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A serviço da coletividade: crítica à sociologia das profissões

ARTIGOS

A serviço da coletividade - crítica à sociologia das profissões

José Carlos Garcia Durand

Professor do Departamento de Ciências Sociais da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas

1. O CARÁTER IDEOLÓGICO DA SOCIOLOGIA DAS PROFISSÕES

Na literatura sociológica produzida nos países capitalistas desenvolvidos, muito especialmente nos Estados Unidos, abundam estudos que, tomando por objeto empírico frações da força de trabalho que dispõem de escolarização de nível médio e superior, propõem-se a investigar o processo de profissionalização, isto é, o movimento pelo qual as ocupações, definidas como simples especializações técnicas no mercado de trabalho, adquirem o ethos e o modelo organizacional das professions.1 1 Em Professions: roles and rules de V. W. Moore, New York, Russel Sage Foundation, 1970, arrolam-se em bibliografia seleta nada menos de 850 títulos, dos quais a grande maioria referida ao mundo anglosaxão.

Tomado na acepção anglo-saxônica, profession designa ocupação que exige preparo escolar sistemático e prolongado, controle do desempenho individual pelos pares (ou autocontrole) e legitimação da ação profissional em nome de prestação desinteressada de serviço à comunidade, traço usualmente chamado de "ideal de serviço".2 2 Este rol de atributos compreende apenas os mais freqüentes entre os autores que fazem uso de conceito. Poderiam acrescentar-se outros, tais como: existência de associação para controle da competência, aplicação prática de saber originário de ciência, etc., que, em última análise, sintetizam-se nos três enunciados. Veja Maurice, Marc. Propos sur la sociologie des professions. Sociologie du Travail, v. 2, n. 13, p. 72, abr./jun. Neste sentido, profession é tomado como um tipo ideal, na acepção weberiana do termo, e supostamente - entende-se - trata-se de processo generalizado pelo qual passam as mais diversas ocupações nascidas da divisão técnica do trabalho, e que, no limite, buscariam regular, legal e eticamente (ou corporativamente), a competição econômica entre seus membros e com outras categorias, suplantando as oposições entre classes sociais. Em suma, endossam a esperança durkheimiana no ressurgimento da corporação de ofício como força de controle capaz de dissolver a polarização de classes ao nível da luta reivindicativa e política, enfim, de superar o "estado de anomia jurídica e moral da vida econômica", conforme proposta desenvolvida no , prefácio à segunda edição de A divisão do trabalho social.

Os mais recentes balanços críticos da sociologia das profissões põem em relevo seu viés ideológico e o erro de perspectiva por ele condicionado, a saber: a) ao endossar a premissa de que a organização profissional das ocupações significa a superação de interesses privados individuais ou grupais em nome de nobres interesses coletivos, os sociólogos estariam reafirmando o discurso ideológico dos próprios profissionais, que nada mais é do que a ideologia pequeno-burguesa que se assume acima das classes sociais e de seus conflitos necessários;3 3 Veja Maurice, Marc. op. cit. e Benguigui, Georges. La définition des professions. Epistemologie Sociologique, Paris, n. 13, 99-113, 1972, Benguigui sugestivamente explica a grande atração que o modelo organizacional das profissões exerce sobre os sociólogos como expressão de eles próprios se entenderem como profissionais: "(...) se as profissões exercem tal fascínio sobre os sociólogos (...) é porque, de fato, consciente ou inconscientemente, falam de si próprios, falam de seu próprio trabalho e de sua organização. de sua prôpria situação em matéria de classes sociais ou de estratificação social" (p. 108). "( ...) Vêse, pois. por que com tanta freqüência a sociologia das profissões apresenta tal ambigüidade. isto é. ao mesmo tempo objetiva e a Serviço da sociedade (p. 113). Veja também Chapoulie, Jean-Michel. Sur l'analyse sociologique des groupes professionnels. Revue Française de Sociologie, n. 14, p. 86-114,1973. Caberia aqui obstar aos crlticos no sentido de que a negação da oposição de classes é o cerne da pr6pria ideologia dominante, e não formulação tipicamente pequeno-burguesa. A meu ver, qualificar este conjunto de representações de pequeno- burguês equivale a apontar a cegueira dos que, tudo devendo na sua trajet6ria social aos aparelhos formalmente organizados segundo critérios de mérito, são incapazes de perceber a sutileza dos mecanismos de seleção social ou de reprodução de classes. Mas resta saber se os que assim qualificam têm clara percepção das razões que os levam a apelar a todo momento à autoridade e reproduzir o juizo consagrado segundo o qual "(...) o democrata, por representar a pequena burguesia, ou seja, uma classe de transição, na qual os interesses das duas classes opostas perdem simultaneamente suas arestas, imagina estar acima dos antagonismos de classe em geral", como diz Marc em O dezoito brumário. razões, enfim, que permitem atribuir ao intelectual a ambigüidade de estar. ao mesmo tempo, "em busca de consagração" e "a serviço do proletariado", álibi que toma absoluto o alcance politico do trabalho intelectual. Caberia, enfim, ter agudeza para a seguinte questão: quando o intelectual se rebela contra concepções "pequeno-burguesas" ele pode estar mais irado com o 'pequeno" do que com o "burguês". b) ao entender a organização profissional como comunidade de interesses e âmbito de socialização, esta sociologia, de inspiração funcionalista, não estaria levando em conta o movimento simultâneo e correlato de desprofissionalização, definido pelo aumento do número de profissionais assalariados (isto é, pela difusão da relação de assalariamento), pela emergência (entre os quadros médios e mesmo superiores) da organização sindical e da prática de greve a que apelam as frações operárias e, finalmente, pela redução do diferencial de salário, de prestígio e de controle do processo de trabalho do trabalhador não-manual qualificado em relação às demais categorias de trabalhadores não-manuais e operárias.4 4 Veja Maurice, Marc, op. cit. p.222-5. Em suma, o processo dominante seria antes o de proletarização da antiga pequena burguesia e da nova classe média (ou nova pequena burguesia, na terminologia de Poulantzas) do que o de assimilação das frações superiores do proletariado e inferiores dos trabalhadores de escritório ao protótipo das antigas profissões liberais. A crítica estende-se ainda ao fato de que, voltando-se a uma perspectiva psicossocial e pondo em relevo o presumível fundamento comunitário da categoria ocupacional, a sociologia das profissões estaria deixando de discutir a importante questão das práticas monopolísticas por intermédio das quais as ocupações estabelecidas (professions) defendem níveis elevados de remuneração e dificultam o ingresso de novos membros a fim de evitar indesejável "excesso" de praticantes e suas conseqüências funestas sobre as oportunidades de renda.

A denúncia dos limites interpretativos da sociologia das profissões se põe, assim, em termos de uma perspectiva que busca reintegrar as frações dos trabalhadores técnico-científicos na lógica do sistema de relações de classe, perspectiva que, mais recentemente, ressurge nos debates em torno do "fenômeno tecnocrático". Aliás, a , familiaridade é grande entre as formulações que entendem os estratos ocupacionais como comunidades potenciais ou efetivas a serviço da coletividade e as concepções que admitem a transição do poder fundado na propriedade ao poder estribado na ciência e na técnica.5 5 Tanto a teoria do profissionalismo quanto as formulações tecnocráticas prendem-se ao pensamento pós-liberal, como se pode decorrer da análise de Nisbet. Nisbet, R. La formación del pensamiento sociológico. Buenos Aires, Amorrortu editores, 1969. esp. capo Las ideaselementos de la sociologia.

Todavia, são ainda incipientes os estudos a respeito das práticas monopolistas das profissões estabelecidas6 6 Segundo Maurice op. cit., as poucas e boas contribuições neste sentido são de juristas e de economistas, e não de sociólogos, como por exemplo os estudos de Friedmanne Kuznets sobre a profissão de médico e sobre a politica monopolistica da American Medical Association, Friedmann, N. & Kuznets, S. Income from independem professional practice. New York, 1945 e Kessel, R. B. Price discrimination in medicine" The Journal of Law and Economics, n, 1 p. 20-53, 1958 citados em Maurice, Marc. op. cit. Mais recentemente há o estudo de Thoening, Jean Claude, L 'êre des technocrates (le cas des ponts et chaussées). Les Editions d'Organizations, Paris, 1973. e mesmo as muitas formas de dependência e/ou de pertinência da categoria ocupacional à classe dominante. O caminho que parece começar a ser seguido é o de se explorar a extensão das relações capitalistas de trabalho no setor de prestação de serviços, de modo a evidenciar como, subjacentemente ao movimento de profissionalização ou de desprofissioiialização, operam processos de divisão social e técnica do trabalho em função da acumulação de capital.7 7 Veja, por exemplo, Topalov, Christian. Les promoteurs immobiliers - contribuition. à l'analyse de la production eapitaliste du logement en France. Mouton, Paris, 1974, em que se focaliza a dinâmica capitalista do setor de produção de habitações na França e seus efeitos na divisão do trabalho, entre categorias antes autônomas, como arquitetos, engenheiros, etc.

2. PROFISSIONALISMO NA FORMAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA

Antes de discutir a problemática indicada, há de se apontar o fato de que, nas formações sociais capitalistas periféricas, o estudo das profissões, da profissionalização ou da desprofissionalização é praticamente inexistente; da bibliografia disponível constam apenas uns poucos estudos de casos esparsos e montados sob inspirações teóricas e objetivos muito variados, geralmente sem grande pretensão explicativa. As razões desta pouca atenção devem ser buscadas não só no menor grau de "especialização temática" da sociologia no mundo subdesenvolvido em relação aos países centrais, mas principalmente num elenco de fatores históricos e de condições estruturais que, no caso brasileiro, seriam os seguintes.

Em primeiro lugar, a formação social brasileira não conheceu significativamente, antes e durante o processo capitalista de desenvolvimento industrial, o fenômeno da formação corporativa de comunidades de ofício, à semelhança do ocorrido em muitos países europeus. Aqui, a ausência de um modo feudal de produção, acompanhada de um muito pouco diferenciado mercado de trabalho, até poucas décadas atrás, favoreceu a emergência de uma estrutura ocupacional aberta (no sentido da inexistência de barreiras jurídicas) que, se bem restrita na sua composição mais qualificada aos filhos das famílias oligárquicas, o era em virtude de o acesso à escolarização de nível superior requerer um elevado nível de capital econômico, portanto acessível a poucos. Se a conhecida política trabalhista implementada nos anos 30 pode, sem dificuldade, criar e normalizar instituições sindicais sujeitando-as a estreito controle do Estado, conseguiu também, e, mais facilmente, chamar à atribuição estatal a organização das ocupações de nível superior, baixando as competentes regulamentações e vinculando as ordens ou conselhos ao Ministério do Trabalho.8 8 A questão do estreito controle estatal na organização do sistema escolar e na institucionalização das profissões indica um baixo grau de articulação da sociedade civil no País.

