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Algumas considerações sobre o II Encontro Latino-Americano e VI Internacional da Rede de Alternativas à Psiquiatria, Belo Horizonte, 28.10 a 3.11.83

NOTAS E COMENTÁRIOS

Algumas considerações sobre o II Encontro Latino-Americano e VI Internacional da Rede de Alternativas à Psiquiatria, Belo Horizonte, 28.10 a 3.11.83

Caterina Koltai

Socióloga formada pela Sorbonne, Paris; mestre em Sociologia da Educação pela mesma universidade; ex-funcionária do Departamento de Educação da Unesco

O VI Encontro Internacional da Rede de Alternativas à Psiquiatria realizou-se em Belo Horizonte, Minas Gerais, entre 28.10 e 3.11.83, no campus da Universidade Federal de Minas Gerais.

Não fiz parte dos que organizaram o Encontro. Estive lá como simples ouvinte, como alguém de há muito interessada por "alternativas" na vida e na política e que pretendia ouvir relatos de experiências, aprender com os outros e, se possível, fazer um balanço da situação aqui e no mundo. Por um acaso das circunstâncias, acabei tradutora dos convidados italianos e, com isso, não pude assistir a algumas palestras que prometiam ser interessantes. Talvez isso tenha interferido na impressão de conjunto que tive. No entanto, ainda que houvesse estado presente a todas as palestras, creio que manteria as considerações críticas sobre o Encontro aqui traçadas, o qual, na minha opinião, ficou muito aquém de suas possibilidades. Mas vejamos o porquê.

O Encontro foi dividido em quatro grandes temas: a questão psiquiátrica; a questão dos marginalizados; a questão da mulher; a questão do menor; além de vários temas livres. Foram, ainda, organizados quatro cursos sobre os seguintes temas: saúde mental e trabalho; psiquiatria democrática; revolução molecular; comunicação de massa e alienação.

Além dos participantes brasileiros estiveram presentes Franca Basaglia e Antonio Slavich, do Movimento Psiquiatria Democrática (Itália), Sylvia Marcos (México), Luz Helena Sanches Gomes (Colômbia), representantes do Chile etc.

A primeira pergunta que coloco é a seguinte: Qual é o espaço do "alternativo" aqui no Brasil atualmente, visto o que foi esse Encontro, e o que representou e representa a "Rede"? Para tanto, talvez fosse interessante fazer um pequeno histórico da Rede.

A Rede Internacional de Alternativas à Psiquiatria nasceu em Bruxelas, em janeiro de 1975. Não tinha um programa preciso, não pretendia transformar-se num partido, num sindicato ou numa nova Internacional. Surgiu da necessidade que alguns experimentavam de melhor conhecer as experiências que outros estavam realizando. A presença, desde o início, de grupos compostos por juristas, professores, arquitetos etc. mostrou a necessidade de não se restringir unicamente à crítica do sistema psiquiátrico e sim de lutar ao mesmo tempo contra todos' os processos de marginalização, seja na família, na escola ou nos locais de trabalho.

O texto constitutivo da Rede afirma: "Consideramos que as lutas na área de saúde mental devem-se inserir no conjunto das lutas dos trabalhadores para a defesa de sua saúde, conjuntamente com todas as lutas das forças sociais e políticas para a transformação da sociedade. Não se trata, para nós, de obter a tolerância para a loucura, mas de demonstrar que a loucura é a expressão das contradições sociais contra as quais temos que lutar. Sem a transformação da sociedade é impossível termos uma melhor psiquiatria, teremos sempre uma psiquiatria opressiva. Recusamo-nos a fechar numa terminologia psiquiátrica os problemas de alienação e marginalização alimentados pelos sistemas sócio-políticos."

Vemos, portanto, que, quando de sua criação, a perspectiva da Rede era a de se transformar numa alternativa popular à psiquiatria, onde a loucura não fosse reduzida a um simples fenômeno de alienação social, e onde a contestação da opressão psiquiátrica não fosse reduzida a uma simples luta social contra a exploração capitalista. Do ponto de vista da "Rede", era fundamental que as experiências militantes pudessem apoiar-se sobre as novas formas de luta que dizem respeito à condição feminina, penitenciária, do menor etc. Tratava-se, em resumo, menos de politizar a loucura, mas de fazer com que o político passasse a englobar uma série de problemas até então desconhecidos pelas organizações tradicionais.

Muito provavelmente, a Rede não teria sido possível sem os ventos libertários de 68 e algumas experiências antipsiquiátricas de peso.

É fato que, embora algumas experiências isoladas já estivessem acontecendo cá e lá, é somente a partir de 68 que foi possível generalizar essas experiências isoladas e é somente nesse momento que a prática psiquiátrica passa a ser questionada numa perspectiva claramente política, questionamento esse que passa a atingir o público em geral e não mais somente os profissionais da área.

