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O estrangeiro e o novo grupo

PENSATA

IProfessora da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getulio Vargas - São Paulo - SP, Brasil. maria.ester@fgv.br

IIProfessor do Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social, Unviversidade Federal da Bahia - Salvador - BA, Brasil. mdantas@atarde.com.br

Seu Cristo é judeu. Seu carro é japonês. Sua pizza é italiana. Sua democracia, grega. Seu café, brasileiro. Seu feriado, turco. Seus algarismos, arábicos. Suas letras, latinas. Só o seu vizinho é estrangeiro.

Cartaz nas ruas de Berlim (1994). Extraído de.Identidade, de Z. Bauman (Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p. 33).Existe uma movimentação intensa de mercadorias, serviços, informações, capitais e pessoas pelo planeta, acelerada pela tendência a uma economia cada vez mais globalizada e interdependente. A diversidade e a complexidade do mundo são assumidas e apropriadas pelas empresas globais, por meio de processos como fusões e aquisições, parcerias e alianças ou relocalização (outsource), que expandem a convivência de pessoas de diferentes origens, tanto no mundo do trabalho como no mundo social mais amplo.

Parece-nos evidente que os intercâmbios econômicos são bem-recebidos e mesmo estimulados pelos governos receptores, que podem capitalizar os efeitos de novas instalações, criação de empregos e, eventualmente, geração de impostos, porém, não raro, se esquecem de que, por trás de capitais, bens, mercadorias e empresas, existem pessoas, e não apenas números e coisas. Ora, a circulação de pessoas de um país para o outro parece não ser tratada como parte da mesma globalização e recebe a atenção dos governos apenas no que diz respeito a leis cada vez mais restritivas de permanência e aprovação de critérios de imigração qualificada. É certo que a presença estrangeira traz implicações sociais, econômicas, políticas e culturais, as quais desafiam os governos contemporâneos e expõem sentimentos identitários de indivíduos, grupos e sociedades, que vivem o paradoxo dos novos tempos: ser singular em um mundo plural ou ser local em um mundo global.

A cobertura que jornais diários fazem sobre estrangeiros e os desafios e dilemas provocados pelos processos migratórios, particularmente aqueles gerados por grupos de refugiados, forjam um debate sobre imigração concentrado primordialmente em efeitos sociais e econômicos indesejados, no desenho de novos mecanismos legais de controle de estrangeiros e nas novas condições para fechamento de fronteiras. Cenários de crise econômica aprofundam a concorrência por postos de trabalho em meio à fuga de capitais e debandada de empresas para destinos com leis trabalhistas e tributárias mais generosas. Do ponto de vista político, quanto mais fortes são os efeitos negativos da economia, mais conservador se torna o eleitorado disputado pelos partidos políticos, que, ao mesmo tempo que negociam políticas públicas para facilitar a integração de imigrantes à cultura local, tentam definir o que fazer para evitar revolta dos filhos de imigrantes que vivem nas periferias das grandes cidades.

Os exilados do passado não foram reatualizados nos refugiados de hoje, seja pelo caráter massivo dos fluxos, seja pelas dificuldades geradas pela crise econômica, seja pelas reações sociais contrárias ao abrigo humanitário no próprio território. Humanitarismo, desse ponto de vista, é algo que deve ser feito na casa do necessitado. Como diz Le Pen, líder da extrema-direita francesa: "Gosto muito dos estrangeiros, mas em seus próprios países".

A área de Administração, apesar de responsável pelos processos organizacionais globais, tem se abstido nessa discussão. Talvez porque capitais, bens e informações, traduzíveis em racionalidades econômicas e financeiras, sejam mais facilmente compreensíveis do que pessoas, sempre problemáticas. As empresas precisam de mercados, informações, conhecimentos, habilidades e competência gerencial, o que se traduz em pessoas que compram e vendem, produzem e analisam dados, desenvolvem conceitos, comportamentos e relações. Em um cenário cada vez mais complexo, profissionais diversos culturalmente podem formar equipes que geram melhores resultados e dão respostas a problemas de maneira mais criativa. Dependendo de como se lida com essa diversidade, a organização pode elevar desempenhos, mas também pode comprometê-los.

