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E SE A GESTÃO ENTRAR NO CANIL?

O MANIFESTO DAS ESPÉCIES COMPANHEIRAS: CACHORROS, PESSOAS E ALTERIDADE SIGNIFICATIVA. Haraway, Donna. Moreira, Pê. Silva e Silva, Fernando. Editora Bazar do Tempo, 2021. 184 p

O que acontece quando eu toco minha cachorra? Que mundos se moveram para que eu, Letícia, mulher branca de classe média, professora universitária, esteja agora em contato com Sissi, canina, fêmea, vira-lata de pelagem longa e acinzentada? Quando eu a toco, o que está em jogo é apenas um encontro fortuito ou uma imensa história que possibilitou as condições desse toque? O que significa e o que produz esse encontro entre nossos organismos, verdadeiras ecologias conectadas nessa longa história de coexistência entre nossas espécies1 1 Sugiro adicionalmente outra leitura da mesma autora, na qual me inspiro para as questões que apresento aqui, também recentemente traduzida para o português: Haraway, D. J. (2022). Quando as espécies se encontram. Editora Ubu. ?

As perguntas que abrem esta resenha até parecem triviais, mas podem ser complexamente problematizadas à luz da obra da filósofa e bióloga Donna Haraway. Para a pensadora estadunidense, um toque como esse trata de uma cadeia ininterrupta de coexistência e codependência que nos conta uma história de coabitação, coevolução e socialidade interespecífica encarnada. Quando eu toco Sissi, toco a história da evolução entre humanos e cachorros, uma história mundana que é contada nos livros de Biologia e de História, mas também nos nossos genes. Tanto eu quanto Sissi somos seres particulares e situados, herdeiras de encontros e desencontros trágicos e felizes, produtos da história de constituição das espécies, de transformações econômicas, sociais, entre muitas histórias e estruturas marcadas por “tons coloniais, tingidas racialmente, infundidas sexualmente e saturadas de classe” (Haraway, 2021, p. 78). Nessas transformações, histórias e estruturas, acrescento, muitas organizações estiveram e estão presentes – das tecnologias modernas de criação de sujeitos e objetos de “raça pura” à produção de uma cultura da mercadoria que fabrica cotidianamente a chamada “indústria pet” (cujos produtos comercializados, como se sabe, incluem não apenas toda sorte de bens e serviços, mas as próprias vidas dos seres classificados como tal), passando pelos aparatos governamentais de saúde e higiene, bem como pelas práticas de resgate, adoção e trabalho humano-animal em mundos urbanos e rurais.

Estamos falando de importantes pontos de partida para pensarmos o projeto teórico, ético e político de Donna Haraway. Este manifesto, publicado originalmente em inglês no ano de 2003, ganha finalmente uma versão traduzida no Brasil que, além das cinco seções que compõem o livro, conta com materiais extras: uma entrevista da autora ao sociólogo Nicholas Gane, breves escritos recentes de Haraway que revisitam reflexões a partir de ideias desenvolvidas em obras posteriores e um posfácio elaborado pelo filósofo Fernando Silva e Silva. Com essa obra, estudiosos do campo da Gestão e das Organizações podem refletir não apenas sobre os complexos emaranhamentos multiespécies nas práticas organizativas que envolvem humanos e cães, mas também sobre a possibilidade da produção de processos de gestão que desafiem noções postas, como a separação ontológica entre sociedade (humana) e natureza, entre humanos e outras existências no planeta.

Por meio da noção de espécies companheiras, Haraway (2021) enfatiza os emaranhados de signo e carne formados a partir de relações de coexistência, colaboração e codomesticação que produzem possibilidades de existências. No livro, a autora mescla desenvolvimentos conceituais com narração de histórias que evidenciam seu pensamento relacional e nos permitem perceber que essas relações estão na mais frugal ação de brincar com nosso cão, mas também estão na composição química dos oceanos e da atmosfera terrestre, no (des)arranjo do clima de nosso planeta, nos processos de digestão em nossos corpos e, como os tempos atuais nos podem levar a pensar, também nas pandemias e na biossegurança. Produzidas mutuamente por meio de relações que nem sempre são harmoniosas, espécies companheiras, sejam elas animais, vegetais, fungos, bactérias, vírus, entre tantas outras, estão, de modo amigável ou não, material e semioticamente implicadas com outras existências.

