolarização, no qual os jovens letrados estão intensamente inseridos - karai reko. O objetivo é demonstrar como o processo de letramento ou escolarização, que à primeira vista afastaria ou aprisionaria a perspectiva indígena, muitas vezes tem um efeito contrário, provocando a intensificação da (re)conexão desses/as jovens letrados/as com sua própria tradição. Priorizamos o diálogo com esses/as jovens pesquisadores/as e com suas produções escritas como base para o desenvolvimento da hipótese aqui sugerida.

PALAVRAS-CHAVE:
Guarani e Kaiowá; conhecimentos indígenas; etnologia indígena; história indígena; educação escolar indígena

ABSTRACT

The article discusses the engagement of Kaiowá and Guarani intellectuals in the effort to systematize a theory of knowledge from their own cosmological principles. Such a theory is forged in the multifaceted connections between the indigenous knowledge system - the ava reko -, understood as different types of beings and inhabitants of the various planes of existence accessed by indigenous specialists, such as the shaman men and women, and the non-indigenous schooling system to which educated young people are intensely exposed - the karai reko. The aim here is to demonstrate how the process of literacy or schooling that at a first glance would alienate or imprison the Indigenous perspective has often the opposite effect: a deeper connection of these literate young people with their own tradition. We prioritize the dialogue with young scholars and their intellectual productions as a basis for the development of the hypothesis.

KEYWORDS:
Guarani and Kaiowá; Indigenous knowledge; Indigenous ethnology; Indigenous history; Indigenous school education

INTRODUÇÃO

A educação escolar indígena, até a Constituição de 1988, pode ser caracterizada como política cultural para os índios, para usar a feliz expressão de Manuela Carneiro da Cunha e Pedro de Niemeyer Cesarino (2016CARNEIRO DA CUNHA, Manuela; CESARINO, Pedro de Niemeyer (orgs.). 2016. Políticas culturais e povos indígenas. São Paulo, Ed. UNESP.), uma vez que estava orientada pelo paradigma integracionista no qual as culturas e línguas indígenas não tinham lugar em uma perspectiva de futuro. A Constituição de 1988, ao assegurar aos indígenas o direito à diversidade cultural e linguística, inaugurou um período que se estende até os dias de hoje. Desta forma, o velho paradigma integracionista, ainda encrustado em alguns programas e práticas, convive de modo tenso com a orientação da obrigatoriedade do Estado em assegurar a diversidade linguística, organizacional e cultural dos povos indígenas.

As pessoas Kaiowá e Guarani no Mato Grosso do Sul (MS) se esforçam para construir políticas educacionais ou políticas culturais referenciadas em seu próprio sistema de conhecimento: para retomar a distinção proposta por Carneiro da Cunha e Cesarino (2016CARNEIRO DA CUNHA, Manuela; CESARINO, Pedro de Niemeyer (orgs.). 2016. Políticas culturais e povos indígenas. São Paulo, Ed. UNESP.), uma política cultural dos índios, no caso Kaiowá e Guarani. É importante ressaltar que a dinâmica protagonizada por estes povos se deu com forte organização do Movimento de Professores Guarani e Kaiowá, em fins das décadas de 1980 e 1990, como atores do processo de reinvindicação de uma escola mais propriamente indígena. Ilustra essa discussão, por exemplo, as dissertações de Renata Lourenço, defendida em 2001 e publicada em 2013, e de Veronice Rossato, de 2002ROSSATO, Veronice Lovato. 2002. Os resultados da escolarização entre os Kaiowá e Guarani em Mato Grosso do Sul - “Será o letrao ainda um dos nossos?”. Campo Grande, Dissertação de mestrado, Universidade Católica Dom Bosco., publicada em 2021. A base de reflexão teórica aqui proposta parte de uma tendência relativamente recente que se esforça em ampliar o reconhecimento das ações criativas de indígenas frente aos instrumentos impositivos do contato. Essas ações envolvem as relações entre essas pessoas e a escolarização, que acabou por produzir “efeitos”, ou o que se pode conceber como ações intercambiadas (Carneiro da Cunha; Cesarino, 2016CARNEIRO DA CUNHA, Manuela; CESARINO, Pedro de Niemeyer (orgs.). 2016. Políticas culturais e povos indígenas. São Paulo, Ed. UNESP.: 9). Muitos/as pesquisadores/as buscam expressar como as conexões entre as populações indígenas e o Estado produzem transformações de várias ordens sobre múltiplos aspectos da vida cotidiana destes povos.

A presença da escola nas comunidades Kaiowá e Guarani se iniciou logo após a demarcação de oito reservas pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), dentre 1915 e 1928. A instalação dos Postos Indígenas foi acompanhada da implantação de escolas, com o intuito de ensinar a ler e escrever em português. Em 1928, é fundada a Missão Evangélica Caiuá, com forte atuação na saúde, educação e evangelização em todas as reservas. A educação orientada pelo paradigma da assimilação seguiu até a década de 1980, quando passou a ser contestada pelo movimento de professores/ as indígenas e por setores do indigenismo, principalmente vinculados ao Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Tal contestação foi em grande medida assimilada no texto da Constituição de 1988, iniciando um processo lento, mas persistente, de mudança na educação escolar indígena. Os efeitos da educação integracionista e orientada pela evangelização foram objeto de profunda reflexão na dissertação do Guarani Valentim Pires, recentemente defendida no Programa de Mestrado em Educação e Territorialidade da Faculdade Intercultural Indígena (PPGET-FAIND) (Pires, 2022PIRES, Valentim. 2022. Ore mbo’e ypy omboheko mitã - aproximações aos conhecimentos e práticas para a construção da criança guarani na aldeia pirajuy, Paranhos, MS. Dourados, Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Grande Dourados.).

Atualmente, a escola permanece como instituição estatal que propõe, planeja e financia as políticas educacionais supostamente desejadas por indígenas. Entretanto, como demonstraremos adiante, em sua efetivação nas comunidades ela é apropriada de distintas formas, transbordando a função imaginada pelo Estado. Em muitos casos, essa apropriação pode provocar movimentos diversos, incidindo sobre o modo como os indígenas buscam transformar as relações com o Estado e a sociedade em que vivem, por meio da escola que é, assim, um espaço de intensificação das relações políticas. Melhor dito, essa educação apropriada se ingressa no movimento da cosmopolítica1 1 A noção de cosmopolítica foi intensamente discutida por Isabelle Stengers (2014) e tem sido aplicada em várias pesquisas de etnología como, por exemplo, na tese de doutorado de Spensy Pimentel (2012), Elementos para uma teoria política kaiowá e guarani. , que realoca o lugar da escola num conjunto de referências que transcende sua delimitação nas políticas e programas educacionais. Apesar das incongruências que suscitam entre sistemas de conhecimentos tradicionais e escolares, é revelador o protagonismo dos Guarani e Kaiowá, que se valem de seus próprios modos de fazer política frente às imposições das agências reguladoras do Estado.

O ingresso de indígenas na condição de pesquisadores/as e em estreito diálogo com pesquisadores/as não indígenas que os apoiam nesse movimento nos cursos de graduação e pós-graduação tem facilitado a emergência do pleito de indígenas pesquisadores/as sobre uma nova abordagem teórica e metodológica na educação escolar indígena. Esses/as pesquisadores/as indígenas propõem a construção de uma epistemologia própria, a partir de suas lógicas e de seus conhecimentos, quer seja, uma teoria do conhecimento propriamente guarani e kaiowá.

CONHECIMENTOS INDÍGENAS, MOVIMENTO INDÍGENA E PRÁTICAS ESCOLARES

Alguns trabalhos sobre educação escolar de pesquisadores/as Guarani e Kaiowá, como o de Tonico Benites (2009BENITES, Tonico. 2009. A escola na ótica dos Ava Kaiowá: Impactos e interpretações indígenas. Rio de Janeiro, Dissertação de mestrado, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.), Elda Vasques Aquino (2012AQUINO, Elda Vasques. 2012. Educação escolar indígena e os processos próprios de Aprendizagens: espaços de inter-relação de conhecimentos na infância Guarani/Kaiowá, antes da escola, na comunidade indígena de Amambai-MS. Campo Grande, Dissertação de mestrado, Universidade Católica Dom Bosco.), Eliel Benites (2014BENITES, Eliel. 2014. Oguata Pyahu (Uma Nova Caminhada) no Processo de Desconstrução e Construção da Educação Escolar Indígena da Aldeia Te’ýikue. Campo Grande, Dissertação de mestrado, Universidade Católica Dom Bosco.), Claudemiro Pereira Lescano (2016LESCANO, Claudemiro Pereira. 2016. Tavyterã Reko Rokyta: os pilares da educação Guarani Kaiowá nos processos próprios de ensino e aprendizagem. Campo Grande, Dissertação de mestrado, Universidade Católica Dom Bosco.) e Lídio Cavanha Ramires (2016RAMIRES, Lidio Cavanha. 2016. Processo próprio de ensino-aprendizagem Kaiowá e Guarani na Escola Municipal Indígena Ñandejara Pólo da Reserva Indígena Te’ýikue: saberes Kaiowá e Guarani, territorialidade e sustentabilidade. Campo Grande, Dissertação de mestrado, Universidade Católica Dom Bosco.) evidenciam o vínculo de parte expressiva dos/as professores/as com a luta pela terra e com a proposição de uma escola receptível aos conhecimentos indígenas. Evidencia-se, assim, que os/as pesquisadores/as indígenas acima citados/as são autores/as e importantes atores políticos: Tonico Benites é articulador da Aty Guasu - a Grande Assembleia Guarani e Kaiowá no MS - e atual coordenador do Curso de Formação de Professores Kaiowá e Guarani em Ensino Médio - Ara Vera. Elda Vasques Aquino atua como gestora de educação na Prefeitura Municipal de Amambai. Eliel Benites foi coordenador do curso de Licenciatura Indígena Teko Arandu e é o atual diretor da Faculdade Intercultural Indígena. Claudemiro Lescano é vereador e foi o primeiro indígena a ser diretor de escola no município de Coronel Sapucaia. A ocupação de espaços institucionais por esses/as pesquisadores/as e atores políticos exige muito empenho e esforço de superação das barreiras historicamente colocadas para a presença indígena em tais espaços, sendo por eles/as considerado como estratégico para a garantia de seus direitos.

