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Distribuição de renda, reorganização industrial e o papel das pequenas empresas

ARTIGO

Distribuição de renda, reorganização industrial e o papel das pequenas empresas* * O autor agradece a Dr. Lucíola Furtado, da Coordenadora Econômica do MIC, pelas correções e sugestões apresentadas. Os erros existentes e opiniões são da responsabilidade do autor.

Antonio Dantas Sobrinho

Departamento de Economia, Universidade de Brasília

1. INTRODUÇÃO

A nova lei salarial, adotada nos fins de 1980, está tendo um impacto diferenciado sobre a demanda de produtos industriais.1 1 Impressões colhidas em conversa informal pelo autor com dirigentes de algumas firmas de marketing na Grande São Paulo durante o mês de julho de 1981. Esta nova lei objetiva corrigir distorções existentes na distribuição de salários e renda. Entretanto, na medida em que procura elevar o nível dos salários menores e baixar relativamente o dos maiores, altera o padrão de consumo dos assalariados e muda também a composição final da cesta de bens de toda a economia, em particular do setor industrial. Concomitantemente, a política antiinflacionária está provocando um choque recessivo na economia. Estes dois impactos resultam no aumento dos níveis de desemprego e de capacidade ociosa e na redução da massa de salários.

O efeito dessas duas políticas é, todavia, diferenciado. A política antiinflacionária reduz a atividade econômica em todos os setores, afetando mais acentuadamente o ramo produtor de bens duráveis,2 2 Conjuntura Económica, Rio de Janeiro, FGV, jul. 1981. ramo dominado por grandes empresas. A política salarial, por seu termo, tem um efeito mais específico, reduzindo com mais rapidez a demanda de bens duráveis. No conjunto, o impacto acentua-se sobre estes bens, especialmente os de maior valor unitário e de menor essencialidade. Calcula-se, atualmente, que a indústria esteja funcionando com apenas 76% da capacidade instalada, sendo que, em certos setores corno automóveis e ciclomotores, o grau de utilização cai para SS%.3 3 Conjuntura Econômica, Rio de Janeiro, FGV, ago. 1981. O reflexo dessa ociosidade tem sido uma elevação no nível de desemprego e a queda acentuada no consumo, com conseqüências políticas e sociais indesejáveis.

O objetivo deste trabalho é discutir á distribuição de renda levando em consideração as características da estrutura produtiva do país. A proposta consiste em mostrar que uma política de distribuição que não altere a organização produtiva do setor industrial acelerará, ainda mais, a dualidade existente, sendo, portanto, inviável e contraditória.

A política de alocação de recursos deve ser tal que mantenha o crescimento econômico com um mínimo de desperdício e desequilíbrio social. Assume-se, portanto, que exista uma necessidade de transferir recursos do setor onde a queda na demanda eleva a ociosidade (especificamente os ramos produtores de bens duráveis) para o setor onde há uma ineficiência por rigidez da oferta (os ramos de bens menos duráveis e tradicionais), ramos dominados pelas pequenas e médias empresas.

Uma política que reconhecesse esta necessidade aumentaria a capacidade de consumo de bens industriais pelas classes de renda mais baixa da população e a eficiência alocativa do sistema. Analisa-se, então, preliminarmente o tipo de comportamento da indústria condicionado pelas políticas econômicas vigentes e passadas.

Em segundo lugar, pretende-se discutir o resultado das interações entre a distribuição de renda e os recursos produtivos, sugerindo que tanto a distribuição de renda como o direcionamento dos investimentos de um setor para outro são indissociáveis. Assim, uma política de redistribuição de renda só será efetiva se concomitantemente forem tomadas medidas paralelas que alterem o perfil produtivo e organizacional da indústria.

O presente trabalho está dividido nas seguintes partes: um modelo explicando o comportamento industrial no que se refere a preços, oferta, demanda e desempenho; a relação entre a distribuição de renda e o comportamento industrial; a necessidade de uma reorganização industrial; a relação diversa nos níveis de preço dos setores de bens duráveis e não-duráveis; e, por fim, sugestões de políticas alternativas.

