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Imaginário e organização

ARTIGO

Imaginário e organização

José Carlos de Paula Carvalho

Professor na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo

"Ao homo sapiens precisamos unir o homem

louco (demens), o homem produtor, o homem

técnico, o homem construtor, o homem ansioso,

o homem consumidor, o homem extático, o

homem que canta e dança, o homem instável,

o homem subjetivo, o homem imaginário, o

homem mitológico, o homem em crise,

o homem neurótico, o homem erótico, o

homem da desmedida, o homem destruidor,

o homem consciente, o homem inconsciente,

o homem mágico, o homem racional, tudo isto

num rosto de faces múltiplas em que, por fim,

definitivamente, o hominida se transformará

em homem."

(E. Morin)

"Em ínfima escala têm sido tematizadas as

incidências imaginárias da exploração do

homem pelo homem, se considerarmos seus

dados meramente econômicos. Entretanto, aqui

tocamos num ponto nodal; dai uma perspectiva

de revolução social poderia extrair imensa

fonte de energia..."

(F. Guattari)

"Compreende-se, daí, que é preciso mudar a

escola, se verdadeiramente se quer mudar a

sociedade. Sem dúvida, não basta a

transformação da escola. Mas, por outro lado,

nada poderá mudar se os homens não

aprenderem desde a infância, a construir e a

gerir instituições. Esta a origem do que chamo:

a autogestão pedagógica. Ela visa modificar

as atitudes e os comportamentos. Se amanhã

novas estruturas forem instauradas, visando

enfim permitir a participação de todos nas

decisões, a autogestão social de nada valerá se

os homens já não tiverem aprendido a viver na

nova sociedade, construindo-a

'permanentemente' jamais fixando o

movimento histórico em instituições

cristalizadas e desconectadas do ato instituinte."

(G. Lapassade)

Instados por colegas e alunos, a despeito do caráter de "anotações" que permeia este texto, resolvemos apresentar um material até então infelizmente descosido nas possíveis convergências e recobrimentos. Se descontarmos a exploração dos "fundamentos fundantes" (ver item 10), essas "notas" trarão a marca da miseau point. Permitimo-nos, para uma acurada tanto quanto mais dentada exploração, remeter o leitor ao nosso trabalho de doutoramento1 1 . Paula Carvalho (1984 a, segunda parte, cap. 3). em curso.

1. UM CASO EXEMPLAR: A "CONTRA-INSTITUIÇÃO"

Consideraremos, inicialmente - e com isso visamos evitar certa aridez, e não menores dificuldades advindas de uma certa "tecnicidade do pensamento transdisciplinar", de uma fundamentação teórica ex-abrupto do comportamento organizacional alternativo - um exemplo: o dispositif analyseur da "contra-instituição", proveniente da análise institucional de G. Lapassade e R. Lourau. A "exemplaridade" da noção ainda se deve ao fato de, por seu intermédio, podermos detectar os temas mais importantes concernentes à problemática teórica dos fundamentos antropológicos do comportamento organizacional alternativo.

Como Lourau observa, "a análise institucional generalizada não é só ou principalmente a liberação da palavra (...) É fundamentalmente a ação dos analyseurs. Por analyseur a análise institucional entende os fenômenos sociais (...) que, pela própria ação (e não pela aplicação de qualquer ciência) produzem uma análise da situação" (Lourau, 1974, p. 11-4). Nesse sentido, Lapassade, em algumas de suas intervenções, fala na "autogestão pedagógica como analyseur e contra-instituição", ou seja, "as experiências autogestivas foram essencialmente contestações. Pensávamos em facilitar a tarefa pedagógica; sobretudo se construíram, nas classes, contra-instituições que, funcionando como analyseurs, evidenciaram obstáculos e impossibilidades. A organização autogestiva da formação educativa funcionou como um dispositif analyseur (...) Os obstáculos, obrigando-nos a analisar a inserção da aprendizagem no sistema, progressivamente nos relevaram que o dispositivo autogestivo era contrainstitucional, que incessantemente fazia os obstáculos, as resistências surgirem, não só no entorno* * N. do E. O autor emprega a palavra "entorno" no sentido de meio ambiente. institucional e docente, mas ainda nos sujeitos da formação, os próprios alunos. Descobrimos, assim, que o dispositivo autogestivo funcionava como analyseur. Um analyseur institucional funciona quando provoca a emergência de material analítico. O trabalho do pedagogo implica a necessidade, por um lado, de detectar analyseurs naturais no campo pedagógico e, por outro, de construir novos dispositivos analyseurs em função de uma estratégia de formação" (Lapassade, 1971, p. 16-7).

Situam-se, destarte, as contra-instituições - "essas instituições que tentam abolir as separações e que são a crítica ativa ao conjunto das instituições existentes (aí compreendidas as novas instituições de um regime revolucionário)" (Lapassade & Lourau, 1974, p. 184) - nos contextos seja de um continuum "tendencialmente hipercomplexo", diríamos com Morin, de um fluxo permanente de desestruturações e re-estruturações, seja numa descontinuidade de "rupturas anômico-a-estruturais", diríamos com Duvignaud. Na sutura ou na ruptura assistimos à re-tomada do "momento anti" da ação institucional por meio da ativação-mobilização do imaginário, como adiante destacaremos.

Conclusiva e sinteticamente Lapassade e Lourau afirmam: "'Contra' não significa negação pura e simples das instituições e recusa em aceitar a idéia de que toda a sociedade funciona com formas institucionalizadas. A 'negação simples' se exprimiria melhor por meio da 'ação antiinstitucional': pelo desvio ou crítica ideológicos, pela alternativa do grupo ou da comunidade persistente ao nível do sonho, pela rejeição dos aparelhos considerados 'traidores' em face das bases etc. A luta anti-institucional, primeiro momento, e momento indispensável da ação revolucionária, é a resposta imediata à 'ação institucional', isto é, à ação reformista (ou conservadora) na e pelas instituições existentes. A 'ação contra-institucional' é a 'negação absoluta' das instituições que singularizam o atual modo de produção, isto é, das instituições enquanto forma que a reprodução e a produção de relações sociais no modo de produção capitalista (forma ora política, ora econômica, ora ideológica) assumem. A negação absoluta tem como conteúdo a negação da simples negação. Consiste ela em agir para a construção de novas formas sociais (experimentais e/ou de luta), em Vez de se contentar com negar as existentes formas sociais e todas as formas possíveis, num ceticismo ou niilismo sem conteúdo de classe (...) Um critério da contra-instituição (...) consiste em que a posição contra-institucional é sempre 'ativa' (ato real ou simbólico), ao passo que os dois outros modos podem perfeitamente, do ponto de vista crítico, ser reduzidos a um conteúdo imaginário, seja pela identificação às instituições existentes (posição institucional), seja pela imaginária rejeição dessas instituições (posição antiinstitucional)" (Lapassade & Lourau, 1974, p. 187).

Por ora não devemos questionar a formulação imprecisa desse "imaginário mitigado", senão "reduzido",2 2 . Ricoeur e Durand concebem as "hermenêuticas", ou estilos de interpretação, quer como "leituras sintomáticas" (desmistificadoras), quer como "leituras instaurativas" (amplificadoras); as primeiras são "redutivas" (sempre há um fator de última instância na explicação) e as segundas são "plurais" ou "compreensivas", uma "leitura da confiança", diria Bachelard, em oposição à "leitura da suspeita". Se, por exemplo, Marx, Freud e Nietzsche ilustram as primeiras, assim como Lévi-Strauss, os fenomenólogos ilustram, por exemplo, as segundas. As primeiras supõem uma "concepção semiótica" da linguagem (o signo é arbitrário e convencional, por isso, unívoco), ao passo que as segundas visam uma "concepção simbólica" da linguagem (o signo não é o símbolo que, esse, é motivado, polívoco e equívoco). Segue-se, daí, um enfoque semiológico e simbólico do imaginário: o primeiro é redutivo, e por isso o imaginário é mitigado. O segundo amplia as várias "perspectivas" de enfoque (incluindo também a "redutiva", mas relativizando-a nas suas pretensões explicativas últimas), através da "sobredeterminação" e da "convergência/conflito de hermenêuticas": falamos, assim, em o imaginário (da pluraridade, da conflitorialidade, da pluridimensionalidade). Cf. Ricoeur (1965, p. 3644) e Durand (1964, p. 109-10). na que se refere o texto transcrito. Basta salientar que o "imaginário ativo" da contra-instituição, melhor formulado por F. Guattari, como veremos, recorda o segundo termo no par lacaniano3 3 . Lacan distingue "três registros essenciais": o real, o simbólico e o imaginário. O "imaginário" refere-se ao "estádio do espelho" e como "registro" marca a "prevalência da relação à imagem do semelhante". Já o "simbólico" designa os fenômenos psíquicos "estruturados como uma linguagem", onde nasce a "palavra que libera". P. Solié evidencia que ao S/s simbólico junguiano corresponde o S/s imaginário lacaniano e ao S/s semiótico junguiano, o S/s simbólico lacaniano. E, numa reinterpretação, fazendo convergirem Jung e Lacan, dos rituais de "eficácia simbólica" (apresentados por Lévi-Strauss na magia do chamã), Solié estabelece a seguinte rede associativa para a relação de significação (S/s) "simbólica" ou "imaginária", respectivamente, em Jung ou Lacan: natureza/significado/irracional/objeto interno O/esquema freudo-lacaniano/magia. Para a relação de significação "semiótica" ou "simbólica", respectivamente Jung e Lacan: cultura/significante, racional/objeto externo O'/esquema freudo-lacaniano/ciência. Cf. Laplanche & Pontalis (1981, p. 195-6, 474-6); Solié (1977, p. 30). imaginário-simbólico no que, aliás, converge, como o mostrou P. Solié, com o imaginário de G. Durand, nosso referencial. Assim, os textos até então alinhavados permitem, por desimplicação, detectar alguns traços da temática característica dos "movimentos contraculturais anti"4 4 . Como veremos adiante, os "movimentos contraculturais da ordem do 'anti'" emergem do "magna social" (Castoriadis) da counter-culture, de onde drenam suas "intervenções institucionais" como "proversões de caráter escatológico" (Ardoino), em grande parte nutridas pelo "princípio Esperança" (Bloch). Suas três grandes matrizes são, segundo Ardoino, a análise institucional, a antipsiquiatria e a antipedagogia. , quais sejam:

a) a questão dos "níveis do sistema social" - e a correlata dos níveis da análise institucional", da profundidade e pregnância maior ou menor das estruturas inconscientes parametrais da organização comportamental e, por fim, o sentido estratégico do "grupo" como pista organizacional e contra-organizacional;

b) a questão da mobilização do imaginário e da função simbólica, em suma, das formas simbólicas nas estratégias organizacionais, sua importância mitigada ou ampliada nas intervenções praxeológicas5 5 . O termo "intervenção praxeológica" deve ser dimensionado nos quadros de uma "antropologia aplicada" redimensionada por R. Bastide, onde os próprios "projetos de intervenção" são tratados como "instituições" (ou dimensões delas). Cf. Bastide (1971, p. 188,193, 205-6); Paula Carvalho (1982, p. 129-30). , tudo a encaminhar as relações entre ideologia e mythopoiésis como possíveis "estilos" de orientação actancial, mais ou menos profundos, mais ou menos liberadores da palavra e da dinâmica do instituinte;

c) a questão dos momentos a-estruturais e/ou anômicos, dos "lugares" dessa "transicionalidade" que dota o "objeto institucional" do caráter de "objeto transicional", assim abrindo o espaço alternativo da "liminaridade possível" e, por fim, a importância estratégica dessa detecção e/ou fomento para a configuração de comportamentos organizacionais alternativos;

d) a questão do sentido de uma releitura dos "movimentos anti", sua oportunidade, e a necessidade de fazê-lo num sentido "contra", mas sobretudo "meta"6 6 . O termo "meta", aplicado aos referidos movimentos, implica uma "comutação energética de sentido e de orientação da ação, doravante não mais pendentes de uma "tese", de um "pró" (definindo-se ingenuamente como "simples negatividade", como "anti", por onde reforçam a coesão do centro, e mais, como a antropologia que Gluckman evidenciou, pelos rituais of rébellion, são induzidos pelo centro e recuperados na sua potencialidade contestatória), mas redimensionados como "heterótese" (Rickert). Formulam-se, então, na dimensão do outro (e do Outro) e da alternatividade relativizadora; formulam-se como "contra" (no sentido de Lapassade) e como "possível", contra a "unidimensionalização" e o "monolitismo" ideológicos, e pela "contraditorialidade", e pela "conflitividade" como expressões legítimas de uma "socialidade ampliada" e do "homem integral-homem contraditorial"; mas o termo "meta" também se refere a uma "estratégia cognitiva" (e, portanto, praxeológica): ao "macroconceito recursivo" de Morin e ao "estilo mythopoiético" de Durand. Ambos supõem uma "nova lógica" do paradoxal (do isto e aquilo), das "concorrências, das complementaridades e dos antagonismos simultâneos". As obras de M. Maffesoli (Logique de La domination, La violence fondatrice, La coquête du présent: pour une sociologie de la vie quotidienne, L'ombre de Dionysos: contribution à une sociologie de l'orgie) caracterizam bem essa "socialidade conflitiva" e o "mirante meta". Do mesmo modo, a revista que dirige ( Sociétés, Revue des Sciences Humaines et Sociales, Masson), apresenta um amplo espectro de investigações nesse sentido. como prefere G. Durand, pois que aponta para a transvaloração do nietzschiano "jenseits von Gutes und Böse".