No engajamento com o movimento político, os/as pesquisadores/as indígenas reconhecem que esta força vem de anciãos/ãs e principalmente de rezadores/ as, que passam a guiar lideranças e professores/as, constituindo vínculos de apoio recíprocos. Uma fala incisiva da professora Léia Aquino (in memorian), em 2016, registrada em caderno de campo, explicita esses vínculos entre o sistema de conhecimento indígena e a luta por direitos: essa professora era muito atuante na luta pela terra e sua fala chama a atenção para a necessidade da presença de rezadores/as em todos os espaços de retomada pois, sem tais pessoas, as lideranças jovens ficavam “muito fracas”, sem saber para onde ir e como se proteger dos ataques dos fazendeiros. Quando fortalecidos pela reza, são os/as Kaiowá e Guarani a “pacificar os brancos”, a conter a fúria destes sobre suas terras e seus universos simbólicos. Essa percepção da professora Léia remete às formulações proposta por Carneiro da Cunha (2002CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 2002. “Apresentação”. In: ALBERT, Bruce; RAMOS, Rita. Pacificando o Branco: Cosmologias do contato no Norte Amazônico. São Paulo, Ed. UNESP/Imprensa Oficial do Estado , p. 7-8.) quando se refere ao modo de pensar e sentir o mundo vividos pelos povos indígenas do norte amazônico. A reza, nesse contexto, se constitui na arma mais poderosa que dispõem para se contraporem ao domínio dos “brancos”, em uma perspectiva de serem eles/as, no futuro próximo, os/as grandes vitoriosos/as.

Os princípios cosmológicos, impressos na maneira de pensar e agir das pessoas Kaiowá e Guarani, compõem um modo específico de apropriação da história e do mundo contemporâneo. A escola é apropriada como espaço socialmente adequado para demandar ações em movimento organizado e protagonizado por eles/as, visando sua continuidade como povos e, em uma perspectiva do cotidiano, a promoção e o fortalecimento de suas parentelas.

A condição histórica de reserva impôs o recolhimento de inúmeras comunidades em espaço exíguo, processo denominado por Brand (1993BRAND, Antonio Jacó. 1993. O confinamento e seu impacto sobre os Paì-Kaiowá. Porto Alegre, Dissertação de mestrado, Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre.; 1997BRAND, Antonio Jacó. 1997. O impacto da perda da terra sobre a tradição kaiowá/guarani: os difíceis caminhos da palavra. Porto Alegre, Tese de doutorado, Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre.) como confinamento. Essa contingência produz inúmeras outras situações conflituosas que são discutidas permanentemente no interior das escolas, momentos em que a própria educação escolar busca assumir a tarefa de preparar crianças e jovens para os desafios da atualidade. Neste sentido verifica-se, de modo geral, que a escola vem se apresentando como um espaço político cada vez mais significativo para negociações (e disputas) internas entre os vários segmentos e “coletivos” que compõem as reservas. Pesquisas recentes desenvolvidas pelos/as próprios/as indígenas nos indicam as possibilidades trazidas pela escolarização. Por um lado, a escolarização parece desarranjar a dinâmica protagonizada pelas lideranças tradicionais - rezadores/ as ou anciãos/ãs - que sempre lideraram a organização socioeconômica, política e as práticas rituais nas parentelas. No contexto de reserva, a escola tende a assumir, cada vez mais, atribuições que antes eram desempenhadas por líderes de parentela e até mesmo por xamãs (Pereira, 2004PEREIRA, Levi Marques. 2004. Imagens Kaiowá do sistema social e seu entorno. São Paulo, Tese de doutorado, Universidade de São Paulo.). Por outro, a escola se abre para a emergência de novas configurações sociais, em que novos/as “levantadores de parentelas” se apresentam (Pereira, 2016PEREIRA, Levi Marques. 2016. “Levantadores de parentelas kaiowá e guarani em Mato Grosso do Sul: agency e atualização de saberes na produção da sociabilidade”. In: SILVEIRA, Nadia Heuse; MELO, Cláudia Rocha de; CARVALHO DE JESUS, Suzana (orgs.). Diálogo com os Guarani: articulando compreensões antropológicas e indígenas. Florianópolis, Ed. UFSC, pp. 45-78.), na atualidade, como mediadores/as do diálogo entre conhecimentos tradicionais e educação escolar. Um desafio enorme para as comunidades e que se reflete na escola tem sido a expansão das igrejas protestantes, de cunho pentecostal e neopentecostal, como registrado pela pesquisa do historiador Guarani Elemir Soares Martins (2020MARTINS, Elemir Soares. 2020. Transformações nos papéis desempenhados pelas lideranças tradicionais na Reserva Indígena de Caarapó, a partir da entrada de líderes evangélicos (1980-2017). Dourados, Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Grande Dourados.).

Os direitos indígenas assegurados na Constituição e toda a legislação escolar indígena dela decorrente não foram suficientes, até o momento, para assegurar de modo significativo o ingresso dos conhecimentos indígenas na escola. O que se constata é a continuidade de um processo histórico de subalternização dos conhecimentos indígenas, agora muitas vezes processado pelos próprios indígenas submetidos à condição de funcionários da escola. Quase 20 anos depois, continua válida a constatação de Veronice Rossato (2002ROSSATO, Veronice Lovato. 2002. Os resultados da escolarização entre os Kaiowá e Guarani em Mato Grosso do Sul - “Será o letrao ainda um dos nossos?”. Campo Grande, Dissertação de mestrado, Universidade Católica Dom Bosco.: 57), apoiadora do movimento dos professores Kaiowá e Guarani desde 1985: a universalização da presença da escola “levou as comunidades a uma cristalização de conceitos e uma espécie de ‘sedução’ quanto ao papel e finalidade da escola, vinculando-a ao modelo individualista e competitivo da sociedade majoritária”. Este modelo vem sendo reproduzido ao longo dos anos, sedimentando a “colonialidade” dos saberes e práticas escolares, mas, eventualmente, escapa das práticas estritamente pedagógicas escolares e acaba por tecer caminhos para uma atuação política mais abrangente, aspecto acentuado no presente artigo.

A constatação dos problemas que giram em torno da escola, mas também de suas potencialidades como espaço de busca de formas de assegurar direitos, tem motivado uma nova geração de indígenas pesquisadores/as ao esforço de propor novos parâmetros para o seu funcionamento, buscando aproximar a escola dos anseios e necessidades da comunidade, como ficará mais evidenciado na parte final do presente artigo. Nesta perspectiva, a educação escolar indígena não pode ser considerada como simples resultante de políticas para “índios”, até porque ela é, em grande medida, uma conquista do próprio movimento indígena e é, também, um espaço de movimentação que estas populações foram criando, do qual podem se apropriar de conhecimentos sobre o sistema não indígena e desenvolver novas práticas políticas. Enfim, se a escola é um espaço onde predominam práticas colonialistas, acontece aí um fato inusitado: “políticas para índios, e que se valem dos índios, se entrelaçam e se conjugam para produzir efeitos” (Carneiro da Cunha, 2016CARNEIRO DA CUNHA, Manuela; CESARINO, Pedro de Niemeyer (orgs.). 2016. Políticas culturais e povos indígenas. São Paulo, Ed. UNESP.: 9). Na produção desses efeitos deve-se considerar a possibilidade de os/as indígenas se instrumentalizarem na escola para produzirem sua própria política. Entretanto, tudo leva a crer que esses processos comportam sempre ambiguidades, contradições e conflitos. Os/as próprios/as pesquisadores/as indígenas reconhecem que colocar a escola a serviço de suas comunidades será um trabalho longo e demandará muito esforço.

Ainda que protagonizados pelos/as indígenas, todo aparato legal da escola se apresenta como derivado das políticas culturais ordenadas pelo Estado. Ao longo do processo de consolidação destas políticas, no chão das comunidades, cada povo indígena, em cada momento de sua história, respondeu e responde de formas diferenciada a estes parâmetros. Resultam daí os modos a produzir “efeitos”, por vezes visíveis e por vezes muito sutis, exigindo um esforço maior em apreender estas transformações de modo mais assertivo.