Equipes diversificadas culturalmente têm sido formadas por executivos ou profissionais especializados, geralmente expatriados, em número relativamente reduzido. No caso de compra ou instalação de unidades em outros países, empresas envolvem-se efetivamente com os problemas locais, como mão de obra, leis e costumes. Como dificilmente encontraremos em uma grande empresa apenas pessoas oriundas da cultura local, a presença estrangeira é uma realidade em distintos espaços organizacionais e esferas hierárquicas, com potencial de interagir de modo mais ou menos produtivo, seja como concorrente, fornecedor, parceiro, comprador, funcionário, chefe ou proprietário.

Parece-nos evidente que o olhar sobre o estrangeiro será cada vez mais contundente e importante na vida social e organizacional futura. Salvo pesquisas específicas sobre expatriação, são raras no Brasil (e fora) análises que considerem o estrangeiro no espaço organizacional. Nosso objetivo é, portanto, compreender melhor algumas figuras assumidas pela condição de estrangeiro e como ele enfrenta os desafios em um novo grupo, tendo como pano de fundo a organização do trabalho no mundo contemporâneo, pontuando aspectos socioeconômicos, culturais e políticos envolvidos neste debate.

FIGURAS EMBLEMÁTICAS DA CONDIÇÃO DE ESTRANGEIRO

O estrangeiro é uma categoria genérica, frequentemente recebida com reticências por quem é assim classificado, pois ela ignora as suas multiplicidades, diversidades e singularidades. Não existe um estrangeiro no sentido absoluto. A própria palavra tem várias acepções que o mundo contemporâneo favorece: exilados, refugiados, turistas, profissionais, professores e estudantes, nômades modernos (globe-trotters), imigrantes voluntários, cônjuges portadores de culturas diferentes.

O estrangeiro é sempre um estrangeiro em relação aos outros, mas - como diz Kristeva (1988) - ele também pode sentir-se como um estrangeiro de si mesmo, dependendo de como aceita sua condição, vive sua experiência e articula o mundo objetivo e o subjetivo na sua biografia. Acreditamos que a experiência de ser estrangeiro varia não apenas de pessoa para pessoa como também em função das condições e das razões que motivaram sua inserção num território "estranho".

A descoberta do outro leva a uma relativização não apenas das verdades mas também dos valores de filiação, pois é uma exposição ao risco do outro, aos seus modos, à sua língua e ao seu espelho. Um estrangeiro começa a se reconhecer pelo que ele não é, mas aos poucos ele sente a necessidade de apresentar-se, dizer de onde veio e o que faz ali. Aqui cabe o registro da importância de se ter os documentos em dia, pois estes têm uma significação imaginária que ultrapassa a questão da legalidade e do acesso aos direitos a ela associados, proporcionando também o sentimento de quem foi reconhecido pelo outro, um atestado de existência, e não um mero caso administrativo.

Escolhemos três figuras estrangeiras - o exilado, o imigrante e o expatriado - presentes nas sociedades modernas e, com base nessas figuras, faremos uma breve análise do sentido dessas experiências para os próprios sujeitos e para quem os acolhe, entendendo que elas podem variar de acordo com a época, os locais escolhidos, as leis vigentes e o espírito dos tempos.

O exilado

O exilado é alguém que foi obrigado a deixar o seu país para salvar a sua vida, a de sua família ou para fugir da prisão, sem muita possibilidade de retorno. A imposição para mudar de lugar é uma condição formal em que não cabe negociação. O exílio é uma forma de aniquilamento psíquico ligado ao desaparecimento de todos os laços de filiação social, nacional e cultural que sustentam a identidade. O abandono do país natal, nesse caso, confronta inevitavelmente o sujeito com a perda sob diferentes formas. Em face dessas perdas e da separação, o exilado deve fazer um trabalho psíquico que representa certas características do que Freud (1968) chamou de um "trabalho de luto". O estatuto da perda é complexo, pois o lugar de origem não desapareceu, mas o indivíduo desapareceu do país.