2. DOS NÍVEIS DA REALIDADE AOS NÍVEIS DE ANÁLISE

Fazer com que a leitura das atividades dos grupos humanos incida preferencial e estrategicamente não tanto sobre os "bens simbólicos", ou produtos simbólicos, como o quer P. Bourdieu (1977), mas fundamentalmente sobre a processualidade, isto é, sobre os processos de simbolização, processos imaginários que integram o "capital cultural" de que nos fala E. Morin7 7 . No decurso do "processo de hominização" ("antropo-sócio-morfogênese) a regressão do "capital genético" marca, fenotipicamente, a instauração do "capital cultural" (ou "noológico"), ou seja, "a cultura se insere complementarmente na regressão dos instintos (programas genéticos) e a progressão das competências organizacionais, reforçada simultaneamente por essa regressão (juvenilizante) e por essa progressão (cerebralizante), a ambas necessária. Ela constitui um tape-recorder, um capital organizacional, uma matriz informática, capaz de alimentar as competências cerebrais, de orientar as estratégias heurísticas, de programar os comportamentos sociais" (Morin, 1973, p. 98-9). , ou como, bem antes, a "dialética trágica da cultura" fora evidenciada por E. Cassirer através da dinâmica do conceito de "forma simbólica", "estilo e estrutura" (Cassirer, 1980, p. 103 e segs.), tudo nos leva a reconhecer a função estruturante, porque mediadora, do Imaginário,8 8 . O "capital cultural" é o "capital noológico" do sapiens e a "esfera noológica é constituída pelo conjunto dos fenômenos ditos espirituais, um rico universo que compreende idéias, teorias, filosofias, mitos, fantasmas, sonhos" (Morin, 1977, p. 340). Para se detectar a "função estruturante do imaginário", Morin evidencia, com P. Auger, o caráter "real", de existentes entes que são as "idéias". Mas estabelece um contraste entre as "cristalizações", ou "núcleo rígido" (teorias, sistemas e paradigmas), e a "ebulição imaginária", os "turbilhões de neo-entropia imaginária" (sonhos e fantasmas), de um modo tal que é do "confronto antagonista/complementar entre o imaginário e a idéia que emerge a imaginação". E é a imaginação que, em e pela turbulência fantasmática, inventa e cria. Briltouin disse-o bem: "O pensamento (imaginante) cria a entropia negativa" (Morin, 1977, p. 340). As implicações organizacionais são claras: nas organizações hipocomplexas, que são "modelos entrópicos de organização" (Ardoino), reprime-se o imaginário, cuja energia é drenada para um comportamento ritual instituinte de um espaço burocrático defensivo. Ao contrário, uma política organizacional da hipercomplexidade libera o imaginário... mas são "organizações neg-entrópicas", como os possíveis dos "movimentos anti". A "função estruturante do imaginário" recobre, entío, o "instituinte", o momento "anômico" e "a-estrutural", o "liminar", as "margens", o "espaço transicional" e o "espaço potencial", em suma, regiões ônticas e domínios de emergência e de elaboração de um comportamento organizacional alternativo plasmado sobre a logique du vivant. desde as degradadas representações e idéias às fantasias e fantasmas do desejo. Isto, entretanto, significa evidenciar as correlações entre uma teoria do Imaginário e uma teoria das organizações, nas atividades dos grupos humanos; diga-se, entretanto, que lidamos com um Imaginário ampliado e com uma organização hipercomplexa, conceitos a que voltaremos adiante. Assim o Imaginário investe9 9 . "Investimento" refere-se a "economica freudiana", onde traduz certa "energia psíquica amarrada a uma representação ou a um grupo de representações" (Laplanche & Pontalis, 1981, p. 211-5). As implicações poderão ser logo vistas nesse trabalho naquilo que se chama "fantasmática do grupo". A organização manipula inputs de energia psíquica e, se hipocomplexa, deriva os investimentos do "ideal do eu" e potencia os valores, as metas e os patterns do superego. Essa ancoragem no fantasma provoca uma estasis da libido, que é responsável pela etiologia organizacional. a organização actancial, como os parâmetros organizacionais tentam reduzi-lo na sua dimensão de "espaço potencial"10 10 . Winnicot (1971). No texto, adiante, explicitamos as noções. (no sentido da "transicionalidade" de Winnicott), controlando-o portanto.

Antes de explorar tais conceitos em suas inter-relações teórico-práticas, continuemos, numa démarche floue, a seguir os traços extraídos do exemplo antes dado. Aos poucos, assim, iremos circunscrevendo as noções teóricas dos "fundamentos fundantes".

G. Lapassade lembra que suas experiências "instituídas" na área de psicossociologia e de pedagogia institucional muito devem às contribuições pioneiras da psicoterapia institucional: "é preciso cuidar da instituição que cuida" significava evidenciar a "dimensão institucional da coletividade hospital" a sobredeterminar-lhe a ação terapêutica. Assim, o conceito freudiano de sobredeterminação,11 11 . Sobredeterminação (ou determinação múltipla) consiste no "fato que uma formação do inconsciente - sintoma, sonho, etc. - remete a uma pluralidade de fatores determinantes, o que pode ser tomado em dois sentidos bastante diferentes: a) a formação vislumbrada é a resultante de várias causas, sendo que uma delas não basta para dar conta; b) a formação remete a elementos inconscientes múltiplos, que se podem organizar em sequências significativas diferentes, sendo que cada uma delas, num certo nível de interpretação, possui sua própria coerência. Esse é o sentido mais usual" (Laplanche & Potalis, 1981, p. 467 e segs.). abundantemente utilizado por Lacan e por Althusser, seria instrumentado não só para detectar a determinação múltipla de uma formação e, de certo modo, circunscrever uma última instância, mas daria origem a uma prática da inversão de papéis e uma ética que desembocaria nas propostas da antipsiquiatria. Esse desvendamento do nível institucional como não-dito12 12 . Como nos habituou a "leitura sintomática" praticada por Althusser, o "não-dito" é o "impensado" do texto. Mary Douglas fala em "estrutura de pressupostos". De qualquer maneira, teríamos as "matrizes" (geralmente inconscientes) da prática ideológica (os "ideologemas" em Kristeva) ou os "paradigmas" (no sentido que lhes dá Kuhn). Eis por que, como primeiro momento, é indispensável uma "leitura da suspeita" (ou desmistificadora). no funcionamento dos "grupos" (que são "organizações sociais", diz Lapassade) levaria às formulações de análise institucional e aos seus conceitos operacionais básicos. Lapassade observa, assim: "Esta experiência me levara a constatar e a demonstrar, por meio de experiências instituídas, que a origem e o sentido daquilo que se passa nos grupos humanos não devem ser somente buscados no que se evidencia no nível visível do que se costuma chamar a dinâmica do grupo. Nesses grupos, sejam eles reunidos para a formação dos homens ou para a experimentação e pesquisa das 'leis', há uma dimensão oculta, não-analisada e entretanto determinante: a dimensão institucional. Propus, então, (1963) designar por 'análise institucional' o trajeto que visa desvendar, nos grupos, esse nível oculto de sua vida e funcionamento (...) Se quisermos analisar o que acontece num grupo, seja ele 'natural' ou 'artificial', pedagógico ou experimental, precisamos admitir como hipótese prévia que o sentido daquilo que acontece aqui e agora nesse grupo está ligado ao complexo tecido institucional de nossa sociedade. Há, assim, uma relação de interdependência entre os conceitos do grupo, da organização e da instituição, do mesmo modo como o há entre os níveis da realidade social que tais conceitos pretendem circunscrever. Segundo um ponto de vista tópico', as noções de grupo, de organização e de instituição que possibilitam, na linguagem corrente, designar três níveis do sistema social, podem do mesmo modo servir para determinar três níveis da análise institucional (ou sócio-análise institucional)" (Lapassade, 1974, p. 7).

Ora, no Prefácio à Pedagogia institucional de M. Lobrot, J. Ardoino amplia a referencialidade dos três níveis, de que nos dá conta a obra de Lapassade, ao distinguir, na dinâmica personalidade-organização, a eventualidade de um conflito, senão inevitabilidade - como R. Likert e S. Katz, D. Kahn diagnosticam, ainda que de modo mais mitigado que C. Argyris - entre os "aspectos humanos da organização" e o "aspecto único" (representando os aspectos econômicos, técnicos e propriamente organizacionais da organização). Apesar de não visar a construção do "sistema lógico-organizacional" subjacente às atividades das organizações nas sociedades urbano-industriais mas, ao contrário, apresentar uma "visão sintética dos aspectos humanos e sociais da organização", Ardoino evidencia, detecta, uma "desproporção chocante interníveis da organização", seja em termos de tonalidade, seja em termos de estratégia, tudo majorado, é claro, no sentido do "aspecto único". Assim, "em todo ensemble humain estruturado e mais ou menos organizado deveremos poder distinguir cinco níveis: os níveis das pessoas, das interações, do grupo, da organização e da instituição. Encaminhamo-nos, destarte, da pessoa em direção à instituição. É um sentido que deliberadamente escolhemos, porque é preciso escolher e também porque pensamos que cronologicamente, historicamente, os problemas situados no nível das pessoas foram percebidos, ao menos em nossa civilização moderna, bem antes daqueles referentes ao nível institucional. Entretanto, a ordem inversa também poderia, com proveito, ser considerada. Cada um dos níveis parece-nos conter, em relação ao precedente, na ordem que escolhemos, algo de específica e irredutivelmente novo, o que também seria verdadeiro na ordem inversa. Se, entretanto, pode-se falar numa 'hierarquização' entre esses diferentes degraus da realidade estudada, tratar-se-ia, no máximo, de uma hierarquização de tipo 'jacksoniano'. Cada nível é suscetível de certa autonomia de funcionamento e, por conseguinte, de certo grau de inteligibilidade, somente em relação com os níveis precedentes, mas a negligência dos níveis subseqüentes acarretaria irremediavelmente um empobrecimento de conjunto. Com efeito, a cada nível corresponde um tipo de determinismo, isto é, a representação que, num momento dado, se faz nos parâmetros de um certo saber sobre a realidade global. Queremos, com isso, também significar que, de acordo com o nível de abstração em que escolhemos nos situar, em função das exigências de explicação ou de compreensão da eficácia ou da previsibilidade na ação, podemos nos contentar, desde que corramos os riscos e perigos, em colocar os problemas atinentes a um certo nível sem nos preocupar com os demais, aliás o que historicamente se verificou" (Ardoino, 1975, p. XIX-XX).

E, assim, não se trataria de ativar o histórico conflito entre Tarde e Durkheim, entre a individualidade e o grupo social como instância sobredeterminante, polêmica de desastrosos avatares, ainda atuais, no campo das ciências humanas, mesmo porque não havia, como ainda não se cuida hoje que haja, as pontes interdisciplinares. Essas unilateralizações pecam por descuidar que são Abschattungen13 13 . Ensinou-nos Husserl que a percepção de um objeto se dá por "perspectivação" e por "ângulos de abordagem", de cuja multiplicação deveria assintoticamente advir a reconstituição do objeto ideal totalizado. Vai daí uma das razões da "amplificação" e da "convergência de hermenêuticas", assim como a crítica aos "reducionismos". e... assim, complementaridades possíveis. Por isso a colocação de Lapassade - que situa o nível não-dito da dinâmica instituído-instituinte subjacente à "filosofia da consciência" na dinâmica dos grupos - e a colocação de Ardoino - que ancora a estruturalidade e a "causalidade metonímica" (no sentido lacaniano e althusseriano de apreensão dos efeitos das estruturas) no nível das subjetividades historicamente constituídas - podem encontrar uma ponte comum no seguinte tema, já evidenciado por P. Ricoeur e, anteriormente, por M. Foucault. Desde Nietzsche, Marx e Freud acontece um "des-centramento do sujeito", correlato da instauração de um "pensamento das estruturas".14 14 . Um "pensamento das estruturas" descentraliza o sujeito porque, revelando o registro do inconsciente e seus dinamismos de "efeitos por causalidade metonímica", ao mesmo tempo em que situa o ego como um dentre muitos "complexos", relativiza o sujeito-ego, o sujeito-vontade e o sujeito-consciência. Eis por que, se sujeito houver, trata-se de uma outra noção de sujeito que a usualmente veiculada pelas "filosofias da consciência"... e pelos sucedâneos marxológicos. Cf. Foucault (1966) e Ricoeur (1969). Doravante, as filosofias da consciência, e as praxeologias que nutrem, apresentam-se como ingenuidades epistemológicas. O esforço da reflexão deve construir um outro humanismo, que é um humanismo do Outro,15 15 . No esteio da "etnologia simbólico-humanista" (Griaule, Dieterlen, Zahan, Leiris) evidenciamos que uma antropologia compreensiva é uma "pedagogia da escuta", isto é, para se evitar o "etno-logos-centrismo" deve ser acolhida do "outro", dando-lhe, liberando-lhe a palavra. Assim, o "outro" se constrói como subjetivização na intersubjetividade. Lévi-Strauss, entretanto, evidenciara a necessidade de a analise ir além das "construções conscientes", para que se chegue às "estruturas inconscientes". Enfrentara, então, o sério problema metodológico da mediação dialogal: ora, como mostra magnificamente em Introduction à l'oeuvre de Marcel Mauss, a instância do Outro, vale dizer, o inconsciente é que garante e viabiliza as "trocas simbólicas". Por isso, o "Outro" passa a ter dupla ressonância: é o outro (a heterótese e a outra subjetividade) mas, sendo o meu outro eu possível, é o Outro. Lévi-Strauss diz: "O inconsciente seria, assim, o termo mediador entre eu e outrem. Aprofundando-lhe os dados, protongamo-nos (...) em direção a nós mesmos: atingimos um plano que não nos parece estranho exatamente porque ele secreta nosso eu mais secreto; mas (mais normalmente) porque, sem nos fazer sair de nós mesmos, faz-nos coincidir com formas de atividades que são simultaneamente 'nossas' e 'outras', condições de todas as vidas mentais de todos os homens e de todos os tempos. Assim, a apreensão (que só pode ser objetiva) das formas inconscientes da atividade do espírito conduz à subjetivização; porque definitivamente trata-se da mesma operação que, na psicanálise, nos permite reconquistar nosso eu mais alheio e, na pesquisa etnológica, faz-nos aceder ao mais estrangeiro dos outrem como a um outro nós. Nos dois casos põe-se o mesmo problema, o de uma comunicação buscada, ora entre um 'eu' subjetivo e um 'eu' objetivante, ora entre um 'eu' objetivo e um 'outro' subjetivizado" (Mauss, 1968, p. XXXI). que considere, então, a ação e o espectro do inconsciente. Ora, entre o sujeito e o grupo social, medeiam as "estruturas simbólicas", donde o "caráter basal da linguagem" e dos processos do "imaginário sócio-cultural", na dinâmica de um "magma inconsciente", (cf. Paula Carvalho, 1984b). Por isso, com Lapassade, forçamo-nos para lá da dimensão institucional: para o "magma social" e o "imaginário radical"16 16 . Explica Castoriadis: "No 'vir a ser' emerge o imaginário radical como alteridade e como engendramento originário perpétuo de alteridade, que figura e se figura, é figurando e em se figurando, criação de 'imagens' que são o que são e tais quais são como figurações ou presentificações de significações ou de sentido. O imaginário radical existe como social-histórico e como psychesoma. Como social-histórico, é fluxo aberto do coletivo anônimo; como psyche-sama, é o fluxo representativo/afetivo/intencional. Aquilo que, no social-histórico, é posição, criação, fazer ser, chamamo-lo imaginário social no sentido do primeiro do termo, ou sociedade instituinte. Aquilo que, na psyche-soma, é posição, criação, fazer ser para a psyche-soma, chamamo-lo imaginação radical" (Castoriadis, 1975,p. 480-1). de C. Castoriadis, para a mythopoiésis de G. Durand e de R. Kaës.17 17 . Definimos mythopoiésis, com Kaës, no item 4. E, com Ardoino, forçamo-nos para cá das subjetividades: para a "matéria-energia psíquica"18 18 . Definimos "matéria-energia psíquica", com Lupasco, no item 7. de Jung e Lupasco que, aliás, tanto na sistematização de Argyris, como na de Katz-Kahn, figuram desfiguradamente como meros inputs, "dados". Ora, é dessa análise que provirá uma visão não-reduzida, nem alinhada, do conflito, motivo por que, talvez, em tais autores, a despeito de um aparente discurso "polêmico", assistamos, em profundidade, a um "desconhecimento"... Como essa dupla vertente, que considera "fluxos de implicate order" (no sentido do Bohm 1980), ou seja, uma energética ampliada, visaríamos elaborar - o que é sugerido por L. Colin e J.-M. Lemaitre (Colin & Lemaitre, 1980) - um "modelo energético das intervenções", a trabalhar uma economia que, para lá da separação terapia/formação/intervenção e da oposição economia social/economia libidinal, seria a economia da part maudite,19 19 . Seria importante marcar frente, seja a uma moral da produtividade, seja à do consumismo, contra a "ética protestante", mas também contra o " Calvinismo das esquerdas" e ao "miserabilismo", que a "economia da part maudite é uma "economia da hybris", uma economia da desmedida e das disrupções psicoafetivas no nível das "trocas... simbólicas". E isto seja com Caillois, seja com Bataille e, mais modernamente, com Baudrillard. Mas é com Bataille que a part maudite adquire ampla expressão numa ética do consumo transgressor... (Cf. Bataille, 1976). repensando Bataille, uma economia libidinal ampliada das trocas simbólicas suportadas por um "espaço transicional" permanente.20 20 . Trata-se de um híbrido entre Lyotard e Bourdieu, que é uma energética "fática" (em Malinowski e Jakobson, a função fática do circuito comunicacional visa a dinâmica do contato).