Para essa discussão, é fundamental a proposição da pensadora, que, ao trabalhar com a noção de naturezas-culturas emergentes, provoca-nos a romper com cisões supostamente preexistentes, buscando compreender natureza e cultura como categorias provisórias e locais, ainda que com potentes consequências. Para isso, apoia-se no trabalho de profissionais e pesquisadores de diversas áreas, entre os quais destaco as antropólogas Marilyn Strathern e Anna Tsing e a bióloga Lynn Margulis. Dessa última, Haraway compõe com a vigorosa noção de simbiogênese, revolucionária na Biologia evolutiva por permitir colocar a simbiose, e não a competição, como o grande motor da evolução2 1 Additionally, I would suggest another reading by the same author, which inspired me on the ideas presented here, also recently translated into Portuguese: Haraway, D. J. (2022). Quando as espécies se encontram. Editora Ubu. .

Assim, tendo na conexão, no companheirismo e na relação o principal objeto e foco, a autora propõe que pensemos com espécies companheiras, chamando a atenção do leitorado para o devir conjunto que permite múltiplas relações multiespécies. Trata-se de um caminho instigante para começarmos a oferecer respostas a um pensar e fazer organizacional que não considere espécies companheiras recursos ou obstáculos à gestão (Labatut et al., 2016Labatut, J., Munro, I., & Desmond, J. (2016). Animals and organizations. Organization, 23(3), 315-329. https://doi.org/10.1177/1350508416629967
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), mas partes importantes de uma comunidade com a qual compartilhamos o planeta e produzimos mundos, o que reforça a importância de revermos o antropocentrismo inerente às relações organizadas com o que convencionamos chamar natureza (Ergene et al., 2018Ergene, S., Calás, M. B., & Smircich, L. (2018). Ecologies of sustainable concerns: Organization theorizing for the Anthropocene. Gender, Work & Organization, 25(3), 222-245. https://doi.org/10.1111/gwao.12189
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).

As histórias com espécies companheiras de Haraway tomam como ponto de partida a “cachorrolândia”, mas nos provocam sobre a complexidade dos legados multiespécies que herdamos. Seu chamado a habitar o mundo com atenção e cuidado exige responsabilidade mútua e disposição a sermos perturbados pela curiosidade, daí a importância de pensarmos práticas de cuidado e de conhecimento como densamente emaranhadas. Por isso, me parece fazer sentido neste ponto perguntar: O que pode a gestão aprender se “entrar no canil”? Com essa pergunta, acredito que podemos refletir, a partir desta obra, sobre as possibilidades de pensarmos e produzirmos saberes e fazeres organizacionais mundanos, não apenas preocupados com as questões concretas que nos atravessam nas catástrofes e urgências do Antropoceno, mas também consequentes e inseridos no mundo.

A partir dessas reflexões, uma contribuição mais imediata do livro é, possivelmente, destinada a saberes e fazeres produzidos em torno das relações organizadas entre humanos e outros animais. Afinal, eles estão presentes, vivos ou mortos, ao longo de nossas cadeias de produção alimentar e outros tipos de produtos de origem animal; nos serviços, bens, profissões e mercados emergentes em torno das relações com os chamados pets; nas organizações e negócios milionários que se apoiam no entretenimento e na espetacularização de suas existências, atividades ou desempenho, como aquários, zoológicos, rodeios, parques e esportes; nas relações de trabalho em mundos rurais (tração animal, pastoreio) e urbanos (proteção e guarda patrimonial, serviços de segurança, serviços de busca e resgate, serviços de assistência); na experimentação científica e laboratorial; na gestão territorial urbana e rural, por meio dos serviços de controle de zoonoses e biossegurança; na gestão territorial silvestre, a partir das políticas e práticas de preservação e relacionamento com espécies animais classificadas como selvagens. Esses são apenas alguns exemplos de relações entre organizações e animais; no entanto, ainda que estejam por todo lado, nossa tradição de pesquisa e prática organizacional ainda invisibiliza e silencia essas relações, não dando conta dos problemas, contradições e ambiguidades de ocultarmos os animais ou de os colocarmos numa condição de meros objetos da prática organizativa. E é fundamental que, como teóricos e profissionais da Gestão, possamos constantemente, e conscientemente, perguntarmo-nos: Quais tipos de práticas organizativas (de exploração, de trabalho conjunto etc.) com animais queremos seguir produzindo e quais queremos romper? Que mundos essas práticas produzem e que seres (humanos e não humanos) essas práticas agridem ou beneficiam?