No exílio, além da perda, é a própria identidade que é questionada, a ponto de engendrar no sujeito um processo que merece o nome de "des-identificação", um movimento de "des-ilusão", de distanciamento subjetivo, ao qual não faltarão emoções contraditórias, em particular porque o exílio provoca o desmoronar dos mitos referentes à filiação, desvendando o seu caráter ilusório. Para Freud, o luto é regularmente a reação à perda de uma pessoa amada ou de uma abstração que toma o seu lugar, como a pátria, a liberdade, um ideal. No exílio, a natureza da perda é essencial ao estudo de sua problemática. O país não desapareceu, e isso gera um paradoxo: se o exilado é o sujeito da perda da terra natal, ele também é o objeto perdido para os seus, ou seja, ele se encontra no lugar do morto imaginário.

Não é raro o estrangeiro, depois de passada a excitação do novo e das descobertas no local em que foi acolhido, ver defeitos nos nativos, criticar a sua maneira de comportar-se, fazer comparações injustas alimentadas pela perda e pela idealização da terra natal, que geralmente aparecerá como mais bela, mais brilhante, mais calorosa. Alguns sucumbem à tentação de se fechar em círculos de compatriotas para demonizar a terra que os recebe, criticar os mínimos detalhes e, assim, vencer os seus próprios medos e angústias. Constroem o mito do retorno.

Processos políticos como ditaduras, guerras, "des-colonização", lutas territoriais e reconhecimento de independência de países foram responsáveis pela concessão de asilos políticos ao longo do século passado. Atualmente, a essas razões, somam-se as perseguições religiosas, ameaças de genocídios, censuras à opinião política e mecanismos culturais de aniquilamento físico e psíquico de minorias. Esses estrangeiros, tidos mais como refugiados que como exilados, geralmente não despertam a mesma solidariedade de outros tempos, em boa medida em virtude de seu caráter massivo. A ONU tem enfrentado desafios cada vez mais crescentes para minimizar os efeitos desumanos dessas transformações, pois os campos de refugiados são não lugares, ou seja, espaços esquecidos, não vistos, vividos como parêntesis sem fim. A internet conecta o mundo e consegue mobilizar esforços gigantescos para ajuda humanitária, mas, junto com o pão, não vem o respeito nem a dignidade com que o exilado deve ser tratado.

No mundo organizacional, é possível entender o profissional expatriado como um exilado quando a expatriação não foi desejada, não foi negociada, não foi objeto de preparação do expatriado e de sua família. Os estudos sobre expatriação mostram que muitas empresas não aceitam a recusa de profissionais para expatriar-se sem retaliação (CERDIN, 2002). Essas experiências são, em virtude da obrigação de aceitar a missão, da dificuldade em expressar seus sentimentos e da impossibilidade de voltar antes do prazo final, vividas como muito penosas e sentidas como um verdadeiro exílio (FREITAS, 2005). Estudos apontam que expatriados de origem japonesa percebem que suas carreiras ficam prejudicadas quando se afastam das matrizes, portanto a expatriação, além de ser um exílio, penaliza-os quando retornam (KUBO, 2011). São exilados que não podem falhar, não têm tempo nem interesse na cultura local. Sua convivência com os nativos é restrita ao necessário para desempenho de suas tarefas; nesse sentido, nenhuma aprendizagem intercultural é gerada para benefício próprio ou da organização.

O imigrante

Diferente do exilado, o imigrante é alguém que escolheu viver em local diferente do de sua origem, sem impedimentos para retorno. As razões podem ser as mais distintas, desde o desejo de aventura e vivências do desconhecido até razões pragmáticas como sobrevivência econômica ou construir uma vida melhor.

Belfort (2007) nos lembra o estudo da natureza do homem em Kant, com base no caso do estrangeiro e do seu direito de posse do solo, segundo o qual um habitante da Terra só pode ser pensado como parte de um todo, originando uma comunidade de solo, ainda que não uma comunidade jurídica de posse. Ou seja, existe em Kant um direito de posse que transcende as fronteiras dos Estados, uma vez que todo homem tem direito a um lugar na Terra e a se apresentar numa sociedade sem ser recebido de maneira hostil. No entanto, acontecimentos recentes na história nos mostram que essa visão está cada vez mais longe da vida quotidiana, que denuncia o crescimento de sentimentos contra o estrangeiro, fazendo renascer velhos fantasmas de exclusão e aniquilamento do outro.