Os dados sobre regulamentação profissional no Brasil mostram que mais intensamente este processo se deu a partir de 30, por força da legislação trabalhista instituída a que as adaptaram às ocupações liberais já constituídas no sistema de ensino e no mercado de trabalho. Após a década de 30, é só nos anos 60 que se torna importante o número de regulamentações; agora, de especializações mais recentemente introduzidas no sistema educacional, como se vê no quadro 1, a seguir.


Os dados disponíveis de organização sindical indicam que a estrutura montada quando da implementação das leis trabalhistas, no início da década de 40, cresceu moderadamente até há poucos anos, sofrendo apenas alteração substancial do número de sindicalizados a partir do início da presente década.

Convém, no entanto, não enxergar na vinculação formal de profissionais de nível superior no Brasil a insitituições sindicais, expressão de qualquer ordem de predisposição para a atuação política, ou mesmo reivindicativa. Dada a obrigatoriedade de pagamento do imposto sindical, por parte de todo assalariado pelo regime das leis trabalhistas, o que é efetuado pelo empregador mediante desconto em folha, os recursos daí provenientes são encaminhados - no caso de inexistência de sindicato específico da categoria - a um fundo sindical geral gerido pelo Ministério do Trabalho. Neste sentido, a fundação de sindicatos representa uma oportunidade, ao dispor das "elites profissionais", de se apropriar de recursos regulares em dispêndios não só assistenciais (médicos e jurídicos, principalmente) mas também culturais. Acrescente-se ainda o fato de que as burocracias sindicais encontraram outro meio de forçar o pagamento da contribuição obrigatória, qual seja o de exigir a i quitação com o sindicato como necessária ao exercício da profissão, como o caso de engenheiros e arquitetos que não podem habilitar-se perante as prefeituras municipais sem exibir a quitação das anuidades devidas ào Conselho de Engenharia e ao sindicato correspondente. No conjunto, trata-se de uma organização sindical inserida no aparelho de Estado e cuja inexpressividade, enquanto representação efetiva da massa assalariada, foi tão bem evidenciada por José Albertino Rodrigues.9 9 Rodrigues, J. Albertino. Sindicato e desenvolvimento no Brasil. São Paulo, DIFEL, 1968.

Quadro 2


Em segundo lugar, a rapidez no processo de divisão técnica do trabalho e a grande capacidade de absorção de mão-de-obra muito qualificada, por força da modernização acelerada do parque produtivo e também pelo aumento da demanda de serviços sofisticados de consumo pessoal decorrente da concentração de renda (psiquiatria, medicina plástica, decoração, corretagens, enfermagem particular, etc), fortaleceram condições monopolísticas de oportunidades de renda por parte daqueles que dispunham de título universitário, o que é facilmente visível no aumento dos diferenciais de renda da população brasileira entre 1960 e 1970, e suporte da mais controvertida "causa da concentração": a escolarização.10 10 Veja Langoni, Carlos Geraldo Distribuição da renda e desenvolvimento econômico no Brasil Rio, Ed. Expressão e Cultura, 1973, onde, por levantamento empírico das informações do imposto de renda e análise de correlação, se evidencia que os aumentos das frações escolarizadas na PEA entre 1960 e 1970 foram acompanhados de aumentos mais que proporcionais em seus rendimentos. Entre as variáveis educação, região, idade, sexo e ramo de atividade, a primeira apresentou maior contribuição à variação total (veja esp. p. 112). As análises do IPE/USP confirmam estes resultados para a população escolarizada que trabalha na indústria em São Paulo. Veja Pastore, José & Lopes, J. do Carmo. A mão-de-obra especializada na indústria paulista IPE, 1973. Evitamos discutir aqui a falácia de causa falsa que Paul Singer aponta na argumentação de Langoni, e cuja formulação seria, em minhas palavras, a seguinte: a educação não é a causa da concentração de renda, mas ambas conseqüências de um padrão desigual de distribuição de oportunidades. Veja-se a critica de Singer em Desenvolvimento e repartição de renda no Brasil. In Debate & Crítica, São Paulo, n. 1, jul./dez. 1973. A argumentação de Singer, confirmada por José Serra e Edmar Bacha, insiste na questão de que as inúmeras forças não econômicas (parentesco, cooptação, etc.) que atuam nas possibilidades de renda e emprego tornam a simples posse do titulo acadêmico insignificante como causa da concentração de renda. Veja Serra, J. A reconcentração da renda: justificações, explicações, dúvidas e Bacha, E. L. Hierarquia e remuneração gerencial. In. Tolipan, R. & Tinelli, A. C. org. 'A controvérsia sobre distribuição de renda e desenvolvimento. Zahar, 1975. A permanência da situação de escassez de profissionais de nível superior teria atenuado, pareceme, a necessidade de uma política agressiva de restrições legais de ingresso na categoria ocupacional, fenômeno este muito comum em formações sociais centrais, nas quais a grande banalização da escolarização superior confere ao diploma menor peso relativo nas condições de acesso a postos muito remunerados e de grande poder decisório.

Em terceiro lugar, a obsolescência rápida da mão-deobra de nível superior por força do padrão de renovação tecnológica por importação descontínua de equipamentos e processos torna mais fluida ainda a divisão do trabalho nos setores secundário e terciário, o que desfavorece a formação e o fortalecimento de castas ocupacionais e suas respectivas pretensões de hegemonia intracategoria, porquanto se torna mais difícil cristalizar correspondência entre o título escolar e as qualificações exigidas para os cargos.

Por último, há de se assinalar a política educacional implantada após 1964, cuja tônica, no que tange ao ensino superior, é de estimular, pela redução de exigências legais, a formação de um amplo mercado privado de prestação de serviços educacionais. A conhecida razão, segundo a qual a finalidade da abertura das portas do elevador educacional obedece ao objetivo político de evitar insatisfações coletivas para o problema de "excedente universitário",11 11 Veja Rodrigues da Cunha, L. A. Política educacional no Brasil a profissionalização no ensino médio. Rio, Eldorado, 1973. (Coleção Meta). coloca o Estado em posição de vigilância contra as investidas das frações cultivadas da burguesia, a todo momento preocupadas em conter a "degradação da cultura" e, ao nível das entidades representativas das categorias ocupacionais, contra as tendências das organizações profissionais a chamarem a si a seleção para admissão de novos praticantes, como evidencia a frustrada política da Ordem dos Advogados do Brasil de implementar exame prévio para a concessão da licença de advogar.12 12 Estribada na Lei n. 4215, de 1963, que disciplinava as condições de ingresso na OAB mediante comprovação, pelo candidato, de cumprimento de estágio profissional ou aprovação em exame interno, a Ordem efetivou provas de capacitação em 1971. O baixo Índice de aprovação (8%) estimulou movimento que terminou pelo estabelecimento de lei federal (n. 5960) tornando exame e estágio dispensáveis a todos os bacharéis formados até 1973. \efa Jornal do Advogado n. 2, ano I. p. 3, julho 1974. Relevante também o fato de que há vinte anos a OAB insta junto ao MEC para fiscalizar e restringir a expansão do ensino de direito, sem ter obtido, segundo a fonte citada, qualquer êxito.

Este elenco de fatores atinentes ao processo típico da industrialização capitalista no Brasil e ao modo de inserção e participação do Estado no mesmo; ao dar conta do parco poder de monopólio legal das categorias ocupacionais especializadas, mostra uma das circunstâncias pelas quais o exame das profissões não foi admitido como necessário nas tentativas de construir uma sociologia do poder. De fato, é muito discutível falar de proletarização (no sentido de redução relativa dos salários) dos estratos médios,13 13 Isto é, para o conjunto dos trabalhadores de escolarização média ou superior. Por suposto neste agregado há contingentes com renda muito próxima à dos trabalhadores manuais. posto que toda prova empírica sobre o fenômeno da concentração de renda aponta para um distanciamento crescente do padrão de consumo desses estratos em relação ao operariado e ao campesinato, e o estrangulamento generalizado na participação política não permite que emerja como preocupação o discernimento de suas opções e orientação político-ideológica, tal como ocorre em formações sociais em que aos partidos proletários se depara como tarefa urgente a politização e a mobilização dos cadres, como, por exemplo, na Itália, e na França.14 14 Veja Grupo Manifesto, División du travail et technique du pouvoir.ies Temps Modemes, n. 285, p. 1559-86, abr. 1970. Mesmo a já declinante controvérsia sobre a tecnocracia no Brasil - estimulada mais pela autopromoção dos técnicos dos ministérios econômicos e por análises apologéticas sobre as conseqüências do emprego progressivo de gerentes assalariados na indústria do que por algo mais genuíno e profundo - não apontou para estudos em que as categorias ocupacionais sejam enfocadas na sua função, pelo menos potencial, de grupos de pressão sobre o aparelho de Estado. Por suposto, a única corporação que exerce esta pressão efetivamente e com êxito são as forças armadas, que não precisam legitimar-se em termos de competência técnico-científica.

3. COMENTÁRIO SOBRE ESTUDOS DE CASO DE PROFISSÕES NO BRASIL

Como foi dito, grande parte dos estudos de caso de profissões busca "equacionar a problemática" específica de cada ocupação, mobilizando a ótica do profissional, sempre propensa a inculcar disposições reforçadoras da motivação para o trabalho, da valorização da profissão "perante o Estado e a sociedade" e a denunciar a falta do amparo legal necessário "ao bom cumprimento da missão".

A inspiração primeira dos trabalhos calcados neste ponto de vista é querer contribuir para o equacionamento das dificuldades reais ou supostas do mercado de trabalho em se abastecer de mão-de-obra qualificada e tentar, em conseqüência, discutir a evolução do sistema de ensino em relação a esta exigência. De um modo geral, omitindo os nexos da divisão social do trabalho, visualizam a estrutura de classes em termos de uma hierarquia ocupacional reproduzida pelo sistema de ensino que se apresenta ora em consonância, ora em atraso com a diferenciação da procura de qualificações. O singelo referencial teórico de que dispõem usa e abusa de conceitos que qualificam a estrutura social brasileira em termos de uma ordem estável, relativamente indiferenciada quanto à divisão do trabalho e que, por força do progresso técnico, é forçada a redefinir sua escala de valores, a romper a estreiteza de seu funil educacional e a melhorar a eficiência e a versatilidade de suas escolas. A contribuição ao estudo das profissões de nível universitário no Estado de São Paulo, de Oracy Nogueira15 15 Nogueira, O. Contribuição ao estudo das profissões de nivel universitário no Estado de São Paulo. Tese de livre-docência junto a cadeira de sociologia II da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas de Osasco. 2 v. 1967. v. 2, p. 6. exemplifica muito bem esta posição. Com profusão de informações e referências bibliográficas insiste na carência deste ou daquele contingente de profissionais e na "pletora" de outros, embarcando na ideologia que representa a prática científica e suas aplicações técnicas em termos de vocação e missão.