No caso dos Kaiowá e Guarani de MS, atualmente as parentelas estão dispostas em vários tipos de assentamentos - reservas, áreas de retomadas, acampamentos ou mesmo nas periferias das cidades. Cada realidade estabelece relações específicas com a escola. As distintas modalidades de assentamento exigem maior cuidado para não se interpretar de modo genérico situações diversas. Isto provoca uma consequente variedade de “efeitos” decorrentes das ações educativas através da escola entre os mais variados tipos de assentamentos e seus coletivos, considerando suas configurações espaço/temporais. Aqui, o tempo está associado ao conceito de tempo social de realização das ações, que varia de acordo com cada povo e coletivo diferenciado. Para os/as Kaiowá e Guarani, a modalidade organizacional mais efetiva no dia a dia é a parentela bilateral, reunindo também um certo número de aliados. Entretanto, as políticas públicas, inclusive a escola, tendem a desconsiderar essa organização, se guiando por outras referências como “aldeia”, “reserva”, “retomada”, “acampamento”, “escola polo e extensão” etc. Cada localidade, de acordo com sua configuração específica, traçará sua política de relação com a escola, considerando as redes políticas estabelecidas entre parentelas, movimento pouco perceptível para a maior parte de gestores de políticas públicas.

POR UMA TEORIA DO CONHECIMENTO GUARANI E KAIOWÁ:“EFEITOS” E APROPRIAÇÕES DO PROCESSO DE EDUCAÇÃO ESCOLAR

O olhar aqui proposto sobre os chamados “efeitos” e apropriações produzidos pela conquista da escola pelos/as Guarani e Kaiowá do MS nas últimas três décadas é orientado pelo esforço em captar o sentido da reivindicação de alguns/ umas indígenas pesquisadores/as sobre a sistematização de uma teoria do conhecimento propriamente guarani e kaiowá e a possibilidade de introduzi-la na escola. É interessante constatar que as falas de alguns/umas rezadores/as que tratam dos saberes indígenas vão ao encontro desta proposta dos/as indígenas pesquisadores/ as, na maioria jovens, que frequentaram cursos de graduação ou pós-graduação acadêmica. Não podemos negligenciar o fato de que esta reinvindicação esbarra em uma série de desafios que são permanentemente contingenciados pelas políticas governamentais implementadas nas instituições escolares, sendo que a maior parte desses/as pesquisadores/as indígenas parece estar consciente dessa condição. Um e outro segmento -professores e lideranças tradicionais - vêm se utilizando do aparato escolar a partir de inúmeras estratégias criativas permeáveis a concessões e, ao mesmo tempo, capazes de promover negociações para atingir objetivos. A operação destas estratégias não se restringe somente ao âmbito da escola, mas atua na constituição de redes de alianças políticas que possibilitam atender interesses e iniciativas diversas sobre a resolução de problemas da vida cotidiana, a maior parte deles referida a interesses específicos da própria parentela, o que se conecta com a pauta “cultural” de reforçar sempre a perspectiva política do próprio grupo parental.

Nestes termos, o desafio é pensar o deslocamento da escola e de seu programa de escolarização e letramento para um espaço de amplas transformações que derivam de políticas culturais para os indígenas, ou mesmo que se valem destes: protagonizadas pelo Estado para o esforço empreendido pelas comunidades, no sentido de transformar positivamente as relações com o Estado e a sociedade. Nesse movimento, se produzem políticas culturais dos/as indígenas através da escola. Retornamos, aqui, para a proposição sugerida por Carneiro da Cunha e Cesarino (2016CARNEIRO DA CUNHA, Manuela; CESARINO, Pedro de Niemeyer (orgs.). 2016. Políticas culturais e povos indígenas. São Paulo, Ed. UNESP.) anteriormente citada. Este movimento exige acionar uma série de recursos de redes que fazem da escola espaços multifuncionais, servindo para uma série de outros objetivos que não somente educacionais, no sentido do letramento ou numeração. Captar estes movimentos de múltiplas táticas e estratégias é, no mínimo, desafiador e, talvez, pretensioso pensar que seja possível. Por isto mesmo, o intento é fazer alguns indicativos para futuras pesquisas mais adensadas. Reconhecemos que os/as indígenas pesquisadores/as continuarão a ter muito a dizer sobre isto.

Presenciamos e atuamos em vários cursos de formação de professores/as, convivendo por vários anos com representantes dos dois segmentos aqui elencados por um lado, as lideranças tradicionais e, por outro, indígenas professores/as e pesquisadores/as. A convivência nos permitiu observar e discutir com os próprios atores sobre este novo cenário de competitividades, mas também, de possibilidades de se fazer da escola um espaço de promoção da política cultural própria, sem deixar de considerar suas potenciais contradições. Dominique Gallois (2016GALLOIS, Dominique Tilkin. 2016. “A escola como problema: algumas posições”. In: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela; CESARINO, Pedro de Niemeyer. Políticas Culturais e Povos Indígenas. São Paulo, Ed. UNESP , pp. 509-517.: 509), discutindo temas correlatos em um cenário mais geral, registra que a escola “é percebida ao mesmo tempo como instrumento de empoderamento para a ‘autonomia’ e também como armadilha para a domesticação de conhecimentos”, proposição com a qual nos alinhamos. O posicionamento dos/as pesquisadores/as indígenas parece gravitar no alinhamento com estas duas percepções do papel da escola, gerando um intenso e profícuo debate.

Contudo, é preciso considerar, ainda, que os problemas advindos da escolarização dos indígenas, apontados pelos/as estudiosos/as não indígenas, não são necessariamente os mesmos que os próprios indígenas apresentam. Como apontados por Dominique Gallois (2016GALLOIS, Dominique Tilkin. 2016. “A escola como problema: algumas posições”. In: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela; CESARINO, Pedro de Niemeyer. Políticas Culturais e Povos Indígenas. São Paulo, Ed. UNESP , pp. 509-517.: 509) sobre os efeitos e os desafios epistemológicos que se sobressaem aos programas de formação de professores/as indígenas, se constata que os objetivos iniciais destes programas visavam consolidar “a participação efetiva dos índios para a valorização dos ‘conhecimentos tradicionais’ e o reconhecimento das ‘demandas de seus detentores’”. Gallois conclui que tais objetivos não alcançaram os resultados esperados. Contudo, a autora, ao relatar as exposições feitas durante o Seminário Políticas culturais e povos indígenas a escola e outros problemas2 2 Realizado pela equipe do Projeto Ford/Centro de Estudos da Metrópole (Cebrap) em parceria com o Centro de Estudos Ameríndios, na Universidade de São Paulo (USP), em novembro de 2013. , realizada por pesquisadores/as indígenas e não indígenas, destaca algumas “lições” advindas dos povos ameríndios que aqui destacamos porque consideramos possível conectá-las às experiências dos Guarani e Kaiowá: “a escola não é nem o único nem necessariamente um espaço privilegiado para a construção de um saber próprio; os saberes são criados alhures, precisam ser buscados, descobertos por sujeitos que circulam em busca de conhecimento” (Testa, 2011 apudGallois, 2016GALLOIS, Dominique Tilkin. 2016. “A escola como problema: algumas posições”. In: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela; CESARINO, Pedro de Niemeyer. Políticas Culturais e Povos Indígenas. São Paulo, Ed. UNESP , pp. 509-517., p. 511). Este trecho talvez ajude a entender a insistência de boa parte dos/as pesquisadores/as Kaiowá e Guarani sobre a necessidade de buscar o entendimento mais profundo junto aos anciãos e lideranças tradicionais no seio das comunidades indígenas Guarani e Kaiowá no MS. Seriam nestes espaços que se encontrariam a fonte dos conhecimentos.

Poderíamos denominar estes espaços como originados da necessidade de os pesquisadores kaiowá e guarani realizarem um “caminhar em direção à casa de reza” que, como metodologia de pesquisa, é também observado na trajetória da maior parte desses/as pesquisadores/as. Alguns pesquisadores relatam, em suas autobiografias, que a escola e/ou as igrejas evangélicas promoveram o afastamento do acesso e da prática dos conhecimentos tradicionais (Benites, E. 2014BENITES, Eliel. 2014. Oguata Pyahu (Uma Nova Caminhada) no Processo de Desconstrução e Construção da Educação Escolar Indígena da Aldeia Te’ýikue. Campo Grande, Dissertação de mestrado, Universidade Católica Dom Bosco.; Pires, 2022PIRES, Valentim. 2022. Ore mbo’e ypy omboheko mitã - aproximações aos conhecimentos e práticas para a construção da criança guarani na aldeia pirajuy, Paranhos, MS. Dourados, Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Grande Dourados., dentre outros). Entretanto, em determinado momento de seu processo de escolarização, em especial quando se tornam pesquisadores, são premidos pela necessidade de ampliar o domínio sobre tais conhecimentos. Assim, voltam a buscar os mestres tradicionais, em geral na própria parentela ou na rede de aliados, o que nos leva novamente ao campo do parentesco.

No que diz respeito às escolas das reservas e terras indígenas regularizadas, é possível afirmar, de modo geral, que a escola serve para muitas coisas. Por um lado, é um espaço privilegiado para acessar ou ser acessado por políticas públicas, pois, como disse uma indígena que atua como coordenadora de uma das escolas da reserva de Dourados, “tudo chega através da escola, ela é procurada pelo conselho tutelar, os conselhos de defesa do direito da criança ou de assistência social, oficial de justiça, bombeiros, pesquisadores não indígenas, tudo... isso até atrapalha o trabalho da gente”. A escola serve também e, principalmente, para proporcionar a expressão das redes políticas internas em espaços que reúnem parentelas oriundas de distintas localidades, expropriadas de seus territórios e forçadas a viverem confinadas em pequenos espaços e a se apresentarem como coletivo. Assim, a escola expressa ou se torna um campo de disputa visando consolidar redes de dominação e controle político, dada a heterogeneidade das configurações sociopolíticas do que normalmente se denomina de comunidade, aldeia ou reserva.

