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O poder disciplinar nas organizações formais

ARTIGOS

O poder disciplinar nas organizações formais

Fernando Cláudio Prestes Motta

Professor no Departamento de Administração Geral e Recursos Humanos da EAESP/FGV

Os estudos sobre organizações complexas frequentemente deixam de lado o papel desses aparelhos na reprodução de uma formação social capitalista. Na realidade, parece inútil tentar analisar com autonomia um fenômeno que não é autônomo. As organizações são instrumentos de reprodução de uma sociedade de classes, o que também significa uma sociedade ainda dividida em frações de classes, camadas, estamentos e grupos sociais diversos.

Para uma mudança de perspectiva a contribuição de Poulantzas parece fundamental. Colocando a luta de classes no cerne da questão, esse autor afirma que a luta de classes não decorre da existência das classes. Isto significa que as classes existem na luta de classes, isto é, na luta econômica, política e ideológica em qué se traduz essa luta de classes. Assim, para se entender as classes sociais, deve-se assumi-las como "conjuntos de agentes sociais determinados principalmente, mas não exclusivamente, por seu lugar no processo de produção".1 1 Poulantzas, Nicos. As classes sociais no capitalismo de hoje. Rio de Janeiro, Zahar, 1975. p. 13. Não exclusivamente, porque devemos considerar múltiplas determinações de dominação e subordinação políticas e ideológicas.

Naturalmente que o critério fundamental para a percepção das classes sociais em uma dada formação é sempre, è antes de mais nada, o critério das relações de produção vigentes nessa formação. A constituição dessas relações de produção parte de uma dupla relação. Essa dupla relação engloba em primeiro lugar as relações dos homens com a natureza na produção material, as relações dos agentes com o objeto e os meios de trabalho 33 que definem as forças produtivas, ou seja, a tecnologia e as formas de cooperação. Em segundo lugar, essa dupla relação implica a relação dos homens entre si, conforme ; sua relação com o objeto e os meios de trabalho. Por outras palavras, propriedade ou posse definem as relações de classe.2 2 Id. ibid. p. 19.

As relações de produção, engendrando a estrutura de classes, engendram também o poder de classe. De onde decorre que as relações de dominação, e em uma sociedade capitalista avançada a dominação aparece como administração, não podem ser entendidas a não ser em sua articulação com as relações de produção. Nas palavras de Poulantzas: "As relações de produção e aquelas que as compõem (propriedade econômica/posse) traduzem-se sob a forma de poderes daí decorrentes, em suma pelos poderes de classe: como tais, estes poderes estão constitutivamente ligados às relações políticas e ideológicas que os consagram e legitimam ... O processo de produção e exploração é ao mesmo tempo processo de reprodução das relações de dominação e subordinação política e ideológica."3 3 Id. ibid. p. 22.

Acontece, porém, que as classes sociais e sua reprodução implicam a materialização das relações de classe. A materialização dessas relações se dá nas organizações complexas. Como afirma Poulantzas: "As classes sociais e sua reprodução só existem pela relação classes sociais/ aparelhos de Estado e aparelhos econômicos. Tais aparelhos não se sobrepõem simplesmente como apêndices à luta de classes, mas detêm um papel constitutivo,"4 4 Id.ibid. p, 27.

As organizações, enquanto aparelhos, desempenham diversos papéis importantes na reprodução das classes sociais. É essa constatação que permite assim defini-las. Enquanto aparelhos, as organizações se classificam inicialmente em dois grandes grupos: aparelhos econômicos (empresa) e aparelhos de Estado. É fundamentalmente enquanto estrutura de poder que a empresa constitui um aparelho, da mesma forma que os aparelhos de Estado.

Poulantzas lembra que "os aparelhos de Estado têm como principal papel a manutenção da unidade e a coesão de uma formação social que concentra e consagra a dominação de classe, e a reprodução, assim, das relações sociais, isto é, das relações de classe. As relações políticas e as relações ideológicas se materializam e se encarnam, como práticas materiais, nos aparelhos de Estado. Esses aparelhos compreendem, de um lado, o aparelho repressivo de Estado, no sentido estrito, e seus ramos: exército, polícia, prisões, magistratura, administração; de outro lado, os aparelhos ideológicos de Estado: o aparelho escolar, o aparelho religioso (as Igrejas), o aparelho de informação (rádio, televisão, imprensa), o aparelho cultural (cinema, teatro, edição), o aparelho sindical de colaboração de classe e os partidos políticos burgueses e pequeno burgueses, etc, e enfim, sob certo aspecto, e pelo menos no modo de produção capitalista, a família".5 5 Id. ibid. p. 26.

Da mesma forma, segundo ainda Poulantzas, "uma empresa, enquanto unidade de produção sob sua forma capitalista, constitui um aparelho, no sentido de que reproduz, pela divisão social do trabalho em seu seio (organização despótica do trabalho), as relações políticas e ideológicas referentes aos lugares das classes sociais".6 6 Id. ibid. p. 34. Tendo-se em conta que os aparelhos não criam a divisão da sociedade em classes, mas contribuem para essa divisão e para sua reprodução ampliada, parece oportuno tentar classificar as organizações enquanto aparelhos voltados para essa reprodução, conforme a figura 1.


Essa classificação que segue rigorosamente a análise de Poulantzas sugere o aspecto central de cada tipo de organização, bem como sugere a função básica da couraça organizacional que domina as sociedades capitalistas avançadas, daí capitalistas burocráticas. Ela oculta, porém, um outro aspecto não menos essencial para quem tem as organizações como objeto de análise. Por mais que uma organização se caracterize como aparelho econômico, ela é também aparelho repressivo e aparelho ideológico. Da mesma forma, todo aparelho ideológico é repressivo e todo aparelho repressivo é ideológico. Esse fenômeno deriva do fato de que as organizações cumprem suas funções reprodutoras primordialmente através de mediações políticas e ideológicas. Em suma, organização é poder.

Em outro trabalho, estivemos mais preocupados com as diferenças entre as diversas organizações.7 7 Veja Prestes Motta, Fernando C. As organizações burocráticas e a sociedade. Revista Educação e Sociedade, CEDES, v. 4, 1979. Aqui nossa preocupação é muito mais com as semelhanças.