"Mesmo nas sociedades mais desenvolvidas, o profissional jamais perde a função de missionário na luta pela substituição de técnicas e pseudo-soluções tradicionais por técnicas mais científicas, racionais e eficientes de tratamento dos problemas humanos." (p. 200).

A visão evolucionista que dá fundo à análise sanciona a apresentação de uma seqüência de fases como se fora um processo natural de profissionalização, capaz de retirar a prática humana do obscurantismo e da ignorância e organizar os corpos de ofício sob a merecida proteção da lei. A transição do padrão liberal para o assalariado é vista exclusivamente em termos de um processo geral de burocratização necessário à escala tecnológica moderna e aos aumentos de produtividade que o acompanham.

A preocupação com recursos humanos ora é pretexto para encaminhar análises cuja intenção é de inculcar nos praticantes e nas categorias ocupacionais conexas a noção da necessidade de profissionalização de ocupações que, sem grande densidade técnica, não conseguem abandonar a situação de dependência em relação a ocupações mais consistentemente estruturadas nem se garantir da desqualificação advinda da competição de indivíduos sem preparo escolar formal: os leigos.

Examinemos agora, em breve resenha, alguns estudos de profissão disponíveis e de caráter individualizador. Dado que o interesse é focalizar os pontos de vista que inspiraram as análises e discutir questões que me parecem controversas, a extensão dos comentários é muito variável.

3.1 Enfermeiros

A tentativa de encarar a enfermagem como profissão, nos dois estudos disponíveis para o Brasil,16 16 Alcântara, Glete de. A enfermagem moderna como categoria profissional obstáculos a sua expansão na sociedade brasileira. USP, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, 1966 e Ferreira Santos, Célia A. A enfermagem como profissão: estudo num hospital-escola. São Paulo, Pioneira (Ed. da USP), 1973. reflete exemplarmente a incorporação da ótica inconformista do semiprofissional empenhado em eliminar a concorrência do "leigo" e nobilitar o métier, quer pela discriminação precisa de funções técnicas, quer pela proposta de "melhor" recrutamento social de candidatos, quer pela pretensão à "reeducação" das categorias profissionais a que se subordinam, no caso a dos médicos. Em outras palavras, o esforço de superar a sua inserção dependente e proletarizada na divisão de trabalho do setor de saúde conduz a uma formulação que visa descartar os "empecilhos" que dificultam a "afirmação" de profissão, propondo recrutamento em frações superiores dos estratos médios, rompimento com o estereótipo de sexo que feminiza a ocupação, depreciando os níveis salariais e mesmo a superação, em nome do moralismo pequeno-burguês, do moralismo que associa promiscuidade sexual à prática da enfermagem.

"(...) a tendência é para se afirmar (a enfermagem) como profissão para mulheres solteiras; a auto-identificação com a profissão, apesar dos estereótipos contrários, revela forças inovadoras que lutam por derrubar a ideologia conservadora de profissão tida como imoral" (p. 25).

3.2 Psicólogos

A identificação do analista com os horizontes de destino da ocupação também está presente na abordagem que Sylvia Leser de Mello Pereira faz da psicologia como ocupação em São Paulo.17 17 Pereira, S. Leser de M. As atividades profissionais do psicólogo em São Paulo. Tese de doutoramento apresentada ao Instituto de Psicologia (Departamento de Psicologia Social e do Trabalho) da USP, São Paulo, 1972. mimeogr. Acompanhando a distribuição dos diplomados em ramos de atividade em que se alocam, procura questionar a orientação intensiva dos profissionais para a área clínica em termos do que a autora chama de necessidades sociais (p. 4):

"Parece por si mesmo evidente que o aparecimento de uma nova profissão está relacionado com problemas e necessidades sociais para os quais se busque solução. Uma profissão que atende a essas necessidades atua significativamente no plano social. Se não atende, ou o faz de maneira inadequada, o futuro da profissão está em jogo." (p. 4.)

Fica nítido o encobrimento ideológico que concebe automático o nexo entre a diferenciação do sistema educacional, o surgimento da ocupação (ambos, convenha-se, processos com autonomia relativa),18 18 É preciso qualificar bem o que se entende por "aparecimento de nova profissão". A autonomização de um conjunto de disciplinas em curriculum universitário especifico, em um novo titulo de bacharelado ou equivalente, é algo que pode ser muito mais facilmente explicado por fatores internos à organização acadêmica (interesses de grupos cindidos dentro da universidade, por exemplo) ou pela incorporação de padrões de ensino e de organização curricular de centros universitários hegemônicos do exterior do que como antecipação de necessidades sociais latentes por nova especialização técnico-científica. De modo semelhante, a legalização da ocupação via regulamentação é muitas vezes mera conquista de pequenos grupos organizados - "elites profissionais" - que mobilizam a iniciativa de um deputado (fato muito comum em conjunturas eleitorais) na apresentação e defesa dos "interesses da categoria". Oracy Nogueira levanta a hipótese de que, em nosso pais, a regulamentação profissional, tem antes a função de tornar mais atrativos certos ramos incipientes de ensino do que disciplinar atividades de ocupações já constituídas. Veja Nogueira. O. op. cit. p. 241. Note-se que as teorias em concorrência no campo da produção erudita podem ensejar oposições e divisões ao nivel da prática profissional, criando ou redefinindo identidades profissionais; o fato é bem visível no campo mais geral da psicologia, em cujo interior competem psicanalistas, médicos-psiquiatras, psicólogos e "animadores sociais" de formação variada, cada qual reivindicando para sua prática legitimidades teóricas concorrentes. e a existência de "necessidades sociais", virtuais ou efetivas que, se não atendidas, comprometem (no sentido ético de fuga à missão) o destino da coletividade dos praticantes. A função do crivo ético é inculcar disposições que reorientem os praticantes do mercado de prestação de serviços de consumo individual (expresso na clientela reduzida e abastada das clínicas) para o mercado de serviços em escala ampliada e "democratizada", em relação ao qual a alternativa da psicologia educacional oferece, segundo a autora, o maior efeito multiplicador na extensão social dos benefícios da ciência. O álibi de que se vale, atribuindo ao ramo da psicologia clínica, incapacidade de suportar, ao longo do tempo, a mesma proporção de profissionais que hoje comporta, associa as possibilidades de exploração das oportunidades de renda no mercado à diferenciação de campos de trabalho e à ampliação do alcance social do conhecimento. Este nexo contém uma intenção de denúncia da estreiteza do mercado de serviços de consumo individual e é aprioristicamente proposta.19 19 A postura negadora das iniquidades sociais decorrentes da concentração de renda, da mercantilização das práticas profissionais, de seus efeitos na seleção social do sistema de ensino e na apropriação privada do produto do trabalho dos técnicos é um forte elemento contrário à sustentação de politicas malthusianas pelas categorias ocupacionais ou de restrição à ampliação de vagas nas escolas. E uma forma de protesto contra os padrões de acumulação e desenvolvimento capitalista no Brasil, e uma possibilidade de manifestar desejo de participação social. Ver Foracchi, Marialice M. O estudante e a transformação da sociedade brasileira. Cia Editora Nacional, 1965, esp. cap. A carreira como projeto. 170-214.

3.3 Professores primários

O estudo sobre o magistério primário20 20 Pereira, Luiz, o magistério primário da sociedade de classes. FFLCH, USP, Boletim 277, Sociologia I, São Paulo, n. 10,1963. partilha com os anteriores o interesse em ocupações femininas e uma certa ótica de planejador, se assim pudermos definir a preocupação em mostrar os obstáculos psicossociais e estruturais ao bom desempenho de um setor específico de prestação de serviços. Todavia, a análise de Luiz Pereira se autonomiza bastante das restrições oriundas de assumir os horizontes de destino da categoria, e nisso reside a maior diferença dos estudos já abordados.

O processo em discussão é da proletarização do professor primário consistente na aproximação gradativa da renda-sàlário auferida pela classe operária, o que provoca uma reação compensatória dos praticantes em termos de reafirmação do caráter missionário do serviço que prestam como recurso para manter um nível de disposições psicológicas favoráveis ao desempenho do serviço, impossibilitado que está este contigente (inserido diretamente no aparelho de Estado) de voltar-se para mecanismos de pressão típicos da sociedade de classe (o recurso à sindicalização e a prática de greve). Neste sentido, o apelo a representações que encaram o magistério primário como "vocação" e as expectativas generalizadas de abandono da ocupação pela absorção em atividades domésticas via matrimônio operam, segundo o autor, como mecanismos desintegradores das disposições propriamente profissionais das professoras primárias, representando "tendências conservantistas inerentes à ordem senhorial e patrimonialista em desagregação" (p. 215). Como o autor também ressalta que a grande ênfase das professoras primárias quanto a aspirações salariais (orientação individualista) tem efeito negativo sobre a eficiência do serviço, que exige orientação societária, conclui-se que a solução apontada por Pereira é a de reforço do "ideal de serviço" consistentemente baseado em aumento da renda-salário e de benefícios indiretos, que ofereça aos praticantes a tranqüilidade de um distanciamento "merecido" em relação ao consumo material e simbólico do proletário.

3.4 Médicos

A posição que Maria Cecília Ferro Donnangelo assume perante a ocupação de médico21 21 Donnangelo, M. C. Ferro. O médico e o mercado de trabalho. Tese de doutoramento apresentada ao Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP. São Paulo, 1972. Mimeogr. evidencia idêntica i autonomia. O processo em questão é o da superação do caráter liberal da medicina, expresso no atendimento direto da demanda difusa no mercado e na capacidade I de o profissional fixar individualmente o preço do serviço. O assalariamento progressivo dos médicos paulistas nos quadros do Estado ou de empresas de saúde exprime uma rearticulação do setor de produção de serviços de saúde em que a participação do Estado-financiador tem posição nuclear. Ainda que a análise não chegue a tentar articular o processo de intervenção estatal neste fragmento do setor de serviços em termos do modo de produção dominante, tem o grande mérito de oferecer reconstrução histórica das relações entre Estado e assistência médica e de evidenciar nas determinações empíricas mais significativas o processo de assalariamento e a correspondência entre este e as ideologias ocupacionais em conflito, quais sejam a liberal (defesa do trabalho autônomo), a empresarial e a pró-estatização.