2. CARACTERÍSTICAS E COMPORTAMENTO DO SETOR INDUSTRIAL

O sistema produtivo brasileiro, tanto ha agricultura como na indústria, apresenta-se com duas características similares. A primeira é uma dualidade do lado da oferta, causada pela má distribuição dos meios produtivos. A segunda, uma segmentação da demanda por seus produtos, criada por má distribuição de renda.

A idéia de um Brasil dual não é nova. Desde o lançamento do livro de Jacques Lambert intitulado Os dois brasis, um grupo de pensadores sociais começou a aprofundar esta concepção, tentando identificar suas características. Neste contexto, surgiram diferentes argumentos sobre a viabilidade de sistema, argüindo-se, por um lado, que o processo substitutivo de importações, na medida em que aprofundasse a dualidade, levaria a economia à estagnação. Por outro lado, o desempenho da economia, no período 1968-1973, favoreceu o ponto de vista de que a forma de industrialização e a má distribuição de renda não seriam óbices ao crescimento (Morley e Smith, 1973). Outros argumentaram, ainda, que a industrialização brasileira era, de qualquer maneira, destinada aos ricos (Georgescu -Rorgen).4 4 Apud Morley & Smith (1973).

Atualmente, volta à tona a tese da estagnação e da dualidade econômica devido ao desempenho recessivo da economia, atingindo principalmente o setor industrial, enquanto o setor agrícola apresenta taxas elevadas de crescimento.

A idéia da dualidade e da segmentação não é nova.5 5 Pinto, 1970. Dentro desta perspectiva, existem políticas alternativas que homogeneizariam os setores, amenizando o choque recessivo tanto da política antiinflacionária quanto da salarial.

Uma pesquisa (Fontenelle, 1979) sobre a matriz industrial brasileira, através de uma triangulação matricial, conclui que os setores dinâmicos pouco se relacionam com os setores tradicionais da economia.6 6 A pesquisa não buscava provar ou refutar a tese da dualidade, mas mesmo assim conclui-se que o sistema apresenta-se com características dicotômicas. A dualidade econômica é comum em países menos desenvolvidos e mais ricos do que o Brasil. Ver Miyazawa, K. Lecture Notes in Economies and Mathematical Systems, Verlog, Berlim, n. 116,Springer, 1976. O estudo do relacionamento interno da indústria revela que as relações intersetoriais aparentes se esvanecem e surgem agrupamentos com características próprias e distintas umas das outras. Existe bastante coesão interna nestes grupos, que se auto-identificam. Assim, uma política que estabeleça metas e programas para a indústria como um todo é questionável.

O significado da dualidade está justamente na desigualdade dos resultados das políticas adotadas e nos desequilíbrios internos, que causam má alocação de recursos, tanto ao nível do produtor quanto do consumidor. Celso Furtado deixa bem claro em seus trabalhos a necessidade de se organizar os sistemas agrário e industrial, a fim de eliminar as dualidades e disparidades internas causadoras da grande ineficiência e da má alocação de recursos na economia. A situação atual exige um exame desta posição, tanto pela sua importância como pela demanda e pressão que os desequilíbrios sociais geram na economia.

Dentro da visão dualista o setor industrial é dividido em dinâmico e tradicional, com funções próprias e independentes. O dinâmico, com a função de produzir bens para os ricos na conceituação do Georgescu-Roegen (Morley e Smith, 1973). Os ramos industriais deste setor produzem bens de alto valor unitário, são considerados tecnologicamente mais dependentes, seus produtos são duráveis e requerem maiores gastos de energia, tanto para a produção, como para seu uso e funcionamento. Além disso, comporta internamente um subsetor de bens de capital e ferramentas que serve para a manutenção própria e dos outros setores e é o único elo com o grupo de indústrias tradicionais. O que caracteriza o dinamismo deste setor são as elevadas taxas de crescimento, condicionadas pela elevada elasticidade-renda de seus produtos; e as grandes economias de escala de seus estabelecimentos.