Para esse objetivo o ponto de partida segundo o qual organização é poder parece primordial, bem como essenciais parecem algumas análises de Foucault, Goffman, Pagès, Lobrot e Grignon.

Foucault é por muitas razões o outro lado de Poulantzas. Enquanto o segundo investiga o poder no Estado, embora não apenas no Estado, Foucault sublinha a existência de formas de exercício do poder que não dizem respeito ao Estado de modo direto, mas que são indispensáveis para a sua eficácia e, portanto, para sua sustentação "... não existe em Foucault uma teoria geral do poder. O que significa dizer que suas análises não consideram o poder como uma realidade que possua uma natureza, uma essência que ele procuraria definir por suas características universais. Não existe algo unitário e global chamado poder, mas unicamente formas díspares, heterogêneas, em constante transformação. O poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal, constituída historicamente. Esta razão, no entanto, não é suficiente, pois, na realidade, deixa sempre aberta a possibilidade de se procurar reduzir a multiplicidade e a dispersão das práticas de poder através de uma teoria global que subordine a variedade e a descontinuidade a um conceito universal. Não é assim, entretanto, que Foucault tematiza o poder .. . Nesse sentido, nem a arqueologia, nem, sobretudo, a genealogia tém por objetivo fundar uma ciência, construir uma teoria, ou se constituir como sistema; o programa que elas formulam é o de realizar análises fragmentárias e transformáveis".8 8 Machado, Roberto. Por uma genealogia do poder. Introdução a Foucault, Michel. Microfísica do poder. Edição com base em textos de Michel Foucault, organizada por Roberto Machado. Rio de Janeiro, Graal, 1979.

As análises de Foucault não foram concebidas para serem aplicadas a outros objetos que não os focalizados pelo autor, isto é, não se pode passar da prisão à empresa com facilidade. Contudo, pode-se pensar em poder de uma outra forma, não partindo do Estado e de sua disseminação pelo corpo social. Nas palavras de Foucault: "Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, como a multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou, ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação de leis, nas hegemonias sociais."9 9 Foucault, Michel História da sexualidade. Rio de Janeiro, Graal, 1979. p. 88-9. Essa proposta implica a negação em pensar o poder apenas como dominação de indivíduos ou de grupos sobre outros deixando de lado também as visões legalísticas do poder. Implica um jogo cujas peças fundamentais parecem ser o saber, o poder e a instituição.

Esse jogo parece permitir a Foucault caminhar em linhas diversas, estudando o saber médico, o hospital psiquiátrico, a prisão, a vigilância e a submissão. É assim que vê o manicômio como "lugar de diagnóstico e classificação, retângulo botânico onde as espécies de doenças são divididas em compartimentos cuja disposição lembra uma vasta horta, mas também espaço fechado para um confronto, lugar de uma disputa, campo institucional onde se trata de vitória e submissão. O grande médico do asilo é, ao mesmo tempo, aquele que pode dizer a verdade da doença pelo saber que dela tem, e aquele que pode produzir a doença em sua verdade e submetê-la, na realidade, pelo poder que sua vontade exerce sobre o próprio doente."10 10 Foucault, Michel. Microfísica do poder. Op. cit. p. 121.

Em suma, são as correlações de força que nos permitem entender o poder de forma regionalizada. E é desse modo que Foucault chega a algo que parece implícito e não dito em toda a massa de estudos organizacionais: a questão do poder disciplinar. É verdade que a organização é poder e é igualmente verdadeiro que enquanto prática social esse poder organizacional se manifesta como poder disciplinar. O campo de atenção de Foucault se restringe porém à prisão. Generalizações que possamos fazer são por nossa conta e risco.

A repressão implica saberes constituídos tanto quanto a inculcação ideológica, a administração de negócios ou o tratamento de doentes mentais. Os saberes evoluem historicamente e desvendam formas novas de ação do poder. Assim, historicamente se pode delimitar marcos, como a criação do hospital geral em 1657 ou a libertação dos acorrentados de Bicêtre em 1794, que foram essenciais à génese do saber psiquiátrico atual. A repressão descobriu formas novas de ação de poder, não de forma súbita ou gratuita. O que ela terminou por esboçar foi um método geral, a disciplina. Para Foucault, a gênese da descoberta deve ser vista em uma "multiplicidade de processos, muitas vezes microscópicos, de origens diferentes (...) que se imbricam, se repetem, ou se imitam, apóiam-se uns nos outros, distinguem-se segundo seu campo de aplicação, entram em convergência e esboçam aos poucos a fachada de um método geral".11 11 Foucault, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 1977.

Nesse processo são fundamentais os conhecimentos que se desenvolvem sobre o controle do corpo, É preciso extrair do corpo seu potencial produtivo e ao mesmo tempo, e por isso mesmo, impor-lhe uma relação de docilidade. O corpo não é, pois, apenas o objeto de ataques frontais, o objeto da coerção direta. Os saberes sobre o corpo voltam-se para sua moralização, ou dito de outra forma, para sua domesticação com vistas a determinados fins. £ preciso canalizar todas as forças que possam ser produtivas, e para tanto não basta punir ou reprimir, mas torna-se essencial vigiar de modo discreto e permanente. Nas palavras de Foucault, "as disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação (...) diferentes da escravidão, pois não se fundam em uma relação de apropriação do corpo. (...) diferentes da domesticidade, que é uma relação constante, global, maciça, não-analítica, ilimitada (...) diferente da vassalagem, que é uma relação de submissão altamente codificada, mas longínqua e que se realiza menos sobre o corpo do que sobre os produtos do trabalho e as marcas rituais da obediência. (...) O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente".12 12 Id.ibid. p. 126-7.

O poder disciplinar instaura um novo universo que deixa de lado o suplício, a desnutrição, o esquartejamento ou o dilaceramento em praça pública, práticas comuns nas velhas monarquias que assim vingavam as desobediências ao rei e à sua ordem política ou religiosa. O novo universo é o da vigilância, do controle sobre o corpo, que se vai difundindo paulatina mas firmemente dominando as instituições penais. Á prisão é fruto do novo universo a "região mais sombria do aparelho de justiça, o local onde o poder de punir, que não mais ousa exercer-se com o rosto descoberto, organiza silenciosamente um campo de objetividade em que o castigo poderá funcionar em plena luz como terapêutica e, a sentença se inscreve entre os discursos do saber".13 13 Id. ibid. p. 227.