A migração de pessoas, diferente dos intercâmbios econômicos, aparece cada vez mais como um fator desagregador e problemático nas sociedades modernas, que traz à tona contradições do capitalismo globalizado, ao mesmo tempo que é vista como uma ameaça psíquica. Ou seja, no aspecto socioeconômico, temos o protecionismo econômico, a luta pelos empregos, o uso da infraestrutura e os benefícios sociais destinados exclusivamente aos habitantes locais, aliados ao fato de o imigrante poder ser um álibi útil aos Estados, que têm no controle do intruso uma eventual ocultação de seus interesses. Ao mesmo tempo, esse movimento intenso de pessoas desenvolve a ideia de uma "invasão possível", que se dá tanto no plano social como no psíquico. Como nos adverte Enriquez (2008), o local percebe o estrangeiro como uma intrusão no seu próprio psiquismo, fazendo emergir o medo de ser obrigado a mudar quem é para viver de modo diferente com pessoas de outras culturas, religiões, hábitos, línguas e costumes. Existe, ainda, um retorno às raízes culturais, uma revalorização das identidades do local. É como se, no meio do movimento de globalização, houvesse um retorno da importância do local e do regional, que, se fortalece vínculos identitários, também pode engendrar mecanismos de defesa em forma de racismo, discriminação, indiferença e negação do outro.

Em Simmel (1994), o estrangeiro é visto como uma forma específica de interação social, que reúne o sair/afastar e o ficar/permanecer. A proximidade e a distância são constituintes do estrangeiro. Acrescentamos que proximidade e distância são também presentes no habitante local, na forma como ele interage com o estrangeiro em um determinado momento histórico, pois as mudanças sociais e culturais derivadas da presença estrangeira são interpretadas com as lentes do tempo, das leis vigentes, dos medos e dos fantasmas transformados ou não em realidade.

Muitos países estão definindo novas regras para aceitação e permanência de imigrantes, sendo a imigração qualificada um dos pontos-chave. Se, por um lado, a seletividade considera os legítimos interesses do país-receptor em relação aos conhecimentos e especializações que lhe faltam no mercado, por outro lado, a fuga de cérebros dos países de origem desses migrantes coloca novos desafios ao desenvolvimento futuro destes, uma vez que a ciência e tecnologia são pedras fundamentais do novo modelo de crescimento. O esquecimento de que os trabalhadores convidados a imigrar têm ou terão famílias ou que eles não voltarão para seus lugares de origem gera o ovo da serpente para futuras intolerâncias em tempos de vacas magras.

O expatriado

O expatriado é o estrangeiro que chega ao local de destino com um contrato de trabalho na mão para trabalhar na unidade da empresa à qual já está ligado. O próprio fato de a expatriação ter uma data-limite para ser concluída minimiza eventuais reações negativas, pois os profissionais de grandes empresas sabem que existem muitas razões para que as organizações optem por uma expatriação, sendo as mais comuns a complementaridade de conhecimentos na equipe para executar novos projetos, a gestão da inovação e o controle ou o reforço da cultura organizacional.

O expatriado deve fazer prova de alta competência profissional, justificando a sua ida para a equipe, bem como demonstrar competência adaptativa à cultura local, reorganizando as suas experiências, construindo o seu quotidiano com a sua família, controlando as suas dúvidas e ansiedades, dominando o código local nas suas práticas e nas suas múltiplas fontes de socialização. Ele é exposto constantemente ao confronto com o que já está estabelecido, com o que já foi feito, com a incerteza e ambiguidade, em um esforço permanente de encontro com os seus limites e a sua capacidade de aprender sempre. A adaptação quotidiana é entendida como o poder de o estrangeiro dar respostas adequadas às situações que se lhe apresentam, sem experimentar fortes desconfortos ou desorientações, ou seja, sem que ele seja desestabilizado diante do sofrimento imposto pela perda de suas referências e de seus saberes práticos (FREITAS, 2005).