Os cargos dos profissionais indígenas da educação e da saúde tendem a ser preenchidos por pessoas pertencentes às parentelas que compõem a rede política mais forte em cada localidade. Reconhece-se que esse pertencimento agrega maior legitimidade na atuação dos serviços prestados na comunidade e projeta maior prestígio para a própria rede. Desnecessário dizer o quanto o preenchimento desses cargos envolve disputas e rivalidades entre parentelas e suas redes, em especial em reservas com milhares de pessoas. Não raro, os gestores públicos se desgastam com esses embates e acusações recíprocas, a maior parte das vezes, sem ter a mínima condição de entender o que está efetivamente ocorrendo.

Constata-se que, em maior ou menor intensidade, o espaço escolar é tomado para realizar reuniões de atividades políticas das parentelas que vivem na localidade onde se delibera sobre vários assuntos. A escola é considerada como espaço público relativamente “neutro” e é um espaço passível de ser reivindicado por qualquer membro pertencente à comunidade escolar, sempre privilegiando os melhor posicionados na rede política dominante. A escola também é utilizada para encontros de vários coletivos, desde eleições até competições esportivas, para reuniões entre agentes institucionais com determinadas lideranças e seus aliados, como o Ministério Público Federal (MPF), Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), representantes religiosos de Igrejas e equipes do governo local/regional ou mesmo federal.

Para além do que é imposto, as transformações suscitadas desta imposição indicam possibilidades inventivas em proveito da própria comunidade, sempre levando em conta a correlação interna de poder entre redes de parentela. Dada a contingência do confinamento, a escola parece ser um espaço apropriado no esforço de produzir um coletivo, a “comunidade” de tal reserva, esforço sempre inconcluso.

A educação escolar para os indígenas sempre foi um campo privilegiado da atuação do Estado brasileiro para instauração de relações disciplinares de poder, visando convencer estas populações, através de métodos persuasórios, a se submeterem aos projetos nacionais. A atuação se deu via órgãos tutelares - SPI e FUNAI -, sempre em estreita aliança com missões religiosas. A partir de 1988, houve a coroação de uma atmosfera forjada de maior “civilidade” em que se buscou desenvolver uma convivência mais harmoniosa e respeitosa com as populações indígenas. De todo modo, é importante ressaltar que o poder disciplinar, conduzido pelo Estado e seus governos, teve “o objetivo primordial de ‘adestrar’ o indivíduo para se apropriar mais e melhor de suas potencialidades: ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo” (Foucault, 1987FOUCAULT, Michael. 1987. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. Petrópolis/RJ, Vozes.: 143 apudLourenço, 2008LOURENÇO, Renata. 2008. A política indigenista do Estado Republicano junto aos índios da Reserva de Dourados e Panambizinho na área de educação escolar (1929 a 1968). Dourados, Ed. UEMS.: 186). Segundo Foucault (1987FOUCAULT, Michael. 1987. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. Petrópolis/RJ, Vozes.), o poder disciplinar não destrói o indivíduo, mas é fabricado por ele e se constitui em um dos seus mais importantes efeitos. O poder disciplinador da escola, como política do Estado, pode ser mais uma de suas armadilhas para o modo de ser Kaiowá e Guarani.

É possível propor que um dos “efeitos” deste poder disciplinador relacionado ao que predomina na educação escolar indígena e que produz uma de suas primeiras contradições seria o empenho para o surgimento do indivíduo enquanto produtor de saber e de poder. Também é possível propor que esses “efeitos” possibilitam despertar não só o interesse pelos saberes escolares, mas também o prazer das relações de dominação, ou seja, o sistema de conhecimento produzido na nossa própria sociedade baseada no consumo individual. Contudo, esta relação ambígua de produção de saber e de poder permite que estes mecanismos, voltados para submissão e dominação, acabem por se tornar espaços de movimentação em que as pessoas Kaiowá e Guarani, de modo geral, constroem uma ampla rede de relações - interna e externamente - fazendo circular informações e saberes novos, promovendo ações intercambiadas que fogem ao controle do Estado3 3 Para os professores indígenas parece ser difícil fugir do controle comunitário, em especial do círculo dos parentes, embora alguns tentem. O normal é que o/a professor/a cuja posição agrega prestígio e renda acabe se tornando uma referência para o grupo parental, passando a atuar como articulador/a ou liderança, posição que agrega prestígio, mas impõe também uma série de obrigações, inclusive redistribuição de bens. Fugir a essas obrigações implica em estar exposto a uma série de represálias e sanções. . Do que foi pretendido como políticas culturais governamentais pensadas para os indígenas, estas podem ser originadas como políticas culturais próprias ou, em última análise, como produtoras de conhecimento envoltas em uma dinâmica permanente de transformações. Como expressa Michel de Certeau (1995CERTEAU, Michel de. 1995. A cultura no plural. Campinas, Papirus.: 19), é fundamental que se preste mais atenção: “[...] à operacionalidade e à virtualidade das práticas correntes, dinâmica infinita da cotidianidade”. Nisto reside a nossa compreensão dos chamados “efeitos” produzidos pela escola: uma combinação de forças em competição ou em conflito que desenvolve um grande número de táticas em espaços organizados, ao mesmo tempo marcados por coerções e contratos (Certeau, 1995CERTEAU, Michel de. 1995. A cultura no plural. Campinas, Papirus.).

É interessante observar que este processo é percebido por anciãos e lideranças xamânicas: grande parte sem escolaridade formal, mas especialista em sua própria tradição de conhecimento. É importante evidenciar que dentro desta nova estrutura de poder instituído em torno da escola, os mais velhos, de modo geral, foram perdendo atribuições para as lideranças escolarizadas sem formação ou aprofundamento em conhecimentos xamânicos. Em certa medida, as lideranças são consideradas mais aptas para resolver os problemas atuais das pessoas e da comunidade. Essa mudança, que aconteceu nas últimas décadas, alterou a composição das formas organizacionais dos Kaiowá e Guarani que tinham no xamanismo seu principal referencial. No tempo atual, os xamãs se consideram “encostados”, embora atuem pontualmente em momentos cruciais da vida social, como doenças e mortes ou ameaças sobrenaturais.

Mais do que a escola, a expansão das igrejas evangélicas talvez seja a principal responsável pelo afastamento dos xamãs. O pastor concorre diretamente com o/a xamã, existindo acusações recíprocas de prática de feitiçaria. Como os/as xamãs estão mais fragilizados, são os que mais sofrem essas agressões. Por falta de espaço, não aprofundaremos esse tema no presente artigo. Vale registrar, para nossos objetivos, que os/as xamãs normalmente consideram a escola e a igreja como agências de expansão do modo de ser não indígena - karai reko -, atuando contra o sistema de conhecimento indígena - ava reko. Alguns/umas xamãs têm se tornado evangélicos/as ou se aproximado da escola, talvez buscando seu fortalecimento ou a pacificação dessas instituições.

Em certos momentos, como nas retomadas de terra, eventos do movimento indígena ou junto às instituições do Estado recorrem aos xamãs e seus grupos de seguidores minoritários quando necessitam externalizar ou performar a cultura para se legitimarem como povos originários e, portanto, diferenciados. Os xamãs são considerados pessoas que estão constantemente “segurando a cultura no interior de suas comunidades”. Segundo Eliel Benites (2014BENITES, Eliel. 2014. Oguata Pyahu (Uma Nova Caminhada) no Processo de Desconstrução e Construção da Educação Escolar Indígena da Aldeia Te’ýikue. Campo Grande, Dissertação de mestrado, Universidade Católica Dom Bosco.) e Veronice Rossato (2002ROSSATO, Veronice Lovato. 2002. Os resultados da escolarização entre os Kaiowá e Guarani em Mato Grosso do Sul - “Será o letrao ainda um dos nossos?”. Campo Grande, Dissertação de mestrado, Universidade Católica Dom Bosco.), esses momentos, embora esporádicos, permitem que aconteça algo a que os/as Kaiowá e Guarani se referem como a “volta” aos modos tradicionais, depois de terem se afastado deles. Os relatos autobiográficos dos/as pesquisadores/as registram que muitas pessoas o fazem por meio da escola, quando ela se abre para essas discussões, e do movimento político indígena. Nesse contexto, a escola passa a ser palco privilegiado de algumas lideranças tradicionais, quando convidadas para “falar da cultura”, que vão ocupando papéis aparentemente secundários, mas de importância fundamental para a reelaboração de novas estratégias para manter e/ou fortalecer a sua própria rede política, permitindo se sustentarem frente aos que são “contra a tradição”, em especial os evangélicos.