3. O IMAGINÁRIO E A "FANTASMÁTICA" DO GRUPO

A atividade sêmico-imaginária dos grupos sociais evidencia-se nas "estruturas profundas da prática semiótica" - no sentido que lhes dá Verón (1971) - que instauram a "fantasmática grupal" ou a "fantástica sócio-cultural", segundo consideremos as produções e os processos numa ótica de leitura redutiva (tecture du soupçon, segundo Ricoeur, "sintomática", em Althusser, ou "hermenêutica redutiva" em G. Durand, a exemplo das leituras de Nietzsche, Freud e Marx)21 21 . A "fantasmática" (remetendo a uma "leitura sintomático-desmistificadora" mas não necessariamente "redutiva") seria a primeira etapa de uma "fantástica". A "fantástica transcendental", tocada por Fichte, é um projeto de Novalis que, nos Schriften II. (p. 365), fala que "da imaginação produtora devem ser reduzidas todas as faculdades, todas as atividades do mundo interior e do mundo exterior". Filtrada pela poética de Bachelard, dela Durand dá a primeira elaboração antropológica. Aqui, reconduzidos os fantasmas às fantasias, despatologizada a vida anímica (cf. a obra de Hillman), e desfeitas as estase libidinais, o Imaginário é ontologicamente promovido a estruturador magno dos projetos. Castoriadis já nos advertia que "o imaginário está no ativo âmago organizacional da realidade social e política. E, quando, em virtude de seus caracteres informacionais, torna-se generativo, desde então é capaz de programar o 'real' e, neg-entropizando-se de modo práxico, tornar-se o real". Cf. Durand (1969). ou numa ótica amplificadora (lecture de la recollection em Ricoeur ou "hermenêutica instaurativa" em Durand, a exemplo da leitura dos fenomenólogos). Essa diferente ótica de leitura, e sua tematização, é da maior importância para nossos propósitos visto que, situando-nos na ótica da "convergência de hermenêuticas", guiará as "pontes" entre ambos os estilos de leitura, como veremos adiante na distinção entre ideologia e mythopoiésis e na reavaliação do mito como estilo de orientação da ação. De qualquer modo, a "fantasmática grupal" reduz o fator fantasia na economia psíquica e no "aparelho psíquico grupal" (Kais, 1978) a um disfuncionamento dotado de correções, ao passo que a "fantástica sócio-cultural" considera a potencialidade transicional e instaurativa das fantasias e das imagens na dinâmica sócio-cultural da personalidade. Por ora, fiquemos com a função crítica da detecção da fantasmática grupal. Lembremos, como o estudo de S. Isaacs (1966) evidenciou, que o fantasma é o "cenário imaginário onde se presentifica o sujeito e que figura, de modo mais ou menos deformado pelos processos defensivos, a realização de um desejo e, em última instância, de um desejo inconsciente" (Laplanche & Pontalis, 1981, p. 152). Entretanto, as ampliações de Guattari mostram que "um fantasma de grupo não deve ser confundido com um fantasma individual, ou com o somatório de fantasmas individuais, ou com o fantasma de um grupo particular (daí a diferença entre nossa concepção do fantasma de grupo e o fantasma do grupo em Bion). Qualquer dos fantasmas individuais remete o indivíduo à sua solidão desejante. Mas pode advir que tal ou qual fantasma, que tem por origem um indivíduo ou um grupo particular, se torne uma espécie de moeda coletiva, que seja posto em circulação e se torne suporte da fantasmatização do grupo. Imediatamente, passamos, como aliás Freud já sublinhara, da ordem da estrutura neurótica ao estágio de 'formação' coletiva" (Guattari, 1974, p. 166). Essa distinção, importante para escaparmos à polêmica entre Tarde e Durkheim e suas implicações na análise das relações entre a pessoa e o grupo, é potenciada se considerarmos com Guattari que, estrategicamente, em termos de condições de possibilidade de liberação da palavra instituinte das máquinas-desejantes, num espaço de instauração contra-institucional, a distinção entre "grupos-sujeito" e "grupos sujeitados" remete às condições de manipulaçãò-reversão dos fantasmas. Realmente, "além da distinção entre fantasma individual e fantasma de grupo, podemos distinguir várias ordens fantasmáticas de grupo: por um lado, os 'fantasmas de base', aqueles que dependem do caráter de sujeição do grupo e, por outro lado, os 'fantasmas transicionais', que estão ligados ao processo interno de subjetivização correspondendo aos diferentes remanejamentos internos do grupo. Chegaremos, assim, a distinguir dois tipos possíveis de objetos: as instituições constituídas e os objetos transicionais. No primeiro caso, a instituição não se coloca o 'problema' do objeto institucional, mas é por ele obececada; a Igreja tem seu deus e não se preocupa em mudá-lo, uma classe dominante detém o poder e não se pergunta se convém dá-lo a alguém. Ao contrário, no segundo caso, num movimento revolucionário, por exemplo, coloca-se o problema de saber se não há erro, se não se deve transformar completamente etc." (Guattari, 1974, p. 167). Por isso as condições de emergência de "grupos sujeitos" - "capazes de suficientemente controlar a própria fantasmatização, reduzindo-a ao estado de 'fantasmas transicionais', isto é, marcados por uma finitude histórica assumida, que impede o grupo de se cristalizar nos 'fantasmas de grupo' dominantes, que nos propiciam os 'grupos sujeitados'" (Guattari, 1974,p. 190-1) - está intimamente ligada a uma cibernética22 22 . Com Morin, aqui "cibernética" é compreendida como a "metodologia da pilotagem" característica da "nova transdisciplinaridade". do imaginário, a uma intervenção nos processos imaginários do grupo, de que a "passagem da posição ideológica à mythopoiética", como Kaës evidenciou, e que logo retomaremos, é um exemplo marcante. Com relação ainda a essa cibernética do imaginário nos objetos institucionais, Guattari conclui: "A análise do objeto institucional consistiria em pilotar o imaginário de uma estrutura a outra, mais ou menos como se dá na ordem animal quando há troca de pêlo. Ir de uma representação de si mesmo em direção a outra, talvez com crises, mas ao menos com uma continuidade. Quando o animal muda o pêlo, continua sendo ele mesmo, ao passo que na ordem social, quando se arranca a pele, quebra-se o imaginário e dissolvem-se as gestações. Quando o grupo está cortado, quando desconhece suas dimensões imaginárias, quando não tem acesso aos fenômenos imaginários, acaba por desenvolver em si uma espécie de 'função esquizofrênica': os mecanismos imaginários da identificação e do ego têm livre curso, e com tanto mais autonomia quanto a função da palavra como enunciação coletiva se encontrar destituída em prol de um arranjo estrutural de enu nciados a-subjetivos. Enquanto o grupo discursa no vazio sobre suas finalidades, as identificações estão livres, como num esquizofrênico cuja palavra é descolada, cortada da representação corporal e cuio imaginário, liberado do real, pode funcionar por si até a alucinação e o delírio. Do mesmo modo um grupo assim chega a alucinar e a delirar suas formações imaginárias. Para interpretá-las será obrigado a recorrer a todo tipo de atos irracionais, gesticulações, condutas suicidas, todo tipo de cenário até que as referidas formações possam encontrar um meio, um viés para se presentificarem a si mesmas, manifestando-se na ordem da representação" (Guattari, 1974, p. 168-9).

Os trabalhos do grupo que se reúne em torno da temática "Inconsciente, Cultura e Organização", pilotados por D. Anzieu e R. Kaës, de que, infelizmente, dadas as dimensões desse artigo, só poderemos reter as conclusões, vêm evidenciando constantemente, e nos mais diversos setores sociais de organização, e também nas formas mais diversas de organização social e nos modos mais diversos de organizar as atividades, as relações entre imaginário e organização, mediando a fantasmática dos organismos sociais. Num primeiro momento, vamos expor as conclusões de D. Anzieu sobre os fantasmas de grupo e a organização; num segundo momento, as de R. Kaës sobre as "mentalidades de grupo".

Tendo avaliado a função do imaginário na estruturação-desestruturação da atividade de um grupo, assim como aferido o papel do imaginário na globalidade das transformações actanciais, D. Anzieu - no texto O grupo, projeção do inconsciente social: observações psicanalíticas sobre os eventos de maio de 1968 - escalona suas observações por meio de tópicos, como "fantasmática hierárquica e funcionamento colegiado", "relações entre o inconsciente individual e o inconsciente social" e "analogia entre o seminário e a organização dos maias", chegando a conclusões, enunciadas no tópico Correspondência entre a organização institucional e a organização fantasmática, que são todo um programa de perspectivas abertas, e que passamos a resumir. Há uma correspondência entre a organização formal ou institucional e a organização fantasmática de um grupo, que se evidencia considerando-se os seguintes passos:

1. "A instituição 'realiza' o fantasma; 'realiza-o' de um modo que o 'fixa'; a mobilidade do desejo está 'amarrada', ao mesmo tempo que a permanência das instituições e da sociedade está assegurada" (Anzien, 1975, p. 325).

2. A organização fantasmática do aparelho psíquico grupal difere da do aparelho psíquico individual e, assim, a tarefa básica da psicanálise institucional seria desvendar os "modos específicos da organização fantasmática nas instituições sociais".

3. Há uma "carga emocional", um potencial energético que, a par de alimentar, dá o sentido à fantasmática de um grupo ou de uma civilização; esgotá-la ou minimizá-la equivale a iniciar o processo da irreversibilidade entrópica ou, como diria Ardoino, há "modelos de organização entrópica" de grupos que desembocam numa negação da vitalidade crítica constitutiva do ser humano; entretanto, a afirmação corajosa de Anzieu vai além, porque recusa a morte dos mitos e a desmitologização características de certas abordagens críticas da lecture du soupçon, antecipando dessa forma um programa sociátrico de remitificação tal qual o proposto por Durand, Duvignaud e Ballandier, entre outros. Assim, afirma: "uma instituição sem fomento fantasmático subjacente tomar-se uma casca vazia" (Anzieu, 1975, p. 325). Ora, isto impõe, entretanto, superar a fantasmática ou relê-la no sentido de uma fantástica... Num texto anterior - O imaginário nos grupos - de modo mais incisivo D. Anzieu asseverara sobre essa valoração e positividade do imaginário: "entre o grupo e a realidade, entre o grupo e ele mesmo, há algo diferente das relações entre forças reais; primitivamente há uma relação 'imaginária'. As imagens que se interpõem entre o grupo e ele mesmo, entre o grupo e o entorno explicam fenômenos e processos até agora negligenciados ou atribuídos a causas outras (...) Globalmente podemos admitir que, em toda e qualquer situação de grupo (grande ou pequeno, de trabalho ou de lazer, de cultura ou de vida econômica), há uma representação imaginária subjacente, comum à maioria dos membros do grupo. E mais: na medida em que há tal representação imaginária é que podemos falar em unidade, em algo comum no grupo. Tais representações podem ser um obstáculo ao funcionamento do grupo, com relação aos fins que lhe são atribuídos pela sociedade, por seus estatutos ou pelas motivações de seus membros, podendo ser a causa das paralisias no funcionamento interno do grupo ou dos erros na sua atitude com relação à realidade. Mas quando um grupo funciona eficazmente, também é uma representação imaginária que lhe permite encontrar a solidariedade e a eficácia. Não há grupo sem imaginário. Podemos banir um imaginário; ele é substituído por outro. E tal situação é análoga à dos mitos nas sociedades primitivas. Quando se destrói um mito, ele não será simplesmente substituído por nada ou por uma construção racional e científica. Um mito é sempre substituído por um outro mito. Se por um acaso tal não acontecer, a sociedade em questão se desagregará" (Anzieu, 1975, p. 144). Essa constatação e atitude pressupõem, entretanto, após ter perquirido sobre o "trabalho do imaginário" (em sentido freudiano) e realizado as necessárias desmistificações, ter lidado com as transformações do objeto institucional e do grupo-sujeitado em objeto transicional e grupo-sujeito, em suma, ter cumprido a tarefa de uma "leitura da suspeita", não caindo, entretanto, nos delírios da racionalização positivista, reconhecendo, assim, que o fantasma pode ser uma fantasia e a fantasmática uma fantástica, e mais, pois que desde sempre instalados estamos na linguagem - como Heidegger tanto quanto Lévi-Strauss o evidenciaram - as imagens, os símbolos e as grandes unidades de sentido, que são os mitos, constituem o solo da liberação do Desejo... e l'imagination au pouvoir. Assim, a par de um imaginário mitigado, o Imaginário.

4. A "revolução" é a invenção de novas instituições que, pela contestação daquelas que correspondem a determinada fantasmática, instauram uma nova fantasmática mais eficiente em assegurar uma nova homeostase entre a "vida coletiva e o inconsciente social".

5. O sonho tem uma função compensatório-homeostática de preencher as brechas entre o desejo inconsciente e as âncoras dos possíveis reais, subsistindo, entretanto, uma permanente defasagem e des-realização, que é o exato motor dos novos e permanentes investimentos. Assim, essa função assintótica à satisfação integral à reequilibradora em permanente desrealização. Do mesmo modo, há um écart entre a fantasmática dominante no inconsciente social e as correspondentes instituições, écart esse que funda a liberdade de fantasmatização individual, permite a contestação e assegura uma possibilidade de evolução social" (Anzieu, 1975, p. 325). Mas, se a brecha e a defasagem se tornam demasiado pronunciadas entre a organização fantasmática e a organização institucional, há grandes riscos para o grupo, riscos majorados por certo enfoque míope das mutações sócio-culturais que apregoa "basta mudar a organização formal para tomar a dar vitalidade à coletividade, operação que é inútil se a fantasmática subjacente não foi recarregada de sentido ou se uma nova fantasmática dominante não emergiu" (Anzieu, 1975, p. 326).

6. Donde a valoração daquilo que Duvignaud chamaria de "personalidades anêmicas" (Duvignaud, 1975, p. 71-88), como veremos, pois "a iniciativa das evoluções e das revoluções provém de indivíduos que, em virtude de sua organização fantasmática pessoal, acham-se na situação de arautos da fantasmática social ascendente. Aqueles que se afirmam revolucionários simplesmente porque são alérgicos à fantasmática social dominante estão destinados a ser ou marginais ou perseguidos" (Anzieu, 1975, p. 326). Eis o ponto em que se introduz a importante questão da "anomia", da ruptura, da "transicionalidade" e da "liminaridade", categorias antropológicas que nos permitirão pensar os fundamentos antropológicos da alternatividade no comportamento organizacional, bem como sua viabilização, como adiante veremos sua exata (ou aproximada) medida.