3.5 Dirigentes de empresas

O enfoque de Luiz Carlos Bresser Pereira sobre os dirigentes de empresas paulistas22 22 Bresser Pereira, L. C. Empresários e administradores no Brasil. São Paulo. Ed. Brasiliense, 1974. caracteriza muito bem a identificação do analista com os horizontes da categoria estudada, na qual ele objetiva e psicologicamente se insere.23 23 . Este nexo se depreende da biografia do autor ao fim do livro. Ao lado de sua titulação acadêmica inclui referências ao seu papel de executivo em grupo econômico paulista, e da contribuição atribuida a seu desempenho na expansão do grupo: "Como professor assessorou diversas empresas, inclusive Supermercados Pão de Açúcar. Começou nessa empresa quando esta inaugurava sua segunda loja em 1963. Desde 1965 é seu diretor administrativo. Hoje, Supermercados Pão de Açúcar é a maior empresa de supermercados na América Latina." Op. cit. p. 239. Analisa a burocratização das empresas paulistas e a intenção é mostrar empiricamente como o controle empresarial fundado na propriedade pessoal ou herdada (empresa familiar) está sendo substituído pela gestão por empregados, sob o suposto de que nesta última o controle está baseado no saber técnico e na experiência nele lastreada. A verificação de que os dirigentes profissionais se expandem em termos absolutos e relativos tem para o autor um corolário de conseqüências relevantes e indiscutíveis: a) o parque produtivo privado se moderniza e se racionaliza; b) a Revolução Industrial Brasileira (sic) ganha, em conseqüência, maior dinamismo; c) o sistema econômico se democratiza, permitindo o acesso via escola de contingentes de classe média aos centros de decisão econômica.

Se tomarmos as preocupações típicas da sociologia das profissões, veremos que a intenção de Bresser não se encaixa em nenhuma: não é um estudo de profissionalização de um contingente ocupacional; não é também exploração de conflitos eventuais entre profissões e organizações e muito menos de proletarização de frações ocupacionais. Consiste antes em examinar o ritmo em que uma das "funções do fator capital" é transferida a empregados. Neste sentido, preocupa-se com a profissionalização da administração e não com a profissionalização dos administradores. O fato de não perceber esta diferença retira-lhe a oportunidade de discutir problemas tais como: Quem administra o mercado de administradores? Com que intensidade e em que bases opera o mecanismo de cooptação neste campo? Qual é o papel dos próprios administradores na fixação das retribuições monetárias diretas ou indiretas (fringe benefits)?24 24 Ver a proposição da Bacha segundo a qual a remuneração do gerente, que se expressa em renda-salário efringe benefits deve ser tomada como apropriação de parte da mais valia pela fração dos administradores em razão de desempenharem funções capitalistas. Parece claro que só um estudo nesta linha pode dar conta dos fatores estruturais condicionantes da ideologia dos gerentes e das possibilidades, a longo prazo, da emergência de modelos profissionalizantes entre administradores. Veja Bacha, Edmar. Hierarquia e remuneração gerencial. In: Tolipan & Tinelli. A controvércia... cit. A exploração desta questão permitiria decidir da procedência do que poderíamos chamar de "fator cumplicidade" na explicação da distribuição de renda, como aparece na análise sugerida por Paul Singer: "É a seleção social no sistema escolar que explica, em parte, a elevadíssima diferença de remuneração (da ordem de 1 para 15) entre profissionais de nivel superior e trabalhadores pouco qualificados na indústria paulista, por exemplo. Sendo alto o padrão de vida daqueles profissionais desde sua origem familiar, suas aspirações econômicas ) são igualmente elevadas e tendem a ser satisfeitas não devido a sua escassez relativa mas porque os que tomam as decisões do lado da demanda, os empregadores, são da mesma classe social e "compreendem" perfeitamente quanto custa manter um padrão de vida decente." Ver Singer, Paul. op. cit. p. 88. A meu ver, a discussão destas questões é essencial para se poder usar a noção de "grupo de pres-, são" sem a ambigüidade de confundir administradores como agentes da pressão sobre o aparelho de Estado e outras categorias da sociedade civil que é capaz de realizar o capital com, propriamente, os administradores como grupo de pressão sobre capitalistas e aparelho de Estado em defesa de oportunidades de renda, poder de decisão e de influência em benefício de si próprios como categoria social. O seguinte trecho exprime bem a ambigüidade a que me refiro.

"O poder político dos administradores profissionais estaria diretamente relacionado com o poder econômico. Deriva, mais diretamente, da possibilidade de se organizarem em poderoso grupo de pressão. (...) Através dos grupos de pressão, os grupos socioeconómicos defendem seus interesses. Os administradores profissionais, dada a grandeza dos interesses econômicos que representam, e o próprio poder econômico de que dispõem, são levados naturalmente a constituir-se em grupos de pressão, que se entrelaçam e se sobrepõem, atingindo, desta forma, uma extraordinária soma de poder político." (Empresário e administradores, p. 24.)

Naturalmente, os administradores de empresa, na medida em que assumem, mais diretamente que outras categorias ocupacionais empregadas na gestão técnicoeconômica, a identidade e os horizontes da empresa ou do conglomerado (sem eufemismo - do capital) como os seus próprios, tendem a encarar mais puramente o que se chama de "orientação organizacional" por oposição a "orientação profissional" e é digno de nota que o último estudo, visando entender (como o título sugere) os administradores como profissão, tenha mais de 50 anos.25 25 Brandéis, L. D. Business, a profession. Boston, Small, Maynard, 1925. Apud: Benguigui, G. La professionalisation des cadres dans l'industrie. Sociologie du Travail 9émê année, 2/67, avril/juin. Neste artigo se comentam o uso e os limites da dicotomia "orientação organizacional" e "orientação profissional" em dar conta, tipológicamente, do significado e funções das condutas dos cadres. Se esta circunstância tende a reduzir a importância do exame das questões clássicas da sociologia das profissões no que toca a administradores de empresa, é recomendável, no entanto, não entendê-los como simples "portadores" dos interesses do capital sem condições de interferir no controle dos meios de sua reprodução como grupo.

Cabe acrescentar que Bresser admite o fato de a qualidade e a quantidade do poder político retido (ou possível de se reter) em mãos dos administradores dependem de características típicas da realização do capitalismo no espaço e no tempo. Embora reconheça (mas não discuta) a enorme soma de poder que detêm os administradores nos Estados Unidos, não entende - o que é louvável - a situação em termos de tendência necessária. No caso brasileiro, os padrões do capitalismo associado e a presença ativa do Estado em sua constituição permitem "...imaginarmos que a elite dirigente brasileira é hoje constituída pela tecnoburocracia militar, pelos representantes do capitalismo internacional, pela tecnoburocracia civil, pelos capitalistas brasileiros, pelos políticos e pelos administradores profissionais privados, e assim é provável que a ordem em que foram enumerados reflita aproximadamente a soma de poder de que estão investidos" (p. 26).

3.6 Advogados

A necessidade de "adequação do sistema de ensino às demandas de mão-de-obra técnica originárias do desenvolvimento" serve de inspiração ao survey preliminar realizado por Olavo Brasil.26 26 Lima Jr., Olavo B. de, Klein, Lucia Maria Gomes & Martins, Antonio Soares. O advogado e o Estado no Brasil. IUPERJ, 1970, mimeogr. A discussão do processo de desprofissionalização, consistente na redução dos níveis de remuneração e prestígio do advogado e no subemprego deste profissional em razão do excessivo número de escolas (processos estes captados a partir de uma discutível base empírica)27 27 A massa de dados empíricos usados consiste exclusivamente de informações sobre recrutamento, distribuição por áreas de atividade, avaliações sobre a profissão, etc. tomadas mediante questionário a uma centena de participantes do IV Encontro Nacional da OAB (São Paulo, 1970), portanto, a uma fração politicamente ativa ao nível dos órgãos profissionais que não pode se representar de forma alguma, como quer o estudo, a média das opiniões dos advogados. Sem outro lastro factual para controle, os autores são levados a tomar por fidedignas todas ás avaliações emitidas sobre a carreira. vem justificar um ponto de vista favorável à diferenciação do ensino do direito de "áreas tradicionais" (vinculadas à administração da justiça e ao patrocínio de causas criminais e familiares) para "áreas modernas" (representadas pelas especializações fiscais, tributárias e administrativas) por intermédio das quais, supõe-se, é mais direta a colaboração do advogado na gestão econômica e, por decorrência, no processo de desenvolvimento.

Uma equivocada tentativa de articular a carreira de advogado e suas possibilidades de participação direta ou indireta no sistema político com a chamada transição "crítica" da organização tradicional para a organização moderna da profissão desemboca em surpreendente desfecho em que as constantes rupturas da ordem jurídico-política nacional pela força armada são entendidas como uma das conseqüências de um arcaísmo radicado no ensino de direito.

"Na medida em que a rigidez da ordem jurídica não lhe permite acompanhar as modificações na estrutura econômica e as mudanças políticas que elas acarretam, tem-se que admitir o acentuado grau de desvinculação existente entre a ordem legal e as alterações no sistema político. Torna-se clara a ausência de uma evolução paralela e integrada das diversas esferas da sociedade, com a maioria das alterações substanciais no sistema político surgindo fora da ordem legal, e não a partir dela, o que pode ser utilizado como uma explicação parcial para o fato de as mudanças políticas assumirem, no Brasil, todas as características de situações de fato, e não de direito."28 28 Breffer Pereira, L. C. Empresários e administradores... cit.

Esta brevíssima apresentação de estudos disponíveis sobre profissões revela uma grande diversidade de objetivos e disparidade de fundamentação empírica e teórica entre os case studies produzidos no Brasil, o que, aliado aos fatores anteriormente discutidos, impede que tenham servido de base para reflexão mais ampla sobre as categorias sociais médias, sua inserção no mercado como técnicos qualificados e os horizontes de participação política que eventualmente se lhes abra. De um modo geral, é a alocação do sociólogo em escolas de formação de profissionais que estimula o exame dessas ocupações e, dada a maior ou menor consistência teórica do analista, determina-se a sua maior ou menor resistência em assumir a ideologia específica com que os agentes encobrem e justificam sua inserção no mercado capitalista de trabalho, sem esquecer que a própria inserção do diplomado em sociologia neste sistema, muitas vezes distanciando-o do estreito campo do trabalho intelectual erudito limitado quase que exclusivamente à universidade, favorece o florescimento de ideologia quanto à possibilidade da sociologia como profissão e, por extensão, cria disponibilidade para a apreensão da sociedade como hierarquia de profissões.29 29 Notem-se as campanhas organizadas e as reivindicações difusas da "profissionalização do sociólogo". A meu ver, quanto maior o número de estudantes desprovidos do capital cultural erudito necessário para viver e entender os cursos de ciências sociais como momento de formação de um projeto intelectual, tanto maior a disposição para encontrar, a qualquer preço, a via profissionalizante.