Quando a escola é refratária à aproximação com os/as rezadores/as, por exemplo, quando conduzida por professores indígenas evangélicos, o ambiente escolar se vincula aos valores e práticas das igrejas e pode, até certo ponto, se afastar dos objetivos estritamente “educacionais”, que podem ficar em segundo plano. Nesse caso, os conhecimentos ditos tradicionais, ou o diálogo entre conhecimentos, tendem a não ter espaço no ambiente da escola: acontece, então, a submissão do conhecimento indígena como confete, adorno ou folclore, como nas programações especiais do Dia do Índio. Não raro o/a rezador/a não é convidado/a para rezar ou falar, por ser considerado/a representante do diabo. Na maior parte dos casos, os conhecimentos indígenas entram fora de contexto, sem ambientação, já que a escola se torna quase exclusiva para a veiculação do sistema de conhecimento não indígena - karai reko.

Como a maior parte dos/as rezadores/as estão isolados nas comunidades, o convite da escola acaba sendo um espaço para estes se “apresentarem” e este ato sozinho tem valor, ainda que não necessariamente o valor que a escola identifica ou supõe. Nem todos/as os/as rezadores/as são convidados para participarem das atividades na escola: a rede política de controle dessa instituição, através de alguns/ umas rezadores/as, se justifica perante a agentes externos, a legislação e o Estado, ainda que argumentando pelo diálogo de conhecimento e educação diferenciada. Entretanto, os/as rezadores/as também podem tirar algum proveito do envolvimento com a escola, como fortalecer sua própria rede política e ter mais chances de ter parentes como servidores/as na escola. Com todas as limitações e condicionantes, a presença de rezadores/as na escola é uma oportunidade para os/as alunos/as terem acesso a certos conhecimentos e discussões, permitindo a reflexão sobre a produção e reprodução da cultura em seus coletivos.

De todo modo, o jogo de forças entre conhecimento indígena (ava reko) e conhecimento não indígena (karai reko) é permanente. O que se assiste é uma reinvenção contínua do modo próprio de existir e se inserir no mundo, nas redes que conectam as parentelas com as instituições do Estado e da sociedade nacional. Essa condição evidencia a necessidade de domínio dos dois sistemas e das possibilidades de conexões entre eles. Alguns/umas indígenas pesquisadores/as consideram a necessidade da sistematização de uma teoria do conhecimento própria aos Guarani e Kaiowá, o que se daria a partir do mundo letrado da escola. Segundo entendem, essa seria uma condição para não sucumbirem frente ao modo de ser não indígena e seu sistema de conhecimento, o karai reko. Nesta direção, assistem-se inúmeros pontos de convergência entre as narrativas de mestres/as tradicionais e dos/as indígenas pesquisadores/as.

Exemplo disto é a fala do Sr. Atanásio Teixeira (Ava Nhu Moendaju) - mestre tradicional. Ele projeta vários destes pontos de convergência com os/as indígenas pesquisadores/as no sentido das condições requeridas para os conhecimentos indígena adentrarem na escola:

Na escola os professores não ensinam como deveriam ensinar, no nosso modo de ser [...]. Os nossos costumes têm várias formas para ensinar as crianças para aprender bem o nosso modo de ser: é preciso os professores buscarem conhecimento com os rezadores ou conversar bastante com aquele que entende os nossos costumes, para ensinar conforme eles. Os professores têm que aprender primeiro para depois repassar para as crianças. Este ensino para as crianças é para elas não praticar o desentendimento constante com outro, para não beber na fase de criança e jovem, para não fumar na estrada. Conforme os problemas acontecem, para todos existe o modo adequado para ensinar, sobretudo, para as crianças aprender de verdade. Só assim as crianças vão aprender conviver na sociedade, ser pessoa de confiança, para cada coisa tem ensino adequado. (Entrevista, Sr. Atanásio, 2016, concedida a Renata Lourenço em 10 de julho de 2016).

Em sua fala, Atanásio transpõe códigos da moralidade Kaiowá que, hoje, muitos autores indígenas como Eliel Benites (2014BENITES, Eliel. 2014. Oguata Pyahu (Uma Nova Caminhada) no Processo de Desconstrução e Construção da Educação Escolar Indígena da Aldeia Te’ýikue. Campo Grande, Dissertação de mestrado, Universidade Católica Dom Bosco.; 2019), Izaque João (2011JOÃO, Izaque. 2011. Jakaira Reko Nheypyrũ Marangatu Mborahéi: Origem e fundamentos do canto ritual Jerosy Puku entre os Kaiowá de Panambi, Panambizinho e Sucuri’y, Mato Grosso do Sul. Dourados, Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Grande Dourados.), Tonico Benites (2009BENITES, Tonico. 2009. A escola na ótica dos Ava Kaiowá: Impactos e interpretações indígenas. Rio de Janeiro, Dissertação de mestrado, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.; 2014BENITES, Tonico. 2014. Rojeroky hina ha roike jevy tekohape (Rezando e lutando): o movimento histórico dos Aty Guasu dos Ava Kaiowa e dos Ava Guarani pela recuperação de seus tekoha. Rio de Janeiro, Tese de doutorado, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.), Claudemiro Pereira Lescano (2014LESCANO, Claudemiro Pereira. 2016. Tavyterã Reko Rokyta: os pilares da educação Guarani Kaiowá nos processos próprios de ensino e aprendizagem. Campo Grande, Dissertação de mestrado, Universidade Católica Dom Bosco.) e Gileandro Barbosa Pedro (2020PEDRO, Gileandro Barbosa. 2020. Ore Rekohaty (Espaço de pertencimento, lugar que não se perde): Do esbulho das terras à resistência do modo de ser dos Kaiowá da Terra Indígena Panambi - Lagoa Rica em Douradina MS (1943 - 2019). Dourados, Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Grande Dourados.) vêm buscando sistematizar. Tais códigos ou fundamentos devem ser a pauta para a construção desta teoria do conhecimento Guarani e Kaiowá.

Várias outras falas de rezadores/as durante o Encontro da Ação Saberes Indígenas na Escola4 4 Programa no âmbito do Território Étnico Educacional, criado pelo Ministério da Educação (MEC), que abrange as escolas das áreas ocupadas por Guarani e Kaiowá no sul de MS, cujo encontro aconteceu na Terra Indígena do Panambizinho, entre os dias 23 e 25 de junho de 2016. , realizado na Terra Indígena Panambizinho, demonstraram o esforço empreendido pelos intelectuais tradicionais (rezadores/as) em recompor uma narrativa em que os conhecimentos próprios sejam difundidos pela escola, pois no espaço/território 5 5 Ver BENITES, Eliel. 2020 “Tekoha Ñeropu’ã: aldeia que se levanta”. Rev. NERA 23(52): 19-38. https://doi.org/10.47946/rnera.v0i52.7187 é que a grande maioria continua a viver e a se reproduzir como grupo societário.

Quando a primeira autora esteve na Terra Indígena Panambizinho, em janeiro de 2020, para acompanhar as discussões do projeto Teko Joja6 6 Projeto coordenado por Eliel Benites e financiado pela União Europeia, em parceria com a instituição Imagem da Vida e o Núcleo de Apoio Indígena da UFGD (NAIN), com o apoio do Ministério Público Federal. Objetivase o levantamento de 500 casos de violações de direitos humanos para estabelecer estratégias de combate e sua superação. A escola se torna mais uma vez espaço privilegiado destas ações. , verificou que a terra estava, em quase toda a sua extensão, arrendada para o plantio de soja e milho em larga escala, assentado na lógica do modelo de produção do agronegócio. Ao que tudo indica, todo este cenário de pretenso diálogo se esvai no contexto da realidade em que os/as Guarani e Kaiowá têm dificuldades em promover a autossustentabilidade por razões diversas. Neste contexto, a escola é inquirida a contribuir para um debate criativo sobre assuntos complexos que geram intensas disputas internas nas comunidades. Se conseguirá, eis o grande desafio.

No mesmo encontro em Panambizinho, o indígena pesquisador Izaque João, ao fazer a tradução de falas de rezadores, em guarani, registradas pela primeira autora, evidenciou que as discussões ali processadas sobre os conhecimentos tradicionais apresentam as condições “ideais” para a reprodução da vida dos/as Kaiowá e Guarani. Contudo, no âmbito de sua aplicabilidade nas escolas, atrelado também à problemática geracional, o tema da reprodutibilidade ideal da vida dos/as Kaiowá e Guarani acaba tendo pouca adesão no ambiente escolar. Segundo este pesquisador, as novas gerações não acompanham o tema nas escolas porque os rituais, as danças e as rezas não podem ser transpostas para o papel e é necessária uma formação específica para se tornar rezador/a/xamã. Neste aspecto, a escola ajuda a interromper esta tradição, mas continua a ser motivo de debates e tentativas de reaver os pilares kaiowá e guarani na formação de crianças e jovens, ainda que tensionados pela concorrência com outros valores e normas, como os difundidos pelas igrejas (neo)pentecostais.