Como os aspectos econômicos tendem a ser predominantes na vida moderna, o expatriado parece ser um tipo de estrangeiro que transita com maior facilidade que outros, pois a sua presença não é tida como uma invasão, e sim uma parceria necessária, quando os trabalhadores locais não têm as qualificações exigidas para o trabalho por ele assumido; ele é visto como alguém que aporta no grupo com novos conhecimentos e novas perspectivas, favorecendo o desenvolvimento e o desempenho da organização local. Ainda assim, é necessário que as empresas estimulem as interações culturais entre o estrangeiro e os locais e facilitem o processo de sua adaptação. Quando o expatriado apenas representa o "olho do dono" ou o controle do comprador, ele poderá ser objeto de rejeição do grupo interno, ainda que o país de destino o considere como um imigrante qualificado.

O expatriado torna-se cada vez mais conhecido como o "cidadão do mundo". No entanto, ainda que o título seja neutro ou positivo, compreendemos que não existe um ser humano destituído de sua própria cultura. A denominação diz respeito a um indivíduo que desenvolve a capacidade de se adaptar rapidamente à cultura alheia naquilo que é essencial, de lidar com o desconhecido com menores pressões psíquicas ou de responder às exigências do novo quotidiano sem grandes desconfortos. O aprendizado instrumental do mundo do trabalho ajuda ao expatriado a lidar com mudanças frequentes sem maiores danos a sua identidade.

IMIGRAÇÃO SELETIVA: UM SONHO POSSÍVEL?

A ideia de imigração seletiva, muito discutida na Europa, como uma forma de se beneficiar da imigração com o aumento do contingente de pessoal qualificado ou superqualificado para responder às crescentes demandas de inovação tecnológica nos setores de ponta, parece fadada ao fracasso. Isso porque a avaliação de que os países da Europa Ocidental são os mais desejados por pessoas do mundo inteiro, que pretendem emigrar de seus países de origem em busca de melhores oportunidades, é uma realidade passada. Os maiores exportadores, historicamente, de população qualificada, os países em desenvolvimento ou os países emergentes, estão vivendo uma nova etapa de desenvolvimento de suas economias e, muito possivelmente, frustrarão essas expectativas.

Apesar de somente na crise do final de 2008 o mundo ter-se dado conta da força da economia de países que formam o BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China), a verdade é que, há quase duas décadas, esses países crescem mais do que a média mundial e, muitas vezes, acima das médias europeias e americanas, pois têm desenvolvido enormemente o seu mercado interno e seu grau de competitividade internacional, além de conquistarem um crescimento efetivo em comparação com os "velhos ricos". O Brasil, por exemplo, evoluiu recentemente de 12.a para 7.a economia do mundo. Com isso, dificilmente a mão de obra qualificada desses países, que têm tido taxas crescentes de emprego e taxas comparativamente mais baixas de desemprego, estaria seduzida pela emigração voluntária. Hoje, não faz sentido que profissionais qualificados com salários altos busquem empregos em países ricos em fase de longa estagnação econômica, com altas taxas de desemprego e minguada oferta de postos de trabalho. .

Assim, enquanto a Europa acredita que o seu canto de sereia vai atrair esse contingente de imigrantes qualificados, que não ameaçam empregos dos locais e ainda ajudariam a dinamizar os setores mais inovadores da economia, os países emergentes continuam crescentes e exportando cada vez menos trabalhadores para os países centrais. Resta à Europa e aos Estados Unidos receber os que emigram por razões não econômicas, como educação dos filhos, problemas com segurança, indignação com as desigualdades sociais ou comportamento corrupto dos governos e dos políticos de seus países de origem. Ou, ainda, os "aventureiros", ou seja, aqueles que, mesmo podendo usufruir da situação econômica favorável nos seus países de origem, não têm a qualificação suficiente para concorrer às vagas de trabalho mais bem remuneradas e buscam oportunidades nos países ricos. No caso desses últimos, não raro, eles precisarão matar um leão por dia para sobreviver, muitas vezes inventando um personagem bem-sucedido para suas famílias, a quem costumam ajudar financeiramente.