O setor tradicional é menos dinâmico, em função da sua baixa elasticidade-renda. Este grupo, ao contrário do anterior, produz bens de menor valor unitário e pouco duráveis, tais como produtos alimentares, calçados, vestuário e alguns materiais de construção; apresenta-se com pequenas economias de escala em seus estabelecimentos, e a organização produtiva ainda é do tipo familiar.

Quanto à estrutura de preços, os setores são bem distintos: os bens dinâmicos são produzidos por firmas grandes, oligopólicas, com preços rígidos e quase administrados; no setor tradicional os preços são mais flexíveis, as firmas são bem menores e inexiste conluio para administrar preços e restringir a produção. Desta forma, no último grupo a eficiência econômica se traduz mais facilmente em menores preços e ganhos para os consumidores. Entretanto, em termos organizacionais, as firmas dos setores mais dinâmicos têm melhores estruturas administrativas que ajudam a eliminar a ineficiência interna de seus empreendimentos.

O setor tradicional, que podia mais facilmente transmitir sua eficiência aos consumidores, não o faz, por falta de organização estrutural e administrativa. A administração de muitas empresas neste setor é familiar. Assume-se também que o setor tradicional tem uma estrutura produtiva mais diversificada, é mais intensivo em mão-de-obra e contribui mais para aumentar o nível de emprego. A menor relação capital-produto observada diminui o consumo de energia, conseqüentemente a dependência de petróleo.

3. A DISTRIBUIÇÃO DE RENDA E O COMPORTAMENTO INDUSTRIAL

É a distribuição de renda que mantém uma estrutura de demanda segmentada e alimenta a dualidade produtiva. Um segmento dominado por altos salários é responsável pelo mercado de bens duráveis e o outro pela compra de não-duráveis. Neste segundo segmento, a maioria da população só pode comprar os bens de preço unitário baixo. Não há dúvida que a má distribuição de renda determina um perfil de demanda bem diferente daquele resultante de uma repartição mais equitativa.

Assumindo, portanto, que a parte menos numerosa da população, com maiores níveis de renda, mantém a dinâmica do setor de bens duráveis, e que a classe de baixa renda não participa deste mercado, conclui-se que os elos entre os dois grupos industriais são bastante fracos. Internamente, do lado produtivo, os setores tradicionais dependem do setor de bens de capital, considerado dinâmico, e, externamente, do lado da demanda, as pessoas de altos salários são, em parte, responsáveis também pelo mercado de bens tradicionais.

O crescimento vigoroso do setor de bens duráveis depende, por sua vez, do crescimento da renda e de sua concentração. Em uma economia de distribuição estável, o crescimento dos dois setores depende do aumento da demanda e das transformações proporcionais que se dariam entre os dois grupos. Entretanto, com uma crescente desigualdade na distribuição dos ganhos, o crescimento dos meios produtivos também será desigual.

O desequilíbrio no crescimento da renda afeta os setores produtivos de duas maneiras: 1. a diferença nas elasticidades-renda, resultante do crescimento desigual, surge com impacto acentuado na demanda de bens duráveis, dinamizando o setor onde eles são produzidos; 2. a transferência de renda que resultou deste desequilíbrio permite maior acumulação para este setor, em detrimento do ramo tradicional, motivada por fatores econômicos, políticos ou sociais.

Conclui-se, portanto, que mesmo havendo um crescimento equilibrado na renda entre as pessoas, a diferença entre as elasticidades-renda resultaria num crescimento desequilibrado entre os setores. Isto seria tanto mais verdadeiro quanto maior fosse o patamar de dispersão na distribuição de renda com que se iniciou o processo de crescimento. Para que essa desigualdade não aumentasse, seria necessário introduzir, ao longo do tempo, políticas que transferissem renda das classes mais ricas para as mais pobres, num processo contínuo. Enquanto que uma reorganização industrial que redistribuísse os recursos produtivos eliminaria essa necessidade constante.