A primeira autora registrou, em caderno de campo, outras falas de Izaque João7 7 Izaque João é um pesquisador extremamente atento e aplicado, dedicado à compreensão da vida ritual e temas cosmológicos (João, 2011), agora cursando doutorado em Antropologia Social na Universidade de São Paulo. Entretanto, até recentemente atuou como professor e também como coordenador do curso de magistério Ara Vera, sempre conjugando as atribuições de pesquisador e ator político. Também atua na produção de filmes e edição de textos sobre as práticas rituais dos Kaiowá, em estreita colaboração com o antropólogo Spensy Pimentel, como na organização e tradução do livro Cantos dos animais primordiais: Guyra guahu ha mymba ka’aguy ayvu (Teixeira, 2022) realizadas em cursos de formação de professores/as indígenas, nas quais explicita que as novas lideranças letradas e professores/as em geral têm o desafio de desenvolver uma teoria do conhecimento que repense como produzir e fazer circular estes bens culturais junto às novas gerações em idade escolar. Essa questão é remetida ao desafio de construção de uma filosofia guarani e kaiowá aplicada aos conhecimentos escolares. Izaque João sugere, ainda, eleger discípulos dispostos a manter uma certa fidelidade de reprodução de conhecimentos das regras ensinadas e praticadas pelos rezadores, mas também o desafio de “patrimonializar”, como dizia, estes conhecimentos, bem como a necessidade de descobrir a forma de fazê-lo. O esforço, ao que parece, é no sentido de realizar o autorreconhecimento dos bens culturais kaiowá e guarani e fazer com que eles sejam reconhecidos como patrimônio cultural desses povos, inclusive na escola. Esse parece ser um projeto de um grupo de pesquisadores/as Kaiwoá e Guarani, sendo Izaque um de seus incentivadores. Existe uma convergência em várias falas de lideranças escolares que remetem à incumbência que devem assumir na elaboração destes escopos de teorias próprias, questionando o modelo de pensar não indígena, baseado na desnaturalização do universo circundante, onde só o ser humano pode agir. O pensamento Guarani e Kaiowá, ao contrário, tem como premissa que todos os seres têm ação, intencionalidades e desejos, orientados pelos guardiões que geram vida. Nesse sentido, todos os tipos de seres formam coletividades próprias, com suas linguagens e modos de ser específicos de ser (teko), em um movimento circular contínuo, que conecta todos os modos de ser, dispostos nos vários planos do cosmos (cf. Benites, E.; Pereira, 2021BENITES, Eliel; PEREIRA, Levi Marques. 2021. “Os conhecimentos dos guardiões dos modos de ser - teko jára, habitantes de patamares de existência tangíveis e intangíveis e a produção dos coletivos kaiowá e guarani”. Revista Tellus, vol. 21, n. 44: 195-226. DOI 10.20435/tellus.vi44.745.
https://doi.org/10.20435/tellus.vi44.745...
).

As pesquisas realizadas por Izaque João (2011JOÃO, Izaque. 2011. Jakaira Reko Nheypyrũ Marangatu Mborahéi: Origem e fundamentos do canto ritual Jerosy Puku entre os Kaiowá de Panambi, Panambizinho e Sucuri’y, Mato Grosso do Sul. Dourados, Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Grande Dourados.) demonstram que poucos espaços institucionais foram abertos para o modo de ser Kaiowá e Guarani, especialmente nas escolas indígenas e mesmo na Universidade, o que instiga a necessidade de os/as professores/as, em posse dos conhecimentos tradicionais vitais para o “bem viver” destes grupos, elevarem os conhecimentos guarani e kaiowá para o âmbito da epistemologia educacional. É visível que muitos/as indígenas pesquisadores/as já se deram conta de que a Universidade até pode negociar conteúdos, mas não os modos de fazer educacional diferente, ou seja, os modos de produzir e transmitir conhecimentos, com implicações diretas nos contextos nos quais se efetiva sua produção e transmissão. Desta forma, até mesmo os modos de conhecer terão de ser confrontados. O desafio para os indígenas será questionar os vários campos do conhecimento, pensar em como avançar o saber indígena em sua presença no espaço escolar, fazer outras antropologias, para se espraiar pelos ambientes de formação acadêmica ao mesmo tempo em que o diálogo com conhecimentos da sociedade nacional devem ser preservados, inclusive como forma de ampliação destes referenciais.

Ainda assim, algumas bases de conhecimento indígena são acionadas de modo pontual em algumas escolas, como possibilidade de encontro entre a escola e os conhecimentos tradicionais, ainda que em um ambiente tensionado por várias correlações de força e com baixa compreensão sobre como proceder estas aproximações. O empenho, neste caso, se versa sobre como aproximar o modo como se organiza o saber a partir de princípios filosóficos próprios e em diálogo com os conhecimentos não indígenas.

Com base na escuta e entrevistas com os mais velhos, podemos notar que a vida, em suas infinitas experiências cotidianas, não pode ser transposta em sua inteireza para a escola: o que pode e deve ir para a escola são os referenciais simbólicos e filosóficos do ser guarani e kaiowá, bem como as demandas decorrentes das mazelas sociais advindas da própria escola e das relações com o entorno regional (não só provindas de relações sociais, mas também de trabalho e consumo, entre tantas outras formas). De acordo com a percepção dos/as indígenas pesquisadores/ as, a escola e seus sustentáculos devem ser acionados como possível espaço aglutinador, visando o desenvolvimento de projetos de futuro, ainda que na perspectiva de discussões embrionárias até o momento e com baixa coalizão de forças. A discussão ainda é restrita aos/às pesquisadores/as indígenas, alguns líderes tradicionais e outras lideranças e alunos/as das escolas. Entretanto, a maior parte das pessoas, em especial as evangélicas, não foram sensibilizadas por estas discussões e tampouco há dados sobre como reagirão a esse debate.

Os/as indígenas pesquisadores/as parecem indicar que as políticas culturais dos Guarani e Kaiowá passam necessariamente pela mediação entre seus próprios conhecimentos assentados no modo de ser e existir tradicional indígena, o ava reko, e os conhecimentos escolares. Um conceito que eventualmente possa fazer parte do debate é o de modo se ser atual, teko pyahu, ou teko ko’ãngagua, podendo permitir uma abordagem que parta da ruptura, mas da conexão entre modos de existir. O debate gravita em torno de demandas das mais variadas, relacionadas à luta pela terra, alimentação, saúde, segurança, produção e comercialização de alimentos, emprego/renda, transporte, moradia, escolarização, comunicação, parentesco, socialização das crianças, etc.

A partir das articulações provindas do próprio processo de formação escolar, Eliel Benites, através do projeto Teko Joja referido acima expressa uma série de estratégias possíveis que possibilitariam o diálogo entre os mais variados grupos dentro de cada reserva indígena, terra indígena ou retomada, buscando desenvolver na prática ações educativas via escola. A título de experiência piloto, se desenvolve junto à comunidade do Panambizinho, a partir de um conceito próprio guarani e kaiowá que ele define como um eixo orientador, o teko koja, que agregaria o núcleo central do modo próprio de ser kaiowá - o ava reko. A partir desse referencial, seria possível pensar práticas inovadoras, capazes de conferir inteligibilidade aos desafios atuais. O esforço seria no sentido de tangenciar uma teoria do conhecimento propriamente guarani e kaiowá, objetivando entrar com maior solidez nos conteúdos escolares. Trata-se, pois, de um projeto de futuro que, no mínimo, indica parte dos resultados positivos da escolarização das últimas três décadas. O resultado “positivo” da escolarização parece ser a possibilidade ou, talvez, a necessidade de transformá-la em uma outra coisa.

O estímulo à sistematização dessa teoria do conhecimento para ser reproduzida no ambiente escolar vem da constatação dos/as pesquisadores/as Kaiowá e Guarani de que a escolarização a que foram submetidos/as afastou essas pessoas dos conhecimentos indígenas, exigindo delas um esforço de reaproximação. Trazer para a escola o modo próprio de produzir e transmitir conhecimentos seria a condição para que as novas gerações escolarizadas não passem pelos mesmos prejuízos impostos.

Neste sentido, as reflexões de Eliel Benites nos apresentam uma escola como espaço privilegiado de discussões e acordos tácitos entre os vários grupos que compõem as comunidades. Se, por um lado, este projeto pode apresentar-se como uma “utopia” não enquanto problema, pois é útil para a vida, de acordo com o próprio Eliel -, por outro lado o projeto aponta para avanços significativos a depender de uma série de forças em competição, mas que atualmente se propõem como espaço mais apropriado para debates que envolvem todos os aspectos da vida guarani e kaiowá. A proposta, centrada em conteúdos novos, passa por um modo particular de ver, ouvir e sentir, segundo o modo próprio destes grupos.

Eliel Benites é sempre enfático na especificidade do modo de produção do conhecimento indígena como metodologia que aciona outros campos de percepção e outros sentidos, para além do racional. Segundo explicou Eliel, a própria palavra arandu, normalmente traduzida como conhecimento, traria implícita essa característica, uma vez que sua etimologia é composta por ara (substantivo que reúne os sentidos de tempo e espaço) e hendu (verbo ouvir). Assim, o sentido etimológico de arandu seria saber ouvir o tempo e o espaço, donde deduzimos: saber compreender e analisar o espaço de vivência e as relações que aí se desenvolvem, inclusive das conexões com outros modos de existir situados nos distintos patamares da existência. Estamos, portanto, bem distantes do cogito racional “penso, logo existo”, embrião do pensamento moderno.

É interessante observar a determinação dos/as indígenas pesquisadores/ as em reivindicar para si o protagonismo dos processos que envolvem suas vidas; essas pessoas domesticam não só os conhecimentos provindos da cultura majoritária, mas buscam convertê-los aos seus próprios propósitos. É instigante verificar suas habilidades voltadas ao esforço de “pacificar” estes conhecimentos de modo a assumirem a condição de atores, protagonistas que conduzem a cena, ainda que se encontrem em franca desvantagem em um cenário adverso de exclusão e preconceito. Ao mesmo tempo em que denunciam as imposições e violências sofridas historicamente, tais pesquisadores/as, em tempos recentes, reivindicam a condução dos processos que dizem respeito às suas vidas, o que alguns costumam demonstrar claramente incitando a ideia de não se vergarem perante a dominação e driblarem as adversidades de modo a extrapolar estes ditames, se reinventando a partir dos referenciais kaiowá e guarani que se desdobram em ações a partir de seus próprios modos de pensar e existir, ava reko.