Enquanto os países de enriquecimento mais recente oferecem oportunidade de trabalho de amplo espectro - desde trabalho de baixa qualificação, como construção civil e empregos domésticos, até oportunidades de funções complexas de engenharia e alta tecnologia - as levas de emigrantes para os países ricos tendem a se restringir cada vez mais às populações das regiões mais pobres do mundo ou aos países de regimes políticos mais autoritários. Como atestam os problemas que explodem atualmente na Europa, o ingresso de grande contingente de população do norte da África e do Oriente Médio é, em sua maioria, pouco qualificado profissionalmente.

São divulgados diariamente na imprensa internacional estudos e prospecção da economia e dos mercados que mostram a necessidade de os países ricos europeus receberem algumas dezenas de milhões de imigrantes até o ano 2050, sob pena de suas economias encolherem com o envelhecimento e redução de suas populações atuais. Entretanto, esses mesmos países não conseguem resolver os problemas econômicos, sociais e políticos causados pela incapacidade de absorver social, cultural e economicamente os imigrantes, como pode ser observado nos casos da Itália, com os albaneses e húngaros, da França, com os árabes do norte da África, da Inglaterra ,com os indianos e paquistaneses, da Alemanha, com os turcos etc. Como resultado, temos eventos lastimáveis como as recentes crises políticas na Inglaterra, com a explosão de violência dos jovens filhos de imigrantes pobres nos subúrbios de Londres, o surpreendente e violento ataque terrorista de um direitista norueguês na capital do país e a expulsão constante e organizada de imigrantes ilegais pela França, cuja previsão para 2011, segundo a imprensa francesa, é de 30 mil deportados

O estrangeiro, assim, passa de um problema político periférico para uma questão central no futuro dessas democracias - e dessas economias - ocidentais. Entre a incapacidade política e cultural de promover uma verdadeira e profunda integração desses estrangeiros nas sociedades nacionais e o desejo de crer ser possível escolher a dedo quais estrangeiros interessam como imigrantes para as estratégias de crescimento de suas economias, as sociedades desenvolvidas e democráticas da Europa e, possivelmente, no futuro próximo, também os Estados Unidos patinam diante de uma crise que é complexa. Ainda que fomentada por ela, essa crise ultrapassa a economia e penetra nos valores cristalizados de sociedades conservadoras que, entretanto, se creem as mais liberais e abertas do mundo.

O ESTRANGEIRO NO NOVO GRUPO

A maneira como um estrangeiro é recebido por um novo grupo dependerá de uma série de fatores, entre os quais sublinhamos: a percepção que o grupo tem de sua utilidade, a imagem que o grupo tem sobre o seu país, as razões e as condições de sua inserção no grupo, bem como os privilégios que os membros do grupo estão dispostos a repartir. Na sua interação com o grupo, o estrangeiro pode enriquecê-lo por meio de um repertório mais diversificado de informações, conhecimentos e competências, mas também pode interagir de maneira a elevar o nível de conflitos e choques, pois a sua presença não é isenta de ambiguidades, fascínio e riscos (MÉNÉCHAL e outros, 1999). O estrangeiro é uma figura recorrente na História, assumindo as faces de conquistador, escravo, prisioneiro, soldado, missionário, aliado, comerciante ou viajante. Nos dias de hoje, a sua presença continua despertando o interesse, em particular da economia e da política. Mas qual a sua essência?

Georg Simmel (1994) nos fala, em um texto de 1908, a respeito do jogo dialético e paradoxal intrínseco à figura do estrangeiro: "ele faz o longe ficar perto e o perto ficar longe; ele é uma ponte e uma porta". O estrangeiro é alguém que se fixa no interior de um meio determinado, mas a sua posição é determinada pelo fato de que ele não faz parte desse meio desde o início e traz qualidades que não são inerentes àquele meio. Distância e proximidade estão presentes em todas as relações humanas; interpreta-se a distância como o distanciamento do perto e a estranheza como a proximidade do longe, e essa é naturalmente uma reação positiva, uma forma de interação. O estrangeiro é um elemento do grupo que inclui exterioridade e confrontação; ele faz a síntese da proximidade e da distância, essa é a posição formal que o constitui. Simmel aponta o aparecimento do estrangeiro na História como o comerciante e o comerciante como o estrangeiro. Por natureza, ele é aquele que não possui a terra, ou seja, a terra no sentido de substância vital que fica num ambiente espacial ou social. A objetividade do estrangeiro significa distância e não tomar partido, mas também essa combinação particular feita de proximidade, distância, indiferença e engajamento.