No caso brasileiro, observamos que, além do processo de industrialização ter sido iniciado com a renda e poder político concentrados, ao longo de seu crescimento, as políticas econômicas foram repressivas a qualquer demanda social, acentuando-se com o tempo, a má distribuição de renda. Esta desigualdade acirrava a disparidade de crescimento entre os setores, pois com o fortalecimento do setor dinâmico, este mobilizou suas forças para induzir o governo a injetar recursos e subsídios na economia de forma desigual e em benefício próprio, aumentando, anualmente, a capacidade produtiva deste setor em 6 a 7% acima da capacidade de consumo (Neves, 1980).

Deve ficar bem claro que as diferenças em elasticidade-renda, por si só, são suficientes para induzir um crescimento desigual no sistema. Entretanto, a característica dual não depende unicamente dessas diferenças. A dualidade é decorrente de vários fatores de natureza estrutural. Não havendo uma força exógena, dada especificamente pela distribuição de renda, que force o setor tradicional a se modernizar, ele se acomoda e toma-se ineficiente, passando esta ineficiência para os consumidores, piorando ainda mais as diferenças existentes em ganhos reais.

O resultado dessa crescente desigualdade na distribuição de renda e de meios produtivos é que, quando o produto está crescendo, a renda aumenta mais rapidamente para as classes de rendimentos mais elevados, e mantém-se quando ele pára de crescer. Isto se dá por dois motivos: primeiro, pelo poder político desta classe, que não abre mão de seus ganhos reais em época de crise, e pelo comportamento diferenciado entre a demanda e a oferta destes setores.

Dadas as características estruturais do sistema produtivo, uma modificação na distribuição de salários seria insuficiente para diminuir as desigualdades existentes e modificar a dualidade vigente. Além de uma modificação na distribuição salarial, haveria a necessidade de transferir recursos de um setor produtivo para outro.

4. A DISTRIBUIÇÃO DE RENDA E MERCADO

No Brasil existe uma parcela da população que, apesar de numerosa, é tão pobre que participa monetariamente com uma percentagem muito pequena do mercado. A parcela de renda desta população é tão baixa que, além de não permitir sua participação na compra de bens duráveis, restringe sua participação em outros mercados, de tal forma que a maior parte dos bens não-duráveis é vendida àquela menos numerosa e mais rica. De acordo com os dados do censo de 1980, o processo de concentração que ocorreu nos anos 60 continuou na década de 1970. Esta concentração tem a função de reduzir, ainda mais, a participação da população no mercado de bens industriais.

O grupo mais pobre gasta a maior parte de seus rendimentos em alimentação (ver tabela 2), o que toma sua participação no mercado relativamente elevada, em termos de renda familiar, quando ocorre uma pequena transferência de recursos dos extratos da mais alta renda para este grupo. Furtado (1981, p. 61), citando Bacha (1978, p. 61), afirma que "os 40 por cento mais pobres teriam sua participação na renda total elevada de 8 para 17 por cento e os 10 por cento mais ricos a sua reduzida de 49 para 40 por cento". Isto é,uma diminuição de 18 por cento na renda dos 10 por cento mais ricos elevaria a renda dos 40% mais pobres em 113%.

Cumpre observar que, apesar destes números serem expressivos, sua significação se perde quando analisado o lado produtivo da economia. Na medida em que se elevar a renda dos mais pobres, os preços, naquele setor que os servem, também aumentarão, eliminando em boa parte os ganhos de renda. Assim, uma política redistributiva, que só contemplasse a transferência de renda monetária dentre os setores, seria eliminada via aumento de preços. Em outras palavras, um aumento na demanda por produtos do setor menos dinâmico e tradicional seria pouco eficaz em contrapartida no aumento da capacidade produtiva. Este setor tem uma oferta muito rígida, inelástica, o que significa que, quando a demanda aumenta, os preços também crescem eliminando os efeitos da transferência monetária de renda.

Tabela 3

O que se pretende mostrar, com base em um modelo dual, é que a proposta redistributiva de Bacha-Furtado não teria o efeito desejado sobre o nível produtivo sem uma contrapartida na transferência de recursos de um setor para outro pelos motivos apontados e discutidos a seguir.

