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Um mergulho na gestão em contexto intercultural

RESENHA

Um mergulho na gestão em contexto intercultural

José Roberto Gomes da Silva† † In memoriam

Professor do Departamento de Administração, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - RJ, Brasil

GESTION EN CONTEXTE INTERCULTUREL: APPROCHES, PROBLÉMATIQUES ET PLONGÉES

De Eduardo Davel, Jean-Pierre Dupuis e Jean-François Chanlat (Orgs)

Québec: Les Presses de l'Université Laval e Télé-Université, 2008. 472 p.

O que se espera de uma obra que se propõe a discutir a gestão em um contexto intercultural? Dada a complexidade do tema, seriam, sem dúvida, diversas as expectativas que uma obra dessa natureza poderia suscitar aos diferentes leitores potenciais. Para os que buscam um primeiro contato com o assunto, seja com foco na pesquisa ou nas práticas de gestão, o interesse maior seria, possivelmente, construir uma primeira visão dos conceitos e identificar as grandes questões envolvidas, e as possibilidades de abordagem e tratamento dessas questões. Para aqueles mais familiarizados com as discussões sobre o tema, a motivação para a leitura talvez fosse encontrar contribuições que fujam ao lugarcomum e sejam capazes de aprofundar o debate, acrescentar visões distintas do fenômeno e promover reflexões críticas. Raras são as oportunidades de encontrar uma obra que possa atender interesses tão diversos. Esse é, porém, um desafio que os organizadores de Gestion en contexte interculturel: approches, problématiques et plongées se propuseram a abraçar com sucesso. Talvez tenha contribuído para isso a sua bem-sucedida experiência na organização de conhecidas coletâneas, como Gestão com pessoas e subjetividade, organizada por Eduardo Davel e Sylvia C. Vergara, e O indivíduo nas organizações, organizada por Jean-François Chanlat, ambas publicadas no Brasil pela Atlas.

É preciso que se esclareça, antes de tudo, a opção de se adotar o termo 'obra' - e não 'livro' - nesta resenha. Trata-se, de fato, de vários conteúdos de autores diversos organizados em um conjunto de recursos multimídia que compreendem um livro e um DVD. Isso denota como, de forma inteligente e inovadora, os organizadores da coletânea puderam construir uma discussão ampla sobre um assunto com tantas possibilidades de exploração.

Em uma obra em língua francesa, à primeira vista, a tendência seria esperar um olhar 'diferente' ou particular - um olhar francês - sobre um fenômeno que, para nós, brasileiros, costuma chegar principalmente com sotaque anglófono. Em parte isso é verdade, porque há até mesmo a necessidade de esclarecimento do termo. O que - no Brasil e em grande parte da literatura de língua inglesa - tendemos a chamar genericamente de 'globalização' se expressa, na língua francesa, por meio de diferentes vocábulos que trazem à tona questões distintas, tais como: mondialisation, globalisation, cosmopolitanisation. Mas essa, sem dúvida, não se propõe a ser a obra de um olhar francófono sobre o fenômeno. A proposta é de se construir um olhar que incorpore o próprio espírito do fenômeno da mundialização e, mais particularmente, da gestão em contexto intercultural: o dos múltiplos olhares, múltiplos pontos de vista e múltiplos sotaques. É, portanto, uma obra em língua francesa que fala do 'olhar do mundo' sobre o fenômeno.

O enfoque, como o próprio título sugere, recai particularmente sobre a dimensão sociocultural da mundialização dos negócios. Não se prioriza um enfoque econômico ou estratégico, o que talvez frustre, em parte, alguns leitores mais interessados em ferramentas de gestão. Como diz a Introdução, o principal enfoque escolhido também não se concentra nas semelhanças notáveis no processo de mundialização do discurso da gestão ou sobre a homogenização das culturas. Os organizadores optaram por vislumbrar com atenção o enfoque das diferenças de visões, de discursos, de abordagens e de realidades culturais. Sob esse ponto de vista, trata-se, então, de uma obra que não teme expor a polifonia sobre o tema. Ao contrário, o que se mostra é que a polifonia é justamente o que torna a temática tão atraente.

O livro é organizado em três partes principais que promovem, respectivamente, uma discussão sobre as abordagens, a problemática e algumas questões práticas da gestão intercultural.