4. O IMAGINÁRIO E AS FORMAS DE MENTALIDADE

Num progressivo trajeto viemos não só estabelecer as relações entre imaginário e organização, mediando as redes fantasmático-simbólicas evidenciando as pistas de uma necessária leitura sintomática que recolocaria a história nas mãos de grupos-sujeito; entretanto, progressivamente temos nos referido à necessidade de uma amplificação que incidiria em termos de um imaginário ampliado (em oposição a um imaginário mitigado ou reduzido se nos ativéssemos à etapa da sintomática e desmitologização), ou simplesmente Imaginário, assim como de um conceito de organização alicerçado sobre o "paradigma da hipercomplexidade" (construído sobre a "epistemologia dos objetos vivos"23 23 . Cf. Von Foerster (1974). de Von Foerster e Maturama) tal como E. Morin no-lo apresenta (Morin, 1982). Ora, uma etapa rumo a essa construção nos é dada por R. Kaës.

Tendo estudado a especificidade do "aparelho psíquico grupal" (Kaës, 1980), Kaës procura evidenciar os "processos e funções da ideologia nos grupos" e, ao identificar-lhe as funções (identificação; adesão-coesão-coerência; discriminação-atribuição; externalização cognitiva; defesa; regulação-homeostase) na economia psíquica (Kaës, 1980, p. 223-56), passa a tematizar a questão vital da "passagem da posição ideológica à posição mythopoiética nos grupos", visto que ela fundará as distinções que sugerimos entre um imaginário mitigado e o Imaginário, entre a desmitologização e a remitificação como estilo de orientação da ação, introduzindo, assim, uma tripla valoração: do mito, da anomia e transicionalidade liminar e do conflito. Isto é viabilizado a partir da distinção que Kaës estabelece nas "mentalidades", entre a ideologia, a utopia e a mythopoiésis, distinção vital pois que grande parte do universo contestatório das praxeologias de esquerda aqui caem sob o signo da ideologia e da utopia, em suma, da positividade antiinstitucional.

Um estudo das "mentalidades do ideal" identifica e extrema a "mentalidade de sutura", que define a ideologia (ideo-lógicas, como M. Augé fala, "lógicas afetivo-representacionais", marcando o caráter não só tematicamente consciente de "representação", como a residualidade inconsciente da afetividade desconhecida que mobiliza, em profundidade, esse discurso e ação fragmentares); a "mentalidade de ruptura", definindo a. mythopoiésis; e a "mentalidade paradoxal", a definir a utopia. Se considerarmos que a mythopoiésis e a utopia ("ucronia" também, diz Duvignaud) integram a lógica do "contra" ou do "meta", como mais propriamente Durand se expressa, o estudo de Kaës é um aprofundamento sobre as funções da ideologia na economia psíquica que, ao identificar-lhe a nocividade, por via de implicação, acaba por valorizar ambas as formas de formulação de mito (mythopoiésis e u-topia) e, assim, o próprio mito, instrumento que é da criação de um "espaço transicional". Vai daí a importância da superação dos quadros da ideo-lógica: "Seria preciso analisar como e em que condições, e ainda com que efeitos, pode-se dar a superação da posição ideológica nos grupos. A questão não consiste somente na 'passagem' de uma posição fundada na clivagem, na denegação, na fetichização, na repetição e na clausura, para outra posição inaugurada pela depressão e pelo advento de uma área transicional; é também a questão da 'função' dessa passagem (...) A posição e o pensamento ideológicos diferem da posição e do pensamento mythopoiéticos. Os primeiros caracterizam-se pela relação unívoca que estabelecem com os objetos internos e os objetos externos. Ao descontínuo (essa descontinuidade é detectada no nível do corpo e do fantasma, nos grupos) e ao concreto substituem um pensamento abstrato que só mantém a coerência graças à repressão, à negação, à clivagem e à denegação. Assim sendo, não suportam a dúvida, o dualismo pulsional e suas intrincações. Fixam-se em sistema fechado, imutável, iterativo, estereotipado, eminentemente defensivo, onde predominam as mediações do processo secundário a serviço da repressão dos conteúdos inconscientes. A ideologia violenta o processo primário, secundarizando-o pela força: por isso, em suas formas extremas, assemelha-se ela às idéias delirantes desvendando, assim, o que oculta: a estrutura psicótica subjacente ao 'espírito de sistema'",(Kaës, 1980, p. 241). Caberia, então, contrastar o ritualismo organizacional de um espaço defensivo, característico da ideologia, e o "espaço potencial" como propositura organizacional das mentalidades mythopoiética e utópica. Essa valoração das "mentalidades meta" e das organizações alternativas do espaço transicional se deveria fazer segundo o programa, ao fim do trabalho sugerido por Kaës: "como elas tratam a descontinuidade, a diferença, o pensar, a metaforicização?" (Kaës, 1980, p. 265.) Se considerarmos a descontinuidade : "Como estrutura, a ideologia mantém a continuidade, ou mantém a sutura, quando esta ameaça romper-se (...) sendo a sutura da ordem da denegação; através dela a ideologia faz da estrutura um sistema, pela violência da secundarização e pela racionalização da denegação (...) garantindo um universo sem brecha (...) um mundo de contenção sem continente, definindo uma clausura" (Kaës, 1980. p. 265). Se considerarmos a diferença, a ideologia não a aceita, "nega-a, enquista-a, excluindo-a; é redundância, iteração, repetição, estática. Assim é que ela se caracteriza como elemento fundamental da estrutura que, segundo Bleger, 'representa a compulsão de repetição acabada' (...) " (Kaës, 1980, p. 266).

Se considerarmos o pensar: "Como estrutura, a ideologia é o impensado, o desde-já-sempre-presente do implícito" (Kaës, 1980, p. 266). Por fim, se considerarmos a metaforicização, a ideologia é "da ordem da metonímia (...) ao contrário, a metáfora, ao caracterizar a mythopoiésis e os paradoxos da utopia, inaugura um objeto de pensamento, transgressão na linearidade do discurso. A metáfora é alteridade, referência, transgressão simbólica, criação que advém no 'entre-dois' de um écart entre o objeto e sua representação. A ideologia não suporta o 'entre-dois'" (Kaës, 1980, p. 267). Antecipemos que o "entre-dois" define, precisamente, a "liminaridade" e a "transicionalidade" dos movimentos contraculturais. Assim, como dizíamos, no espaço "potencial", "transicional", do "entre-dois", cruzam as noções de "anomia", "a-estrutural" e "liminaridade", que são categorias antropológicas de apreensão dos comportamentos organizacionais alternativos, como os "fundamentos" (conforme veremos no item 10) evidenciarão. Entretanto, desde já, e sobre o exemplo da contra-instituição, um texto interessante de A. Bourdin - Os lugares da anomia - observa que a "análise institucional generalizada" é o equivalente homologável à anomia pois, com efeito, "as relações entre o efeito analyseur e a situação anêmica evidenciam-se plenamente se temos o trabalho de investigar que aqueles que, em Duvignaud, se chamam 'personalidades anômicas' (alhures chamados 'malditos') tornam-se, em Lapassade ou Lourau, promotores da análise institucional, analistas ou analyseurs, em todo caso agentes do efeito analyseur" (Bourdin, 1983, p. 182). A anomia, entretanto, tem sido remetida ao funcionalismo. Assim acontece na sua filiação durkheimiana, como na revisão de Merton e, mais especificamente, nas remodelizações modernas sobre o disfuncionamento burocrático. Ora, se essa é a perspectiva que a obra de Duvignaud abre, cabe-nos repensar uma teoria da anomia nos quadros de uma articulação com a ruptura da "transicionalidade" (de Winnicott e Guattari) e com a "liminaridade permanente" (de Turner). Aqui, "para lá de uma acepção estreita do conceito durkheimiano, limitando-o a uma simples definição dos fenômenos de dissolução dos costumes e desmoralização, a teoria da anomia se aplica às relações entre desordem social e inovação. Ela se enriquece sobremaneira se a associarmos a uma teoria dos lugares, dos espaços, de sua articulação espacial e dos tropismos, isto é, se vislumbrarmos a construção dos fenômenos anômicos num processo que, ao mesmo tempo, implique a dominação e a subversão, a condensação e a explosão das relações e representações da sociedade, a concentração e a divisão do espaço social. Aí chegaremos utilizando os conceitos de instituinte e instituído, considerando-se o ritmo do centro e da periferia, articulando as pesquisas sobre a anomia às pesquisas sobre o espaço social" (Bourdin, 1983, p. 190).

Ao fim desse equacionamento de ilações sobre a exemplaridade da contra-instituição onde, en raccourci, delineou-se parte da temática dos movimentos contraculturais do "anti", ficamos com duas questões, que abrem em direção à construção do espaço alternativo e suas categorias (ver item 9):

a) Que sentido teria, e em que sentido fazer uma releitura atual dessas praxeologias?

b) Nas correlações entre imaginário e organização, em que sentido conceituamos ambos os termos e por que a valoração, seja do mito, seja da transicionalidade, anômica?

5. O SENTIDO DE UMA RELEITURA DOS MOVIMENTOS "ANTI"

Com relação à primeira questão, o sentido estriba em se realizar uma releitura das praxeologias de intervenção integradas que devem estar no "imaginário radical dos movimentos anti". Assim, por um lado, são "proversões escatológicas" (Ardoino), como veremos; entretanto, antes, devem ser vistas como derives épistémologiques, segundo Lyotard, ou seja, "considerando-se que o presente anacrônico da teoria deve persistir em comunicação com o presente histórico, o presente das lutas práticas" (Lyotard, 1973, p. 52). Só assim, e eventualmente acentuando-lhes o caráter de "cosmovisões proversivas escatológicas", podem ser redimensionadas como dérives institutionnelles (R. Hess). Deveremos, pois, relê-las como "proversões escatológicas", ou seja, a cibernética do imaginário que pilotam deve ser orientada num sentido determinado, precisamente aquele de que a "escatologia e vetorialização da consciência imaginativa antecipadora" em E. Bloch, veiculando o "princípio da esperança" (Bloch, 1976, p. 61-402) dá conta. Por isso, num texto capital de Ardoino - A intervenção: imaginário da mudança ou mudança do imaginário encontramos uma dupla advertência: a que concerne o caráter de vetor escatológico da imaginação das intervenções praxeológicas, e aquela que diz respeito ao tom específico desse imaginário para que se possa tornar ativo estratégica e actancialmente. O texto, com relação ao primeiro aspecto, diz: "Certas cosmovisões, proversivas, essencialmente animadas pela busca 'daquilo que ainda não é' daquilo que, por não ter sido criado integralmente, está ainda e sempre na via de criação, colocam-se resolutamente sob o signo do 'inacabamento'. São concepções progressistas. A alteração não é mais definida como degradação ou entropia, mas como negentropia ou enriquecimento. Menos que um bem original, a identidade é uma conquista e o fruto de lutas necessárias. A história, o fazer-social histórico, exprimem, sem dúvida para a maioria, as degenerescências de uma lógica de conjunto identitário estruturando logos e práxis em termos de reprodução, mas também produzem novas significações como manifestações de um imaginário social criador para quem a invenção é surpresa e ruptura com relação ao que já estava posto: O 'instituinte', enquanto criação e mutação, define-se, assim, 'negativamente' com relação ao Instituído'. Compreende-se facilmente que esta representação da mutação supõe um trajeto dialético como modelo de inteligibilidade, tanto teórico quanto prático, da realidade. A noção de negação deve ser aqui entendida no sentido dialético, não devendo ser confundida com a 'negação mágica', por meio da qual o imaginário procura desembaraçar-se das perturbações ou das resistências pura e simplesmente 'negando-as'" (Ardoino, 1980, p. 20-1). Assim, como Lapassade já observara, trata-se de uma releitura dos movimentos contraculturais "anti" e "contra". Também R. Lourau (1975, p. 36-54, 114-44) observara que a análise institucional enfoca o trabalho do negativo num sentido hegeliano: a negação "particular" de um enunciado "universal" e a negação "singular" dessa negação. Por isso, num sentido mais amplo, com G. Durand, preferiríamos comutar o "contra" - no que conseguimos apoiar essa abordagem, ainda teórica, de Durand em estudos etnológicos sobre o estatuto sócio-cultural da religião, da feitiçaria e da magia, seja entre os azande, com Evans-Pritchard (1976), seja entre os ewhé, com Mallart-Guimera (1981), onde a intervenção mágica tem o estatuto homólogo das nossas intervenções contraculturais - em termos de "meta", por onde se acentua não só o caráter do jenseits von. Gutes und Böse, mas se define também o tom específico do imaginário agenciado em seu instrumento de ação eficaz específica: o mito e o estilo mythopoiético da intervenção praxeológica. O texto de Durand reza: "A nova linguagem não é mais 'antitética', como o crera a filosofia de Sócrates a Hegel; é, ao mesmo tempo, 'metaléptica' (guiada pelas intenções do Desejo, a sincronicidade presente, o passado causal) e 'metabólica' (isto é, ao mesmo tempo, repetitiva e diferencial). Ora, metalepse e metábole são o próprio estilo do mito. A nova linguagem será em 'meta' e não mais em 'anti'" (Durand, 1980, p. 159).

Assim, redimensionadas as praxeologias da intervenção sócio-analítica, doravante praxeologias mythopoiéticas, o texto seguinte de Ardoino, incitação ao caráter de mutação bioantropopsicossociopedagógica desse imaginário da intervenção radical, adquire todas as ressonâncias por que esperou: "A questão toda consiste em saber se este imaginário desembocará numa 'invoca ritual de uma mudança social', que jamais está onde se a evoca, ou na intenção de 'transformação dos imaginários individuais e coletivos', por meio de um trabalho de educação e de formação crítica. Na nossa visão das coisas, as 'matrizes sociais' não se tornaram mais acessíveis, mais vulneráveis (a não ser intelectualmente!), pelas capacidades de análise desenvolvidas no curso da intervenção. Continuam a salvo. 'Evoca-se' ou 'invoca-se' o institucional nos grupos reduzidos, mas não se o 'convoca' nem se o 'revoga'... (Ardoino, 1980, p. 45).

6. O IMAGINÁRIO DA "CONFLITORIALIDADE"

Ardoino, no texto anteriormente referido, já evidenciara a necessidade de as intervenções praxeológicas explicitarem seus quadros metodológicos, epistemológicos e "cosmovisivos"; a reflexão do autor construíra uma morfologia desses imaginários, dessas "formas de imaginação radical". Entretanto, para respondermos à segunda questão, convém, com o autor, situar a "teoria possível" que embasa a diversidade desses movimentos relidos, de modo que, a resposta será um abrégé, a partir da primeira questão, da construção do espaço alternativo de suas categorias (ver item 9). O texto de Ardoino é um texto de síntese situacional (dos "situemas" dos movimentos contraculturais do "anti", no sentido de Cl. Poncin e F. Guattari): "Uma hermenêutica (psicanálise, socioanálise), uma metodologia do soupçon tornam-se necessárias. Assim, a análise institucional, a antipsiquiatria, a antipedagogia, cujas fraquezas metodológicas foram, com justeza, denunciadas, conservam entretanto sua significação mais profunda como dérive épistémologique. A reabilitação do libidinal, das pulsões, do desejo, da angústia, do inconsciente, das resistências, da agressão, da violência, do conflito, ao mesmo tempo como 'dimensões da ação', nem sadias, nem mórbidas, mas, realmente, e de modo indissociável, destruidoras e criativas e, por conseguinte, como 'objetos de conhecimento', a despeito da impertinência permanente que elas constituem para os retardados adeptos de um culto da razão soberana, chega à apreensão de uma 'desordem caótica' que se organiza, também, de modo autônomo com felação à 'ordem cosmicizada' da consciência". "A carência 'ontológica' das ciências do homem consiste em não ter dado existência ao imaginário e à idéia...', diz E. Morin. Nesse sentido, o imaginário também faz parte da verdade. A hipercomplexidade e a multirracionalidade, respectivamente objeto de metodologia das ciências do homem, convidam, assim, a construir uma teoria do homem que ainda não existe e que jamais existirá integralmente porque o signo do 'não-acabamento' é o próprio 'sentido' da hominização" (Ardoino, 1975, p. XXVI-XXVII). Reconhecido o caráter basal da linguagem, desde Lévi-Strauss e Lacan, assim como o valor das formas e trocas simbólicas, desde Cassirer, em suma, do "capital simbólico" segundo as investigações de Bourdieu entre os kabilas; reconhecida por Morin a "noologia" e a cibernética do imaginário como o coroamento da bioantropopsicossociologia; e, por fim, dadas as extensas conexões entre a pilotagem do imaginário e as estratégias organizacionais das instituições, cabe-nos, então, cercar mais de perto as noções de imaginário e organização.

