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Organização, trabalho e ideologia

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Pedro Roberto Jacobi

Professor titular no Departamento de Fundamentos Sociais e Jurídicos da EAESP/FGV

Bruno, Lúcia & Saccardo, Cleusa, org. Organização, trabalho e ideologia. São Paulo, Atlas, 1986.

Esta coletânea reúne um conjunto de trabalhos tendo como eixo articulador a discussão sobre a lógica que orienta o desenvolvimento tecnológico e organizacional do processo produtivo, destacando as conseqüências sociais daí advindas, além do caráter multidisciplinar, reunindo textos de professores de economia, sociologia e administração de empresas. Esta coletânea representa a ocupação de um espaço de produção intelectual ainda bastante restrito no Brasil, dada a falta de textos atualizados em torno do tema. A produção teórica é muito significativa no estrangeiro, nomeadamente na França, Inglaterra e EUA, e a carência no contexto brasileiro se verifica numa defasagem na organização do material didático dos cursos de sociologia aplicada à administração, economica do trabalho, economia política e teoria geral da administração. Neste sentido, esta coletânea resulta do interesse de alguns professores da Faculdade de Economia e Administração da PUC, em São Paulo, em evidenciar os pontos comuns existentes entre estas disciplinas. A escolha de três temas - organização, trabalho e ideologia - dada a sua abrangência, permitiu articular as diferentes contribuições a partir da reflexão em torno das transformações no processo produtivo. Este é entendido como o campo material onde se realizam duas práticas sociais contraditórias, decorrentes das características assumidas pelo desenvolvimento do sistema capitalista de produção, das lutas dos operários, e principalmente da função técnica nos processos de acumulação do capital.

O livro, dividido em quatro partes, apresenta inicialmente trabalhos que tratam da adoção das novas tecnologias baseadas na microeletrônica.

No texto "Aspectos sociais da automação no Brasil", José Ricardo Tauile trata das características básicas do processo de automação industrial com base na microeletrônica, constrastando com a automação com base na eletrornecâníca, e mostra como o processo de automação tem-se tornado muito mais abrangente. O autor aborda também as implicações sociais da automação na atual fase de transição política.

O segundo capítulo, de autoria de Rosa Maria Marques, "Os trabalhadores e as novas tecnologias" traz uma reflexão acerca das conseqüências da automação em termos de emprego, qualificação e organização do trabalho e suas diferentes interpretações, tanto no Brasil como nos países onde a difusão das novas tecnologias encontra-se em estágios mais avançados e generalizados. Assim, tornase questão da maior relevância o tema aqui tratado, na medida em que possibilita uma compreensão mais adequada das questões levantadas pelo movimento sindical internacional e pelos sindicatos brasileiros, tanto no plano ideológico quanto no plano produtivo,

A segunda parte do livro trata dos mercados de trabalho e a segmentação da classe operária. O texto de Robert Cabanes, pesquisador francês residindo atualmente no Brasil, trata das formas de segmentação e de unidade através de dois estudos de caso de empresa. A partir da análise do movimento de decomposição-recomposição, o autor interpreta como se dão as estratégias familiares, as posições no mercado de trabalho e as formas de solidariedade operária. O autor procura compreender o seu sentido ao nível biográfico e ao nível dos diferentes grupos operários, configurando assim a necessidade de se estudar a classe operária não apenas em sua qualidade de classe produtiva, mas também nas diversas folhas de sua existência social, permitindo uma ampliação da perspectiva da interpretação da vida sindical.

A terceira parte é composta de textos relativos às teorias administrativas e süa aplicabilidade em diferentes contextos sócio-históricos. O texto "Conflito e administração", de Arnaldo José M. Nogueira, visa explicitar algumas questões que geralmente não são levadas em consideração no processo de conhecimento e divulgação das chamadas teorias e práticas modernas de administração que tratam do problema do conflito na organização capitalista. O artigo de Liliana Segnini analisa criticamente o taylorismo, explicitando as suas características básicas, a sua configuração cabocla e a dinâmica da sua introdução no Brasil. O tema das novas técnicas organizacionais e sua relação com a tecnologia é abordado por Cleusa Saccardo e Helio F.C. Lino ao discorrerem sobre os Círculos de Controle de Qualidade1 1 Sobre este tema, ler o excelente artigo de autoria de Helena Hirata e Michel Freyssenet, Mudanças tecnológicas e participação dos trabalhadores: os Círculos de Controle do Qualidade no Japão Revista de Administração de Empresas. 25 (3), jul /set. 1985. e o sistema Kanban. Os autores caracterizam estas técnicas de ampla disseminação no Japão, e posteriormente introduzidas nos países capitalistas avançados e mais recentemente no Brasil, como novas formas de extorsão de mais-valia visando adequar a força de trabalho às exigências tecnológicas do processo produtivo e responder aos conflitos decorrentes da relação contraditória entre capital e trabalho. Nas críticas às novas técnicas organizacionais os autores mostram ainda como estas representam um avanço no tratamento da cooptaçâo, na medida em que a participação se dá dentro de padrões nitidamente delimitados pela empresa. Além disso, estas técnicas se utilizam das recompensas econômicas, incentivos que no taylorismo eram dirigidos aos trabalhadores individualmente.