Nesta direção, Eliel reforça e introduz outras dimensões de uma teoria do conhecimento voltada para o sistema de organização social dos Guarani e Kaiowá - é aí que se assenta o projeto Teko Joja. Este se desdobrou em uma ação de formação na Terra Indígena Panambizinho para professores e lideranças, em diálogo com vários parceiros e colaboradores cujas reflexões e ações intentam reverter em iniciativas institucionais ou comunitárias para a construção de novas práticas voltadas, como expressaram, para o chão das escolas. Pedimos permissão ao leitor para citar um longo trecho de uma fala de Eliel, uma verdadeira aula magistral:

A ideia do projeto tem uma história um pouco diferente da própria ideia do Teko Joja, de quando a gente começou aqui na FAIND8 8 Faculdade Intercultural Indígena da UFGD (FAIND) , no Teko Arandu9 9 Curso de graduação indígena em nível universitário da FAIND/UFGD, Teko Arandu. . O Teko Joja enquanto ideia, já tinha, já existia na cultura guarani e kaiowá como uma filosofia, como teko, como uma palavra teko, que é o modo de ser, e com a palavra tekoha também, porque existem outros elementos filosóficos, vamos dizer assim, que orienta toda a existência dos Guarani e Kaiowá. [...] Daí a ideia de nós começarmos por três palavras fundamentais que orientam também a ideia do curso Ara Verá10 10 Formação em nível de 2º grau indígena para os Guarani e Kaiowá. , do Teko Arandu e do movimento indígena que é Teko, Tekoha e Ñe’ẽ11 11 Essas palavras-conceitos comportam muitos sentidos. Apresentamos aqui os que consideramos centrais, para melhor situar o leitor não familiarizado com a etnografia guarani e kaiowá. Teko é o modo de ser, de existir, podendo expressar a ideia de vida, como che reko, minha vida. Tekoha é o lugar onde se vive de acordo com o próprio modo de ser kaiowá e guarani, ou seja, o tempo-espaço onde se efetiva a prática do teko. Ñe’e é a palavra, a língua, mas também a alma que toma assento no corpo da pessoa. . São três eixos que orientam todo o currículo do próprio movimento e do próprio curso. A partir dali a gente começou a pensar melhor o que seria o teko. O teko, na verdade, é um caminho, mas um caminho que tem que ter uma característica, que é o Teko Joja. Então, o Teko Joja, o teko porã, que é o belo modo de ser, são vários modos comportamentais no trajeto da busca do sagrado, que é a própria existência indígena. Então, foi interessante a gente pegar algumas ideias pra orientar o projeto, como o projeto estava enxergando, mas com modus não indígena, onde [...] dois polos de observatório de direitos indígenas e aí havia uma formação de lideranças, uma forma para entender melhor os seus problemas, de onde vêm os problemas mais comuns dos Guarani e Kaiowá, em todos os aspectos. A gente começou a referenciar nestas ideias que é o Teko Joja, aí foi se materializando e foi se caracterizando como um projeto. Teko Joja a gente foi atuar, agora recentemente, no Panambizinho, é uma formação como caminhar neste tempo, hoje, desafiador na conjuntura política. Então o que é exatamente Teko Joja. O Teko Joja, na verdade, é uma filosofia, é como um movimento, o movimento que harmoniza, um movimento que faz com que a coletividade seja reproduzida. Então, o coletivo não é estável, o coletivo é resultado do movimento. O Teko Joja, ele reflete isto, é como um movimento circular, quando tem uma força central, um eixo central no qual rodeiam os outros materiais. Então, ele parte um pouco desta ideia, parte da discussão cosmológica, como, por exemplo, das estrelas. Tem uma [ideia] central e tem as outras que rodeiam a margem, na busca de ficar conectados na centralidade das forças, que é o eixo, que é o jekoha , que é o central. Então, esta ideia de movimento que produz o coletivo harmônico, que é o Teko Joja, tá sendo esfacelado pelo outro modo de ser, que é o modelo mais individual. Então, esta é uma base que a gente tá discutindo e refletindo com outras lideranças, refletindo com o Movimento, com os professores, o tipo de Teko Joja que nós queremos. Hoje, na atualidade, é uma resistência, resistência de luta pelos seus direitos. Então, um pouco nesta linha que é o projeto e não só do projeto, mas que referencia toda uma atuação de militância como professor, como Movimento de professores indígenas, como formador também. E nesta linha, também, a gente pode usar na interdisciplinaridade nas escolas indígenas, nos currículos das escolas de formação de professores, e politicamente também... Então, a ideia filosófica guarani, como elemento norteador de toda atuação política teórica, neste momento que nós estamos vivendo, é isto aí... (Entrevista, Eliel Benites, 2020BENITES, Eliel. 2020. “Tekoha Ñeropu’ã: aldeia que se levanta”. Rev. NERA vol. 23, n. 52: 19-38. DOI 10.47946/rnera.v0i52.7187.
https://doi.org/10.47946/rnera.v0i52.718...
, concedida a Renata Lourenço)

É interessante verificar, na fala de Eliel, algumas centralidades recorrentes nas falas de outros/as indígenas pesquisadores/as e escritores/as Guarani e Kaiowá. Izaque João, quando fez uma palestra no Sindicato de Trabalhadores em Educação de Dourados (SINTED), em meados de 2017, enfatizava a necessidade de construção do ser Kaiowá a partir de seus próprios referenciais, o que, desde muito cedo, deve ser feito com as crianças, pois na origem do ñe’ẽ (o espírito que se manifesta assim que a criança nasce) é preciso muito diálogo com os/as rezadores/as para a compreensão de como isto se processará pelos pais. Segundo Izaque João, quando as pessoas morrem os seus espíritos, que são como pássaros, voltam ao seu lugar de origem. Eles habitam o corpo das crianças logo que nascem, os quais são novamente inseridos no processo de aprendizagem, de acordo com as etapas de desenvolvimento da criança. Assim, cada um tem sua hora de aprender a se comportar socialmente. Quando começa a transmissão do conhecimento para este pássaro, neste novo habitat, isto deve ser de um “modo bom”, requerendo um ambiente tranquilo na casa e na comunidade. Quando esse processo não se dá de modo bom, este pássaro adoece. Assim, uma série de “normas e regras” devem ser praticadas para não “assustar” este pássaro/criança, tal como ensinar a ter sossego no novo ambiente de vida. O esforço da família deve ser para receber bem esse “pássaro” e conduzi-lo de maneira apropriada dentro de ser/criança em constituição.

Ainda, segundo Izaque João, esse processo está intimamente relacionado à formação das palavras, que dão sentido a todas as coisas em suas duas dimensões: o Nhanderu Vusu ñe’ẽ oguerojera (processo de formação das palavras, construção de seus sentidos) é que vai possibilitar um conjunto de regras e normas para que possa ser passado de geração para geração, de pessoa para pessoa. A palavra tem vida e o seu sentido se dá na vivência. O processo de formação das palavras foi criado por Nhanderu Vusu para ser bem aplicado pelos rezadores ao ensinar os pais a educarem seus filhos. O ñe’ẽ mboypy (formação das palavras, construção e definição dos sentidos das palavras) é o que vai determinar toda a amplitude de cada palavra dentro de um sistema maior de significados: o que significa, onde e como usar, para que usar. Por exemplo: tekoha significa vida e espaço, teko marane’ỹ significa vida digna ou vida plena, teko marangatu significa plenitude da vida. O movimento circular de formação do ser kaiowá e guarani é voltado para alcançar o Teko Marangatu (vida em perfeição), que aciona o que se chama de Teko Joja (viver em reciprocidade, na solidariedade) e se relaciona com o Teko Marane’ỹ (viver sem maldade, em perfeição). Este circuito pode ser marcado também por rupturas (feitiço, casamentos desfeitos, disputas internas na família, rompimentos com a liderança e etc.), o que exige acionar uma série de outros sistemas de conhecimentos/práticas visando superar estas circunstâncias, de modo a permitir que este sujeito continue a viver em equilíbrio. Nas palavras de Izaque, tudo isto implica um conjunto de “regras e normas” e condutas para viver bem.