Na Parte I, Jean-François Chanlat busca referência nas ciências humanas para discutir dimensões do fenômeno que, conforme ressalta o autor, são ainda objeto de pouca atenção de pesquisadores, administradores e consultores. Apoiando-se em reflexões oriundas de áreas diversas como a psicologia, a sociologia, a antropologia e a lingüística, analisa algumas das questões essenciais referentes ao encontro entre os seres humanos, envolvendo a noção de alteridade, o racismo, os medos, a atração, os preconceitos, os mal-entendidos, os conflitos e o papel das relações históricas entre culturas. Jean-Pierre Dupuis realiza uma visão comparativa e crítica de duas abordagens parcialmente concorrentes, ambas centradas nas diferenças de culturas nacionais e que talvez sejam as que mais têm inspirado as discussões sobre o tema: a de Geert Hofstede e a de Philippe d'Iribarne. Além de ressaltar a grande contribuição das duas abordagens, bem como as críticas a elas dirigidas, o autor expõe a importância de se desenvolver um olhar ampliado, para 'além' e 'aquém' do nível nacional, que possa dar conta dos movimentos maiores que influenciam as culturas nacionais contemporâneas, bem como das diferenças internas de cada povo. Finalmente, Olivier Irrmann oferece uma proposta de aprofundamento das análises das diferenças, não somente do ponto de vista das dimensões e condições históricas que caracterizam as culturas, mas principalmente de uma perspectiva interacionista, ou seja, de como a percepção das diferenças se produz no encontro, na comunicação e no compartilhamento da ação.

Na Parte II, a discussão das grandes questões envolvidas na problemática da gestão internacional encontra espaço na voz de: Olivier Irmann, que trata das diferenças na lógica da análise estratégica e de suas implicações organizacionais; Philippe Pierre, que aborda as dificuldades, questões de identidade, narrativas de vida e estratégias de adaptação de gestores expatriados; Jean-Claude Usunier, com a problemática da negociação internacional; e Philippe d'Iribarne, que tratando de cultura e ética nos negócios.

A Parte III se debruça sobre algumas das principais práticas envolvidas na gestão internacional. Sylvie Chevrier aborda a gestão das equipes multiculturais. Eduardo Davel e Philip Ghadiri analisam aspectos relativos à gestão de pessoal sob a ótica multicultural. Fabien Blanchot discute a gestão das alianças internacionais.

Outras quatro partes, incluídas no DVD, proporcionam ao leitor um mergulho nas sigularidades das culturas de diferentes localidades e de suas práticas de gestão, organizadas segundo as grandes regiões continentais do planeta: Américas; Europa; África e Oriente Médio; Ásia e Oceania. A sensação provocada no leitor é, de fato, a de uma viagem pelas culturas. Não se trata de uma viagem panorâmica, como um sightseeing, mas de um conjunto de reflexões consistentes, construídas sob o olhar daqueles que convivem com cada uma das culturas, seja por sua origem nacional, seja pelo seu nível de imersão no contexto de pesquisa ou pela vivência de compartilhar com elas experiências de negócios. Esse é apenas outro aspecto que torna tal obra singular, na medida em que se diferencia, portanto, das abordagens em que um único pesquisador desenvolve um olhar estrangeiro sobre uma realidade que tende a ser analisada segundo seus próprios padrões culturais.

É uma obra de interesse para quem participa da comunidade científica que discute a gestão em contexto intercultural, e para quem deseja nela se inserir, ou apenas conhecer o estado da arte de suas discussões, tratando-se de referência para professores e alunos de cursos sobre o tema. Finalmente, é uma valiosa fonte de aprendizado para os gestores que se aventuram nas relações de negócios internacionais. A todos, uma boa leitura!

A RAE-revista de administração de empresas publica esta resenha in memoriam do professor José Roberto Gomes da Silva, desaparecido em recente acidente aéreo. O professor José Roberto prestou valiosa colaboração nos processos editoriais da RAE e RAE-eletrônica como avaliador ad hoc. Destacamos ainda que seu artigo "Sentimentos, subjetividade e supostas resistências à mudança organizacional", em co-autoria da Profa.Sylvia C.Vergara, publicado na RAE, v. 43, n. 3, 2003, foi premiado pelo nosso Corpo Editorial como Melhor Artigo do ano.

  • †
    In memoriam
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Ago 2009
    • Data do Fascículo
      Set 2009
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