A quarta parte desta coletânea, "Tecnologia, gestores e lutas sociais", apresenta um caráter mais teórico e é composta de três capítulos. O primeiro é do autor português João Bernardo, intitulado "A autonomia nas lutas operárias", e analisa a dialética da criação de instituições autônomas pelo movimento operário e da sua posterior integração, quando derrotadas no aparelho do capitalismo. O autor procura mostrar que as lutas operárias decorrem do cará ter contraditório quedefineas relaçõesde produção e não meramente de processos doutrinários.

Neste sentido, a recuperação das derrotas operárias pelo capitalismo corresponde a uma necessidade de reestruturação do aparelho produtivo ea um novo ciclo da mais-valia relativa, que tem implicações importantes quanto à definição das classes sociais e do aparelho político. Além disso determina, segundo o autor, novas formas de luta através das quais o proletariado desenvolve a sua autonomia com relação às instituições capitalistas. No segundo capítulo, "Gestores: a prática de uma classe no váculo de uma teoria", Lúcia Bruno reflete em torno do modelo teórico de João Bernardo acerca dos gestores, situando o no campo da crítica revolucionária. A autora destaca tratar-se de uma leitura possível, e baseia a sua interpretação a partir das formulações de autores que, situando-se no campo da prática proletária, antecederam João Bernardo na demarcação dos gestores enquanto objeto empírico de análise. Ao falar dos gestores, a autora refere-se a uma classe que, ao lado da burguesia, opõe-se ao proletariado no interior de uma relação de exploração, a parti r da sua inserção na estrutura produtiva dos campos sociais de origem e da sua integração nos aparelhos de poder das classes capitalistas, configurando a sua unificação enquanto classe e a sua hegemonia no modo de produção capitalista.

Finalmente, o capítulo "A função da técnica", de Maria de Lourdes Manzini Covre, analisa a técnica enquanto fator fundamental do processo de acumulação tanto na sua forma maquinada como em seu desdobramento imprescindível - a técnica organizacional. A autora mostra como é importante analisar a prática social dos detentores dessa tecnologia - os administradores, os tecnocratas e os tecnoburocratas. A partir de uma reflexão sobre o modelo econômico e político-social do pós-64 mostra como o Estado sofre um impasse contínuo em relação à classe operária e a sua racionalidade é cada vez mais desafiada pelas contradições nãoresolvidas, gerando impasses para um sistema apoiado na lógica da acumulação.

Se bem deva ser colocado o fato de tratar-se de textos com nível bastante desigual quanto à elaboração teórica, na medida em que alguns trabalhos representam síntese de pesquisa e outros apenas ensaios iniciais, o espírito dos textos reunidos é de trazer à tona as contradições implícitas pela introdução das novas tecnologias e das novas técnicas visando a racionalização e controle da força de trabalho.

Trata-se de um livro que ao apresentar reflexões em torno de experiências concretas, resultados sistematizados de pesquisa, análises críticas em torno das abordagens tradicionais na teoria da administração e reflexões sobre as formas de desenvolvimento do capitalismo contemporâneo e das lutas operárias, traz à tona questões da maior relevância para se compreender as lógicas que determinam não só o processo de acumulação de capital como as estratégias das classes dominantes.

Por outro lado, ao apresentar uma abordagem crítica, contrapõe-se à vasta literatura existente caracterizada pelo seu caráter descritivo e técnico.

No momento atual da transição política pelo qual atravessa a sociedade brasileira, torna-se cada vez mais necessário um debate aberto em torno dos problemas relacionados com a automação, o desemprego e a organização operária. Esta coietânea pode ser incluída, sem dúvida, entre as leituras necessárias para uma atualização e entendimento das estratégias das classes dominantes, das transformações no plano do processo de trabalho e da função da tecnologia e do controle cada vez mais sofisticado da força de trabalho, assim como da sua segmentação no processo de acumulação do capital.

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    Sobre este tema, ler o excelente artigo de autoria de Helena Hirata e Michel Freyssenet, Mudanças tecnológicas e participação dos trabalhadores: os Círculos de Controle do Qualidade no Japão
    Revista de Administração de Empresas. 25 (3), jul /set. 1985.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Set 1986
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