Vimos que se questionam a pertinência e a relevância do enfoque funcionalista sobre profissões. Na análise dos casos verificamos que não houve forte inspiração nesta corrente explicativa e que, apesar do pequeno número de estudos, não são poucos os que se referem ao fenômeno da proletarização ou de desprofissionalização.

4. A QUESTÃO DO PROFISSIONALISMO: ASPECTOS TEÓRICOS RELEVANTES

Visto que as representações sobre a profissionalização generalizada do trabalho se fundamentam, em última instância, na concepção evolucionista segundo a qual a industrialização reduz-se a um processo de divisão técnica do trabalho, que, regido por um padrão irreversível de racionalidade, impõe a diferenciação objetiva de ocupações, a sua institucionalização e estímulos à difusão de uma nova moralidade baseada no altruísmo exigido da prática científica autocontrolada; visto também que se mobilizou contra tal enfoque, mal ou bem, o princípio que reitera o primado da classe social e das relações de antagonismo entre classes, resta enunciar questões claras capazes de gerar investigações fecundas.

A primeira diz respeito ao estatuto teórico da nova pequena burguesia na teoria de classes marxista e pode assim ser formulada: quais os movimentos necessários do capitalismo monopolista, enquanto modo de produção dominante, conducentes à expansão relativa de trabalhadores improdutivos sobre o total da força de trabalho e quais as conseqüências do fato na luta de classes nos níveis econômico, jurídico-político e ideológico? Consciente da dificuldade em enfrentar o problema no que ele exige de familiaridade com a teoria do valor, retenho, contudo, distinção apresentada por Poulantzas que me parece compatibilizar a orientação marxista, que deixo de explorar, com a de Bourdieu, que desenvolvo a seguir. Para Poulantzas, a questão da reprodução de classes envolve dois problemas distintos, quais sejam, a reprodução dos "lugares de classe" (places de classe), na divisão social do trabalho, que não se confunde com a da reprodução..." (qualificação - subordinação-repartição) dos agentes entre as classes. Ê evidente que, neste processo de reprodução dos agentes, pode-se circunscrever toda uma gama de fenômenos que vão de situações transitórias a pertinencias contraditórias de classes, e mesmo à efetiva "desclassificação de agentes"30 30 Poulantzas, N. Les classes sociales dans le capitalisme aujourdhui. Paris, Seuil, 1974. p. 218.

Embora, para Poulantzas, o problema da reprodução dos agentes seja subordinado ao da reprodução dos lugares de classe - e deixo a questão em aberto - cumpre fixar a particularidade de que são as categorias profissionais as que mobilizam mais intensivamente, entre as camadas componentes da nova pequena burguesia, o peso da cultura (científica, técnica e artística) como fundamento de sua prática e critério de sua identidade. Ê exatamente esta particularidade que permite formular, com base na lógica das distinções simbólicas de Bordieu, a segunda pergunta: qual o fundamento da autoridade profissional?

A importância da questão está em que sua resposta reporta-se à noção de delegação,31 31 No momento em que a divisão do trabalho, na sociedade de classes, leva à constituição de uma esfera de produtores, empresários e consumidores de bens 'culturais com pretensões i autonomia em relação às frações não intelectuais da classe dominante, e definindo-se em oposição à indústria cultural, dão-se as condições sociais para a emergência da ilusão da autonomia absoluta das práticas científicas e estéticas. O conceito de delegação reitera, pois, contra a ilusão, o principio da autonomia relativa do cultural em relação ao político. Ver, a respeito, de Bordieu, O mercado de bens simbólicos e Campo do poder, campo intelectual e habitus de classe. In: Micelli, Sérgio, org. A economia das trocas simbólicas, ed. Perspectiva, 1974. Ver também, de Bourdieu & Passeron. La reproduction, éléments pour une théorie du système d'enseignement. Paris. Les Editions du Minuit, 1970. não da delegação estatal, via regulamentação jurídica, mas da delegação cultural implícita na partilha de componentes da estrutura a aominante, vale dizer, legítima. Assim, a intenção de caucionar o desempenho de determinado mètier na razão científica, por oposição ao senso comum ou à magia, significa não a extensão irresistível (no sentido de imperativo da razão absoluta) do ethos científico a mais uma esfera da prática, mas a manipulação simbólica de um modelo cultural valorizado, capaz de reduzir à indignidade práticas concorrentes, mas distantes do arbitrário cultural dominante.32 32 Tal perspectiva é desenvolvida por Chapoulie na tentativa de inserir o corpo professoral, de nível médio na estrutura de classes na França. Para ele, as pretensões dos professores secundários de legislar soberanamente em matéria de pedagogia são contestadas progressivamente, à medida em que, pela difusão da escolarização de nível superior, as frações cultivadas da burguesia e da pequena burguesia mobilizam as associações de pais e mestres na fiscalização da prática docente de professores extraídos, cada vez mais, das frações inferiores da nova pequena burguesia. Jean-Michel Chapoulie. Les corps professoral dans la structure de classe. Revue Française de Sociologie, n.15, p. 162, 1974.

Assim entendida, a noção de delegação tem como fundamento último a hegemonia de classes definidas ao nível das relações de exploração, mas já transfigurada em superioridade cultural ao nível das relações assimétricas de imposição simbólica. Isto é, fundamenta-se em algo em ultima instância arbitrário, posto que, segundo Bourdieu, é necessário a transfiguração simbólica de uma relação de dominação, mas não a mobilização de um elenco necessário de significações, ressalva sem a qual a cultura dominante será vista segundo ela própria quer: como cultura, simplesmente.

Assim, a pretensão ao monopólio legal e real de um conjunto de práticas (objetivo último das categorias que se institucionalizam) será tanto melhor sucedida quanto mais próximas estas práticas das condutas legítimas perante a cultura legítima.

A conseqüência primeira a extrair é reconhecer que a delegação de autoridade que fundamenta culturalmente um conjunto de práticas (ou, reificadamente uma categoria ocupacional) não é conseguida "de uma vez para sempre", mas varia a partir de mudanças nas relações entre classes e frações de classe, ao nível simbólico e político. Por trás do fenômeno chamado, no senso comum semi-erudito, de "perda de prestígio" de uma ocupação, há de se explorar a luta pela distinção propriamente simbólica (outorgada, em última instância, pela classe ou coalizão de classe dominante da formação social dominante), em que as categorias ocupacionais se empenham, sem que, é óbvio, disso tenham seus membros consciência. Nesta linha de reflexão ganha relevo novo a questão da "raridade" de determinado saber especializado e dos praticantes habilitados: a luta que muitas categorias ocupacionais promovem contra a "expansão indiscriminada" do seu sistema reprodutor, que é o aparelho escolar, encerra não só a estratégia de defesa de oportunidades de renda, mas também reação contra a possibilidade ameaçadora de que o ingresso de praticantes sem o "devido nível cultural" e a extensão da clientela às frações inferiores da pequena burguesia e ao proletariado rompam com as representações do profissional completo, que nada mais é do que a ideologia do homem total.33 33 Por ideologia do homem total entenda-se o conjunto de representações que qualificam negativamente o especialista "obtuso", incapaz de ultrapassar os limites estreitos do aprendizado técnico-cientifico em nome da competência especifica, mas aliada a ampla bagagem cultural e à sensibilidade que permitem leitura global, a um tempo intuitiva e compreensiva, da situação de trabalho e das necessidades do cliente. A titulo de exemplo, pode-se identificar as criticas de Wright Mills ao intelectual e ao burocrata norte-americanos como calcada nessa ideologia. A idéia do colóquio profissional-cliente, suporte da defesa do padrão liberal nas velhas profissões "nobres" como direito e medicina, pode muito bem ser vista como a mobilização de uma cumplicidade de classes em que a legitimidade da prática é reforçada pela legitimidade do cliente. No momento em que, por injunções do mercado de trabalho, a prática liberal34 34 Os atributos definidores da prática liberal são a possibilidade de escolha do cliente e a liberdade de fixação do preço do serviço. Veja Donnangelo, M.C. op. cit. p. 95. tem como destinatários clientes extraídos das frações inferiores da pequena burguesia ou do proletariado, vale dizer, não legítimos, fica reduzido o efeito simbólico da condição autônoma.35 35 Interessante evidência empírica é mencionada em análise da organização dos advogados americanos, que evidenciou deterem os bacharéis assalariados das grandes organizações maior prestigio entre seus pares do que os colegas que advogam causas pessoais na justiça ordinária; inclusive a pertinência de classe superior, mais freqüente entre os primeiros reforçada pela freqüência a escolas seletas, garantem maior efeito ao titulo profissional. Citado por Chapoulie, J. M. Sur l'analyse sociologique des groupes professionnels. Rev. Franç. Sociol. p. 94-5.

Significa reconhecer que não existe uma história unilinear sempre ascendente do profissionalismo, nem que a institucionalização de um corpo de ofício nos moldes da profession seja o cume de um "processo de ascensão" da categoria até a consagração final pela benção das classes superiores, passando pelo beneplácito do Estado.