Entre os movimentos precursores merece destaque a experiência italiana de Franca Basaglia, que dará origem, em 1973, ao movimento Psiquiatria Democrática. Quando da constituição da Rede (1975), Psiquiatria Democrática já contava com a participação de cerca de 2 mil pessoas, entre médicos, psicólogos, enfermeiros e assistentes sociais. A experiência italiana teve início nos anos 60 na cidadezinha de Gorizia, que rapidamente tornou-se a cidade-símbolo do movimento, visto que conseguiu demonstrar que a psiquiatria clássica nada mais era que um instrumento de poder, que a própria instituição gerava a doença e que essa e a marginalização em psiquiatria andam juntas. Foi nesse clima, então, que surgiu a Rede. Desde o início havia o consenso de fazer com que ela, em cada país, fosse o reflexo de sua própria realidade.

E, assim, voltamos ao Encontro de Belo Horizonte, que acho que foi exatamente o reflexo do que é a Rede, atualmente, em nosso país.

Em primeiro lugar, mostrou que, pelo menos por enquanto, existem poucos grupos que trabalham dentro dos objetivos em que a Rede se fixou quando de sua constituição, e que o contato entre eles é mínimo. Enfim, por ora. trata-se de uma infra-estrutura muito frágil, que talvez não justificasse a pretensão de trazer o Encontro para cá. Por outro lado, é verdade que talvez ele tenha servido para ativar os contatos entre os grupos já existentes e a criação de novos. Mas isso só o tempo dirá. Por enquanto, pareceu-me que no Brasil existem algumas experiências isoladas, mas não parece existir uma Rede de experiências alternativas de trabalho, seja no setor psiquiátrico propriamente dito, ou nos outros que lidam com marginalizados em geral. Não se patenteou no Encontro a existência de uma prática considerável de trabalho local.

Se não. como explicar o número relativamente reduzido de participantes, cerca de 400 (esperava-se mais que o dobro), sendo que a metade dos que até lá se deslocaram eram estudantes, ou seja, pessoas que sonham com uma prática "diferente", mas que, por enquanto, estão desvinculadas de qualquer prática profissional, seja ela "alternativa" ou não?

Esse ponto me parece bastante significativo. Não que os estudantes não tenham seu lugar num encontro como este. Têm, e quanto mais numerosos, melhor, pois quando inseridos na vida profissional virão realmente a ter uma prática alternativa, mas o que não se justifica é que um encontro desses tenha quase que exclusivamente estudantes como público. Ao se dar tal fato, um dos primeiros objetivos da Rede, que é o de funcionar como centro de informação e debate sobre experiências em curso, se inviabiliza, já que as pessoas não têm experiências a comunicar, somente desejos. . .

E me pergunto: será que entre nós o espaço do alternativo só é possível dentro do universo estudantil, portanto ainda não inserido na vida profissional? Será que no Brasil o Alternativo ainda é visto como alguma nova forma de "doença infantil", das quais as pessoas supostamente se curam uma vez inseridas na vida profissional?

Outro ponto. O Encontro, como todo Encontro do tipo, era pago, o que é normal e compreensível em um país onde há falta total de subvenções para eventos culturais e científicos. Alguém teria que arcar com os custos. Mas o que não foi normal foi a incapacidade de cálculo dos custos, levando o Encontro a um beco sem saída. Por exemplo: trouxeram algumas estrelas internacionais para o Encontro, cuja viagem foi paga com o dinheiro particular dos organizadores, que esperavam poder reembolsá-lo com as rendas do Encontro. Visto o número de participantes ter sido muito inferior ao esperado, procuraram-se soluções de última hora, que comprometeram seriamente a situação.

Primeiro: vieram as estrelas, mas não sobrou dinheiro para contratar tradutores. A presença ocasional de alguém que falava italiano "quebrou ó galho" durante três dias. Mas por que será que no "alternativo" sempre temos que "quebrar o galho" e não se consegue fazer algo tão sério quanto em qualquer outro Congresso?

Segundo: o dinheiro dos ingressos não bastando, resolveram cobrar uma tarifa extra pelos cursos, sem que os conferencistas fossem avisados de tal decisão, o que foi grave. Um encontro alternativo tem que ser, pelo menos, democrático e as pessoas interessadas consultadas sobre decisões a tomar. Alguns responsáveis por esses cursos, a par de que eles estavam sendo cobrados por fora, recusaram-se a receber tais taxas e tiveram salas cheias. Outros só descobriram esse detalhe no penúltimo dia de curso, ao constatar que o seu estava semivazio e outros repletos de ouvintes. Foi o caso de um dos convidados italianos, A. Slavich, que chegou a comentar o absurdo de trazê-lo da Itália para oferecer um curso para 15 pessoas. . .

