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A medicina na época do Descobrimento do Brasil e no início do ano 2000

Editorial

A medicina na época do Descobrimento do Brasil e no início do ano 2000

O convite do Dr. Maurício Wajngarten, novo editor da Revista da Associação Médica Brasileira, foi por mim aceito com certa relutância, com "mixed feelings", a conhecida expressão anglofônica: em primeiro lugar, o sentimento de gratidão pela honrosa incumbência de escrever o editorial do número da Revista que comemora o descobrimento do Brasil; em segundo lugar, a humildade de um velho, por acreditar que o convite foi motivado, provavelmente, pela influência da especialidade de quem convidou, pois trata-se de eminente cardiologista geriátrico e, por fim, o reconhecimento da dificuldade de fazer jús à confiança em mim depositada por me faltar a necessária base de filósofo e historiador. No fundo, ab imo corde, predominaram, porém, a vaidade, o desafio e a minha visão semi-secular da medicina.

Inicialmente, a comparação da medicina entre duas épocas separadas por meio milênio pode ser feita pela minha vivência da segunda época e pelos livros de história da medicina da primeira. A rigor, só Deus mesmo pode fazer um cotejo perfeito. A minha comparação, portanto, estará eivada de erros, espero que perdoáveis, com a atenuante que haja alguns acertos e idéias aproveitáveis.

O denominador comum das duas épocas é o homem, ou seja, principalmente, o médico. Assim, a sabedoria e a atitude do médico, esta baseada na compaixão característica da profissão, apresentam aspectos de semelhanças e de diferenças, alguns relacionados com os outros homens, os clientes, os pacientes, os usuários, sua educação, sua religião, suas ambições.

Entre as semelhanças, além da compaixão vocacional que continua a mesma, está o espírito de sacrifício do médico, apesar dos avanços científicos e tecnológicos, que auxiliam a fazer menos extenuante a vida do profissional da medicina. A consagrada descrição da figura do médico como um sacerdote da medicina ou um sacerdote-médico, não tem, hoje, o reconhecimento unânime tradicional, quer entre os doutores da saúde quer entre aqueles que destes se beneficiam. Figuras notáveis por personalizar os exemplos mais típicos e venerados, como o meu saudoso Prof. Celestino Bourroul, já não são tão freqüentes. É interessante notar que a atitude sacerdotal do médico na relação com o paciente, se por um lado perdeu a aura religiosa para a maioria, por outro lado na psiquiatria ela, em geral, se manteve e até se aprofundou, graças ao progresso verificado neste último século.

Tanto nos idos de 1500 quanto agora, a violência, em variados graus e formas, esteve e está presente. Por ter tido a "audácia" de usar o microscópio, logo depois que havia sido construído, com a finalidade de dar uma nova dimensão à anatomia e à medicina, Malpighi (1628-1694), um pesquisador reconhecido pela sua alta competência e extrema bondade, foi agredido e sua casa assaltada para destruir sua documentação científica. Os ataques não impediram, porém, que a revolução causada por Malpighi se consumasse, que ele fosse escolhido para ser arquiatra (médico do Papa) e que fosse considerado, recentemente, o "pai da anatomia microscópica" e o pioneiro da biologia celular.

Para defender Galeno (129-199 A.D.), cujas idéias e erros de anatomia estavam sendo corrigidos pelo famoso Vésale (1514-1564), foi usado um argumento absurdo pelo seu fanático discípulo Sylvius. Diante das provas apresentadas por Vésale, Sylvius chegou a declarar: "...então, a anatomia do homem deve ter mudado desde a descrição dada por Galeno, pois meu Mestre e Príncipe dos Médicos não podia ter errado!" Por mais que se creia na evolução, a anatomia humana não podia ter mudado desde Galeno, que viveu de 129 a 199 Annus Domini até 1514 a 1564, período em que viveu Vésale. Admirável mesmo somente a devoção, embora exagerada, do discípulo ao mestre, algo que hoje em dia não encontra muitos seguidores.