Os referenciais vinculados à cosmologia kaiowá e guarani, conectando habitantes dos diversos patamares celestes, estão atrelados a uma dimensão concreta da vida na terra - yvy rupa -, que está em constante processo de transformação, pressupondo a necessidade de novos arranjos. No contexto atual e existência nas reservas surgiram os novos levantadores de parentelas (Pereira, 2016PEREIRA, Levi Marques. 2016. “Levantadores de parentelas kaiowá e guarani em Mato Grosso do Sul: agency e atualização de saberes na produção da sociabilidade”. In: SILVEIRA, Nadia Heuse; MELO, Cláudia Rocha de; CARVALHO DE JESUS, Suzana (orgs.). Diálogo com os Guarani: articulando compreensões antropológicas e indígenas. Florianópolis, Ed. UFSC, pp. 45-78.), não mais só oriundos exclusivamente da conjugalidade de casais e dos parentes reunidos em torno do casal, mas de outros coletivos como o de mulheres, jovens, religiosos/as, professores/as, pastores e etc. que passam a mediar a produção de módulos organizacionais. É nesse cenário que os/as pesquisadores/as indígenas buscam refletir sobre a experiência social atual e de como é possível encontrar formas de engajamento na luta para seguir produzindo e fortalecendo suas coletividades. Estes/as pesquisadores/as buscam acionar uma série de conhecimentos dos mais velhos ou que circulam nas instituições nas quais transitam. É preciso destacar que cada coletivo ou modalidade organizacional que se levanta dispõe de um campo exclusivo de relações, resultando que sua composição é sempre sui generis, embora compartilhe um mesmo conjunto de referenciais disponível aos demais coletivos. É esse compartilhamento que permite a estes/as pesquisadores/as se reconhecerem como parte de uma mesma formação social: todos são Kaiowá ou Guarani, embora seus coletivos apresentem características que lhes são próprias, ou seja, um estilo próprio, desde o/a xamã até o pastor12 12 Estas podem ser posições intercambiáveis, ou seja, é possível a alguém apresentarse como evangélico em um momento e como rezador em outro, ou vice e versa. Entretanto, muitos rezadores não aceitam essa alternância de posição e isso não exclui a existência de forte oposição entre pastores e evangélicos, gerando muitas vezes um clima tenso nas aldeias, situação em que prosperam muitas acusações de parte a parte, ocorrendo ainda frequentes incêndios de casas de rezas, creditados a supostas ações criminosas de opositores das práticas xamânicas. (Pereira, 2016PEREIRA, Levi Marques. 2016. “Levantadores de parentelas kaiowá e guarani em Mato Grosso do Sul: agency e atualização de saberes na produção da sociabilidade”. In: SILVEIRA, Nadia Heuse; MELO, Cláudia Rocha de; CARVALHO DE JESUS, Suzana (orgs.). Diálogo com os Guarani: articulando compreensões antropológicas e indígenas. Florianópolis, Ed. UFSC, pp. 45-78.; Valiente, 2019VALIENTE, Celuniel Aquino. 2019. Modos de produção de coletivos kaiowá na situação atual da Reserva de Amambai, MS. Dourados, Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Grande Dourados.).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A teoria do conhecimento em cuja sistematização um expressivo número de pessoas Kaiowá e Guarani empenhadas em se qualificar como pesquisadores/ as acadêmicos/as comporta temas variados e complexos como: luta pela terra, sustentabilidade, meio ambiente, produção de seus próprios coletivos, estratégias para se relacionarem com a sociedade nacional e suas instituições, rompimento com as relações de colonialidade, problemas da institucionalização da escola aos moldes não indígenas, assim como o próprio sistema de formação de professores.

Estas pautas, enquanto reflexões e sistematizações de tais pesquisadores/ as, são orientadas pela necessidade de encontrar respostas e desenvolver práticas políticas para o enfrentamento dos problemas que afligem suas comunidades, tendo como referência o conhecimento dos antigos cuja patrimonialização começa entrar em pauta. Nesse sentido, trata-se de uma teoria engajada com a vida dos coletivos que compõem essa formação social e estão se preparando para embates e ampliação dos espaços de atuação com uma maior projeção de lógicas próprias para solução de problemas cotidianos. A escola e a pesquisa são tomadas como espaços para formulação de uma política cultural kaiowá e guarani que comporte formas de intervenção política capazes de defender seu modo próprio de ser e existir no mundo.

De modo geral, se apreende que os/as próprios/as indígenas reivindicam protagonizar as políticas de educação escolar, discutir e superar suas ambiguidades, no esforço de domesticar esses espaços em paralelo ao modo de ser e de viver próprio. São eles, enfim, a nos ensinar o que deve ser a educação libertadora e a serviço da sociedade.

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  • VALIENTE, Celuniel Aquino. 2019. Modos de produção de coletivos kaiowá na situação atual da Reserva de Amambai, MS. Dourados, Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Grande Dourados.
  • 1
    A noção de cosmopolítica foi intensamente discutida por Isabelle Stengers (2014STENGERS, Isabelle. 2014. “La propuesta cosmopolítica”. Pléyade, vol. 14: 17-41. Disponível em Disponível em http://www.revistapleyade.cl/index.php./OJS/ article/view/159 . Acesso em 5 set. 2022.
    http://www.revistapleyade.cl/index.php./...
    ) e tem sido aplicada em várias pesquisas de etnología como, por exemplo, na tese de doutorado de Spensy Pimentel (2012PIMENTEL, Spensy Kmitta. 2012. Elementos para uma teoria política kaiowá e guarani. São Paulo, Tese de doutorado, Universidade de São Paulo.), Elementos para uma teoria política kaiowá e guarani.
  • 2
    Realizado pela equipe do Projeto Ford/Centro de Estudos da Metrópole (Cebrap) em parceria com o Centro de Estudos Ameríndios, na Universidade de São Paulo (USP), em novembro de 2013.
  • 3
    Para os professores indígenas parece ser difícil fugir do controle comunitário, em especial do círculo dos parentes, embora alguns tentem. O normal é que o/a professor/a cuja posição agrega prestígio e renda acabe se tornando uma referência para o grupo parental, passando a atuar como articulador/a ou liderança, posição que agrega prestígio, mas impõe também uma série de obrigações, inclusive redistribuição de bens. Fugir a essas obrigações implica em estar exposto a uma série de represálias e sanções.
  • 4
    Programa no âmbito do Território Étnico Educacional, criado pelo Ministério da Educação (MEC), que abrange as escolas das áreas ocupadas por Guarani e Kaiowá no sul de MS, cujo encontro aconteceu na Terra Indígena do Panambizinho, entre os dias 23 e 25 de junho de 2016.
  • 5
    Ver BENITES, Eliel. 2020 “Tekoha Ñeropu’ã: aldeia que se levanta”. Rev. NERA 23(52): 19-38. https://doi.org/10.47946/rnera.v0i52.7187
  • 6
    Projeto coordenado por Eliel Benites e financiado pela União Europeia, em parceria com a instituição Imagem da Vida e o Núcleo de Apoio Indígena da UFGD (NAIN), com o apoio do Ministério Público Federal. Objetivase o levantamento de 500 casos de violações de direitos humanos para estabelecer estratégias de combate e sua superação. A escola se torna mais uma vez espaço privilegiado destas ações.
  • 7
    Izaque João é um pesquisador extremamente atento e aplicado, dedicado à compreensão da vida ritual e temas cosmológicos (João, 2011JOÃO, Izaque. 2011. Jakaira Reko Nheypyrũ Marangatu Mborahéi: Origem e fundamentos do canto ritual Jerosy Puku entre os Kaiowá de Panambi, Panambizinho e Sucuri’y, Mato Grosso do Sul. Dourados, Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Grande Dourados.), agora cursando doutorado em Antropologia Social na Universidade de São Paulo. Entretanto, até recentemente atuou como professor e também como coordenador do curso de magistério Ara Vera, sempre conjugando as atribuições de pesquisador e ator político. Também atua na produção de filmes e edição de textos sobre as práticas rituais dos Kaiowá, em estreita colaboração com o antropólogo Spensy Pimentel, como na organização e tradução do livro Cantos dos animais primordiais: Guyra guahu ha mymba ka’aguy ayvu (Teixeira, 2022TEIXEIRA, Ava Ñomoandyja Atanásio. 2022. Cantos dos animais primordiais: Guyra guahu ha mymba ka’aguy ayvu. São Paulo: Hedra.)
  • 8
    Faculdade Intercultural Indígena da UFGD (FAIND)
  • 9
    Curso de graduação indígena em nível universitário da FAIND/UFGD, Teko Arandu.
  • 10
    Formação em nível de 2º grau indígena para os Guarani e Kaiowá.
  • 11
    Essas palavras-conceitos comportam muitos sentidos. Apresentamos aqui os que consideramos centrais, para melhor situar o leitor não familiarizado com a etnografia guarani e kaiowá. Teko é o modo de ser, de existir, podendo expressar a ideia de vida, como che reko, minha vida. Tekoha é o lugar onde se vive de acordo com o próprio modo de ser kaiowá e guarani, ou seja, o tempo-espaço onde se efetiva a prática do teko. Ñe’e é a palavra, a língua, mas também a alma que toma assento no corpo da pessoa.
  • 12
    Estas podem ser posições intercambiáveis, ou seja, é possível a alguém apresentarse como evangélico em um momento e como rezador em outro, ou vice e versa. Entretanto, muitos rezadores não aceitam essa alternância de posição e isso não exclui a existência de forte oposição entre pastores e evangélicos, gerando muitas vezes um clima tenso nas aldeias, situação em que prosperam muitas acusações de parte a parte, ocorrendo ainda frequentes incêndios de casas de rezas, creditados a supostas ações criminosas de opositores das práticas xamânicas.
  • CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA:

    Renata e Levi participaram igualmente da coleta e organização dos dados etnográficos em diferentes momentos e contextos de pesquisa. Ambos colaboraram com a elaboração do texto apresentado e também da sistematização do argumento e seu desenvolvimento no curso do artigo.
  • FINANCIAMENTO:

    A pesquisa não contou com financiamento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    07 Abr 2021
  • Aceito
    20 Jun 2022
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