Essa decisão autoritária, nada democrática - para não dizer alternativa - criou vários problemas que poderiam ter sido evitados, se houvesse entre nós uma prática de trabalho democrática e um cotidiano alternativo, e não somente o desejo de organizar um tal Encontro Alternativo. Mais um detalhe. Novamente o centro constituiu-se das estrelas internacionais que para cá vieram; tudo se fez para trazer e confirmar a presença dessas pessoas e nada para confirmar os "convidados" brasileiros. Nomes brasileiros que constavam do programa não foram contatados, ou mal contatados, suas passagens não foram enviadas nem suas presenças confirmadas, de modo que até o último momento não se sabia se estariam presentes ou ausentes. E muitos não vieram. Será que é mais uma manifestação de nosso atávico instinto de colonizado ou uma desconsideração grosseira pelo nosso trabalho, apesar de tudo que se tem a aprender dos outros?

Independentemente dessas falhas de organização que, acredito, necessitavam ser apontadas, pois são muito mais do que falhas de organização, creio que parte da confusão foi reflexo de um impasse da própria Rede. Há os que são favoráveis a uma certa organização dessa, como me parece ser a compreensão daqueles que organizaram esse encontro, e outros que são contra qualquer forma de organização, como, por exemplo, Guattari, membro fundador, que optou por não vir; esses são detalhes dos quais não estou a par, mas que, muito provavelmente, influíram no desenvolvimento do Encontro.

Houve também, é óbvio, coisas extremamente interessantes e positivas: entre essas, do meu ponto de vista, a presença de Franca Basaglia. Além de representar o movimento Psiquiatria Democrática, que foi, destes movimentos, o que na prática mais resultados colheu no campo de uma proposta "alternativa", Franca é dona de uma personalidade fascinante. Apresentou dois textos interessantíssimos, um sobre "Mulher e loucura" e outro sobre a "Medicamentalização da sociedade". O que mais impressionou em suas exposições foi sua abertura de espírito, seu respeito por outras realidades, outras experiências, foi sua não-doutrinação. Em momento algum esqueceu que era mulher, que tinha e continua tendo um certo tipo de militância, e que o motor dessa militância é um profundo amor pelo ser humano, um profundo desejo de um mundo melhor e o sonho de que um dia a utopia se torne realidade. E, quem sabe, então inventar uma nova utopia. . .

Outro debate interessante foi aquele sobre o desenvolvimento dos movimentos feministas, que contou também com a participação de Luz Helena e Sylvia Marcos.

Os debates com Jurandir Freire (RJ) também obtiveram grande audiência e foram muito interessantes.

Paralelamente organizaram-se algumas outras reuniões de contestação por parte dos que se consideravam os verdadeiros alternativos, e não aceitavam o aparente centralismo do Encontro. E também capoeira, ioga, meditação, horóscopo etc. Enfim, alternativo com a minúsculo, para todos os gostos, uma palavra que cada um preenche como quer. Mas, por que não? Com a condição de que se analise o que se faz.

A verdade é que existem em todos os lugares pessoas que tentam, com os meios de que dispõem, fazer algo diferente. Parece-me que as novas populações marginais estão crescendo dia a dia, aqui entre nós e alhures. Jovens que continuam rompendo com as famílias, homens e mulheres com o casamento, ex-psiquiatrizados, ex-presos, rupturas na sexualidade dita normal, com a militância política tradicional etc. Estamos num período de rupturas e não são os militantes que faltam, ainda que sem causa.

E é nesse sentido que, na minha opinião, o Encontro ficou muito aquém de suas possibilidades, ou pelo menos do meu desejo. Onde estavam todas essas populações, que tipo de prática estão tendo? Em que direção caminha o desejo? A boa prática nem sempre é somente a do outro. Acredito sinceramente que existe atualmente espaço suficiente no Brasil para que as iniciativas marginalizadas pelo sistema oficial se desenvolvam e construam seu espaço de encontro. Que se construa finalmente um território diferente, que coexista pacificamente ao lado de tantos outros territórios já há muito demarcados. Mas, para tanto, precisamos lançar-nos num trabalho eficiente.

Por outro lado, caso a função do Encontro tenha sido somente a de possibilitar uma troca limitada de experiências, alguns sonhos e práticas de vida, então por que realizar um encontro em nome da Rede?

Se conseguirmos articular melhor nossas experiências alternativas, quem sabe o próximo Encontro da Rede, no Brasil, possa ser mais rico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Mar 1984
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