Segundo Bourdieu, a lógica da distinção simbólica, mediante a qual a classe dominante organiza e reserva para si um patrimônio de cultura estruturador (segundo graus de legitimidade referidos a ela) das manifestações de cultura das demais classes e frações de classe, opera pela internalização constitutiva de habitus diferenciais naturalizados negadores da realidade da inclusão em nome da "vocação". A ideologia do dom mobilizada na percepção dos efeitos", é a resposta "cientificamente fundada" da cultura dominante para prestar contas não só dos diferenciais de êxito dos jovens de extração social diversa perante o sistema escolar como também no manejo mais ou menos fácil e "espontâneo" dos códigos de expressão e de conduta definidores do bom profissional ou do intelectual ou artista de "talento". Neste sentido, a autonormatividade a que aspiram as categorias ocupacionais, através da reinvindicação de controle do aparelho escolar e de definição e implementação de um código de ética e também da constituição de instâncias próprias de consagração cultural e profissional, legitimado tudo em nome do interesse coletivo, teria como razão de ser o próprio esquecimento de que a constituição dos corpos profissionais reduz-se a uma modalidade de reprodução da classe dominante, através da seletividade escolar. Em suma, a tentativa de inserção das categorias profissionais no sistema de relações de classe deve começar pelo exame das funções de reprodução de classe operada pelo aparelho escolar cuja lógica de inclusão-exclusão, dissimulada na escolha pelo mérito, acaba escolhendo os já escolhidos, vale dizer, hierarquizando nos diversos "graus de prestígio" das diferentes ocupações a hierarquização dos indivíduos segundo o montante de capital econômico e cultural que a sociedade de classes distribui desigualmente às gerações que se sucedem. As evidências concretas do processo podem ser captadas pelo exame das carreiras escolares associando-se o êxito escolar à origem de classe36 36 Em La reproduction, Bourdieu e Passeron desenvolvem a teoria da educação compatível com a função de reprodução social que o sistema de ensino desempenha na sociedade de classes, pondo em relevo os mecanismos de exclusão escolar com base no capital cultural e econômico das várias frações de classe; a análise chega a propor o cálculo das probabilidades absolutas e condicionais (por ramo de ensino e sexo) de permanência na escola por sexo e extração social. Veja La reproduction, éléments pour une théorie du système d'enseignement op. cit. e também pela política de, em nome da eficiência, combater-se a redução do tempo de duração dos cursos e/ou da jornada escolar, por exemplo.37 37 Neste caso, apela-se ao capital econômico como meio de manter a composição social do corpo profissional. Ê sugestivo observar que nas disciplinas que exigem maior familiaridade com a cultura erudita, como filosofia e letras, por exemplo, os corpos professorais não combatem pela exigência de tempo integral do estudante que neles opera de fato a exclusão propriamente simbólica, ou seja, com base na posse/não-posse de capital cultural, capaz de definir os que merecem aspirar à realização de um projeto intelectual.

O movimento de profissionalização não revela seu caráter de classe apenas por via dos mecanismos de seletividade (vale dizer, de reprodução social) operados pelo sistema de ensino. Manifesta esta ordem de injunção também pela capacidade de mobilizar o aparelho repressivo do Estado contra tentativas de contestar a outorga dos direitos privativos de prática garantida pela ordem legal. Quer dizer: a desqualificação de práticas calcadas no arbitrário cultural dominado (a medicina espontânea do curandeiro, a engenharia espontânea do construtor, etc.) sofrem não só desqualificação simbólica mas também estão sujeitas ao imperativo da lei jurídica, e, por meio desta, afetam as oportunidades de renda entre as classes e/ou frações de classe.

Todavia, a compreensão plena do que devem a organização e a ideologia profissionais ao sistema de relações de classe requer a incorporação do conflito entre o princípio de legitimidade propriamente cultural, que frações intelectuais e artísticas mobilizam contra as frações não intelectuais das classes dominantes e o apelo ao princípio externo de legitimidade que o Estado é capaz de conferir ao conjunto dos praticantes egressos do ensino formal. O solene desprezo que os artistas e intelectuais devotam às campanhas de profissionalização que pretendem definir - a partir de critérios burocrático-escolares - a comunidade dos praticantes, com base no argumento de que a legítima produção intelectual e artística é fruto exclusivo do talento individual é o sinal mais claro de que, por via da lei tenta-se autenticar um conjunto de práticas e de praticantes cujo valor simbólico não pode ser conseguido impunemente pela reivindicação a qualquer preço da proteção do Estado.38 38 Esta competição de critérios de legitimidade pode ser vista no fato de que muito dificilmente são os nomes consagrados num dado campo cultural os produtores das campanhas de profissionalização; eles dão, quando muito, adesão retardada e cautelosa ao movimento, geralmente enfatizando a boa vontade e o espírito de sacrificio dos seus líderes.

Para resumir, os pontos de redefinição da problemática do profissionalismo permitidos pela teoria do campo simbólico desenvolvida por Bourdieu seriam os seguintes:

1. A autoridade profissional retira seu poder do arbitrário cultural dominante e mobiliza o aparelho de Estado para a efetivação, sob a proteção da lei, de um conjunto das classes e frações de classe no interior de uma formação social, mesmo para aquelas não predispostas, por interesses antagônicos (enquanto concorrentes), ou por mero desconhecimento (enquanto clientes) a conceder espontaneamente ao monopólio reivindicado. Por suposto, quanto mais unificado o mercado simbólico e material, tanto maior a probabilidade de "esquecimento" (isto é, de dissimulação) do caráter impositivo da prática e tanto maior o reconhecimento do usufruto daquela prática como direito de todos.

2. As investidas contencionistas dos corpos profissionais sobre o sistema de ensino (operando por exclusão simbólica e/ou material dos pretendentes "indignos") têm a ver com a função de reprodução social que o aparelho escolar processa, na sociedade de classes.

3. A ideologia da profissão como comunidade de interesses e âmbito de destino revela sua inconsistência quando se captam divisões internas à categoria profissional. Esta inconsistência se prende: a) à coexistência de princípios de legitimidade distintos, como, por exemplo, entre a ideologia inatista da vocação e da singularidade do autor39 39 Nas palavras de Lúcio Costa "... nao se pode fazer o arquiteto - como não se fazem o músico e o poeta - mas, simplesmente educá-lo" (...). Se há obras tantas sem nenhum significado no Brasil é porque faltou ao responsável o necessário fôlego, aquela força criadora que adivinha, não em determinados pontos da obra, mas distribuída em todas as suas partes, - aquilo, enfim, que só o arquiteto pode, consciente ou inconscientemente, transmitir. E quando dizemos arquiteto não nos referimos ao diplomado - mas aquele que nasceu assim'. Sobre arquitetura, ver Lúcio Costa. Publicação da Universidade Federal do RGS, Porto Alegre, 1962 p. 81. e as pretensões corporativista, calcadas em definições burocrático-escolares da categoria dos praticantes;40 40 O que pode ser observado nos textos de regulamentação profissional, por exemplo. e b) às relações de dominação-subordinação originadas do assalariamento ou de outras modalidades menos freqüentes de dependência econômica entre membros da mesma categoria ocupacional. Note-se que as possibilidades de assalariar, no caso de várias categorias ocupacionais de nível superior, não se dão apenas pela propriedade de meios de produção, mas também pelo estabelecimento de uma rede de contactos capaz de concentrar oportunidades de trabalho em poucas mãos. Em outras palavras, o capital de relações sociais multiplica a eficiência do capital cultural certificado pela escola, e a transfiguração progressiva de capital econômico em capital social e cultural nada mais revela do que o elevado poder de dissimulação (logo de manutenção) das relações de classe operado pelo aparelho escolar, do qual os corpos profissionais apenas em parte são produtos.