G. Balandier afirma que "imaginário" é um termo mais adotado de "eficácia mágica ou emotiva" do que de conteúdo preciso... E G. Durand, o pioneiro nos estudos sobre o Imaginário, reconhece que "o imaginário (que de boa vontade Concordo com P. Solié tratar-se de um "saco de gatos" de imagens - sem me ater, entretanto, à distinção lacaniana entre imaginário/simbólico desde os mais lhanos remanescentes da percepção, os mais pobremente sintemáticos, até os grandes símbolos, os arquétipos, os mitemas e os mitologemas etc. que animam a psyche individual ou coletiva) é constituído por conjuntos (bem detectado pelos antropólogos, como os diversos nomens indicam: regimes, níveis, constelações, paquets, redes etc.) radicalmente heterogêneos, de modo que é impossível existir um processo de redução de um conjunto ao outro" (Durand, 1980, p. 308). Não obstante as dificuldades, em virtude sobretudo da aquilatação realizada, de modo comparado, pela antropologia de Balandier, concluindo que "o imaginário é atuante em todas as sociedades de modo que, vindo a desaparecer, estaria a sociedade condenada a se abandonar a uma espécie de 'estupor alucinatório do real'" (Balandier, 1983, p. 255-6), podemos aproximar o Imaginário - num continuum que vai desde os "sintemas", ou símbolos degradados, ou signos, que são as idéias e os conceitos, até as imagens, símbolos e mitos - à "função simbólica" e suas formas, como o entende Cassirer, Durand afirma, de modo mais preciso: "o Imaginário é o conjunto de imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens" (Durand, 1969, p. 12). Em suma, trata-se do "capital cultural noológico" em Morin e, de certo modo, do "capital simbólico" em Bourdieu. Mais interessante do que fechar a noção é anotar-lhe a fenomenologia. Realmente, o referido estudo de Balandier observa que o Imaginário não se manifesta univocamente pois, nas suas "expressões coletivas ou individuais", podemos distinguir um "imaginário da segurança" ("a adesão à ordem das coisas", representado fundamentalmente pelos sistemas políticos e/ou religiosos dominantes; poderíamos aproximá-lo das "ideologias" de Kaës), um "imaginário do conflito" ("mantido nos limites da sociedade e da cultura existentes", de que os "conflitos domesticados" são exemplos, como o sistema da feitiçaria; trata-se fundamentalmente. das linguagens estilo "anti" e, por vezes, as "contra", alinhadas pelos "rituais de inversão" e pelas "rebeliões rituais", como, sobretudo, Gluckman evidenciou) e um "imaginário da ruptura" ("que faz surgir no presente um futuro diferente", de que os sistemas de salvação e regeneração são exemplos). Apesar do antropologicamente - melhor seria etnologicamente - caráter bem fundado da distinção, preferiríamos, por motivos que nos "fundamentos" serão explicitados (ver item 10), falar de um imaginário da ordem e de um imaginário da "conflitorialidade",24 24 . Usamos "conflitorialidade", como no-lo propõe Derrida (La dissemination) porque não só capta melhor o "antagonismo contraditorial" como lógica de todo e qualquer evento energético, mas, referindo-se à lógica do conflito (à conflitividade como forma de socialidade), preserva certa irredutibilidade da contraditorialidade do conflito, ao nível sócio-cultural, sem que caiamos nos alinhamentos das "sociologias do consensus" ou das "sociologias do conflito", como no-lo adverte Balandier, além de escaparmos das "recuperações" e dos "alinhamentos" (que se processam na teoria das organizações). Cf. Balandier (1971, p. 75 e segs.). o primeiro recobrindo o termo inicial de Balandier e as "ideologias", e o segundo, em gradientes de ruptura eficaz e radical, recobrindo os dois outros termos de Balandier e, em termos de Kaës, as "utopias", e sobretudo identificando-se com o grau máximo de ruptura eficiente e radical, a mythopoiésis. Esse "imaginário da conflitorialidade", na sua forma mythopoética dominante seria, propriamente, o Imaginário que, por outro lado, estaria intimamente unido à "política da hipercomplexidade instituinte permanente". Mas aqui já evidenciamos uma ótica de enfoque da "organização"...

7. A ORGANIZAÇÃO E A HIPERCOMPLEXIDADE

Lapassade dissera que o nível "organização" identificaria não só a "ação de organizar", mas também a "coletividade instituída e a programação", formulação que se torna mais precisa com Ardoino, onde vislumbramos a "organização como organismo, como totalidade viva', que funciona a partir de uma 'programação' visando a realização de uma finalidade, metas e 'programa'" e o "campo da organização, ciência ou técnica das organizações que visa facilitar o funcionamento 'vital ou mecânico' da organização como organismo" (Ardoino, 1975, p. XX). Assim, não só podemos assistir às fricções entre os "aspectos humanos da organização" e o "aspecto único", como também entre a personalidade e a política geral de racionalização do trabalho e alinhamento do conflito. Acontece que, se de um modo geral, como as críticas de Marcuse e de Habermas evidenciaram com relação ao funcionamento da teoria e prática nas sociedades urbano-industriais, lidamos com uma lógica da unidimensionalidade alicerçada no "princípio da realidade" comutado em "princípio do rendimento" e "ofelimidade", isto encontra-se potenciado na teoria das organizações, onde um quadro gestor é solidário dessa "visão fragmentar" do universo, dessa "metodologia das lentes", de uma "analítica míope", em suma de uma "hipocomplexidade repressiva", como os trabalhos de Bohm e de Morin evidenciaram sobejamente.25 25 . E. Morin opõe o "paradigma da complexidade" ao "paradigma da simplificação/disjunção", assim como D. Bohm opõe o "paradigma holográfico" ao "paradigma da fragmentação". Trata-se, em suma, grosso modo, da oposição ao "paradigma clássico" (mecanicista, analítico-racional, binário) e à lógica binária. Simplificadamente, diríamos que é proposto um "paradigma holístico" e uma lógica polivalente. Cf. Morin (1982, p. 255-313); Bohm (1980, p. 1-19,172-213). Por isso, visto como nos referimos à organização pelos parâmetros da complexidade viva, pela logique du vivant e, assim, à "organização hipercomplexa autopoiética" que, nos quadros de nossa sociedade, é "marginal", mais uma vez se torna oportuno, seja como advertência e incitação à crítica desmistificadora sobre as teorias das organizações, seja como proposta para explicitação dos quadros epistêmicos e nacionais das praxeologias da intervenção/produção de um espaço alternativo, o seguinte texto de Morin, que fecha as 10 conclusões sobre a "complexidade cibernética" e o "paradigma da complexidade": "O problema da complexidade deve ser posto correlativamente na moldura gnoseológica (o pensamento da realidade) e na moldura ontológica (a natureza da realidade). Ou seja, a complexidade concerne, ao mesmo tempo, os fenômenos, os princípios fundamentais que governam os fenômenos, os princípios fundamentais - metodológicos, lógicos, epistemológicos - que governam e controlam nosso pensamento" (Morin, 1980, p. 358). Aqui, nesse nível abrangente e sintético das subjacências epistêmicas e ontológicas, encontraríamos os "fundamentos fundantes": da hipocomplexa racionalização do trabalho, o paradigma mecanicista; da hipercomplexa organização autopoiética, o paradigma holístico.26 26 . Com J. Battista, diríamos que o "paradigma holístico" ("paradigma", para Kuhn, é o complexo implícito das pressuposições que estruturam sistemas e teorias, definindo a épistéme de uma época) se opõe seja ao "mecanicista", seja ao "vitalista". Seus traços seriam: monista (ontologia), interativo (epistemologia), analógico (metodologia), probabilística (causalidade), estrutural (análise), neg-entrópico (dinâmica). Cf. Battista (1982). E, em poucas palavras, da organizacionalidade a que nos referíamos: uma onto-lógica27 27 . "Onto-lógica": jogo entre "ontologia" (o dito sobre o ser, por extensão, sobre o ser das coisas) e lógica; donde: a lógica do ser das coisas. da conflitorialidade alicerçada no "princípio do antagonismo contraditorial"28 28 . O "princípio do antagonismo contraditorial" define, segundo Lupasco, a lógica da energia e, assim, todo e qualquer evento energético. Metaforicamente enuncia-se, segundo o próprio Lupasco: o problema não é "to be or not to be", mas "to be and not to be". Para um desenvolvimento exato, ver: Lupasco (1960; 1970; 1974; 1979;); Paula Carvalho (1984 a, segunda parte, C.I). inicialmente extraída, a partir da microfísica, por Lupasco e generalizável a todos os eventos energéticos que obedecem à lógica da complexidade viva e da tensionalidade, em suma, de neg-entropia. Assim, por oposição às teorias da organização "ortodoxas" que propõem, nas palavras de Ardoino, um "modelo entrópico de organização", vemos como subjacente às propostas das intervenções praxeológicas de construção de um espaço alternativo um "modelo neg-entrópico" de organização.

Para explicitar-lhes os "fundamentos fundantes" precisaríamos de um amplo desenvolvimento, o que não pode aqui ser o caso. Por isso remetemos o leitor alhures,29 29 . Ver Paula Carvalho (1984 a, segunda parte, B). contentando-nos com fornecer algumas pistas de categorias e proposições antropológicas fundantes desse '"modelo energético de construção de alternativas sócio-organizacionais".

A bioantropopsicossociologia de Morin, a antropologia profunda do Imaginário de Durand, assim como, em certas vertentes, a sociologia das mutações, que são nossos referenciais básicos em ciência do homem, convergem no construto que Morin chamou "antimodelo de complexidade multidimensional" (Morin, 1973, p. 104). Nos quadros de um pensamento transdisciplinar (Morin, 1973, p. 226-7), agenciando as inter-relações indivíduo-espécie-sociedade, poderemos conceber o "processo de hominização" (antropo-sócio-gênese) como uma "morfogênese multidimensional" que aciona a rede interativa dos sistemas genético, cerebral, ecológico e sócio-cultural convergindo para a multidimensionalidade da práxis. Assim, o essencial da hominização é um "processo de complexificação multidimensional em função de um princípio de auto-organização ou autoprodução" (Morin, 1973, p. 66). E toda La méthode 2: la vie de la vie destina-se a fundar um paradigma organizacional emergente da organização da matéria-energia viva que, de certo modo, assume a posição de marginalidade contestatória no nosso universo entrópico-concentracionário de organizações repressivo-hipocomplexas. A fórmula a que chega Morin é a seguinte : "auto-(geno-feno-ego-) ecore-organização (computacional/informática/comunicacional)" (Morin, 1980, p. 354). Tentemos explorar-lhe, com o caráter de pistas, alguns aspectos.

A complexificação provém de um "circuito seletivo inter-relacionado" que aciona os processos de "cerebralização" de "juvenilização" e a "complexidade sócio-cultural progressiva". Esse circuito, além de ativar a regressão do capital genético e a restrição das competências inatas, a conseqüente ritualização, e a progressiva instauração do "capital organizacional", que é o "capital simbólico", tem como fruto a inexorabilidade de determinados traços, então integrantes da "natureza humana" e fundadores da organização da complexidade viva: a ambigüidade, a indecidibilidade-limite entre subjetividade/imaginário e objetividade/realidade, o papel instaurador da desordem e do "ruído", a estabilidade reduzida do "sistema triúnico" e a precariedade da consciência... em suma, o homem como "animal crísico", "contraditorial" (Maffesoli, 1980) e o horizonte constitutivo da humanidade: a loucura e o Imaginário (Morin, 1973, p. 142). O processo de juvenilização centra-se num "pensamento do inacabamento" e no homem como "neóteno neg-entropo", e a conseqüente tensão entre as tendências organizacionais hipocomplexas das rito-lógicas e esse "especialista da não-especialização". O "entrismo" de Lapassade, bem como a "política da imaturação" frente à "política das máscaras", como Goffman (1970) e Gombrowicz se expressam, que embasam os movimentos contraculturais do "anti", aqui encontram o fundamento teórico. O controle genético impõe a ritualização como forma eficaz de respostas eficazes e adaptação ao entorno. Entretanto os Schema, angeborenen Formen ou Urbilder, na etologia de Lorenz e Portmann30 30 . "Um sério e complexo problema consiste na determinação e na dosagem, no comportamento humano, sobretudo nas formas de socialidade, entre os "esquemas inatos" - que, segundo Eibl-Eibesfeldt, remeteriam às "adaptações filogenéticas", e mesmo a uma "gramática do comportamento humano social" de onde poderemos até, com Durand, construir as "ordens societais" estribadas em traços universais de etologia humana - e a "abertura ao mundo" (Gehlen), que define esse "especialista da não-especialização", que é o homem, como "neóteno neg-entropo". Para essa dialética, ver: Lorenz (1943); Portmann (1973, p. 127-41); Eib-Eibesfeldt (1973; s.d.); Durand (1976). só funcionam plenamente se descurarmos o confronto com a progressão cerebral e a instauração do capital cultural (que infelizmente culminaria noutra forma de controle!). Assim, J. Huxley sintetiza sobre a ritualização filo e sócio-genética: "Etologicamente a ritualização pode ser definida como a formalização ou a canalização adaptativa de um comportamento emocionalmente motivado, sob a pressão teleonômica da seleção natural destinada a: 1) garantir maior eficácia à função de advertência e a diminuir a ambigüidade, tanto do ponto de vista intra-específico como interespecífico; 2) fornecer estímulos ou desencadeadores de esquemas de ação mais eficientes (...); 3) reduzir as perdas no interior da espécie; 4) servir como mecanismos de relação sexual ou social" (Huxley, 1971, p. 9). Prosseguindo, Huxley chega à ritualização entre os homens, no sentido lato, para designar "a formalização e a canalização adaptativa das atividades motivadas do homem, tendendo a aumentar a eficácia da função de comunicação (sinalização sígnica), dos sistemas de limitação das perdas no interior do grupo, e dos laços internos do grupo" (Huxley, 1971, p. 23). Assim, a despeito da regressão dos códigos genéticos e de seus operadores articulados nos aspectos filo e sócio-genéticos da ritualização, essa persiste como um horizonte possível de ativações regressivas pelas formas hipocomplexas de organização visando o controle e a manipulação motivacionais alinhadoras-redutoras da conflitorialidade, bloqueadoras-repressoras-denegadoras da abertura para o mundo, enclausuradoras do inacabamento ontológico do ser humano. Daí a valoração da neotenia e suas projeções neg-entrópicas, seja como evidenciada pela etologia, como nos mostra um texto de Lorenz, seja pelo "entrismo" de Lapassade. Antes de tocarmos tais textos, lembremos que essa ativação organizacional hipocomplexa e regressiva dos mecanismos ritualizadores é tão marcante que chegou a definir um tipo de comportamento, detectado por Merton como "ritualismo", de que as análises actanciais de Goffman (uma das vertentes dos movimentos próximos à antipsiquiatria) salientam aspectos e processos fundamentais (Goffman, 1971, 1975a, 19756). O texto de Lorenz situa etologicamente o fenômeno da neotenia: "O homem é um 'especialista da não-especialização'. Com esta expressão designamos um tipo de ser vivo perfeitamente determinado, igualmente representado no reino animal, cujo sistema de ação se caracteriza pela pobreza em mecanismos desencadeadores, controlados de modo especial, e pela pobreza em tipos de movimentos com automatismo endógeno, tanto quanto pelo importante papel desempenhado pela 'aprendizagem por curiosidade ativa'.