5. A NECESSIDADE DE REORGANIZAR A INDÚSTRIA

A presente situação econômica torna relevante a necessidade de se distinguir entre os diversos efeitos de uma política de distribuição de renda e de alocação de recursos no sistema produtivo.

Uma distribuição de renda, em favor dos segmentos menos favorecidos da população, provocaria (coeteris paribus), inicialmente, uma queda na demanda de bens duráveis gerando um aumento na ociosidade deste setor. Isto após certo tempo, provocaria uma redução nos investimentos e nos pedidos de novas máquinas e equipamentos ocasionando, também neste setor, uma queda de renda e emprego. 0 incremento na renda da classe baixa aumentaria de demanda por bens tradicionais, mas os aumentos de preços nestes setores anulariam o efeito desta distribuição.

O cerne do problema está na estrutura industrial, que não permite um aproveitamento da ociosidade de um setor para outro. Isto é, o sistema é rígido e dicotômico. Esta rigidez não permite a transferência de demanda de um setor para outro sem alocação paralela de recursos. Não se trata simplesmente de uma questão tecnológica, de mudança nos usos das máquinas e instalações. As barreiras de transferências estão mais relacionadas com questões institucionais e de estrutura de mercado e esta, por sua vez, é condicionada pelo tipo de concorrência existente em cada setor.

A inflexibilidade do sistema é motivada não só pela ineficiência produtiva, como pela alocação e transferência de capital e outros recursos. O nível de eficiência depende da organização interna das firmas, de sua estrutura de custos e da escala de operação. A transferência de meios produtivos depende, basicamente, das facilidades de entradas e de saídas de firmas em uma dada indústria. A saída e a entrada de firmas num mercado concorrencial dependem de sua eficiência interna e nível de competitividade. Quanto menor este nível, maior seriam as barreiras e maior a necessidade de intervenção pública para eliminar os entraves e aumentar o fluxo de meios produtivos entre os setores.

A transferência de renda monetária aumentaria a capacidade ociosa no setor dinâmico e diminuiria no tradicional. Uma das indústrias mais fortemente afetadas seria a de produção de bens de capital, face ao corte nos pedidos de equipamentos. Portanto, um problema que se coloca é como transferir a demanda de novos equipamentos dos setores estagnados pela política redistributivista para os setores dinamizados pela transferência de renda, de tal forma que os bens de capital não sofram um decréscimo grande na utilização de sua capacidade.

A preocupação com o impacto no setor tradicional seria outra. Através da transferência de renda monetária para as pessoas mais pobres, aumentar-se-ia, inicialmente, o poder de compra de bens finais. A prazo curto, a utilização da capacidade aumentaria, o nível de emprego também, mas os aumentos mais que proporcionais dos preços (dada a inelasticidade da oferta) anulariam os ganhos reais de renda. Paulatinamente, em prazo mais longo, os setores passariam a aumentar sua capacidade produtiva. Porém, para que essa capacidade aumentasse em ritmo desejado para absorver o equivalente da capacidade ociosa gerada nos setores dinâmicos, seria necessário aumentar o nível interno de poupança dos setores tradicionais. Ora, na ausência de transferência de recursos, essa poupança só aumentaria endogenamente via uma redução nos salários destes setores. Isto é, os salários teriam que crescer menos que os ganhos de renda, e, neste caso, parte do efeito da redistribuição seria anulado.

A realocação de recursos dos setores dinâmicos para os tradicionais só se daria na eventualidade de existir um forte instrumento político que favorecesse esta transferência. Isto é, a transferência de recursos aconteceria entre os setores produtivos, e não dos assalariados para os proprietários da produção. Assim, conclui-se que inicialmente uma distribuição de renda teria, no curto prazo, um efeito depressivo sobre a economia como um todo.

Uma política de alocação de recursos de setores com ociosidade e folga para os setores carentes, entretanto, elevaria o nível de eficiência e eqüidade econômica do sistema. Esta política aumentaria a importância dos setores de bens menos duráveis e corrigiria as distorções introduzidas com o processo de industrialização por substituição de importações.