  • 3 Veja Maurice, Marc. op. cit. e Benguigui, Georges. La définition des professions. Epistemologie Sociologique, Paris, n. 13, 99-113, 1972,
  • Benguigui sugestivamente explica a grande atração que o modelo organizacional das profissões exerce sobre os sociólogos como expressão de eles próprios se entenderem como profissionais: "(...) se as profissões exercem tal fascínio sobre os sociólogos (...) é porque, de fato, consciente ou inconscientemente, falam de si próprios, falam de seu próprio trabalho e de sua organização. de sua prôpria situação em matéria de classes sociais ou de estratificação social" (p. 108). "( ...) Vêse, pois. por que com tanta freqüência a sociologia das profissões apresenta tal ambigüidade. isto é. ao mesmo tempo objetiva e a Serviço da sociedade (p. 113). Veja também Chapoulie, Jean-Michel. Sur l'analyse sociologique des groupes professionnels. Revue Française de Sociologie, n. 14, p. 86-114,1973.
  • 6 Segundo Maurice op. cit., as poucas e boas contribuições neste sentido são de juristas e de economistas, e não de sociólogos, como por exemplo os estudos de Friedmanne Kuznets sobre a profissão de médico e sobre a politica monopolistica da American Medical Association, Friedmann, N. & Kuznets, S. Income from independem professional practice. New York, 1945 e Kessel, R. B. Price discrimination in medicine" The Journal of Law and Economics, n, 1 p. 20-53, 1958 citados em Maurice,
  • Marc. op. cit. Mais recentemente há o estudo de Thoening, Jean Claude, L 'êre des technocrates (le cas des ponts et chaussées) Les Editions d'Organizations, Paris, 1973.
  • 9 Rodrigues, J. Albertino. Sindicato e desenvolvimento no Brasil. São Paulo, DIFEL, 1968.
  • 10 Veja Langoni, Carlos Geraldo Distribuição da renda e desenvolvimento econômico no Brasil Rio, Ed. Expressão e Cultura, 1973, onde, por levantamento empírico das informações do imposto de renda e análise de correlação, se evidencia que os aumentos das frações escolarizadas na PEA entre 1960 e 1970 foram acompanhados de aumentos mais que proporcionais em seus rendimentos. Entre as variáveis educação, região, idade, sexo e ramo de atividade, a primeira apresentou maior contribuição à variação total (veja esp. p. 112). As análises do IPE/USP confirmam estes resultados para a população escolarizada que trabalha na indústria em São Paulo. Veja Pastore, José & Lopes, J. do Carmo. A mão-de-obra especializada na indústria paulista IPE, 1973.
  • 15 Nogueira, O. Contribuição ao estudo das profissões de nivel universitário no Estado de São Paulo. Tese de livre-docência junto a cadeira de sociologia II da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas de Osasco. 2 v. 1967. v. 2, p. 6.
  • 16 Alcântara, Glete de. A enfermagem moderna como categoria profissional obstáculos a sua expansão na sociedade brasileira. USP, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, 1966 e Ferreira Santos,
  • Célia A. A enfermagem como profissão: estudo num hospital-escola. São Paulo, Pioneira (Ed. da USP), 1973.
  • 17 Pereira, S. Leser de M. As atividades profissionais do psicólogo em São Paulo. Tese de doutoramento apresentada ao Instituto de Psicologia (Departamento de Psicologia Social e do Trabalho) da USP, São Paulo, 1972. mimeogr.
  • 20 Pereira, Luiz, o magistério primário da sociedade de classes. FFLCH, USP,
  • Boletim 277, Sociologia I, São Paulo, n. 10,1963.
  • 21 Donnangelo, M. C. Ferro. O médico e o mercado de trabalho. Tese de doutoramento apresentada ao Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP. São Paulo, 1972. Mimeogr.
  • 22 Bresser Pereira, L. C. Empresários e administradores no Brasil. São Paulo. Ed. Brasiliense, 1974.
  • 25 Brandéis, L. D. Business, a profession. Boston, Small, Maynard, 1925. Apud: Benguigui, G. La professionalisation des cadres dans l'industrie. Sociologie du Travail 9émê année, 2/67, avril/juin.
  • 26 Lima Jr., Olavo B. de, Klein, Lucia Maria Gomes & Martins, Antonio Soares. O advogado e o Estado no Brasil. IUPERJ, 1970, mimeogr.
  • 30 Poulantzas, N. Les classes sociales dans le capitalisme aujourdhui. Paris, Seuil, 1974. p. 218.
  • 31 No momento em que a divisão do trabalho, na sociedade de classes, leva à constituição de uma esfera de produtores, empresários e consumidores de bens 'culturais com pretensões i autonomia em relação às frações não intelectuais da classe dominante, e definindo-se em oposição à indústria cultural, dão-se as condições sociais para a emergência da ilusão da autonomia absoluta das práticas científicas e estéticas. O conceito de delegação reitera, pois, contra a ilusão, o principio da autonomia relativa do cultural em relação ao político. Ver, a respeito, de Bordieu, O mercado de bens simbólicos e Campo do poder, campo intelectual e habitus de classe. In: Micelli, Sérgio, org. A economia das trocas simbólicas, ed. Perspectiva, 1974. Ver também, de Bourdieu & Passeron. La reproduction, éléments pour une théorie du système d'enseignement. Paris. Les Editions du Minuit, 1970.
  • 1
    Em
    Professions: roles and rules de V. W. Moore, New York, Russel Sage Foundation, 1970, arrolam-se em bibliografia seleta nada menos de 850 títulos, dos quais a grande maioria referida ao mundo anglosaxão.
  • 2
    Este rol de atributos compreende apenas os mais freqüentes entre os autores que fazem uso de conceito. Poderiam acrescentar-se outros, tais como: existência de associação para controle da competência, aplicação prática de saber originário de ciência, etc., que, em última análise, sintetizam-se nos três enunciados. Veja Maurice, Marc. Propos sur la sociologie des professions.
    Sociologie du Travail, v. 2, n. 13, p. 72, abr./jun.
  • 3
    Veja Maurice, Marc. op. cit. e Benguigui, Georges. La définition des professions.
    Epistemologie Sociologique, Paris, n. 13, 99-113, 1972, Benguigui sugestivamente explica a grande atração que o modelo organizacional das profissões exerce sobre os sociólogos como expressão de eles próprios se entenderem como profissionais: "(...) se as profissões exercem tal fascínio sobre os sociólogos (...) é porque, de fato, consciente ou inconscientemente, falam de si próprios, falam de seu próprio trabalho e de sua organização. de sua prôpria situação em matéria de classes sociais ou de estratificação social" (p. 108). "( ...) Vêse, pois. por que com tanta freqüência a sociologia das profissões apresenta tal ambigüidade. isto é. ao mesmo tempo objetiva e a Serviço da sociedade (p. 113). Veja também Chapoulie, Jean-Michel. Sur l'analyse sociologique des groupes professionnels. Revue Française de Sociologie, n. 14, p. 86-114,1973. Caberia aqui obstar aos crlticos no sentido de que a negação da oposição de classes é o cerne da pr6pria ideologia dominante, e não formulação tipicamente pequeno-burguesa. A meu ver, qualificar este conjunto de representações de pequeno- burguês equivale a apontar a cegueira dos que, tudo devendo na sua trajet6ria social aos aparelhos formalmente organizados segundo critérios de mérito, são incapazes de perceber a sutileza dos mecanismos de seleção social ou de reprodução de classes. Mas resta saber se os que assim qualificam têm clara percepção das razões que os levam a apelar a todo momento à autoridade e reproduzir o juizo consagrado segundo o qual "(...) o democrata, por representar a pequena burguesia, ou seja, uma classe de transição, na qual os interesses das duas classes opostas perdem simultaneamente suas arestas, imagina estar acima dos antagonismos de classe em geral", como diz Marc em O dezoito brumário. razões, enfim, que permitem atribuir ao intelectual a ambigüidade de estar. ao mesmo tempo, "em busca de consagração" e "a serviço do proletariado", álibi que toma absoluto o alcance politico do trabalho intelectual. Caberia, enfim, ter agudeza para a seguinte questão: quando o intelectual se rebela contra concepções "pequeno-burguesas" ele pode estar mais irado com o 'pequeno" do que com o "burguês".
  • 4
    Veja Maurice, Marc, op. cit. p.222-5.
  • 5
    Tanto a teoria do profissionalismo quanto as formulações tecnocráticas prendem-se ao pensamento pós-liberal, como se pode decorrer da análise de Nisbet. Nisbet, R.
    La formación del pensamiento sociológico. Buenos Aires, Amorrortu editores, 1969. esp. capo Las ideaselementos de la sociologia.
  • 6
    Segundo Maurice op. cit., as poucas e boas contribuições neste sentido são de juristas e de economistas, e não de sociólogos, como por exemplo os estudos de Friedmanne Kuznets sobre a profissão de médico e sobre a politica monopolistica da American Medical Association, Friedmann, N. & Kuznets, S.
    Income from independem professional practice. New York, 1945 e Kessel, R. B. Price discrimination in medicine"
    The Journal of Law and Economics, n, 1 p. 20-53, 1958 citados em Maurice, Marc. op. cit. Mais recentemente há o estudo de Thoening, Jean Claude,
    L 'êre des technocrates (le cas des ponts et chaussées). Les Editions d'Organizations, Paris, 1973.
  • 7
    Veja, por exemplo, Topalov, Christian. Les promoteurs immobiliers - contribuition. à l'analyse de la production eapitaliste du logement en France. Mouton, Paris, 1974, em que se focaliza a dinâmica capitalista do setor de produção de habitações na França e seus efeitos na divisão do trabalho, entre categorias antes autônomas, como arquitetos, engenheiros, etc.
  • 8
    A questão do estreito controle estatal na organização do sistema escolar e na institucionalização das profissões indica um baixo grau de articulação da sociedade civil no País.
  • 9
    Rodrigues, J. Albertino.
    Sindicato e desenvolvimento no Brasil. São Paulo, DIFEL, 1968.
  • 10
    Veja Langoni, Carlos Geraldo
    Distribuição da renda e desenvolvimento econômico no Brasil Rio, Ed. Expressão e Cultura, 1973, onde, por levantamento empírico das informações do imposto de renda e análise de correlação, se evidencia que os aumentos das frações escolarizadas na PEA entre 1960 e 1970 foram acompanhados de aumentos mais que proporcionais em seus rendimentos. Entre as variáveis educação, região, idade, sexo e ramo de atividade, a primeira apresentou maior contribuição à variação total (veja esp. p. 112). As análises do IPE/USP confirmam estes resultados para a população escolarizada que trabalha na indústria em São Paulo. Veja Pastore, José & Lopes, J. do Carmo.
    A mão-de-obra especializada na indústria paulista IPE, 1973. Evitamos discutir aqui a falácia de causa falsa que Paul Singer aponta na argumentação de Langoni, e cuja formulação seria, em minhas palavras, a seguinte: a educação não é a causa da concentração de renda, mas ambas conseqüências de um padrão desigual de distribuição de oportunidades. Veja-se a critica de Singer em Desenvolvimento e repartição de renda no Brasil. In
    Debate & Crítica, São Paulo, n. 1, jul./dez. 1973. A argumentação de Singer, confirmada por José Serra e Edmar Bacha, insiste na questão de que as inúmeras forças não econômicas (parentesco, cooptação, etc.) que atuam nas possibilidades de renda e emprego tornam a simples posse do titulo acadêmico insignificante como causa da concentração de renda. Veja Serra, J. A reconcentração da renda: justificações, explicações, dúvidas e Bacha, E. L. Hierarquia e remuneração gerencial. In. Tolipan, R. & Tinelli, A. C. org. 'A controvérsia sobre distribuição de renda e desenvolvimento. Zahar, 1975.
  • 11
    Veja Rodrigues da Cunha, L. A.
    Política educacional no Brasil a profissionalização no ensino médio. Rio, Eldorado, 1973. (Coleção Meta).
  • 12
    Estribada na Lei n. 4215, de 1963, que disciplinava as condições de ingresso na OAB mediante comprovação, pelo candidato, de cumprimento de estágio profissional ou aprovação em exame interno, a Ordem efetivou provas de capacitação em 1971. O baixo Índice de aprovação (8%) estimulou movimento que terminou pelo estabelecimento de lei federal (n. 5960) tornando exame e estágio dispensáveis a todos os bacharéis formados até 1973.
    \efa Jornal do Advogado n. 2, ano I. p. 3, julho 1974. Relevante também o fato de que há vinte anos a OAB insta junto ao MEC para fiscalizar e restringir a expansão do ensino de direito, sem ter obtido, segundo a fonte citada, qualquer êxito.
  • 13
    Isto é, para o conjunto dos trabalhadores de escolarização média ou superior. Por suposto neste agregado há contingentes com renda muito próxima à dos trabalhadores manuais.
  • 14
    Veja Grupo Manifesto, División du travail et technique du pouvoir.ies
    Temps Modemes, n. 285, p. 1559-86, abr. 1970.
  • 15
    Nogueira, O.