Este aktive Auseinandersetzung em todos os animais especialistas da não-especialização limita-se a um estágio limitado do 'desenvolvimento infantil'. A propriedade que talvez seja a mais constitutiva do homem é a persistência do 'acordo ativo' com o próprio entorno, fundada na busca ('abertura do mundo', no sentido entendido por Gehlen) contínua e permanente até a idade senil. Pode-se mostrar que tal propriedade, como também inúmeros signos distintivos corporais do ser humano, constituem sintomas particulares de um fenômeno geral de 'neotenia' (fetalização, no sentido de Bolk) que, por sua vez, constitui um autêntico fenômeno de domesticação" (Lorenz, 1965, p. 197-8). Ora, ampliando a ótica dos etólogos, Lapassade desenvolve, sobre a neotenia, e sua tensão com a ritualização, acrescentaríamos, um "pensamento sobre o inacabamento" e, como estratégia organizacional, o "entrismo" (um permanente e indefinido entrar-na-vida que não se deixa capturar pelos "esquemas iniciáticos" das organizações hipocomplexas dos adultos-maduros...): "O homem-neóteno não é somente imaturo, mas prematuro. Esse inacabamento 'específico' encontrar-se-ia, por idênticas causas (...), no curso da vida individual: o conceito de prematuração aqui corresponde ao de fetalização; ambos se conectam na apreensão sintética do ser biótico do homem; a importância do laço é capital: se, com efeito, o curso da vida humana é visto na perspectiva da neotenia, a prematuração não é só uma característica do nascimento e do começo da vida do homem; ao contrário, dirá respeito a toda a vida de um ser que jamais atingirá o estatuto de adulto, do qual outrora se distanciara. O permanente inacabamento do indivíduo responde à imagem do inacabamento permanente da espécie. Podemos, assim, reter a noção de neotenia para falar sobre o homem desde que se precise o seguinte: tratando-se da espécie humana, a neotenia significa, inicialmente, o inacabamento e, depois, a conservação de formas juvenis. Ora, a neotenia não implica isso necessariamente... Eis por que acentuar o inacabamento não se torna verdadeiramente significativo a menos que se retenha a plasticidade dos estágios juvenis para opô-los à estabilidade dos adultos. Insistir sobre a neotenia humana consiste, então, em valorizar a indeterminação da juventude e, correlatamente, desvalorizar as determinações da maturidade. Ao mesmo tempo, significa que o progresso supõe a plasticidade característica das formas embrionárias da vida" (Lapassade, 1963, p. 38-9). Trata-se, dissemos, de um neóteno "neg-entropo" que, pela lógica hipercomplexa da neg-entropia, é capaz de operacionalizar o inacabamento que o define como "animal crísico" e, assim, pilotar a "desordem e o ruído" que constitutivamente o definem e ao seu entorno, no sentido de re-organizações permanentes complexas... se não for barrado pela barra da censura das organizações metonímicas!... A neg-entropia apontará, então, para o processo de cerebralização e para a constituição de "sistemas autopoiéticos", que são os "objetos vivos". O "momento epistemológico", que inaugura as propostas do paradigma da complexidade e do paradigma holístico é marcado pela acolhida da álea, da indeterminação e, fundamentalmente, da desordem e do "ruído" (em sentido informático). Assim, sobretudo na "epistemologia dos objetos vivos", formula-se o princípio de order from noise31 31 . Attan (1979, p. 39-129). (Von Foerster - Atlan) de cujas perspectivas Morin extrai o "tetragrama". Significa isto que "o esquema de Von Foerster-Atlan: evento/acidente/ruído/desorganização/re-organização/transformação/criação/evolução pode ser aplicado a todos os sistemas dotados de um dispositivo generativo quando afeta a informação do referido dispositivo, o que vale não só para a evolução biológica, mas sobretudo para a evolução dos sistemas antropo-sociais" (Morin, 1982, p. 162). Assim, o "tetragrama" significa o jogo equilibrador que há entre ordem/desordem/ interação/organização, ou seja, a característica dos automata ou sistemas vivos é o fato de funcionarem apesar de e com a desordem e o ruído comutados em transformações organizacionais de maior complexidade. Por isso não são sistemas "alopoiéticos", mas "autopoiéticos" ou sistemas vivos dotados de processos de autoprodução permanente, como se expressa Maturana, ou de re-organização permanente. O suporte morfogenético desses processos de complexificação crescente (desde que não bloqueados pela hipocomplexidade a alo-poiésis organizacionais) é o "policentrismo do cérebro" do sapiens: biúnico, triúnico e polifônico, diz Morin. Realmente, como as demonstrações de McLean e Laborit indicam, o funcionamento do cérebro humano se faz de modo fluido entre três registros (neocórtex, sistema límbico e cérebro reptílico) invertidos e fracamente integrados, aptos, por si só, a introduzirem o ruído e a desordem, independentemente de outro entorno. Esse funcionamento, pilotado pelo Imaginário que refrata dinamismos complementares, antagônicos, contraditórios e paradoxais (mistério do três em um!), introduz a "hipercomplexidade": "distinguimos a hipercomplexidade da complexidade não por meio de uma barreira, mas pela acentuação de certos traços, pela atenuação de outros, acentuação e atenuação que modificam a configuração de conjunto que pode, desde agora, ser considerada um sistema de novo tipo. Nesse sentido um sistema hipercomplexo é um sistema que reduz seus determinismos, aumentando suas capacidades organizacionais, sobretudo a que diz respeito à mudança. É, assim, em relação a um sistema de menor complexidade, fracamente hierarquizado, fr acamente especializado, não estritamente centralizado, mas mais fortemente dominado pelas competências estratégicas e heurísticas, mais fortemente dependente das intercomunicações e, em virtude de todos esses traços, mais fortemente sujeito à desordem, ao 'ruído', ao erro" (Morin, 1973, p. 130).

(Podemos, assim, compreender o que são os "modelos neg-entrópicos de organização", em oposição aos "modelos entrópicos" (Ardoino), como solo teórico onde situamos as praxeologias da intervenção da ordem do "anti" (antipsiquiatria, antipedagogia, análise institucional etc.) que buscam a instauração de um "espaço potencial" ("transicional" ou alternativo) e de dinamismos comportamentais de alternatividade organizacional: são formas hipercomplexas e autopoiéticas. Também tiramos do exemplo dado da contra-instituição, bem como do tratamento que tivemos com tais praxeologias, algumas valorações básicas, ainda que figurem como não-dito, ou como "conceito teórico-prático" (no sentido de Althusser), ou mesmo como desconhecimentos: trata-se das valorações do mito, do a-estrutural e da conflitorialidade. Aqui está o solo mais profundo, a nosso ver, dos "fundamentos fundantes". Por que essa valoração? Porque se valoriza o conflito que os movimentos contraculturais nele captam subliminarmente um potencial energético de mudanças inauditas. Entretanto, dadas as manipulações recuperadoras do potencial inovador veiculado pelo conflito, melhor seria falarmos em "conflitorialidade": aqui supomos um embasamento em profundidade pela "lógica da energia" e o "princípio do antagonismo contraditorial", bem como a "conflitividade como forma de sociabilidade", em suma, uma "ontologia do conflito" que, frisemos, não é senão rarissimamente captada-formulada por qualquer dos movimentos contraculturais da alternatividade organizacional.

8. O SENTIDO DA REMITIFICAÇÃO

Já em Lévi-Strauss, a estrutura "dilemática" do mito, assim como seu caráter de "instrumento lógico" tendente à "resolução" (no sentido musical), características que são potenciadas pelos traços metabólicos e metalépticos apontados por Durand, ao evidenciar a estrutura "meta" do mito, tudo já aponta no sentido de uma conexão com a conflitorialidade que, entretanto, se torna inequívoca, visto como o mito, em Lévi-Strauss como em Durand, é um paquet de symboles, e que a estrutura do símbolo remete à própria estrutura da matéria-energia psíquica (o "sistema T" de Lupasco, a "função transcendente" de Jung), lugar por excelência da lógica do antagonismo contraditorial.32 32 . A lógica do antagonismo contraditorial adquire sua máxima expressão de conflitorialidade, segundo Lupasco, no "sistema T" (que, na "dialectometodologia" do autor e na "ortodedução sistemogenética", corresponde ao sistema atômico e ao sistema neuropsíquico); diríamos que se trata do "aparelho psíquico" e seus produtos (o "aparelho simbólico"), é claro, numa ótica energética (aliás Jung já definira a "energia psíquica" como contrastação tensional). O símbolo representa, assim, uma união de opostos, pois que é "ponte" ( Sinn-Bild) entre o consciente e o inconsciente. Por isso um enfoque simbólico é "onto-logicamente" dinâmico (energético e "conflitorial"). A lógica do "aparelho psíquico" é uma lógica da "intensão" e da "neg-entropia" motivo por que, manipulada hipocomplexamente pelas formas repressivas de organização, geram-se, no mínimo, "dissonâncias cognitivas" e "fantasmatizações". Vimos também que o mito, dinâmica de símbolos e grandes unidades do Imaginário, era a matéria-prima da mythopoiésis e das "utopias"; mas, sobretudo com a mythopoiésis, desenhara-se um estilo de orientação da ação, uma vetorialização de caráter escatológico, de modo que eram homólogos a mentalidade de ruptura e o imaginário da ruptura, respectivamente em Kaës e Balandier, ou o que chamamos, abrangente do imaginário do conflito, o Imaginário. Mas é, por fim, a "remitificação" - que consta num belo texto do lacaniano A. Grenn - que articula todas essas dimensões do mito. Por si o texto já enuncia a tese: O mito, um objeto transicional coletivo: abordagem crítica e perspectivas psicanalíticas (Grenn, s.d.). O mito é um objeto transicional coletivo e propõe um espaço transicional coletivo; assim, é um estilo de orientação da ação na ótica conflitiva, permissiva, aberta, da transicionalidade e do seu espaço potencial.

9. A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO ALTERNATIVO E SUAS CATEGORIAS

Por que a valoração, e em que sentido, da transicionalidade anômica? Devemos, antes, homologar os conceitos de "transicionalidade", "anomia" e "liminaridade". Turner propõe o conceito de liminaridade, e o projeto da liminaridade permanente, entre outras situações, exatamente para a leitura dos movimentos contraculturais. Remetendo aos ritos de passagem, de que a liminaridade individualizaria precisamente o limiar e a margem, o conceito de liminaridade insere-se na dinâmica da estrutura e da antiestrutura, da sociedade e da communitas. Seriam, destarte, movimentos liminares os movimentos contraculturais da ordem do "anti". Turner diz: "liminality representa o ponto-médio (entre-dois) de transição numa seqüência-status entre duas posições, outsider-hood referindo-se a ações e interações que não emanam de um status social reconhecido, mas que originam fora do espaço do reconhecimento, quando lowermost status refere-se ao mais baixo ponto num sistema de estratificação social onde recompensas desiguais estão em consonância com posições funcionalmente diferenciadas" (Turner, 1975, p. 237). E, mais adiante: "na liminality, communitas tende a caracterizar as relações entre aqueles que, juntamente, enfrentam uma transição ritual. Os vínculos de communitas são antiestruturais no sentido em que são indiferenciados, igualitários, diretos, abrangentes, não-racionais, existenciais (no sentido dado por Feuerbach e Buber). Communitas é espontânea, imediata, concreta e não-sujeita a normas, não é institucionalizada, não é abstrata (...) Ela tende a negar, a inverter, a converter, a entrecortar ou perimetrar as relações estruturais, por e de fora" (Turner, 1975, p. 274). Por si só eloqüente e claro, o texto recobre, ou melhor, fornece quadros teóricos para a análise dos movimentos em pauta que, todos, reduzem o projeto do espaço alternativo à criação da communitas e à dialética de Gemeinschaft (no sentido de Tönnies). Entretanto, cabe observar, e assim repensar, a viabilização de uma "liminaridade permanente", que vista como tal é a proposta dos adeptos de tais movimentos; ora, os conceitos de Turner, historicamente ancorados, e teoricamente postos num quadro de binariedade estrutural, acabam por salientar que todos os movimentos liminares e comunitários acabam por ser reconduzidos ao "modelo da estrutura", como aliás os ritos de passagem deixavam prever. É claro que conhecemos, da antropologia política de um Leiris, de um Gluckman, de um Balandier, as várias técnicas sócio-culturais de recuperação, pelo centro, do instituinte periférico. Mas a observação de H. Desroches, investigador por excelência da marginalidade no campo do Sagrado (Desroches, 1974, p. 189-220), como aliás R. Bastide 1972) já sugerira, é bastante pertinente: o próprio centro pode produzir as categorias de análise das visões antropológicas recuperadoras do conflito liminar, marginal e comunitário... Vai daí a pertinência da investigação da viabilidade permanente desse espaço "organizacional" alternativo, liminar, comunitário. E um texto de Turner afirma o caráter bioenergético da experiência da communitas, o que é bom augúrio: "através dos interstícios sociais da estrutura, a communitas irrompe na liminaridade; pelo perímetro da estrutura, na marginalidade; e abaixo da estrutura, na inferioridade. Provavelmente porque viola as normas que agenciam relações estruturadas e institucionalizadas, sendo acompanhada pela experiência de um poder sem precedentes, ela é considerada 'sagrada'.