A prisão é a organização onde aparentemente se levou mais longe a tecnologia do poder disciplinar, através da organização do espaço, do controle do tempo, da vigilância e do exame contínuo. Todavia, o poder disciplinar pode sér encontrado em outras instituições, geralmente aquelas que se organizam em locais fechados e com estruturas burocráticas rígidas, como a fábrica, o manicômio, o convento e algumas escolas. Contudo, a não realização plena do poder disciplinar não indica sua ausência e nem mesmo sua pouca importância. O poder disciplinar é um aspecto essencial de qualquer organização formal no capitalismo burocrático.

Se toda sociedade tem seus códigos de ilegalidades, a prisão surge exatamente como o meio legal de punição dessas ilegalidades em uma sociedade moderna. Todavia a repressão não vale por si mesma nas organizações carcerárias; a lógica do poder disciplinar implica a distribuição, diferenciação e utilização dos infratores através da vigilância permanente. Os infratores são confrontados com um quadro geral de ilegalidades, criando-se um tipo específico de produção de delinqüência. O desenvolvimento da prisão é paralelo ao desenvolvimento da criminalidade urbana e isolada, em oposição aos motins e pilhagens, para os quais se mobilizam outras formas de repressão. Mas, se o objetivo da prisão é criar corpos dóceis e produtivos, se essa é a essência do poder disciplinar, por que então a prisão tende a fracassar na readaptação à sociedade?

Foucault procura responder a essa questão indagando-se se esse pretenso fracasso não faria parte do funcionamento da prisão: "Não deveria (este processo) ser inscrito naqueles efeitos de poder que a disciplina e a tecnologia conexa do encarceramento introduziram no aparelho de justiça e de uma maneira mais geral na sociedade e que podemos agrupar sob o nome de "sistema carcerário?"14 14 Id. ibid. p. 239. A real funcionalidade da prisão parece estar ligada a um mecanismo de ampliação da criminalidade. Produzindo uma delinqüência controlável, a prisão possibilitaria uma forma de vigilância permanente da população. Nas palavras de Foucault, o sistema carcerário constituiria "um aparelho que permite controlar, através dos próprios delinqüentes, todo o campo social".15 15 Id. ibid. p. 247. Polícia, prisão e delinqüente seriam três termos de um ciclo que se retroalimentaria. "A vigilância policial fornece à prisão os infratores que esta transforma em delinqüentes, alvo e auxiliares do controle policial que regularmente manda alguns deles de volta à prisão."16 16 Id. ibid. p. 248. A delinqüência é assim produzida e controlada, adaptando-se a um determinado modo de produzir. De resto, o poder disciplinar da prisão, com seus horrores, paira como ameaça a todos aqueles que precisam se submeter ao poder disciplinar mais sutil de outras organizações formais. A lógica é social antes de organizacional, implicando sempre a produção de corpos dóceis, cujo potencial produtivo é liberado e o potencial político inibido.

1. O PODER DISCIPLINAR NAS INSTITUIÇÕES TOTAIS

Goffman também estuda de modo exaustivo o poder disciplinar tal como aparece como aspecto das organizações. Ao contrário de Foucault, contudo, Goffman tenta uma teorização desse poder disciplinar através de um estudo sistemático daquilo que chama instituições totais, e que define como "um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada".17 17 Goffman, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo, Perspectiva, 1974. p. 11.

O autor procura inicialmente classificar as instituições totais em cinco grupos ou classes. "Em primeiro lugar, há instituições criadas para cuidar de pessoas que, segundo se pensa, são incapazes e inofensivas; nesse caso estão as casas para cegos, velhos, órfãos e indigentes. Em segundo lugar, há locais estabelecidos para cuidar de pessoas consideradas incapazes de cuidar de si mesmas e que são também uma ameaça à comunidade, embora de maneira não-intencional; sanatório para tuberculosos, hospitais para doentes mentais e leprosarios. Um terceiro tipo de instituição total é organizado para proteger a comunidade contra perigos intencionais, e o bem-estar das pessoas assim isoladas não constitui o problema imediato: cadeias, penitenciaras, campos de prisioneiros de guerra, campos de concentração. Em quarto lugar, há instituições estabelecidas com a intenção de realizar de modo mais adequado alguma tarefa de trabalho, e que se justificam apenas através de tais fundamentos instrumentais: quartéis, navios, colégios internos, campos de trabalho, colônias e grandes mansões (do ponto de vista dos que vivem nas moradias de empregados). Finalmente, há estabelecimentos destinados a servir de refúgio do mundo, embora muitas vezes sirvam também como locais de instrução para os religiosos; entre exemplos de tais instituições, é possível citar abadias, mosteiros, conventos e outros claustros.18 18 Id. ibid. p. 17.

O objetivo de Goffman ao estabelecer essa classificação não foi listar exaustivamente todos os tipos de instituições totais, mas ter um ponto de partida para definir suas características gerais. Tampouco essas características são exclusivas das instituições totais ou aparecem necessariamente em todas elas. O critério parece ser o da intensidade em que um grupo de tais características aparece na organização. Por outra, o poder disciplinar, expressão que Goffman não utiliza, aparece com muito mais clareza e força nas instituições totais do que nas demais organizações, embora também esteja presente nestas de modo significativo.

As instituições totais apresentam, portanto, as seguintes características, que decorrem do fato de as barreiras entre as diversas esferas da vida estarem rompidas. Em primeiro lugar, há uma concentração de todos os aspectos da vida em um mesmo local e sob uma única autoridade. Em segundo lugar, a atividade cotidiana de cada indivíduo é dividida em fases, que são realizadas em conjunto com um grupo relativamente grande de pessoas, obrigadas a fazer as mesmas coisas e tratadas da mesma maneira. Em terceiro lugar, há uma divisão rigorosa do tempo para as diversas atividades, cuja seqüência é imposta, de cima, por um grupo de funcionários e um conjunto de regras explícitas. Em quarto lugar, todas as atividades são organizadas de acordo com um plano racional único, supostamente elaborado para melhor atingir os fins oficiais da organização.19 19 Id. ibid. p. 17-8.