Mais tarde, Sappey (1810-1896) demonstrou o plágio cometido por Bauhin (1560-1624) ao se apropriar da descrição de Varolio (1544- 1575) para "descobrir", por assim dizer, a "válvula íleocecal", omitindo o nome do autor que o precedera. E para que esse fato não se repetisse, Sappey publicou no III volume do seu Tratado também a "sentença": "...este autor [Bauhin], portanto, é culpado de um ato de pirataria científica que a História, no seu rigor imparcial e inflexível, saberá estigmatizar".

Nos tempos modernos, há ainda poucos Sappeys e, infelizmente, vários Bauhins. Talvez os médicos estejam seguindo o conselho, que é também uma sentença, de meu saudoso mestre Prof. Renato Locchi, até certo ponto semelhante ao conselho de Virgílio a Dante, no Inferno da Divina Commedia: "a pior punição para os que, em benefício próprio, deixam de dar intencionalmente o devido crédito aos autores que os precederam é ignorá-los". A meu ver, é mais educativo, e tem efeito mais rápido, tomar a atitude de Sappey, ou a de Fulton, ao recomendar a sua "pedagogia agressiva": quando seus estudantes cometiam "erros imperdoáveis" ele os corrigia em altos brados e os sacudia pelos ombros, pois só assim evitava a repetição dos lamentáveis enganos...

Estas considerações conduzem à questão da ética que, depois de ter sido encarada com uma certa liberalidade, tende atualmente a voltar ao nível de rigor, compatível com a delicadeza das questões e com os riscos a que está exposto o médico, de quem dependem o bem-estar, a saúde, o prolongamento da vida e as numerosas e complexas condições apresentadas pelos pacientes.

Antigamente, as normas éticas dependiam "do berço", da família, da escola, do exemplo dos pais e dos professores. Recentemente, houve múltiplas alterações operadas na sociedade de um modo geral e forte influência do extraordinário e vertiginoso progresso científico e tecnológico em problemas clínicos e cirúrgicos. Diante disso, para evitar que as normas éticas perdessem o rigor com o qual elas devem ser obedecidas, foi necessário codificar, criar conselhos nacionais (até internacionais) e conselhos locais de diversas naturezas.

Lembro-me do curso de Deontologia Médica, ministrado pelo Prof. Flamínio Favero, de saudosa memória, que era apresentado, com a sua proverbial didática diplomática, às 17 horas de todas as terças-feiras, no 6º ano, como um ensino voluntário, no Departamento de Medicina Legal da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Cumpre assinalar que todos os doutorandos, sem exceção, assistiam as aulas com profundo interesse. Hoje apenas o ensino não é suficiente. Foi preciso também nomear comissões fiscalizadoras e punitivas. Quando o Brasil foi descoberto, tanto em Portugal, quanto aqui essas medidas não eram necessárias. Estes são, porém, outros tempos.

Na época do descobrimento, havia inicialmente colonizadores portugueses (marinheiros, acompanhados de uma centena de degredados) e os índios a serem colonizados. Se nas primeiras viagens médicos portugueses não se aventuraram a vir ao Brasil, a medicina (caseira) deveria ter chegado com os conhecimentos empíricos dos descobridores. Para cuidar da saúde dos indígenas encarregavam-se os pajés (chefes espirituais das tribos, que acumulavam as funções de sacerdote, de profeta e de médico-feiticeiro). Hoje, os jornais dão conta de modernos "pajés", que exercem ilegalmente a medicina. Esses casos raros lembram a época do descobrimento do Brasil e servem como referência para a extraordinária evolução da medicina brasileira, cujo desenvolvimento em certas áreas se caracteriza por um notável progresso científico e tecnológico e que pode ser equiparado ao da medicina dos países vanguardeiros, um eufemismo para primeiro mundo.

E no ano 2500? Alguém fará a comparação com dados mais objetivos, que me faltaram nesta oportunidade. O tempo dirá: vide Revista da AMB, número de Abril de 2500.

Prof. Dr. Liberato J. A. Di Dio

Professor Emérito e Diretor Emérito do Medical College of Ohio, USA, Professor de Anatomia Cirúrgica e Metodologia Científica, UNISA, Pesquisador Senior do CNPq, Instituto do Coração-USP, UMC, UNIMES

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Out 2000
  • Data do Fascículo
    Jun 2000
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