Os processos de 'nivelamento' e de 'despojamento', como Goffman observou, invadem afetivamente os agentes e, seguramente, tais processos liberam energias pulsionais" (Turner, 1972, p. 144). Assim, o potencial liminar-comunitário expressa-se, constitutivamente, através da mythopoiésis u-tópica, numa dinâmica do instituinte permanente possível, que é uma dinâmica da transgressão neótena neg-entrópica. A liberação da "palavra instituinte" (Guattari) é uma "ideo-lógica do Desejo" (Laplantine): o caráter de liberação da instância da "Lei" e de passagem dada ao "Phallus", no sentido lacaniano, marca-lhe o caráter energético e a energética das intervenções liminares. São, entretanto, o conceito de "transicionalidade" de Winnicott, acoplado ao conceito de "aestrutural" e "personalidade anômica" em Duvignaud, que permitem repensar, e estrategicamente viabilizar, a permanência instituinte dos projetos "anti". Winnicott observa que a "iniciação à experiência", ou seja, a "aceitação da realidade" é um processo "infindo, árduo e permanentemente recolocado", envolvendo uma tensionalidade entre o mundo interno e o mundo externo, numa dialética que Durand qualificou antropologicamente, também utilizando Piaget ("assimilação e acomodação"), de "trajeto antropológico". Significa isto que o processo tem incidências sócio-culturais explícitas, não sendo mero dinamismo psicológico. Ora, para suportar a tensão, constitui-se uma "área intermediária de experiência que não é contestada", em continuidade com a práxis lúdica da criança. Assim, nessa área intermediária, dotada de espontaneidade e gratuidade lúdicas, situam-se os "objetos e fenômenos transicionais": "Esta área intermediária é uma região alocada à criança, situando-se entre a criatividade primária e a percepção objetiva, baseada no princípio de realidade (...) E mais, essa área intermediária de experiência, que não é questionada na sua pertinência, seja quanto à realidade interna, seja quanto à externa (partilhada), constitui grande parte da vivência da criança. Persistirá ao longo de toda a vida sob forma de experimentação interna característica das artes, da religião, em suma, da vida imaginária e do trabalho científico criativo". (Winnicott, 1971, p. 25). O "espaço transicional" que, em outro texto, Winnicott chama "espaço potencial" torna-se, assim, e sobretudo se relido na ótica e no projeto ético da neotenia neg-entrópica, um espaço-ao-lado-sempre-possível e, em profundidade, homologável ao "magma" de Castoriadis: "aquilo de onde se pode ex-trair (ou: em que se pode construir) organisations ensemblistes em número indefinido, mas que jamais poderá ser reconstituído (idealmente) pela composition ensembliste (finita ou infinita) dessas organizações" (Castoriadis, 1975, p. 461) que, lembremos, alicerça o "imaginário radical" (Castoriadis, 1975, p. 493-4) das praxeologias da intervenção alternativa. Assim, essa "área intermediária" é o próprio espaço das produções e dos processos do imaginário e dos simbolismos em profundidade que, sobre a noção de liminaridade, apresenta a vantagem de captar um processo psíquico de constituição profunda, além de ser sempre um possível - é claro, se não intervieram a repressão e a denegação - à mão. Essa ampliação da transicionalidade é feita seja por Guattari, seja por Duvignaud. Guattari cuidará de como a forma de expressão dessa região transicional, que libera a palavra significante, definirá uma "marginalidade semiótica" (Guattari, 1976, 73-87) como expressão e forma marcante do Imaginário. E Duvignaud construirá os dinamismos psico-sócio-culturais das "personalidades anômicas". Com o conceito de "personalidade anômica" poderemos compreender a dinâmica e o sentido da mutação social e, assim, redimensionar o comportamento liminar-transicional catalisando-o no sentido da instauração de uma nova ordem através da ação desordeiro-trágico-antecipatória das "margens; em suma, despontaria aqui a dinâmica do espaço potencial como sociedade possível e do comportamento alternativo como nova forma gestatória de novos organismos sociais. Perderiam, assim, o caráter de "marginalidade", tributários que são da centralidade, os conceitos de liminaridade e transicionalidade: os conceitos de "anomia" e "mutação" solidarizam-se. Para realizar essa articulação, mais uma vez Duvignaud salienta a função especial de uma sócio-análise institucional, exemplificando, aliás, com a antipedagogia de Illitch: "Nas fronteiras dos sistemas de vida coletiva emergem figuras inclassificáveis, que não se reduzem absolutamente a uma racionalidade média e representável, que somente o 'infinito sem limites' de um desejo ou de um impulso do ser no ser poderá implicar; só uma sócio-análise, liberada dos cuidados de reduzir a diferença à instituição e as condutas inovadoras às comuns, poderá detectá-las"

(Duvignaud, 1975, p. 61). A configuração global envolve os seguintes pontos: a) o sistema da sociedade tradicional oculta o esboço de novas formações sociais, de modo que o retardamento em definir um complexo de grupos, valores e atitudes acaba por anestesiar as inovações "sugeridas ou pressentidas ao nível das individualidades anômicas"; b) "o fenômico ligado à mutação é sempre individual (...) porque, não podendo a inovação aparecer nos estratos sociais tradicionais, e mesmo naqueles afetados pela mudança (contestada ou mascarada pelo espírito do passado), emerge nos confins da vida social ainda oficial, em grupos privilegiados, cujos privilégios exilam da sociedade numa hiperconsciência da realidade global, entre todo tipo de marginais (artistas, místicos, doentes mentais), em atos contingentes e escandalosos (...) O individualismo (...) define a eventual imputação da inovação na trama da vida coletiva exatamente no ponto em que aparecem as fissuras no sistema" (Duvignaud, 1975, p. 63). Assim, sem a romântica oposição entre indivíduo e sociedade, a individuação não define um ser ou substância fixa, mas o processo de atribuição-captação de uma dinâmica psico-sócio-cultural proversivamente orientada e, por isso, a "individuação não é uma realidade, mas um símbolo vivido, símbolo de um homem que detém o sentido do que advirá, formulando-o sem intelectualizações, sem pensamentos. A particularidade resulta do isolamento provocado pela descoberta freqüentemente obscura, freqüentemente fulgurante, de novas possibilidades oferecidas ao homem cuja viabilização separa, ao mesmo tempo, aquele que dela se propõe usar do resto do "sentimento comum" (Duvignaud, 1975, p. 63); c) essas individualidades, entretanto, não têm necessariamente o destino de mártires da "mutação ainda não tematizada"; são "matrizes de atitudes, de crenças, freqüentemente de novas instituições". "As personalidades anômicas são aqui os elementos de modos de comunicação ainda desconhecidos que, entretanto, só podem existir a partir dos dados agenciados por essas individualidades particulares. Por aí é que a vida imaginária - 'esse repertório das possibilidades de invenção e criação que se chama imaginário' - desempenha um papel determinante na experiência coletiva e individual, tanto na vida cotidiana como na onírica (...) Mas a experiência imaginária é mais vasta que a arte, ela é mesmo um dos aspectos de antecipação da experiência atual sobre a experiência a vir, de uma sociedade que ainda não se deu seu sistema de condutas e atitudes (...) sobre a sociedade a vir" (Duvignaud, 1975, p. 65). Poderemos, por fim, compreender que o "elemento essencial das relações entre anomia e mutação", constituindo-lhes a qüididade, seja... a ruptura. Aqui se fecha o circuito com a mythopoiésis como estilo de orientação da ação... e das construções dos espaços-organismos alternativos. A grande subjacência é, entretanto, uma "ontologia do conflito".

10. ONTOLÓGICA DO CONFLITO E O FUNDAMENTO DE UM "MODELO ENERGÉTICO DE INTERVENÇÃO"

Limitamo-nos a sugerir as etapas desse mais profundo fundamento antropológico do comportamento organizacional alternativo, desse Ur-Grund. Já uma "epistemologia dos objetivos vivos", como a desenvolvida por Von Foerster e Maturana, "solipsismo epistemológico", autoriza-nos, em se considerando os "sistemas autopoiéticos", a progressivamente conduzir a análise ao nível do "aparelho lógico-cerebral" e de seu funcionamento. Mais em profundidade, o "paradigma holográfico", oriundo da convergência dos trabalhos de Bohm e Pribram, estabelece a homologia entre a estruturação da consciência e da matéria. Ora, com anterioridade, as pesquisas de Lupasco (1960; 1970). propuseram tratar os "eventos energéticos" pela "lógica da energia", ou seja, a questão do sujeito (dos psiquismos e dos organismos) seria passível de ser tratada por meio de uma energética. Entretanto, há uma homologia entre os sistemas atômicos e os sistemas neuropsicofisiológicos (Lupasco, 1974, 1979) e, assim, o "princípio do antagonismo contraditorial", que estrutura a tensionalidade conflitorial máxima do núcleo atômico, encontraria sua expressão simbólica na "matéria-energia psíquica". Assim, o ser e a lógica (onto-lógica) da matéria-energia são isomorfos à consciência; ou seja, a "conflitorialidade" ("ontologia do conflito") embasa a estruturação e o funcionamento dos psiquismos como, aliás, a energética junguiana (Jung, 1969; Wolff, 1959) já detectara, precisamente através da "função transcendente", ou seja, do processo de simbolização e produção do Imaginário, regidos pela lógica da coincidentia oppositorum e da complementaridade antagonista.

Frente a tudo isto, nem tanta surpresa vai, em termos de enfoque teórico, entenda-se bem, diante da insistência dos movimentos contraculturais e das intervenções de praxeologias objetivando' a criação de alternatividades espácio-comportamentais (ou "proxemias") nas "metáforas obsessivas" (Mauron) do conflito e seus avatares. Lembremos que uma enumeração não-exaustiva compreenderia entre tais movimentos: a contracultura (como matriz-magma), a sócio-análise de animação, sociéclating, o movimento do potencial humano, a antipsiquiatria, a psicoterapia institucional, a antipedagogia, a pedagogia institucional, a sócio-análise institucional, a pedagogia implicacional e a sociatria do Imaginário. Destaquemos, enfim, que a par dos fundamentos antropológicos evidenciados, um "fio an-árquico" (no sentido que Guattari dá a "an-arquia") perpassa todas essas praxeologias de intervenção.

Ao fim desse trajeto lembramo-nos de que, paradoxalmente, as "sociedades tradicionais" são mais permeáveis à política do neóteno neg-entropo, encarnada nas figuras míticas do trickster33 33 . A figura mítica do trickster é da maior importância como "herói civilizador" fazendo-o, entretanto, por meio da "transgressão" e de uma "ética para lá do bem e do mal" (jenseits von Gutes und Böse, "transvaloração"), ética da desmedida que, pela "desordem" necessária por motivos ontológicos, é criadora de complexificações crescentes. Ver: Radin, Jung & Kérényi (1958); Lévi-Makarius (1974); Maffesoli & Bruston (1979; Kaës & Anzieu (1983). sempre acolhido, aceito, venerado e dotado de funcionalidade insubstituível... no próprio universo de uma "cosmologia", em que pese ao risco de uma "cosmo(a) gonia"! Assim ocorreu com Shiva-Rudra, Dionysos-Hermes, Odhin-Wotan-Loki, Lug-Mercúrio-Cernunos, Tezcatlipoca e, mais próximo de nós, Exu-Legba e o caso exemplar do "Renard Pâle" na cosmologia dogon:

"O Renard representa a revolta e a liberdade individuais opondo-se à ordem social. Se ele é reprovado, é porque constitui um perigo para essa ordem e uma ameaça de 'regressão' frente ao 'élan vital' que impele o grupo rumo à sobrevivência. As soluções que a sociedade busca ao problema da superação do Ego e da sua ampliação no Outro são soluções coletivas (...) Nessa perspectiva, a liberdade individual aparece como ameaça de 'regressão'. Eis por que é reprimida, mas não suprimida, porque é necessária. Além dos seus aspectos positivos e criativos, que implicitamente aparecem na concepção dogon, ela engendra o movimento (...) Porque o desequilíbrio, incessantemente provocando uma re-equilibração é, definitivamente, mais dinâmico do que a estabilidade" (Calame-Griande, 1965, p. 548).

Talvez fosse nossa hora, a hora de confrontar as formas hipocomplexas de organização com as propostas alternativas dos nossos dois neótenos negentropos: Pedro Malazartes e Macunaíma...