O estrangeiro nos é próximo na medida em que sentimos nele e em nós certas similaridades do tipo nacional, social, profissional e, mais genericamente, como um ser humano. As características individuais do estrangeiro (de seu país, de sua cidade, de sua etnia, de sua cultura) não são percebidas como individuais, mas à sua origem estrangeira. Ele é visto e sentido como estrangeiro de um tipo determinado. No entanto, para o estrangeiro que se insere em um grupo, os demais não são simples executantes de funções típicas anônimas, mas indivíduos; ele é inclinado a tomar por caráter individual o que é típico, edificando o mundo social feito de um pseudoanonimato, uma pseudointimidade e pseudotipicalidade, diz Schütz (2003).

Mas qual é a "situação típica" de um estrangeiro que se esforça para interpretar o modelo cultural de um novo grupo social e de se orientar no seu próprio? Schütz busca responder essa questão em seu ensaio, entendendo como estrangeiro um adulto que tenta ser aceito ou pelo menos tolerado num novo grupo. Reconhece que, no mundo quotidiano, o homem não tem um conhecimento homogêneo, mas incoerente, claro apenas parcialmente e não isento de contradições, no entanto isso lhe parece coerente, consistente e claro o suficiente para ele compreender e ser compreendido no seu grupo. Todo grupo tem um saber de receitas, uma percepção geral e um preceito de ação, que podem ser chamados de "esquema de interpretação".

Esse saber não é compartilhado pelo estrangeiro, ele tem outras receitas e outro esquema de interpretação, ele não tem a história particular dos demais, porém outra história que faz a sua biografia; ele é um recém-chegado no grupo que, no melhor dos casos, está disposto a compartilhar consigo o presente e o futuro, mas ele está excluído do passado. Nas condições de exilado, imigrante ou expatriado, o estrangeiro confronta-se com essas dificuldades porque ele precisa se integrar e interagir de maneira prolongada com os habitantes locais; ele vive a estranheza e sente-se incomodado por ela, visto que precisa fazer parte de um novo grupo e ser aceito por este, diferente do turista, cuja preocupação é com o próprio prazer e interage de maneira superficial com os locais. Esse estrangeiro descobre o outro e a si mesmo, num verdadeiro exercício de alteridade. A estranheza e a familiaridade representam categorias gerais de nossa interpretação do mundo, definindo o novo, buscando entender o sentido, compatibilizando o novo com o que já conhecemos e tentando amarrar uma coerência.

A língua é um dos maiores referentes culturais e vai se revelar um grande desafio para o estrangeiro, ainda que ele domine bem a sua gramática; porém, ela não é apenas gramática e regras de que se tem um conhecimento passivo, pois o estrangeiro defronta-se imediatamente com a necessidade de transformar seus pensamentos em atos de interação. Mudar-se para outro país sem conhecer o seu idioma é um enorme desafio: fica-se mudo e a língua natal serve apenas para falar consigo mesmo e dar refúgio aos pensamentos, vive-se o choque de perceber que a sua língua é inútil! A língua dos outros a ignora, é difícil apreender algum significado, formar algo inteligível, é como se ela fosse apenas um barulho. Não falar a língua local torna o estrangeiro não estrangeiro apenas para os outros, mas estrangeiro para si mesmo, porque ele se desestabiliza, tem dificuldades em se reconhecer naquela impotência.

O mundo contemporâneo consagrou o idioma inglês como a língua oficial do turismo e dos negócios. É evidente que essa definição minimiza vários problemas derivados da abundância de línguas faladas no mundo (em torno de 6 mil), mas também é fato que um idioma é mais que um mero instrumento de comunicação, ele é - acima de tudo - um meio de socialização e de construção de pensamento. Conquanto os turistas rodem o mundo com um dicionário na mão, algumas frases instrumentais e uma enorme capacidade de sobreviver às diferenças culturais, o estrangeiro que se instala em outro país precisa dominar o idioma em que doravante viverá. No mundo do trabalho, especialmente o qualificado, esse domínio é pré-requisito ou deve ser resolvido em pouco tempo, pois essa lacuna coloca sérios problemas de adaptação e de comunicação no grupo, exigindo um enorme esforço de coordenação e de negociação.