    Contribuição ao estudo das profissões de nivel universitário no Estado de São Paulo. Tese de livre-docência junto a cadeira de sociologia II da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas de Osasco. 2 v. 1967. v. 2, p. 6.
  • 16
    Alcântara, Glete de.
    A enfermagem moderna como categoria profissional obstáculos a sua expansão na sociedade brasileira. USP, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, 1966 e Ferreira Santos, Célia A.
    A enfermagem como profissão: estudo num hospital-escola. São Paulo, Pioneira (Ed. da USP), 1973.
  • 17
    Pereira, S. Leser de M.
    As atividades profissionais do psicólogo em São Paulo. Tese de doutoramento apresentada ao Instituto de Psicologia (Departamento de Psicologia Social e do Trabalho) da USP, São Paulo, 1972. mimeogr.
  • 18
    É preciso qualificar bem o que se entende por "aparecimento de nova profissão". A autonomização de um conjunto de disciplinas em curriculum universitário especifico, em um novo titulo de bacharelado ou equivalente, é algo que pode ser muito mais facilmente explicado por fatores internos à organização acadêmica (interesses de grupos cindidos dentro da universidade, por exemplo) ou pela incorporação de padrões de ensino e de organização curricular de centros universitários hegemônicos do exterior do que como antecipação de necessidades sociais latentes por nova especialização técnico-científica. De modo semelhante, a legalização da ocupação via regulamentação é muitas vezes mera conquista de pequenos grupos organizados - "elites profissionais" - que mobilizam a iniciativa de um deputado (fato muito comum em conjunturas eleitorais) na apresentação e defesa dos "interesses da categoria". Oracy Nogueira levanta a hipótese de que, em nosso pais, a regulamentação profissional, tem antes a função de tornar mais atrativos certos ramos incipientes de ensino do que disciplinar atividades de ocupações já constituídas. Veja Nogueira. O. op. cit. p. 241. Note-se que as teorias em concorrência no campo da produção erudita podem ensejar oposições e divisões ao nivel da prática profissional, criando ou redefinindo identidades profissionais; o fato é bem visível no campo mais geral da psicologia, em cujo interior competem psicanalistas, médicos-psiquiatras, psicólogos e "animadores sociais" de formação variada, cada qual reivindicando para sua prática legitimidades teóricas concorrentes.
  • 19
    A postura negadora das iniquidades sociais decorrentes da concentração de renda, da mercantilização das práticas profissionais, de seus efeitos na seleção social do sistema de ensino e na apropriação privada do produto do trabalho dos técnicos é um forte elemento contrário à sustentação de politicas malthusianas pelas categorias ocupacionais ou de restrição à ampliação de vagas nas escolas. E uma forma de protesto contra os padrões de acumulação e desenvolvimento capitalista no Brasil, e uma possibilidade de manifestar desejo de participação social. Ver Foracchi, Marialice M.
    O estudante e a transformação da sociedade brasileira. Cia Editora Nacional, 1965, esp. cap. A carreira como projeto. 170-214.
  • 20
    Pereira, Luiz, o magistério primário da sociedade de classes. FFLCH, USP,
    Boletim 277, Sociologia I, São Paulo, n. 10,1963.
  • 21
    Donnangelo, M. C. Ferro.
    O médico e o mercado de trabalho. Tese de doutoramento apresentada ao Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP. São Paulo, 1972. Mimeogr.
  • 22
    Bresser Pereira, L. C.
    Empresários e administradores no Brasil. São Paulo. Ed. Brasiliense, 1974.
  • 23
    . Este nexo se depreende da biografia do autor ao fim do livro. Ao lado de sua titulação acadêmica inclui referências ao seu papel de executivo em grupo econômico paulista, e da contribuição atribuida a seu desempenho na expansão do grupo: "Como professor assessorou diversas empresas, inclusive Supermercados Pão de Açúcar. Começou nessa empresa quando esta inaugurava sua segunda loja em 1963. Desde 1965 é seu diretor administrativo. Hoje, Supermercados Pão de Açúcar é a maior empresa de supermercados na América Latina." Op. cit. p. 239.
  • 24
    Ver a proposição da Bacha segundo a qual a remuneração do gerente, que se expressa em renda-salário
    efringe benefits deve ser tomada como apropriação de parte da mais valia pela fração dos administradores em razão de desempenharem funções capitalistas. Parece claro que só um estudo nesta linha pode dar conta dos fatores estruturais condicionantes da ideologia dos gerentes e das possibilidades, a longo prazo, da emergência de modelos profissionalizantes entre administradores. Veja Bacha, Edmar. Hierarquia e remuneração gerencial. In: Tolipan & Tinelli.
    A controvércia... cit. A exploração desta questão permitiria decidir da procedência do que poderíamos chamar de "fator cumplicidade" na explicação da distribuição de renda, como aparece na análise sugerida por Paul Singer: "É a seleção social no sistema escolar que explica, em parte, a elevadíssima diferença de remuneração (da ordem de 1 para 15) entre profissionais de nivel superior e trabalhadores pouco qualificados na indústria paulista, por exemplo. Sendo alto o padrão de vida daqueles profissionais desde sua origem familiar, suas aspirações econômicas ) são igualmente elevadas e tendem a ser satisfeitas não devido a sua escassez relativa mas porque os que tomam as decisões do lado da demanda, os empregadores, são da mesma classe social e "compreendem" perfeitamente quanto custa manter um padrão de vida decente." Ver Singer, Paul. op. cit. p. 88.
  • 25
    Brandéis, L. D.
    Business, a profession. Boston, Small, Maynard, 1925. Apud: Benguigui, G. La professionalisation des cadres dans l'industrie.
    Sociologie du Travail 9émê année, 2/67, avril/juin. Neste artigo se comentam o uso e os limites da dicotomia "orientação organizacional" e "orientação profissional" em dar conta, tipológicamente, do significado e funções das condutas dos
    cadres.
  • 26
    Lima Jr., Olavo B. de, Klein, Lucia Maria Gomes & Martins, Antonio Soares.
    O advogado e o Estado no Brasil. IUPERJ, 1970, mimeogr.
  • 27
    A massa de dados empíricos usados consiste exclusivamente de informações sobre recrutamento, distribuição por áreas de atividade, avaliações sobre a profissão, etc. tomadas mediante questionário a uma centena de participantes do IV Encontro Nacional da OAB (São Paulo, 1970), portanto, a uma fração politicamente ativa ao nível dos órgãos profissionais que não pode se representar de forma alguma, como quer o estudo, a média das opiniões dos advogados. Sem outro lastro factual para controle, os autores são levados a tomar por fidedignas todas ás avaliações emitidas sobre a carreira.
  • 28
    Breffer Pereira, L. C.
    Empresários e administradores... cit.
  • 29
    Notem-se as campanhas organizadas e as reivindicações difusas da "profissionalização do sociólogo". A meu ver, quanto maior o número de estudantes desprovidos do capital cultural erudito necessário para viver e entender os cursos de ciências sociais como momento de formação de um projeto intelectual, tanto maior a disposição para encontrar, a qualquer preço, a via profissionalizante.
  • 30
    Poulantzas, N.
    Les classes sociales dans le capitalisme aujourdhui. Paris, Seuil, 1974. p. 218.
  • 31
    No momento em que a divisão do trabalho, na sociedade de classes, leva à constituição de uma esfera de produtores, empresários e consumidores de bens 'culturais com pretensões i autonomia em relação às frações não intelectuais da classe dominante, e definindo-se em oposição à indústria cultural, dão-se as condições sociais para a emergência da ilusão da autonomia absoluta das práticas científicas e estéticas. O conceito de delegação reitera, pois, contra a ilusão, o principio da autonomia relativa do cultural em relação ao político. Ver, a respeito, de Bordieu, O mercado de bens simbólicos e Campo do poder, campo intelectual e habitus de classe. In: Micelli, Sérgio, org.
    A economia das trocas simbólicas, ed. Perspectiva, 1974. Ver também, de Bourdieu & Passeron.
    La reproduction, éléments pour une théorie du système d'enseignement. Paris. Les Editions du Minuit, 1970.
  • 32
    Tal perspectiva é desenvolvida por Chapoulie na tentativa de inserir o corpo professoral, de nível médio na estrutura de classes na França. Para ele, as pretensões dos professores secundários de legislar soberanamente em matéria de pedagogia são contestadas progressivamente, à medida em que, pela difusão da escolarização de nível superior, as frações cultivadas da burguesia e da pequena burguesia mobilizam as associações de pais e mestres na fiscalização da prática docente de professores extraídos, cada vez mais, das frações inferiores da nova pequena burguesia. Jean-Michel Chapoulie. Les corps professoral dans la structure de classe.
    Revue Française de Sociologie, n.15, p. 162, 1974.
  • 33
    Por ideologia do homem total entenda-se o conjunto de representações que qualificam negativamente o especialista "obtuso", incapaz de ultrapassar os limites estreitos do aprendizado técnico-cientifico em nome da competência especifica, mas aliada a ampla bagagem cultural e à sensibilidade que permitem leitura global, a um tempo intuitiva e compreensiva, da situação de trabalho e das necessidades do cliente. A titulo de exemplo, pode-se identificar as criticas de Wright Mills ao intelectual e ao burocrata norte-americanos como calcada nessa ideologia.
  • 34
    Os atributos definidores da prática liberal são a possibilidade de escolha do cliente e a liberdade de fixação do preço do serviço. Veja Donnangelo, M.C. op. cit. p. 95.
  • 35
    Interessante evidência empírica é mencionada em análise da organização dos advogados americanos, que evidenciou deterem os bacharéis assalariados das grandes organizações maior prestigio entre seus pares do que os colegas que advogam causas pessoais na justiça ordinária; inclusive a pertinência de classe superior, mais freqüente entre os primeiros reforçada pela freqüência a escolas seletas, garantem maior efeito ao titulo profissional. Citado por Chapoulie, J. M. Sur l'analyse sociologique des groupes professionnels.
    Rev. Franç. Sociol. p. 94-5.
  • 36
    Em
    La reproduction, Bourdieu e Passeron desenvolvem a teoria da educação compatível com a função de reprodução social que o sistema de ensino desempenha na sociedade de classes, pondo em relevo os mecanismos de exclusão escolar com base no capital cultural e econômico das várias frações de classe; a análise chega a propor o cálculo das probabilidades absolutas e condicionais (por ramo de ensino e sexo) de permanência na escola por sexo e extração social. Veja
    La reproduction, éléments pour une théorie du système d'enseignement op. cit.
  • 37
    Neste caso, apela-se ao capital econômico como meio de manter a composição social do corpo profissional. Ê sugestivo observar que nas disciplinas que exigem maior familiaridade com a cultura erudita, como filosofia e letras, por exemplo, os corpos professorais não combatem pela exigência de tempo integral do estudante que neles opera de fato a exclusão propriamente simbólica, ou seja, com base na posse/não-posse de capital cultural, capaz de definir os que merecem aspirar à realização de um projeto intelectual.
  • 38
    Esta competição de critérios de legitimidade pode ser vista no fato de que muito dificilmente são os nomes consagrados num dado campo cultural os produtores das campanhas de profissionalização; eles dão, quando muito, adesão retardada e cautelosa ao movimento, geralmente enfatizando a boa vontade e o espírito de sacrificio dos seus líderes.
  • 39
    Nas palavras de Lúcio Costa "... nao se pode fazer o arquiteto - como não se fazem o músico e o poeta - mas, simplesmente educá-lo" (...). Se há obras tantas sem nenhum significado no Brasil é porque faltou ao responsável o necessário fôlego, aquela força criadora que adivinha, não em determinados pontos da obra, mas distribuída em todas as suas partes, - aquilo, enfim, que só o arquiteto pode, consciente ou inconscientemente, transmitir. E quando dizemos arquiteto não nos referimos ao diplomado - mas aquele que nasceu assim'. Sobre arquitetura, ver
    Lúcio Costa. Publicação da Universidade Federal do RGS, Porto Alegre, 1962 p. 81.
  • 40
    O que pode ser observado nos textos de regulamentação profissional, por exemplo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Ago 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 1975
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