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Estudos supérfluos são antiéticos

PANORAMA INTERNACIONAL

MEDICINA FARMACÊUTICA

Estudos supérfluos são antiéticos

Uma pesquisa científica sempre procura resposta a uma indagação. Em medicina, a resposta obtida para esta indagação tem que ser reprodutível para ser crível. Somente após diversos investigadores, em diferentes lugares, realizarem uma mesma pesquisa, pode-se fazer uma generalização da resposta. Aí, então, as conclusões são postas em prática.

Mas um problema pouco discutido pela comunidade científica envolve certas perguntas que são repetidas inúmeras vezes, mesmo quando a resposta já é conhecida ou deveria sê-lo1. Esta repetição significa, no mínimo, uma perda de dinheiro e de tempo. Pior do que isso, tais repetições podem ser antiéticas, pois podem custar vidas. Alguns estudos recentes mostram exemplos marcantes da repetição supérflua de investigações e suas conseqüências.

Recente artigo de autores canadenses faz uma apreciação que abrange 18 anos de pesquisa sobre a aprotinina, um fármaco usado para reduzir o sangramento durante cirurgias cardíacas2. Os autores levantaram 64 artigos randomizados, publicados a partir de 1987, distribuídos por 12 países.

Dois terços deste total eram variações sobre uma mesma questão. E quase todos indicaram que os pacientes que recebiam aprotinina sangraram menos. Esta vantagem se tornou evidente em junho de 1992, após o 12º estudo. Os autores desta revisão afirmam que os pesquisadores não teriam justificativa para fazer estudos posteriores se considerassem toda esta produção científica anterior, particularmente os estudos de revisão de tipo metaanálise. Eles deduzem, portanto, que os autores não fizeram uma revisão cuidadosa de tudo que fora publicado previamente. Nos 64 artigos, os pacientes foram distribuídos de forma randômica para receber aprotinina ou placebo. Em geral, não houve diferença na mortalidade entre os dois grupos, mas os que receberam o fármaco sangraram menos.

Revisão sistemática conduzida por Gilbert et al. destaca o potencial aumento da mortalidade devido à repetição indevida das pesquisas, ao abordar o problema da morte súbita na infância, ou síndrome da morte no berço, que atinge crianças com até um ano de idade e que vêm a falecer sem uma causa demonstrável3.

No passado, com receio de vômito seguido de aspiração, as mães eram aconselhadas pelos pediatras a colocar os bebês pequenos em decúbito prono durante o sono. Esta afirmação não possuía uma base científica. Diversos estudos comprovaram que este decúbito aumentava sete vezes o risco de morte súbita. Uma compilação dos estudos feitos até 1970 teria tornado evidente a enorme diferença de riscos, mas os estudos observacionais continuaram a ser feitos até o início da década de 90. Nesta década, foram encetadas campanhas oficiais, em alguns paises desenvolvidos, a favor da indicação da posição supina. Entre 1970 e os anos 90, milhares de crianças teriam sido poupadas da morte no berço se houvessem sido corretamente considerados corretamente os estudos sobre o decúbito para o sono do recém-nascido e pequeno lactente3.

Comentário

O artigo do Washington Post é uma avaliação crítica de um desvio na atitude relacionada à pesquisa clínica. A busca sistemática na literatura disponível sobre qualquer questão médica deve ser uma conduta padrão de todo pesquisador. Assim como as grandes revistas médicas agora exigem o registro da pesquisa num website público4, já se cogita em exigir de cada autor (ou candidato a autor) que seja feita uma pesquisa sistemática sobre a dúvida cientifica que motivou a investigação e, como corolário, a submissão do artigo ao periódico.

As motivações para a repetição de estudos variam. Se um fármaco tem preço elevado, como é o caso da aprotinina, há estímulo para testar diferentes doses. Além disso, há algum interesse em se comprovar a eficácia em populações diferentes daquelas em que o produto já foi testado. Em certos países, é obrigação legal a realização de estudos locais para a aprovação do produto. Existe até o risco de se ter algum estudo com forte motivação para servir de apoio ao marketing do produto.

Quanto à morte súbita no berço, a repetição tem mais justificativa porque os estudos observacionais são menos persuasivos do que estudos que tenham intervenção e distribuição randômica dos sujeitos, como é o caso da comparação entre placebo e aprotinina na prevenção de hemorragia durante a cirurgia.

Ana Claudia Aligieri

Paulo Aligieri

Referências

1. Brown D. Superfluous medical studies called into question. Washington Post 2006 jan 02. p.A06. Avaliable from: http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2006/01/01/AR2006010100749.html?sub=AR.

2. Fergusson D, Glass KC, Hutton B, Shapiro S. Randomized controlled trials of aprotinin in cardiac surgery: could clinical equipoise have stopped the bleeding? Clin Trials. 2005;2(3):218-29.

3. Gilbert R, Salanti G, Harden M, See S. Infant sleeping position and the sudden infant death syndrome: systematic review of observational studies and historical review of recommendations from 1940 to 2002. Int J Epidemiol. 2005; 34(4):874-87.

4. De Angelis CA, Drazen JM, Frizelle FA, Haug C, Hoey J, Horton R, Kotzin S, et al. Clinical trial registration: a statement from the International Committee of Medical Journal Editors. Lancet 2004;364(9438):911-2.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Ago 2006
  • Data do Fascículo
    Ago 2006
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