6. OS DADOS EMPÍRICOS

Não obstante a falta de dados empíricos para testar as hipóteses levantadas, a mudança no comportamento dos preços e na utilização da capacidade produtiva, entre os setores de bens duráveis e não-duráveis, é significativa e indica um desempenho inverso entre os dois grupos de indústria. Primeiro, a nível conjuntural (Conjuntura Econômica, ago. 1981), a queda nas vendas de bens duráveis é mais acentuada do que nos não-duráveis. Tal fato indica que, ou a demanda caiu mais nos duráveis, o que pode ter ocorrido, ou a oferta destes é também mais elástica que nos outros e, portanto, uma retração na demanda não afetaria muito os preços. Os dados indicam que a utilização da capacidade é menor nos duráveis do que nos outros bens. O comportamento dos preços no período julho de 1978 até março de 1982 é ilustrativo da conduta diferente entre os dois setores em relação às variações de oferta e demanda. Tomando o período como um todo, nota-se que os preços nos setores de bens duráveis cresciam mais rapidamente do que nos não-duráveis (tabela 4). No período de dezembro de 1980 a março de 1982, entretanto, essa diferença se acelera. Ora, como a retração, neste último período, na demanda de duráveis foi bem maior, esperava-se uma queda de preço que também fosse maior nestes produtos, mas aconteceu o contrário. Os preços se mantiveram, em função de uma oferta elástica e custos unitários estáveis em relação à utilização da capacidade. Essa diferença pode ter sido acelerada também em função da estrutura e comportamento dos bens não-duráveis. Com oferta inelástica e demanda mais elástica, uma retração econômica menor registrada nestes setores, em relação aos duráveis, acelerou a diferença na elevação de preços. Isto é, os preços dos não-duráveis cresceram menos em função desta estrutura diferenciada.

7. POLITICAS ECONÔMICAS ALTERNATIVAS

A tendência inversa nos níveis de preço, entre o curto e o longo prazo que existe nos setores analisados, mostra que a produção de bens tradicionais foi agravada no decorrer do tempo, pelas transferências de renda e comportamento do consumidor.

Na medida em que os salários altos se mantinham, o dinamismo do setor de bens duráveis, dado pela alta elasticidade-renda de seus produtos, sustentava a demanda.

A política econômica adotada no segundo semestre de 1980 e a introdução da nova lei salarial no fim do mesmo ano alteraram o perfil da procura na economia em favor de bens não-duráveis. Entretanto, os efeitos desejados sobre o nível dos preços e da produção não ocorreram, havendo um efeito diverso daquele esperado: as disparidades entre os dois setores agravaram-se.

O comportamento adverso nas alterações dos preços entre estes setores mostra que políticas que alterem somente o perfil da demanda podem ter curta duração e não resolverem os problemas de distribuição de renda.

É importante, porém, entender este comportamento adverso para descobrir que os problemas são intrínsecos à estrutura produtiva do sistema econômico. O assunto é complexo demais para ser examinado somente por um ângulo: o simples exercício lógico e contábil de transferir rendas de ricos para pobres.

Uma vez entendido que o sistema se comporta dualmente e adverso porque existe uma estrutura produtiva e concorrencial que inibe suas forças produtivas, resta então alterar os condicionamentos do desequilíbrio. Estes, são internos e partem de dentro do próprio sistema produtivo. Alterá-los significa examinar os meios e as medidas políticas que mudam o perfil da oferta, já que o da demanda se modifica com transformações em variáveis mais conhecidas, como é o caso da distribuição dos salários, taxações e imposto de renda progressivo.

Políticas econômicas que tornem os setores tradicionais, as pequenas e médias empresas, mais sensíveis aos estímulos da produção e os setores dinâmicos aos da demanda, devem ser introduzidos urgentemente para aumentar ainda mais o nível de resposta aos sinais de preços do mercado. Maior estímulo às firmas menores aumenta a eficiência produtiva dos respectivos setores e estes, por sua vez, modificarão, paulatinamente, a dualidade econômica do sistema.