O controle burocrático das necessidades humanas de grupos relativamente grandes de pessoas nas instituições totais implica algumas conseqüências importantes. Há, em primeiro lugar, um pessoal cuja única função é a vigilância. Em segundo lugar, existe uma distância muito grande entre o grupo dos internos e a equipe dirigente. Enquanto o grande grupo de internos vive na instituição e tem um contato muito restrito com o mundo externo, o pequeno grupo dirigente trabalha em regime de oito horas, estando perfeitamente integrado no mundo externo. Em terceiro lugar, os dirigentes tendem a sentir-se corretos e superiores, enquanto os internos tendem a sentir-se inferiores e culpados. Em quarto lugar, a comunicação entre as duas categorias é restrita, tanto no que diz respeito à possibilidade de conversas, quanto no que diz respeito à transmissão de informações.

Há ainda outras conseqüências importantes das características das instituições totais que devem ser consideradas. Há em primeiro lugar uma incompatibilidade entre essas instituições e a estrutura básica de pagamento pelo trabalho na sociedade moderna. O pagamento pelo trabalho na instituição total não tem a significação estrutural que tem no mundo externo. Qualquer que seja o incentivo monetário dado ao trabalho, o interno não é livre para dele usufruir. Isto tende a levar a uma desmoralização geral. São comuns práticas como tapear ou usar o trabalho alheio em troca de um vale utilizável na cantina. Em segundo lugar, há uma incompatibilidade da vida coletiva da instituição total com a vida familiar. Se de um lado a manutenção de uma família serve como uma ponte para o mundo externo, a vida doméstica torna-se impossível face ao isolamento do interno.

Há inúmeros outros aspectos da vida organizacional que nas instituições totais adquirem uni caráter dramático. No que se refere ao interno, o aspecto que talvez seja o mais significativo seja a mortificação do eu. Nas palavras de Goffman: "O novato chega ao estabelecimento com uma concepção de si mesmo que se tornou possível por algumas disposições sociais despido do apoio dado por tais disposições. Na linguagem exata de algumas de nossas mais antigas instituições totais, começa uma série de rebaixamentos, degradações, humilhações e profanações, embora muitas vezes não intencionalmente, mortificado. Começa a passar por algumas mudanças radicais em sua carreira moral, uma carreira composta pelas progressivas mudanças que ocorrem nas crenças que tem a seu respeito e a respeito dos outros que são significativos para ele."20 20 Id.ibid. p. 24. Essas mortificações passam pelos processos de admissão, que incluem a codificação da vida pessoal a fim de torná-la administrável, pelo despojamento de posição social, ou de qualquer papel desempenhado no mundo externo, pela contaminação física e psicológica e pela perda de defesas usadas no mundo externo. A mortificação do eu talvez represente a forma típica de ação do poder disciplinar nas instituições totais. Presos, doentes mentais, cadetes, alunos internos, seminaristas, freqüentemente têm o que contar a respeito desse processo. Algo que quem muda de empresa ou de universidade também vive, mas evidentemente em nível de intensidade incomparavelmente menor.

2. O PODER DISCIPLINAR NA EMPRESA

Reconhecendo que a questão do poder é por demais complexa para ser esclarecida por uma única esfera de determinações, que suas raízes não podem ser encontradas apenas na propriedade, na organização do espaço, no sistema de regras burocráticas, na distribuição e na produção do saber, mas que estão presentes todos esses elementos e até o inconsciente, Max Pagès e seus colaboradores desenvolveram uma pesquisa junto a uma grande corporação multinacional operando na França. Seu objetivo era desvendar o modo de ação do poder naquilo que chamaram uma organização hipermoderna e o fizeram a partir de um eixo de coordenadas econômicas, políticas, ideológicas e psicológicas.21 21 Veja Pages, Max, Bonetti et alii. L'Emprise de l'organisation. Paris, PUF, 1979. p. 248.

A contribuição de Pagès parece estar numa concepção bastante particular de reprodução a partir da constatação do caráter sutil do poder disciplinar na grande empresa moderna. Com efeito, o que ocorre nesse tipo de organização é uma identificação afetiva e intelectual dos indivíduos. A organização se reproduz, assim, enquanto sistema social que inclui o funcionamento psicológico e individual de seus membros. O sistema organizacional articula-se, portanto, com o sistema de personalidade e de valores de seus participantes. Reprodução, no caso da grande empresa, não diz respeito apenas ao capital e as forças produtivas. A reprodução se dá em todos os níveis e implica uma ação da organização sobre o sistema pulsional dos indivíduos, que passam a promover ativamente seus objetivos e políticas.

Para entender melhor a análise de Pagès, convém retornar ao conceito de ideal do ego na psicanálise. Por ideal do ego se entende uma instância de personalidade que resulta da idealização do eu e das identificações com as figuras parentais e/ou com ideais coletivos. O ideal do ego constitui um modelo ao qual o indivíduo procura se ajustar. Essa instância da personalidade caracteriza-se por exigências ilimitadas de potência e perfeição. A hipótese de Max Pages de que a organização propõe a seus membros um ideal coletivo que capta o seu ideal do ego.

Essa captação tem múltiplas conseqüências. "A mais direta é a introjeção pelos indivíduos das exigências fixadas pela organização." Esta pode, portanto, através desse processo, canalizar ao máximo a energia dos indivíduos em seu benefício, sem precisar empregar um sistema de punições funcionando com base na força e na repressão. Por outro lado, o indivíduo, submetendo-se totalmente (de corpo e alma, diríamos), trabalha para a organização como para si próprio. Ele experimenta o sentimento de que a organização faz parte dele, da mesma forma que ele faz parte da organização, sentimento este que o liga ao futuro da organização. Há, portanto, uma tomada do indivíduo pela organização a nível do inconsciente; essa tomada é especialmente forte porque é paralela a uma dissolução da instância crítica.22 22 Id. ibid. p. 173-4.