Mais adiante, é possível pensarmos outra contribuição a partir da obra e das reflexões provocadas em sua leitura. Ela permite que a aproveitemos para examinar nossas relações organizadas não apenas com os animais com quem compartilhamos o planeta, mas também com outras tantas espécies não animais que estão conosco neste caminho, e que inclusive produzem e organizam diferentes ecossistemas e que compõem aquilo que entendemos como ambientes. Pensar em espécies companheiras nos provoca a “desantropocentrar” as relações organizadas com o que, numa cosmovisão herdeira da modernidade ocidental, convencionamos chamar natureza. Isso significa que é um possível caminho para desafiarmos a forma como tratamos as chamadas “questões ambientais” ou a própria ideia de sustentabilidade na Administração. Tradicionalmente, nosso campo enfatiza, em suas análises e teorizações, sistemas baseados em categorias unitárias preexistentes e automotivadas (a organização, a sociedade, a natureza) como domínios separados e opostos, entendidas como existências independentes que, no máximo, impactam uma à outra (Fantinel, 2021Fantinel, L. D. (2021). Viver e organizar multiespécies: Um convite à Administração para seguir com o incômodo. XLV Encontro da Anpad. Evento online.). Essa visão dualista, ao colocar a natureza como objeto homogêneo, inerte e exterior à ação humana (seja numa visão que defende a proteção a um pretenso, inato e abstrato “ambiente natural”, seja numa visão extrativista que concebe a natureza como um conjunto de recursos a serem explorados), nos desloca em relação a ela, como se não fôssemos, nós mesmos e nossas expressões e dinâmicas, natureza, e dificulta um pensar e fazer organizacional que não coloque o humano no centro da prática organizativa, mas sim em teia com outras formas de vida e existência.

A gestão entrar no canil implica, portanto, um chamado à ação e à organização para e com espécies companheiras, visando à sobrevivência terrestre. Assim, o livro nos possibilita abrir caminhos para pensarmos teorias e modos de organizar multiespécies (Fantinel, 2020Fantinel, L. D. (2020). O organizar multiespécie da cidade. In L. A. S. Saraiva & A. S. R. Ipiranga (Eds.), História, práticas sociais e gestão das/nas cidades. Barlavento. P. 297-344.) que conectem existências para a produção de mundos em que possamos seguir juntos, viver e morrer bem.

  • 1
    Sugiro adicionalmente outra leitura da mesma autora, na qual me inspiro para as questões que apresento aqui, também recentemente traduzida para o português: Haraway, D. J. (2022). Quando as espécies se encontram. Editora Ubu.
  • 2
    A referência para o texto seminal da autora, cuja teoria demorou anos para ser aceita na Biologia por ir contra as correntes hegemônicas de seu campo, é a seguinte: Sagan, L. (1967). On the origin of mitosing cells. Journal of Theoretical Biology, 14, 225-274. O sobrenome encontra-se diferente porque à época a cientista assinava com o nome de seu primeiro marido.

REFERÊNCIAS

  • Ergene, S., Calás, M. B., & Smircich, L. (2018). Ecologies of sustainable concerns: Organization theorizing for the Anthropocene. Gender, Work & Organization, 25(3), 222-245. https://doi.org/10.1111/gwao.12189
    » https://doi.org/10.1111/gwao.12189
  • Fantinel, L. D. (2020). O organizar multiespécie da cidade. In L. A. S. Saraiva & A. S. R. Ipiranga (Eds.), História, práticas sociais e gestão das/nas cidades Barlavento. P. 297-344.
  • Fantinel, L. D. (2021). Viver e organizar multiespécies: Um convite à Administração para seguir com o incômodo. XLV Encontro da Anpad. Evento online.
  • Labatut, J., Munro, I., & Desmond, J. (2016). Animals and organizations. Organization, 23(3), 315-329. https://doi.org/10.1177/1350508416629967
    » https://doi.org/10.1177/1350508416629967

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023
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