Entretanto, deve ser ressaltado que quaisquer ações efetivas criariam, inicialmente, um forte desequilíbrio com grande reação do setor dinâmico que, prejudicado, reagirá em dois níveis: a) tentando recuperar suas perdas; b) retraindo suas atividades. Aceitar passivamente esta nova realidade seria transferir parte de seus recursos e investimentos para outras atividades. Portanto, quaisquer políticas que se proponham a eliminar a dualidade do sistema serão, inicialmente, consideradas discriminatórias.

Deve ser entendido que a reorganização proposta nao visa transformar os equipamentos e maquinarias do setor de bens duráveis para produzir alimentos, sapatos, roupas etc, e sim para desacelerar o ritmo de crescimento, neste setor, transferirido-o para o outro e criando-se, assim, uma situação econômica mais estável.

As decisões propostas alterariam as proporções e as relações ¡existentes inicialmente entre os setores, porém sem necessidade de diminuir a capacidade produtiva de bens duráveis. Este setor permaneceria estável, por algum tempo, face à eliminação dos incentivos até então concedidos e à transferência de recursos para o setor tradicional.

Políticas fiscais e monetárias, acompanhadas de outras medidas complementares, possibilitariam, ao setor tradicional, aumento de eficiência, que se daria de duas maneiras: por maior nível de competitividade entre as firmas pequenas e uma redução significativa nos custos de produção, que passariam a ser internalizados, em grande parte, pelos programas de incentivos. O nível de competitividade subiria pelo temor de perder o mercado para novas firmas ou para as já existentes nessas indústrias. O maior nível de lucro funcionária como estímulo e incentivo para aumentar a acumulação interna das firmas, a capacidade produtiva e ainda atrair capital privado de outro setor.

Os subsídios governamentais dariam o impacto inicial para a transferência de capitais privados. Com o tempo, a disparidade existente diminuiria o suficiente para beneficiar uma maior parcela da população, através de uma redução nos preços, e aumentaria também a eficiência das empresas como um todo.

8. UMA REPRESENTAÇÃO GRÁFICA DO MODELO

Na figura 1 dois gráficos mostram a oferta e a procura do setor tradicional à direita, e do dinâmico à esquerda. A primeira característica distintiva é a do comportamento dos preços. No setor dinâmico, a oferta é muito mais elástica do que no outro setor, a demanda tem feição contrária. Os compradores no mercado dinâmico fazem parte, também, do mercado tradicional, mas há um segmento de compradores de não-duráveis que não participa no mercado de duráveis.


A tentativa é mostrar por meios destes gráficos o que aconteceria com a produção e o nível de emprego caso houvesse uma transferência de recursos de um setor para outro.

No setor A, com um deslocamento de Da para D'a em função de uma transferência de renda dos mais ricos para os mais pobres, os preços diminuem um pouco, inicialmente, de P para P1e as firmas reduzem a utilização da capacidade Xa para X'a a um nível de uso compatível com seu grau de concorrência. Com o tempo, havendo transferência de recursos para outros setores, via uma diminuição relativa nos investimentos, a oferta se reduz de Sa para S'a e os preços voltam ao normal ., Neste caso, a produção cai ainda mais até X"a. Como os setores dependem muito de economias de escala, essa redução da oferta afeta os custos de tal maneira que os preços tornam-se rígidos para baixo e a redução da oferta não altera substancialmente os níveis de preço. A demanda cai, com a redução de renda e o achatamento dos salários, tornando-se mais elástica com o tempo, o que contribui ainda mais para redução na produção sem diminuir, na mesma proporção, a capacidade produtiva.

No setor B, a oferta é bem inelástica, porque existe rigidez a curto prazo, mas com a transferência de recursos para esse setor, no longo prazo, a oferta fica mais elástica e conseqüentemente um aumento na capacidade produtiva deste setor gera acentuada queda nos preços. A demanda, ao contrário, é bem mais elástica. Com uma redução na renda, ela cai de Dba D'b. Na mesma curva de oferta, a quantidade oferecida se reduz de X'b a Xb os preços de a P1. A queda de preço é mais forte do que a queda de vendas, de X'b a Xb dado o nível de competitividade do setor.