Os aspectos ligados à apropriação do indivíduo pela organização são muitos e relacionam-se com a administração do prazer e a canalização da agressividade. Todavia, fixando-se no processo pelo qual a organização garante a sua presa, Pages procura identificar alguns de seus elementos essenciais. Em primeiro lugar, toda organização moderna possui um sistema mais ou menos complexo de regras. Esse sistema deve ser capaz de garantir aos seus membros um sentimento de segurança e de potência pelo respeito que lhe devotam. Em segundo lugar, esse sistema não é apenas um regulamento frio. Trata-se, na realidade, de um sistema de crenças, um ideal de vida, que se concretiza em regras e procedimentos. Ê evidente que esse ideal de vida e essas crenças vão responder a uma necessidade muito forte dos indivíduos. O que a organização propõe é um modelo de personalidade caracterizado pelo ideal de perfeição, por fortes exigências morais, pelo individualismo e pela resistência ao stress e à angústia. O indivíduo se sujeita inconscientemente às exigências da empresa. O ideal coletivo proposto pela empresa toma o lugar do ideal do ego de cada um.

Nas palavras de Pagès, "aquele que se conforma com isso encontra uma fonte de satisfação e valorização narcisista muito importante, satisfação que explica sua aceitação de diversas sujeições, especialmente no que diz respeito à carga de trabalho. Quanto mais fortes forem essas satisfações, mais ele aceitará essa carga, mais a organização será forte e mais satisfação trará àqueles que com ela se identificam. Ama-se a organização pelas perfeições que se deseja ao próprio eu. As qualidades da organização tornam-se as qualidades do sujeito. Mesmo que o indivíduo tenha consciência de estar preso a um processo, os fundamentos desse processo permanecem inconscientes, o que explica sua impossibilidade de escapar. Ele trata a organização como seu próprio eu, e uma parte da libido narcisita se encontra transferida para a organização por identificação".23 23 Id. ibid. p. 174-5.

Essa identificação se revela como introjeção na medida em que há uma passagem do que é extemo para o que é interno, em termos das qualidades da organização. Por outro lado, ela também se revela como identificação com os demais membros da empresa, sem que para tanto haja necessidade de qualquer ligação funcional ou afetiva entre os indivíduos componentes. As ligações que surgem derivam diretamente do fato de todos estarem ligados inconscientemente à organização. Existe, portanto, um traço comum no que se refere aos sentimentos e reações das pessoas, e esse traço comum deriva daquilo que é idealizado por todos. Naturalmente, tudo isso tem a ver com tomada do objetivo econômico, com os próprios fins do capitalismo como o próprio ideal do ego, embora as racionalizações de que os indivíduos lancem mão possam ser múltiplas e variadas.

Todavia, nem tudo são flores na tomada do ideal do ego pela grande empresa. "A organização exige que o indivíduo dê o melhor de si, que se consagre inteiramente ao sucesso, que se sacrifique. Ele é condenado a vender. Não se trata evidentemente de uma lei formal, mas de um mandamento que tem seu fundamento na onipotência do inconsciente de cada um. É uma exigência absoluta, e como todo absoluto, inacessível. Também o medo de fracassar, de perder o amor do objeto amado, está sempre presente. Esses temores se situam próximo da culpabilidade. A culpabilidade não advém mais do fato de haver cumprido um ato contrário à sua consciência, às exigências do superego, mas de não estar à altura das exigências da organização e do ideal que se procura alcançar, o indivíduo não tem medo de ser punido se não for bem-sucedido; ser bem-sucedido torna-se uma necessidade vital para ele. Tomando o lugar do ideal do ego dos indivíduos que a compõem, a organização não apenas canaliza ao máximo a energia desses em seu benefício; ela os torna dóceis."24 24 Id. ibid. p. 175. Estamos aqui, mais uma vez, diante da essência do poder disciplinar: produzir corpos dóceis, liberando seu potencial produtivo.

Essa produção de corpos dóceis, no caso da grande empresa moderna, passa também pela dissolução da instância crítica e pelo empobrecimento do sentimento de identidade. A organização é sempre boa e irreprovável. Nos"casos de conflito, a culpa cai sobre o indivíduo, que freqüentemente entra em depressão. Além disso, a organização é uma construção imaginária, onde a autoridade não está identificada com pessoas, mas com o conjunto da organização. Isto a torna' especialmente poderosa e, consequentemente, torna o indivíduo muito impotente. Por essa razão ele se identifica com ela, mas se identifica com algo que é imaginário. Na maior parte das relações interpessoais é possível testar nossos fantasmas, porque nos deparamos com objetos reais. No caso da relação individuo-empresa tudo se passa no nível do imaginário. Por isso mesmo a construção da identidade através de um jogo de projeções e introjeções com outras pessoas; mas, o que fazer quando o outro é um ser imaginário e onipotente? o indivíduo típico da grande empresa oscila entre a potência e a fraqueza exagerada. O que lhe é difícil é uma consciência equilibrada de sua força efetiva e de seus limites. Todos esses aspectos, evidentemente, são absolutamente coerentes com a docilidade e a produtividade.

O exercício sutil do poder disciplinar na empresa é algo que diz respeito muito mais ao universo dos colarinhos-branco do que ao universo dos operários. Nesse segundo caso, organização do espaço, controle do tempo, vigilância e exame contínuo são coisas mais palpáveis e diretamente perceptíveis. O taylorismo, sobre o qual não nos estenderemos agora, continua sendo a teoria do modo de ação do poder disciplinar na fábrica. Todavia, o participacionismo, mesmo em suas formas mais sofisticadas, como os comitês de empresa franceses, ou a co-gestão alemã, parece mostrar que o poder disciplinar encontra formas sempre novas de ação. Para seu exercício, todos os expedientes são utilizados, sejam eles econômicos, políticos, repressivos ou ideológicos.25 25 Alguns efeitos do poder disciplinar sobre os operários estão ilustrados em Martins Rodrigues, Arakey. Operário, operária.. Edições Símbolo, 1978, especialmente na parte referente à vivência do tempo.