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  • *
    N. do E. O autor emprega a palavra "entorno" no sentido de meio ambiente.
  • 1
    . Paula Carvalho (1984
    a, segunda parte, cap. 3).
  • 2
    . Ricoeur e Durand concebem as "hermenêuticas", ou estilos de interpretação, quer como "leituras sintomáticas" (desmistificadoras), quer como "leituras instaurativas" (amplificadoras); as primeiras são "redutivas" (sempre há um fator de última instância na explicação) e as segundas são "plurais" ou "compreensivas", uma "leitura da confiança", diria Bachelard, em oposição à "leitura da suspeita". Se, por exemplo, Marx, Freud e Nietzsche ilustram as primeiras, assim como Lévi-Strauss, os fenomenólogos ilustram, por exemplo, as segundas. As primeiras supõem uma "concepção semiótica" da linguagem (o signo é arbitrário e convencional, por isso, unívoco), ao passo que as segundas visam uma "concepção simbólica" da linguagem (o signo não é o símbolo que, esse, é motivado, polívoco e equívoco). Segue-se, daí, um enfoque semiológico e simbólico do imaginário: o primeiro é redutivo, e por isso o imaginário é mitigado. O segundo amplia as várias "perspectivas" de enfoque (incluindo também a "redutiva", mas relativizando-a nas suas pretensões explicativas últimas), através da "sobredeterminação" e da "convergência/conflito de hermenêuticas": falamos, assim, em o imaginário (da pluraridade, da conflitorialidade, da pluridimensionalidade). Cf. Ricoeur (1965, p. 3644) e Durand (1964, p. 109-10).
  • 3
    . Lacan distingue "três registros essenciais": o real, o simbólico e o imaginário. O "imaginário" refere-se ao "estádio do espelho" e como "registro" marca a "prevalência da relação à imagem do semelhante". Já o "simbólico" designa os fenômenos psíquicos "estruturados como uma linguagem", onde nasce a "palavra que libera". P. Solié evidencia que ao
    S/s simbólico junguiano corresponde o
    S/s imaginário lacaniano e ao
    S/s semiótico junguiano, o
    S/s simbólico lacaniano. E, numa reinterpretação, fazendo convergirem Jung e Lacan, dos rituais de "eficácia simbólica" (apresentados por Lévi-Strauss na magia do chamã), Solié estabelece a seguinte rede associativa para a relação de significação
    (S/s) "simbólica" ou "imaginária", respectivamente, em Jung ou Lacan: natureza/significado/irracional/objeto interno O/esquema freudo-lacaniano/magia. Para a relação de significação "semiótica" ou "simbólica", respectivamente Jung e Lacan: cultura/significante, racional/objeto externo O'/esquema freudo-lacaniano/ciência. Cf. Laplanche & Pontalis (1981, p. 195-6, 474-6); Solié (1977, p. 30).
  • 4
    . Como veremos adiante, os "movimentos contraculturais da ordem do 'anti'" emergem do "magna social" (Castoriadis) da
    counter-culture, de onde drenam suas "intervenções institucionais" como "proversões de caráter escatológico" (Ardoino), em grande parte nutridas pelo "princípio Esperança" (Bloch). Suas três grandes matrizes são, segundo Ardoino, a análise institucional, a antipsiquiatria e a antipedagogia.
  • 5
    . O termo "intervenção praxeológica" deve ser dimensionado nos quadros de uma "antropologia aplicada" redimensionada por R. Bastide, onde os próprios "projetos de intervenção" são tratados como "instituições" (ou dimensões delas). Cf. Bastide (1971, p. 188,193, 205-6); Paula Carvalho (1982, p. 129-30).
  • 6
    . O termo "meta", aplicado aos referidos movimentos, implica uma "comutação energética de sentido e de orientação da ação, doravante não mais pendentes de uma "tese", de um "pró" (definindo-se ingenuamente como "simples negatividade", como "anti", por onde reforçam a coesão do centro, e mais, como a antropologia que Gluckman evidenciou, pelos
    rituais of rébellion, são induzidos pelo centro e recuperados na sua potencialidade contestatória), mas redimensionados como "heterótese" (Rickert). Formulam-se, então, na dimensão do outro (e do Outro) e da alternatividade relativizadora; formulam-se como "contra" (no sentido de Lapassade) e como "possível", contra a "unidimensionalização" e o "monolitismo" ideológicos, e pela "contraditorialidade", e pela "conflitividade" como expressões legítimas de uma "socialidade ampliada" e do "homem integral-homem contraditorial"; mas o termo "meta" também se refere a uma "estratégia cognitiva" (e, portanto, praxeológica): ao "macroconceito recursivo" de Morin e ao "estilo mythopoiético" de Durand. Ambos supõem uma "nova lógica" do paradoxal (do isto e aquilo), das "concorrências, das complementaridades e dos antagonismos simultâneos". As obras de M. Maffesoli
    (Logique de La domination, La violence fondatrice, La coquête du présent: pour une sociologie de la vie quotidienne, L'ombre de Dionysos: contribution à une sociologie de l'orgie) caracterizam bem essa "socialidade conflitiva" e o "mirante meta". Do mesmo modo, a revista que dirige (
    Sociétés, Revue des Sciences Humaines et Sociales, Masson), apresenta um amplo espectro de investigações nesse sentido.
  • 7
    . No decurso do "processo de hominização" ("antropo-sócio-morfogênese) a regressão do "capital genético" marca, fenotipicamente, a instauração do "capital cultural" (ou "noológico"), ou seja, "a cultura se insere complementarmente na regressão dos instintos (programas genéticos) e a progressão das competências organizacionais, reforçada simultaneamente por essa regressão (juvenilizante) e por essa progressão (cerebralizante), a ambas necessária. Ela constitui um
    tape-recorder, um capital organizacional, uma matriz informática, capaz de alimentar as competências cerebrais, de orientar as estratégias heurísticas, de programar os comportamentos sociais" (Morin, 1973, p. 98-9).
  • 8
    . O "capital cultural" é o "capital noológico" do
    sapiens e a "esfera noológica é constituída pelo conjunto dos fenômenos ditos espirituais, um rico universo que compreende idéias, teorias, filosofias, mitos, fantasmas, sonhos" (Morin, 1977, p. 340). Para se detectar a "função estruturante do imaginário", Morin evidencia, com P. Auger, o caráter "real", de existentes entes que são as "idéias". Mas estabelece um contraste entre as "cristalizações", ou "núcleo rígido" (teorias, sistemas e paradigmas), e a "ebulição imaginária", os "turbilhões de neo-entropia imaginária" (sonhos e fantasmas), de um modo tal que é do "confronto antagonista/complementar entre o imaginário e a idéia que emerge a imaginação". E é a imaginação que, em e pela turbulência fantasmática, inventa e cria. Briltouin disse-o bem: "O pensamento (imaginante) cria a entropia negativa" (Morin, 1977, p. 340). As implicações organizacionais são claras: nas organizações hipocomplexas, que são "modelos entrópicos de organização" (Ardoino), reprime-se o imaginário, cuja energia é drenada para um comportamento ritual instituinte de um espaço burocrático defensivo. Ao contrário, uma política organizacional da hipercomplexidade libera o imaginário... mas são "organizações neg-entrópicas", como os possíveis dos "movimentos anti". A "função estruturante do imaginário" recobre, entío, o "instituinte", o momento "anômico" e "a-estrutural", o "liminar", as "margens", o "espaço transicional" e o "espaço potencial", em suma, regiões ônticas e domínios de emergência e de elaboração de um comportamento organizacional alternativo plasmado sobre a
    logique du vivant.
  • 9
    . "Investimento" refere-se a "economica freudiana", onde traduz certa "energia psíquica amarrada a uma representação ou a um grupo de representações" (Laplanche & Pontalis, 1981, p. 211-5). As implicações poderão ser logo vistas nesse trabalho naquilo que se chama "fantasmática do grupo". A organização manipula
    inputs de energia psíquica e, se hipocomplexa, deriva os investimentos do "ideal do eu" e potencia os valores, as metas e os
    patterns do superego. Essa ancoragem no fantasma provoca uma
    estasis da libido, que é responsável pela etiologia organizacional.
  • 10
    . Winnicot (1971). No texto, adiante, explicitamos as noções.
  • 11
    . Sobredeterminação (ou determinação múltipla) consiste no "fato que uma formação do inconsciente - sintoma, sonho, etc. - remete a uma pluralidade de fatores determinantes, o que pode ser tomado em dois sentidos bastante diferentes: a) a formação vislumbrada é a resultante de várias causas, sendo que uma delas não basta para dar conta; b) a formação remete a elementos inconscientes múltiplos, que se podem organizar em sequências significativas diferentes, sendo que cada uma delas, num certo nível de interpretação, possui sua própria coerência. Esse é o sentido mais usual" (Laplanche & Potalis, 1981, p. 467 e segs.).
  • 12
    . Como nos habituou a "leitura sintomática" praticada por Althusser, o "não-dito" é o "impensado" do texto. Mary Douglas fala em "estrutura de pressupostos". De qualquer maneira, teríamos as "matrizes" (geralmente inconscientes) da prática ideológica (os "ideologemas" em Kristeva) ou os "paradigmas" (no sentido que lhes dá Kuhn). Eis por que, como primeiro momento, é indispensável uma "leitura da suspeita" (ou desmistificadora).
  • 13
    . Ensinou-nos Husserl que a percepção de um objeto se dá por "perspectivação" e por "ângulos de abordagem", de cuja multiplicação deveria assintoticamente advir a reconstituição do objeto ideal totalizado. Vai daí uma das razões da "amplificação" e da "convergência de hermenêuticas", assim como a crítica aos "reducionismos".
  • 14
    . Um "pensamento das estruturas" descentraliza o sujeito porque, revelando o registro do inconsciente e seus dinamismos de "efeitos por causalidade metonímica", ao mesmo tempo em que situa o ego como um dentre muitos "complexos", relativiza o sujeito-ego, o sujeito-vontade e o sujeito-consciência. Eis por que, se sujeito houver, trata-se de uma outra noção de sujeito que a usualmente veiculada pelas "filosofias da consciência"... e pelos sucedâneos marxológicos. Cf. Foucault (1966) e Ricoeur (1969).
  • 15
    . No esteio da "etnologia simbólico-humanista" (Griaule, Dieterlen, Zahan, Leiris) evidenciamos que uma antropologia compreensiva é uma "pedagogia da escuta", isto é, para se evitar o "etno-logos-centrismo" deve ser acolhida do "outro", dando-lhe, liberando-lhe a palavra. Assim, o "outro" se constrói como subjetivização na intersubjetividade. Lévi-Strauss, entretanto, evidenciara a necessidade de a analise ir além das "construções conscientes", para que se chegue às "estruturas inconscientes". Enfrentara, então, o sério problema metodológico da mediação dialogal: ora, como mostra magnificamente em
    Introduction à l'oeuvre de Marcel Mauss, a instância do Outro, vale dizer, o inconsciente é que garante e viabiliza as "trocas simbólicas". Por isso, o "Outro" passa a ter dupla ressonância: é o outro (a heterótese e a outra subjetividade) mas, sendo o meu outro eu possível, é o Outro. Lévi-Strauss diz: "O inconsciente seria, assim, o termo mediador entre eu e outrem. Aprofundando-lhe os dados, protongamo-nos (...) em direção a nós mesmos: atingimos um plano que não nos parece estranho exatamente porque ele secreta nosso eu mais secreto; mas (mais normalmente) porque, sem nos fazer sair de nós mesmos, faz-nos coincidir com formas de atividades que são simultaneamente 'nossas' e 'outras', condições de todas as vidas mentais de todos os homens e de todos os tempos. Assim, a apreensão (que só pode ser objetiva) das formas inconscientes da atividade do espírito conduz à subjetivização; porque definitivamente trata-se da mesma operação que, na psicanálise, nos permite reconquistar nosso eu mais alheio e, na pesquisa etnológica, faz-nos aceder ao mais estrangeiro dos outrem como a um outro nós. Nos dois casos põe-se o mesmo problema, o de uma comunicação buscada, ora entre um 'eu' subjetivo e um 'eu' objetivante, ora entre um 'eu' objetivo e um 'outro' subjetivizado" (Mauss, 1968, p. XXXI).
  • 16
    . Explica Castoriadis: "No 'vir a ser' emerge o imaginário radical como alteridade e como engendramento originário perpétuo de alteridade, que figura e se figura, é figurando e em se figurando, criação de 'imagens' que são o que são e tais quais são como figurações ou presentificações de significações ou de sentido. O imaginário radical existe como social-histórico e como
    psychesoma. Como social-histórico, é fluxo aberto do coletivo anônimo; como
    psyche-sama, é o fluxo representativo/afetivo/intencional. Aquilo que, no social-histórico, é posição, criação, fazer ser, chamamo-lo imaginário social no sentido do primeiro do termo, ou sociedade instituinte. Aquilo que, na
    psyche-soma, é posição, criação, fazer ser para a
    psyche-soma, chamamo-lo imaginação radical" (Castoriadis, 1975,p. 480-1).
  • 17
    . Definimos
    mythopoiésis, com Kaës, no item 4.
  • 18
    . Definimos "matéria-energia psíquica", com Lupasco, no item 7.
  • 19
    . Seria importante marcar frente, seja a uma moral da produtividade, seja à do consumismo, contra a "ética protestante", mas também contra o " Calvinismo das esquerdas" e ao "miserabilismo", que a "economia da
    part maudite é uma "economia da
    hybris", uma economia da desmedida e das disrupções psicoafetivas no nível das "trocas... simbólicas". E isto seja com Caillois, seja com Bataille e, mais modernamente, com Baudrillard. Mas é com Bataille que a
    part maudite adquire ampla expressão numa ética do consumo transgressor... (Cf. Bataille, 1976).
  • 20
    . Trata-se de um híbrido entre Lyotard e Bourdieu, que é uma energética "fática" (em Malinowski e Jakobson, a função fática do circuito comunicacional visa a dinâmica do contato).
  • 21
    . A "fantasmática" (remetendo a uma "leitura sintomático-desmistificadora" mas não necessariamente "redutiva") seria a primeira etapa de uma "fantástica". A "fantástica transcendental", tocada por Fichte, é um projeto de Novalis que, nos
    Schriften II. (p. 365), fala que "da imaginação produtora devem ser reduzidas todas as faculdades, todas as atividades do mundo interior e do mundo exterior". Filtrada pela poética de Bachelard, dela Durand dá a primeira elaboração antropológica. Aqui, reconduzidos os fantasmas às fantasias, despatologizada a vida anímica (cf. a obra de Hillman), e desfeitas as estase libidinais, o Imaginário é ontologicamente promovido a estruturador magno dos projetos. Castoriadis já nos advertia que "o imaginário está no ativo âmago organizacional da realidade social e política. E, quando, em virtude de seus caracteres informacionais, torna-se generativo, desde então é capaz de programar o 'real' e, neg-entropizando-se de modo práxico,
    tornar-se o real". Cf. Durand (1969).
  • 22
    . Com Morin, aqui "cibernética" é compreendida como a "metodologia da pilotagem" característica da "nova transdisciplinaridade".
  • 23
    . Cf. Von Foerster (1974).
  • 24
    . Usamos "conflitorialidade", como no-lo propõe Derrida
    (La dissemination) porque não só capta melhor o "antagonismo contraditorial" como lógica de todo e qualquer evento energético, mas, referindo-se à lógica do conflito (à conflitividade como forma de socialidade), preserva certa irredutibilidade da contraditorialidade do conflito, ao nível sócio-cultural, sem que caiamos nos alinhamentos das "sociologias do
    consensus" ou das "sociologias do conflito", como no-lo adverte Balandier, além de escaparmos das "recuperações" e dos "alinhamentos" (que se processam na teoria das organizações). Cf. Balandier (1971, p. 75 e segs.).
  • 25
    . E. Morin opõe o "paradigma da complexidade" ao "paradigma da simplificação/disjunção", assim como D. Bohm opõe o "paradigma holográfico" ao "paradigma da fragmentação". Trata-se, em suma,
    grosso modo, da oposição ao "paradigma clássico" (mecanicista, analítico-racional, binário) e à lógica binária. Simplificadamente, diríamos que é proposto um "paradigma holístico" e uma lógica polivalente. Cf. Morin (1982, p. 255-313); Bohm (1980, p. 1-19,172-213).
  • 26
    . Com J. Battista, diríamos que o "paradigma holístico" ("paradigma", para Kuhn, é o complexo implícito das pressuposições que estruturam sistemas e teorias, definindo a
    épistéme de uma época) se opõe seja ao "mecanicista", seja ao "vitalista". Seus traços seriam: monista (ontologia), interativo (epistemologia), analógico (metodologia), probabilística (causalidade), estrutural (análise), neg-entrópico (dinâmica). Cf. Battista (1982).
  • 27
    . "Onto-lógica": jogo entre "ontologia" (o dito sobre o ser, por extensão, sobre o ser das coisas) e lógica; donde: a lógica do ser das coisas.
  • 28
    . O "princípio do antagonismo contraditorial" define, segundo Lupasco, a lógica da energia e, assim, todo e qualquer evento energético. Metaforicamente enuncia-se, segundo o próprio Lupasco: o problema não é "to be or not to be", mas "to be
    and not to be". Para um desenvolvimento exato, ver: Lupasco (1960; 1970; 1974; 1979;); Paula Carvalho (1984
    a, segunda parte, C.I).
  • 29
    . Ver Paula Carvalho (1984
    a, segunda parte, B).
  • 30
    . "Um sério e complexo problema consiste na determinação e na dosagem, no comportamento humano, sobretudo nas formas de socialidade, entre os "esquemas inatos" - que, segundo Eibl-Eibesfeldt, remeteriam às "adaptações filogenéticas", e mesmo a uma "gramática do comportamento humano social" de onde poderemos até, com Durand, construir as "ordens societais" estribadas em traços universais de etologia humana - e a "abertura ao mundo" (Gehlen), que define esse "especialista da não-especialização", que é o homem, como "neóteno neg-entropo". Para essa dialética, ver: Lorenz (1943); Portmann (1973, p. 127-41); Eib-Eibesfeldt (1973; s.d.); Durand (1976).
  • 31
    . Attan (1979, p. 39-129).
  • 32
    . A lógica do antagonismo contraditorial adquire sua máxima expressão de conflitorialidade, segundo Lupasco, no "sistema T" (que, na "dialectometodologia" do autor e na "ortodedução sistemogenética", corresponde ao sistema atômico e ao sistema neuropsíquico); diríamos que se trata do "aparelho psíquico" e seus produtos (o "aparelho simbólico"), é claro, numa ótica energética (aliás Jung já definira a "energia psíquica" como contrastação tensional). O símbolo representa, assim, uma união de opostos, pois que é "ponte" (
    Sinn-Bild) entre o consciente e o inconsciente. Por isso um enfoque simbólico é "onto-logicamente" dinâmico (energético e "conflitorial"). A lógica do "aparelho psíquico" é uma lógica da "intensão" e da "neg-entropia" motivo por que, manipulada hipocomplexamente pelas formas repressivas de organização, geram-se, no mínimo, "dissonâncias cognitivas" e "fantasmatizações".
  • 33
    . A figura mítica do
    trickster é da maior importância como "herói civilizador" fazendo-o, entretanto, por meio da "transgressão" e de uma "ética para lá do bem e do mal"
    (jenseits von Gutes und Böse, "transvaloração"), ética da desmedida que, pela "desordem" necessária por motivos ontológicos, é criadora de complexificações crescentes. Ver: Radin, Jung & Kérényi (1958); Lévi-Makarius (1974); Maffesoli & Bruston (1979; Kaës & Anzieu (1983).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Set 1985
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