A importância da ilustração consiste na possibilidade de transferir recursos ociosos do setor A para o B. A oferta, neste último, se deslocaria de Sb a S'b; a quantidade oferecida de Xb a X"b na curva da demanda D'b, e os preços diminuiriam de P1a P2. Caso a demanda voltasse a níveis anteriores, isto é, de D'b a Db, a quantidade oferecida aumentaria de X"b a X"'b e os preços voltariam ao P1, inferior a P original.

Uma distribuição de renda, via política salarial, tem o efeito imediato de reduzir a demanda no setor A, e aumentar em B. Com isso, cai a produção em A, sem reduzir os preços, e aumenta a demanda em B, sem aumentar a produção na mesma proporção. Os preços em B crescem mais do que em A, eliminando o efeito da transferência de renda.

BIBLIOGRAFIA

Bacha, Edmar. Politica econômica e distribuição de renda.

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Neves, Renato V. Utilização da capacidade produtiva na indústria brasileira - 1955/75. Pesquisa e planejamento econômico, Rio de Janeiro, 8 (2): 299-330, ago. 1980.

ANEXO

Resumo das hipóteses sobre o modelo dual

Setor dinâmico - a, Setor tradicional - b.

1. Relação capital (k) trabalho (L)

2. Relação capital produto - Y

3. Relação produto trabalho (produtividade)

4. Salários (S) Sª > Ss

5. Crescimento de vendas (CV.) CV ª > CV b

6. Elasticidade renda (r) ªr > br

7. Tamanho do estabelecimento (X) Xª > Xb

8. Organização (O) Oª > Ob

9. Nível de concorrência (C) Cª < Cb

10. Elasticidade preço da demanda (d) ªd < bd

11. Elasticidade preço da oferta (o) ªo > bo

12. Consumo de energia (Ce)

  • Bacha, Edmar. Politica econômica e distribuição de renda.
  • ______. Além da Curva de Kuznets: crescimento e desigualdade. Departamento de Economia, Unb, 1978.
  • Conjuntura Econômica, maio/ago./set. 1981, e mar. 1982.
  • Fontenelle, Paulo. Aspectos tecnológicos da estrutura industrial brasileira. Departamento de Economia, Unb, 1979.
  • Furtado, Celso. O Brasil pós-"milagre". Rio de Janeiro,; Paz e Terra, 1981.
  • Merhav, Meir. Technological dependence, monopoly and growth. Oxford, Perganom Press, 1969.
  • Mirow, Kurt. A Ditadura dos carteis. Rio de Janeiro, 1978.
  • Pinto, Anibal. Estilos de desenvolvimento: conceitos, opções, viabilidades. Revista da Anpec, 1 (2), 1978.
  • ______. Naturaleza e implicaciones de la "heterogeneidad". Estruture de la América Latina. El trimestre Económico, México, 57 (145), 1970.
  • Neves, Renato V. Utilização da capacidade produtiva na indústria brasileira - 1955/75. Pesquisa e planejamento econômico, Rio de Janeiro, 8 (2): 299-330, ago. 1980.
  • *
    O autor agradece a Dr. Lucíola Furtado, da Coordenadora Econômica do MIC, pelas correções e sugestões apresentadas. Os erros existentes e opiniões são da responsabilidade do autor.
  • 1
    Impressões colhidas em conversa informal pelo autor com dirigentes de algumas firmas de
    marketing na Grande São Paulo durante o mês de julho de 1981.
  • 2
    Conjuntura Económica, Rio de Janeiro, FGV, jul. 1981.
  • 3
    Conjuntura Econômica, Rio de Janeiro, FGV, ago. 1981.
  • 4
    Apud Morley & Smith (1973).
  • 5
    Pinto, 1970.
  • 6
    A pesquisa não buscava provar ou refutar a tese da dualidade, mas mesmo assim conclui-se que o sistema apresenta-se com características dicotômicas. A dualidade econômica é comum em países menos desenvolvidos e mais ricos do que o Brasil. Ver Miyazawa, K.
    Lecture Notes in Economies and Mathematical Systems, Verlog, Berlim, n. 116,Springer, 1976.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 1982
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