3. O PODER DISCIPLINAR

A reprodução das formações sociais capitalistas depende, entre outros elementos, da reprodução da força de trabalho. Essa reprodução é mais que a simples reprodução biológica, já que implica a própria manutenção da força de trabalho existente sob condições específicas do processo de luta de classes, bem como na reprodução das qualificações dos agentes segundo a divisão do trabalho. A escola tem, portanto, um papel habilitador, na medida em que transmite os saberes técnicos de acordo com as necessidades do capitalismo. Não há, contudo, uma harmonia necessária entre as necessidades do mercado de trabalho e a formação escolar. Os títulos preenchem outras funções igualmente importantes que dizem respeito ao modo pelo qual se mantém a correlação de forças entre as classes e grupos sociais. De qualquer modo, porém, a escola também tem por função a transmissão da ideologia da classe dominante, a reprodução da estrutura social, especialmente dos lugares de classe, e uma função moralizadora: a escola serve para criar um habitatus, através da inculcação de uma disciplina.26 26 Veja Althusser, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa, Presença, 1974; e Bourdieu, Pierre & Passeron, Jean Claude. A reprodução. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1975.

O sistema escolar tende a ser profundamente burocratizado nos países capitalistas modernos. Essa burocratização, que em geral se caracteriza por uma centralização a nível nacional, manifesta-se a nível do pessoal e de sua organização, dos programas e do trabalho e dos exames e inspeções. No que diz respeito ao pessoal, é preciso distinguir os administradores escolares dos professores propriamente ditos. Geralmente, é a própria burocracia educacional que recruta o seu pessoal administrativo. Os professores, por sua vez, devem ter determinados diplomas e passar por um concurso público de seleção. Observe-se bem que não são propriamente qualidades intelectuais ou pedagógicas que são medidas, embora isto também tenha um certo peso. O que se verifica primordialmente é se o candidato se preparou bem para os exames. Uma vez no magistério, o docente deve passar por uma carreira. Essa carreira pressupõe novos diplomas e freqüentemente novos concursos. Mesmo com a decisão de prestar esses concursos ou mesmo de posse dos títulos,'o docente depende para ser promovido da burocracia superior que decide sobre sua promoção.

No caso francês, e os demais dele diferem apenas em questão de grau, o docente está a nível de seu trabalho, "sujeito a normas draconianas que só lhe permitem uma fraca liberdade. O emprego do seu tempo é fixado pela administração do estabelecimento onde se encontra. A, organização total deste último, na qual ele está inserido, não depende do docente. Enfim, e sobretudo, os programas prevêem os objetivos que deve procurar atingir, os meios que deve utilizar, e mesmo, muitas vezes, a divisão, no tempo, das atividades. Por exemplo, no ensino primário as "instruções oficiais" prevêem o tempo que deve ser atribuído a cada atividade: a leitura deve ocupar 10 horas no curso preparatório, 6 horas e um quarto no curso elementar, 3 horas e meia no curso médio, 3 horas e meia no curso superior. Tendo as instruções de 1923, 1938, 1945-1947, vê-se até a que pormenor vão estes regulamentos, não só do ponto de vista dos métodos como do ponto de vista da divisão das atividades".27 27 Lobrot, Michel. A pedagogia institucional. Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1966.

De resto, os docentes devem cumprir os programas. Estes são formulações apriorísticas, absolutamente formais, que desconsideram totalmente o público a que se destinam. Com intenções que podem ser muito boas, a burocracia escolar prepara objetivos, tópicos, prevê .métodos e chega mesmo a indicar uma bibliografia. Em suma, se prevê as atividades dos docentes e dos alunos sem levar em consideração os interesses concretos de ambos. Tudo se faz em nome de uma relação de meios e fins que se define impessoalmente. Há uma desconfiança de que a criança ou o docente podem ficar sem fazer nada, sem trabalhar. Em suma, é preciso dar à administração e aos pais a garantia de que a criança está sociabilizando-se, isto é, aprendendo a adaptar-se profissional e socialmente.

Surge, assim, o problema da avaliação dessa socialização. Como saber se a criança está efetivamente "trabalhando". Para isso foram feitos os exames. Há aqui uma inversão de meios e fins. Se o exame fosse pura e simplesmente um trabalho desenvolvido pelas crianças sob a orientação do professor e a partir de centros de interesse bem identificados, não haveria nele nenhum problema enquanto instrumento de avaliação. O problema ocorre no momento em que o exame passa a ser o objetivo do aprendizado. Não se estuda para adquirir conhecimento, mas para passar nos exames. Isto pode preparar a criança para ser dócil e disciplinada e para aprender a galgar os degraus da vida burocrática que a espera. Evidentemente, porém, não estimula o gosto pelo saber, nem a indagação intelectual. Além disso, o que se aprende para passar no exame é facilmente perecível, porque não deriva de um interesse real.

O que se espera da escola é que prepare para a vida. Preparar para a vida, entretanto, geralmente significa para um número de pessoas aprender a ser dirigido, enquadrado e condicionado, para, quem sabe, um dia poder dirigir, enquadrar e condicionar. Infelizmente, os resultados disso tem sido mais negativos que positivos.

"A juventude tornada passiva, nada pode fazer além de se submeter aos estereótipos da juventude, antes de se transformar numa geração adulta que, por sua vez, terá medo da juventude."28 28 Id. ibid. p. 227. Em suma, a escola prepara para a docilidade, organizando o espaço, controlando o tempo, instaurando a vigilância e a avaliação periódica. O resultado é a preparação de uma coletividade ansiosa por direção. A educação contemporânea parece ser, no plano político, um terreno fértil para o totalitarismo e, no plano psicológico, um viveiro de personalidades inseguras, angustiadas, insatisfeitas e, via de regra, autoritárias.

4. O PODER DISCIPLINAR NAS INSTITUIÇÕES DE FORMAÇÃO PROFISSIONAL

Inculcar atitudes e disposições morais é próprio da instituição educacional, qualquer que seja a sua clientela. Quando esta, porém, é composta de indivíduos destinados a ocupar posições inferiores na divisão do trabalho, a moralização educacional assume ares de "domesticação". Aprender a comportar-se de acordo com os interesses das classes e grupos dominantes parece ser o essencial do aprendizado profissional. Contudo, esse tipo de ensino jamais proclama esse aspecto central de sua natureza. Ele se apresenta como transmissão de saber especializado e como formação de competência técnica.

