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Sede: onde estamos?

Atualização

Clínica Cirúrgica

SEDE: ONDE ESTAMOS?

Com o passar dos anos, o tratamento do doente grave, internado em unidades de terapia intensiva, passou a ser um desafio progressivamente mais complexo. Um verdadeiro pesadelo, em algumas circunstâncias. De fato, a UTI é o berço de uma nova espécie humana, o Homo sapiens intensivensis, que possui uma fisiologia própria e mal compreendida, resultado da somatória de vários fatores, entre os quais destacam-se a idade avançada, a presença de doenças crônicas, o uso de fármacos os mais variados e, particularmente, os imensos investimentos terapêuticos que mantêm vivos seres humanos que, até há poucos anos, fatalmente morreriam. Toda a estrutura funcional de nossa espécie, que demorou milhões de anos para solidificar-se através de um lentíssimo processo de seleção natural, é atropelada por síndromes desconhecidas até há poucos anos. É a síndrome da insuficiência de múltiplos órgãos e sistemas, a síndrome da resposta inflamatória sistêmica, a síndrome séptica, para mencionar apenas as mais comumente mencionadas. Dentro deste novo mundo, no qual existe grande perigo de se perder o rumo em virtude das dificuldades geradas pelo vocabulário repleto de neologismos complexos e mal definidos, é comum que o médico fique desorientado quando submetido a assaltos de produtos farmacológicos recentemente lançados ou de avanços tecnológicos de última geração. Vou comentar, brevemente, um assunto que me parece de grande importância: a chamada "Síndrome Ero-siva Devida ao Estresse" ou SEDE, entidade que, durante muitos anos, constituiu-se em uma das grandes preocupações de todos os que cuidavam de doentes críticos. Embora descritas há vários anos em determinados grupos de doentes, notadamente nos grandes queimados e nas vítimas de traumatis-mos cranianos, as lesões agudas da mucosa gástrica relacionadas ao estresse foram devidamente catalogadas apenas nos anos 703. Conhecem-se, hoje, suas características morfológicas, sua localização preferencial e, pelo menos em parte, sua história natural. Acredita-se que sua gênese se deva muito mais à redução da resistência da mucosa pela falta de nutrientes e de oxigênio, do que à ação do pH, seja ele ácido ou alcalino. Embora quando sangram costumem resultar, habitualmente, em perdas insignificantes, sabe-se que elas podem exteriorizar-se através de hemorragia volumosa e que, quando isto ocorre, as taxas de mortalidade aumentam1. Tudo indica, entretanto, que sangramentos significativos são raros, e possivelmente ocorrem em não mais de 1% a 2% por cento dos casos2. Principalmente, sabe-se que a única forma eficaz de preveni-las e de tratá-las é pelo controle das causas determinantes, habitualmente hipóxia, hipoperfusão e infecção. O fato é que, nos primórdios da terapia intensiva, há apenas algumas décadas, as hemorragias digestivas altas por lesões agudas da mucosa gástrica eram freqüentes e não raramente fatais. Sua etiopatogenia era mal compreendida. Estes fatos geraram uma verdadeira neurose de prevenção farmacológica. Como conseqüência, antiácidos inicialmente e depois bloqueadores H2 e inibidores da bomba de prótons foram sendo adotados, através dos anos, como itens obrigatórios da prescrição de qualquer doente crítico. Em UTI ou fora dela. Deixar de prescrevê-los passou a ser sinônino de desleixo ou de desconhecimento. Progressivamente, o que é mais chocante, tais produtos passaram a ser usados indiscriminadamente no pós-operatório de qualquer intervenção cirúrgica. Desde uma correção de eventração até, pasmem, uma gastrectomia por câncer gástrico. Para que? perguntarão. Embora eu possa imaginar várias respostas, e nem todas muito convenientes, a que tenho recebido tem sido, invariavelmente, que é para "prevenir úlcera de estresse"! Pergunto, então, quando meu interlocutor viu a última úlcera de estresse? Depois de alguma hesitação, a resposta padrão é que não lembra, mas que este fato se deve, provavelmente, ao uso das pedidas farmacológicas acima mencionadas... Chegou a hora de parar para pensar. A análise da literatura não permite qualquer conclusão definitiva em apoio ao uso de fármacos destinados a promover a profilaxia da SEDE. Há estudos que apóiam o uso de antiácidos convencionais. Outros sugerem o uso de bloqueadores H2 ou de protetores de mucosa gástrica. Há quem defenda o uso de análogos de prostaglandinas e de outros agentes mais exóticos. Na prática, entretanto, não há qualquer evidência conclusiva de que o uso profilático de medidas farmacológicas possa reduzir as taxas de mortalidade por hemorragia digestiva alta por SEDE. Em contrapartida, há estudos clínicos não apenas questionando o uso profilático de qualquer medida farmacológica, mas também sugerindo que a elevação do pH gástrico possa ser um dos fatores responsáveis pela colonização do tubo digestivo por germes hospitalares e, em decorrência, pela elevação das taxas de infecções das vias respiratórias e dos pulmões4. Está na hora de revermos nossa conduta particularmente porque, se mal não faz ao doente, o que é questionável, seguramente resulta em elevação desnecessária dos custos.

DARIO BIROLINI

Referências

1. Beejay U, Eolfe MM. Acute gastrointestinal bleeding in the intensive care unit. The gastroenterologist´s perspective. Gastroenterol. Clin North Am 2000, 29: 275-307.

2. Cook DJ, Witt LG, Cook RJ. et al. Stress ulcer prophylaxis in the critically ill: A meta-analysis. Am. J. Med. 1991, 91(5):519-27.

3. Lucas CE, Sugawa C, Riddle J, Rector F, Rosenberg B, Walt J. Natural history and surgical dilemma of estresse gastric bleeding. Arch Surg 1971; 102:266-73.

4. Zandstra DF, Stoutenbeek CP. The virtual absence of stress-ulceration related bleeding in ICU patients receiving prolonged mechanical ventilation witho-ut any prophylaxis: A prospective cohort study. Intensive Care Med 1994; 20: 335-40.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jan 2002
  • Data do Fascículo
    Dez 2001
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