CONCLUSÕES

À medida que observamos um estreitamento do mundo, por meio das facilidades de comunicações e transportes, verificamos que as interações culturais são uma característica cada vez mais marcante da vida contemporânea e que elas tendem a se acentuar em um mundo que se integra, dissolve fronteiras, acelera processos de difusão de informações e valores culturais e nos confronta com uma verdade delicada: somos todos diversos; somos todos estrangeiros. O estrangeiro pode ser um elemento integrador, demolidor, mediador, colaborador ou destruidor da ordem social ou organizacional existente ou desejada.

As empresas são hoje o motor-chave do processo de globalização e estão no centro da descoberta de novos mercados, novos processos, novos materiais, novos conhecimentos e novas experiências que envolvem pessoas com diferentes hábitos, costumes, crenças, saberes, necessidades, desejos e competências. Pessoas, com múltiplas filiações e vínculos identitários, ligam-se a um projeto organizacional por razões que ultrapassam as fornecidas meramente pelo salário, pela posição e pela carreira. É cada vez mais frequente as pessoas receberem estrangeiros para trabalhar juntos e viajarem para trabalhar com outros, originando um mundo profissional mais complexo, heterogêneo, potencialmente mais criativo e também mais conflituoso.

O estrangeiro, qualquer que seja o seu status ou condição, é hoje um elemento fundamental na vida de empresas que rodam o planeta e de projetos que demandam continuação em diferentes partes do globo; é, ainda, uma presença vital em projetos de grande envergadura que necessitam da colaboração de experts. A complementaridade de conhecimentos é essencial para o processo de inovação e resolução de problemas complexos e, na medida em que o passaporte se torna o documento por excelência, ser estrangeiro ou receber estrangeiros para trabalhar é apenas decorrência de um capitalismo que também obriga empresas a viajarem.

O novo estrangeiro não é apenas uma pessoa física, mas também uma pessoa jurídica. Cada vez que uma empresa se torna nômade e muda de um país a outro, ela enfrenta a sua própria estrangeiridade, como nos mostra a nova série de TV Outsourced. Tal qual uma pessoa que chega à casa do outro, as empresas-estrangeiras também precisam ouvir do seu anfitrião qual é o comportamento desejável para evitar choques culturais desastrosos. As pesquisas futuras no campo dos estudos organizacionais interculturais poderão nos contar uma nova história. Estamos apenas no "Era uma vez..."

  • BELFORT, C. Estudo da natureza do homem em Kant a partir do caso do estrangeiro e o conceito de hospitalidade. Kant e-Prints, série 2, v. 2, n. 2, p. 127-142, 2007.
  • CERDIN, J-L. L'Expatriation Paris: D'Organisations, 2002.
  • ENRIQUEZ, E. Entrevista. Revista Organizações & Sociedade, v. 15, n. 44, p. 189-195, 2008.
  • FREITAS, M. E. Executivos brasileiros expatriados na França 2005. Monografia para professor titular, ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO DE EMPRESAS DE SÃO PAULO, FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS, São Paulo, 2005.
  • FREUD, S. Dueil et melancolie. In: FREUD, S. Métapsychologie Paris: Gallimard, 1968.
  • KRISTEVA, J. Étrangers à nous-même Paris: Gallimard, 1988.
  • KUBO, E. K. M. Ajustamento intercultural de executivos japoneses expatriados no Brasil 2011. Tese de Doutorado, ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO DE EMPRESAS DE SÃO PAULO, FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS, São Paulo, 2011.
  • MÉNÉCHAL, J. e outros. Le risque de l'étranger: soin psychique et politique. Paris: Dunod, 1999.
  • SCHÜTZ, A. L'Etranger (1944). Paris: Allia, 2003.
  • SIMMEL, G. L'Etranger dans le group (1908). Revue Tumultes, n. 5, 1994.
  • O estrangeiro e o novo grupo

    Maria Ester de FreitasI; Marcelo DantasII
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Dez 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2011
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