Face aos dominantes, os clientes das instituições de formação profissional industrial ou mesmo comercial são sempre vistos como "não civilizados" e como potencialmente ameaçadores no que diz respeito à ordem estabelecida. É evidente que há muitos especialistas em formação profissional preocupados sinceramente em propiciar a seus treinandos uma melhor consciência de sua condição. Todavia, essas instituições, geralmente financiadas por empresários, têm um perfil estruturalmente conservador, capaz, perfeitamente, de neutralizar esses "desvios". Do ponto de vista das classes e grupos dominantes a formação profissional é um processo "civilizatório" relativamente barato e seguro. O essencial é disciplinar os operários.

A suspeita de vida irregular, de preguiça, parece comum quando se pensa nas famílias populares de onde saem os adolescentes que na França se dirigem para os CET (Estabelecimentos de Ensino Técnico Elementar). Não se duvida que as crianças vindas das classes médias e alta adquirem desde muito cedo o sentimento de dever e o hábito da ordem e da regularidade, mas da criança de baixa classe se imagina tudo ao inverso. É, portanto, visto como essencial ensiná-las a respeitar a ordem e as hierarquias, a obediência sem questionamento e o comportamento racional e inofensivo. Para tanto as instituições de formação profissional não fogem à regra: organizam o espaço a ser ocupado pelos aprendizes e dividem o seu tempo em atividades de trabalho e lazer, sempre sob vigilância permanente. Tudo se passa no sentido de privilegiar o aprendizado da utilização metódica e ordenada do espaço e do tempo.

À maneira das organizações repressivas, o tempo livre concedido aos aprendizes é mínimo. Ao ensino profissional é justaposto o ensino geral, saturando o emprego de seu tempo. Nos quartéis, a ordem assume um aspecto muito visível, a hierarquia aparece como imutável e natural. Os quartéis apresentam aos indivíduos um ideal coletivo ao qual os recrutas devem sacrificar os seus próprios ideais. Tudo se passa como se o indivíduo só tivesse valor na medida em que pudesse ser utilizável pela instituição, na medida em que se tornasse confiável e produtivo. O adestramento nos quartéis é, como decorrência, coletivo. As diferenças individuais são reduzidas ao mínimo, inclusive pelo uso de uniformes e corte homogêneo dos Cabelos. Nos estabelecimentos franceses de formação profissional as coisas se passam de modo semelhante.

Com efeito, embora as transgressões individuais possam particularizar as reprimendas e os discursos moralizadores, sanções físicas como bofetadas são formas violentas de repreensão que não distinguem casos particulares. Tornar-se um trabalhador de elite implica ser capaz de passar por um processo de mortificação do eu, visto como necessário para a inculcação da disciplina como hábito. A violência dessa inculcação se traduz bem nas manifestações de contra-aculturação, nas ofensas aos treinadores e bedéis, nas fugas e nas depredações. Uma particularidade da instituição de formação profissional entre as diversas instituições pedagógicas está talvez no fato de que não se visa substituir uma cultura por outra. Visa-se formar um indivíduo que ao mesmo tempo participe de uma "natureza| popular" e de uma "cultura" pequeno-burguesa. Como o futuro trabalhador de elite, ele será um intermediário entre as classes. A ambigüidade de sua situação exige essa ação pedagógica que, apesar de violentadora, não chega a ser desculturalizante.

O ensino técnico nós CET caracteriza-se pela internalização de um conjunto de princípios indiscutíveis, de modo que a sanção técnica é ao mesmo tempo sanção moral, a primeira garantindo realismo à segunda. Dessa forma, os maus hábitos dos jovens marceneiros são corrigidos ensinando-lhes como segurar uma plaina, os ângulos em que a ferramenta deve entrar em contato com a madeira. Os gestos espontâneos e brutais vão sendo substituídos por gestos disciplinados. Isto ocorre com quase todos os ofícios, que são sistematicamente decompostos em operações técnicas. Geralmente, essa decomposição introduz mudanças na consciência que os aprendizes têm da duração do tempo. A idéia de uma duração natural é paulatinamente substituída pela idéia de que o tempo é raro e precioso, que pode ser quantificado e organizado, de modo que cada operação tenha um lugar preciso nesse tempo.

Outro dado específico do ensino profissional, quando comparado ao ensino tradicional, é a sugestão de que não existem problemas insolúveis. Existe sempre a melhor maneira, a menos onerosa (a one best way taylorista) de se realizar uma tarefa. Rigor e eficácia são vistos como uma unidade. A incerteza é substituída pela certeza de que não existem incertezas. O mundo físico é apresentado como regido por determinismos rigorosos, o que tende a se traduzir numa semelhante visão dos múltiplos domínios da realidade. Assim, o mundo humano tende a ser assimilado ao mundo dos objetos técnicos. A própria aparência que os aprendizes devem ter assemélha-se à aparência que os instrumentos devem ter. A aparência deve revelar toda a natureza da pessoa, como a aparência do instrumento revela a sua função. Daí os cabelos curtos, a roupa sóbria, o asseio, a postura modesta. Quanto à linguagem, ela deve ser exata e precisa. Quanto aos mestres, eles são escolhidos entre a elite operária, fazendo com que a "conversão" seja realizada por "convertidos", o que constitui tradicionalmente uma técnica pouco onerosa, sutil e eficaz de "domesticação".29 29 Veja Grignon, Claude. A moral técnica. EAESP/FGV, mimeogr. Traduzido de L'ordre des choses (les fonctions sociales de l'enseignement technique. Paris, Les Editions de Minuit, 1971.

No Brasil, existem instituições de formação profissional de âmbito nacional mantidas pelo empresariado. Essas instituições surgiram na década de 40 com a finalidade de formar jovens aprendizes para o exercício de funções qualificadas. Quando, porém, o ritmo da industrialização passou a exigir mais mão-de-obra pouco ou semiqualificada, a política muda e essas instituições passam a se dirigir a operários adultos. Esses operários são escolhidos pelas empresas entre aqueles que mais se identificam com elas. A formação repousa em valores, atitudes e disposições coerentes com o universo fabril. Sublinha-se a disciplina, a pontualidade e a disciplina, bem como o orgulho profissional e o gosto pelo trabalho. O operário aprende, assim, a aceitar e a se adaptar ao mundo, social hierárquico da fábrica e aos seus imperativos tecnológicos.30 30 Veja Castro, Cláudio M. & Mello e Souza, Alberto Mão-de-Obra industrial no Brasil. IPEA-INPES, Relatório de Pesquisa n. 25, 1974,, p. 406-7. Apud Ferro, José Roberto. Processo de produção e qualificação da mão-de-obra: a função da escola. EAESP/FGV, datilogr.

5. CONCLUSÃO

As organizações são sistemas sociais artificiais cuja função primordial é a reprodução da sociedade de classes. Embora existam organizações primordialmente econômicas, repressivas ou ideológicas, toda e qualquer organização é de alguma forma econômica, repressiva e ideológica.

Enquanto aparelho a organização se caracteriza como um modo de ação do poder que podemos chamar poder disciplinar. Esse modo de ação se concretiza na organização do espaço, na organização do tempo, na vigilância e nos exames periódicos.

Todavia, as organizações tendem a desenvolver mecanismos para a sua própria reprodução. Esses mecanismos, comuns nas instituições religiosas, militares e educacionais, são também encontrados nas empresas, e geralmente se associam a uma captação pela organização do ideal do ego de seus membros individuais.

Quaisquer que sejam as modalidades e a intensidade do poder disciplinar, porém, ele tem sempre o mesmo objetivo: formar corpos dóceis e produtivos.

  • 1 Poulantzas, Nicos. As classes sociais no capitalismo de hoje. Rio de Janeiro, Zahar, 1975. p. 13.
  • 7 Veja Prestes Motta, Fernando C. As organizações burocráticas e a sociedade. Revista Educação e Sociedade, CEDES, v. 4, 1979.
  • 8 Machado, Roberto. Por uma genealogia do poder. Introdução a Foucault, Michel. Microfísica do poder. Edição com base em textos de Michel Foucault, organizada por Roberto Machado. Rio de Janeiro, Graal, 1979.
  • 9 Foucault, Michel História da sexualidade. Rio de Janeiro, Graal, 1979. p. 88-9.
  • 11 Foucault, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 1977.
  • 17 Goffman, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo, Perspectiva, 1974. p. 11.
  • 21 Veja Pages, Max, Bonetti et alii. L'Emprise de l'organisation. Paris, PUF, 1979. p. 248.
  • 26 Veja Althusser, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa, Presença, 1974; e Bourdieu,
  • Pierre & Passeron, Jean Claude. A reprodução. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1975.
  • 27 Lobrot, Michel. A pedagogia institucional. Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1966.
  • 29 Veja Grignon, Claude. A moral técnica. EAESP/FGV, mimeogr. Traduzido de L'ordre des choses (les fonctions sociales de l'enseignement technique. Paris, Les Editions de Minuit, 1971.
  • 30 Veja Castro, Cláudio M. & Mello e Souza, Alberto Mão-de-Obra industrial no Brasil. IPEA-INPES, Relatório de Pesquisa n. 25, 1974,, p. 406-7. Apud Ferro, José Roberto. Processo de produção e qualificação da mão-de-obra: a função da escola. EAESP/FGV, datilogr.
  • 1
    Poulantzas, Nicos.
    As classes sociais no capitalismo de hoje. Rio de Janeiro, Zahar, 1975. p. 13.
  • 2
    Id. ibid. p. 19.
  • 3
    Id. ibid. p. 22.
  • 4
    Id.ibid. p, 27.
  • 5
    Id. ibid. p. 26.
  • 6
    Id. ibid. p. 34.
  • 7
    Veja Prestes Motta, Fernando C. As organizações burocráticas e a sociedade.
    Revista Educação e Sociedade, CEDES, v. 4, 1979.
  • 8
    Machado, Roberto. Por uma genealogia do poder. Introdução a Foucault, Michel.
    Microfísica do poder. Edição com base em textos de Michel Foucault, organizada por Roberto Machado. Rio de Janeiro, Graal, 1979.
  • 9
    Foucault, Michel
    História da sexualidade. Rio de Janeiro, Graal, 1979. p. 88-9.
  • 10
    Foucault, Michel.
    Microfísica do poder. Op. cit. p. 121.
  • 11
    Foucault, Michel.
    Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 1977.
  • 12
    Id.ibid. p. 126-7.
  • 13
    Id. ibid. p. 227.
  • 14
    Id. ibid. p. 239.
  • 15
    Id. ibid. p. 247.
  • 16
    Id. ibid. p. 248.
  • 17
    Goffman, Erving.
    Manicômios, prisões e conventos. São Paulo, Perspectiva, 1974. p. 11.
  • 18
    Id. ibid. p. 17.
  • 19
    Id. ibid. p. 17-8.
  • 20
    Id.ibid. p. 24.
  • 21
    Veja Pages, Max, Bonetti et alii.
    L'Emprise de l'organisation. Paris, PUF, 1979. p. 248.
  • 22
    Id. ibid. p. 173-4.
  • 23
    Id. ibid. p. 174-5.
  • 24
    Id. ibid. p. 175.
  • 25
    Alguns efeitos do poder disciplinar sobre os operários estão ilustrados em Martins Rodrigues, Arakey.
    Operário, operária.. Edições Símbolo, 1978, especialmente na parte referente à vivência do tempo.
  • 26
    Veja Althusser, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa, Presença, 1974; e Bourdieu, Pierre & Passeron, Jean Claude.
    A reprodução. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1975.
  • 27
    Lobrot, Michel.
    A pedagogia institucional. Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1966.
  • 28
    Id. ibid. p. 227.
  • 29
    Veja Grignon, Claude.
    A moral técnica. EAESP/FGV, mimeogr. Traduzido de
    L'ordre des choses (les fonctions sociales de l'enseignement technique. Paris, Les Editions de Minuit, 1971.
  • 30
    Veja Castro, Cláudio M. & Mello e Souza, Alberto
    Mão-de-Obra industrial no Brasil. IPEA-INPES, Relatório de Pesquisa n. 25, 1974,, p. 406-7. Apud Ferro, José Roberto.
    Processo de produção e qualificação da mão-de-obra: a função da escola. EAESP/FGV, datilogr.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 1981
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